Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1213/12.8TBVFR-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: EXECUÇÃO CONTRA AVALISTA
Nº do Documento: RP201407091213/12.8TBVFR-B.P1
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Do artº 217º, nº 4, do CIRE, aplicável ao PER, resulta que, não obstante o plano de recuperação aprovado, o avalista de livrança subscrita pelo devedor avalizado pode ser executado pelo respectivo portador.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 1213/12.8TBVFR-B.P1 – 3.ª

Relator: José Fernando Cardoso Amaral (nº 180)
Des. Dr. Trajano Amador Seabra Teles de Menezes e Melo (1º Adjunto)
Des. Mário Manuel Batista Fernandes (2º Adjunto)

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO
No 3º Juízo Cível da Comarca de Santa Maria da Feira, B… deduziu, em 19-03-2013, oposição à execução que, na qualidade de avalista de uma livrança subscrita pela sociedade “C…, SA”, contra ele instaurou o Banco D…, SA.
Alegou que a subscritora por ele avalizada apresentou Processo Especial de Revitalização e, no âmbito deste, foi acordado com os credores um Plano de Recuperação, aprovado e depois judicialmente homologado por decisão transitada, no qual foi perdoado 60% do crédito de capital, os juros e outros encargos financeiros, nessa medida se tendo extinguido e lhe sendo inexigível, tal como, aliás, a parte restante, nos termos do dito plano.
Concluiu pedindo que, na procedência, a exequente seja condenada a reconhecer tal efeito.
Contestou o exequente, defendendo que, apesar do Plano (contra o qual votou) mas tratando-se de obrigação cambiária anterior, esta não é por ele afectada.
Subsequentemente, foi proferida decisão que julgou totalmente improcedente a oposição e determinou o prosseguimento da execução, de cuja fundamentação jurídica se transcreve:
“Dispõe o artigo 30º da LULL (aplicável ex vi do artigo 77º do mesmo diploma), que o aval é a garantia dada por um terceiro ou mesmo por um signatário da letra que garante o pagamento dessa mesma letra no todo ou em parte.
O aval apresenta-se como uma garantia da obrigação cambiária cujo pagamento visa garantir. É só por si um verdadeiro acto cambiário que dá origem a uma obrigação autónoma e independente da relação subjacente
A função do aval é uma função de garantia, inserida ao lado da obrigação de um certo subscritor cambiário, a cobri-la ou caucioná-la, sendo o dador do aval, nos termos do artigo 32º, nº1, da LULL responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, o que significa que a medida da responsabilidade do avalista é a do avalizado.
De acordo com o Prof. Ferrer Correia, in Letra de Câmbio, pág.196 “o fim próprio, a função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário”.
O aval integra uma obrigação de garantia, dada por uma pessoas a favor de outra que já é obrigada na letra ou livrança, obrigação que ela pode ser chamada a cumprir independentemente de excussão prévia dos bens da pessoa por quem se vinculou, pois que, nos termos do artigo 44º da LULL, os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas são todos solidariamente responsáveis para com o portador, e este tem o direito de accioná-las individual ou conjuntamente.
Daqui decorre que o avalista não é sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas da relação subjacente à obrigação cambiária estabelecida entre ele e o seu avalizado. O aval também possui uma relação subjacente, constituída pela relação jurídica que se estabelece entre o avalista e o avalizado e com base na qual é prestado o aval.
Assim sendo, como se nos afigura ser, a obrigação do avalista é uma obrigação materialmente autónoma da do avalizado, ainda que formalmente dependente desta, pois o avalista responsabiliza-se pela pessoa que avaliza, assumindo a responsabilidade, abstracta e objectiva, pelo pagamento do título, sendo que a sua obrigação subsiste independentemente da obrigação do avalizado.
Do exposto regime resulta, a nosso ver, que a circunstância de ocorrerem modificações na relação subjacente (quer quanto ao montante, quer quanto aos prazos de pagamento) não tem a virtualidade de permitir que as mesmas se transmitam à obrigação cambiária, pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante acção cambiária, perante o avalista para obter a satisfação das quantias tituladas nas livranças.
Este regime de autonomia da obrigação do avalista está, de resto, conforme com o preceituado no nº4 do artigo 217º do CIRE, que estabelece que “as providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos”.
Lê-se em anotação a tal preceito, no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, de Carvalho Fernandes e João Labareda, na pág. 724, “…seja qual for a posição assumida no processo, o credor mantém incólumes os direitos de que dispunha contra condevedores e terceiros garantes, podendo exigir deles tudo aquilo por que respondem e no regime de responsabilidade originário.”
A propósito desta problemática já se pronunciaram os nossos tribunais superiores, citando-se a título exemplificativo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 26.02.2013, publicado in www.dgsi.pt, cujo entendimento, com a devida vénia, subscrevemos e que se mostra assim sumariado: “I- O aval é uma garantia prestada à obrigação cartular do avalizado. II- O avalista não é sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas da relação subjacente à obrigação cambiária estabelecida entre ele e o avalizado. III- A razão de ser do artigo 32º da LULL é constituir o aval um acto cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma. IV- A obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade provier de vício de forma. V- Por via dessa autonomia, o avalista não pode defender-se com as excepções que o seu avalizado pode opor ao portador do título, salvo a do pagamento. VI- A aprovação de um plano de insolvência, com moratória para pagamento da dívida, de que beneficia a sociedade subscritora da livrança não é invocável pelos avalistas contra quem é instaurada a execução para seu pagamento.”
Em conclusão: a aprovação do plano de recuperação, no âmbito do processo especial de revitalização, da sociedade que subscreveu as livranças dadas à execução, - que prevê um conjunto de medidas que só se aplicam à sociedade insolvente -, e onde se contempla uma moratória para o cumprimento das suas obrigações e um perdão parcial do montante em dívida, não é invocável pelo avalista/aqui oponente, contra quem o banco portador das livranças instaurou a execução de que estes autos são apensos, para obter o seu pagamento.”
O executado não se conformou e interpôs recurso para esta Relação, concluindo assim as suas alegações:
“Deve assim revogar-se a douta decisão proferida, porquanto:
1. conforme resulta de fls…o Alegante opôs-se à referida execução através de Embargos de Executado e alegou o que acima se transcreveu e se dá por integralmente reproduzido;
2. A questão levantada na oposição, por ser pertinente, é questão essencial para se apurar não só o valor em dívida da execução, como se, em face da aprovação do plano de insolvência, este obsta á execução contra os avalistas das obrigações da insolvente, até por não estar vencido o respectivo crédito;
3. Conforme está também demonstrado nos autos, os títulos em causa não só não saíram das mãos do Exequente-Oposto, e assim sendo, aos avalistas é lícito opor e socorrerem-se das excepções que poderia opor o avalizado, como este está vinculado a novo prazo de recebimento total e integral do mesmo crédito;
4. Ora, porque as mesmas obrigações, estão regularizadas no âmbito do PER aprovado, não podem ser exigidas de forma diversa aos avalistas, até porque não existe já um qualquer incumprimento, e pois aquela não pode sequer figurar na execução… e nem os avalistas podem intervir no PER;
5. Assim sendo, e porque a aprovação do PER faz nascer uma nova dívida, suportada num novo título, com novos valores e prazos, e sendo certo neles não intervieram os avalistas, in casu o ora Apelante, será até inconstitucional a presente pretensão, porquanto, face ao disposto no artº 522º do Cod. Civil, é-lhes possível opor aquele plano aprovado, e pois, fazendo caso julgado para todas as partes, por não conter qualquer excepção aí imposta aos avalistas;
6. Com efeito, interpretar-se o citado artº 217º do CIRE, de forma a que o acordo dos credores vincula apenas o aceitante beneficiário, e exclui o avalista, sem a sua intervenção, representa um logro pois, por um lado, em relação ao principal beneficiário, este está este coberto pela nova obrigação, em condições especiais de pagamento e nos prazos aí definidos, mas os avalistas, porque não são credores, tal acordo não lhes aproveita, ou seja, não os vincula, e legitimaria a presente exigência de pagamento, em moldes diversos, com pretensão de pagamento imediato, total e integral dos respectivos créditos!...
7. Não faz hoje qualquer sentido esta duplicidade, no tocante á exigência da obrigação inicial, até porque os avalistas nem sequer podem participar no PER, fazendo-se depois tábua rasa do decidido em relação ao beneficiário principal, e venha o credor executar os avalistas pela totalidade da dívida, e de forma diferente á aprovada naquele plano!.
8. Aliás é manifesto, após a aprovação do plano, o título original desapareceu, doravante é o plano aprovado e constitui este o respectivo título obrigacionista, não estando em causa sequer um qualquer benefício in casu, não só porque se aumentaram as garantias patrimoniais aos credores, com todo o património da empresa que passou a ser responsabilizado, como porque o mesmo plano contempla o pagamento total e integral da dívida exequenda, embora em prazo e moldes diferentes e acrescido dos juros cambiários ajustados;
9. Não parece pois razoável sequer aceitar-se depois que o credor vá executar os avalistas, obtendo o ressarcimento do seu crédito concedido aquele, e com base no título primitivo, usando assim dois títulos distintos e de forma diferente, parecendo ser uma situação contrária aos princípios gerais e fundamentos do nosso direito e até os vigentes na ordem jurídica comunitária, à qual estamos vinculados.
10. Deve assim entender-se, com a aprovação do PER - de resto até objecto de lei especial ,e como tal, para além do CIRE, com contornos bem precisos - tem de repercutir-se necessariamente na relação processual estabelecida entre credor /exequente e avalistas, os seus efeitos, sendo fundamento válido para oposição no processo executivo instaurado, e causa superveniente conexa com a modificação da obrigação, e até por não ter decorrido o prazo do seu cumprimento;
11. Devem assim ser julgados procedentes os embargos deduzidos, com fundamento em violação do disposto nos artigos 217º do CIRE; 522º do Cod. Civil; 47º da LULL; artigos 158º,659º,668 alínea d), do CPC.
Devendo assim, face ao supra exposto serem admitidos os embargos, julgando-se pois procedente e provada a Oposição, para se fazer JUSTIÇA!!!!!”

Não houve resposta.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata nos autos e efeito meramente devolutivo.
Corridos os Vistos legais, cumpre decidir uma vez que nada a tal obsta.
II. QUESTÕES A RESOLVER
Sendo as conclusões que definem o thema decidendum e balizam os limites cognitivos deste tribunal – como era e continua a ser de lei e pacificamente entendido na jurisprudência (artºs 608º, 635º, nº 4, 636º, nºs 1 e 2, e 639º) –, no caso, vistas as apresentadas, resulta que são estas as questões postas e que nos compete apreciar e decidir:

a) Violação dos artigos 154º e 615º, alínea d), do CPC.
b) Efeitos do Plano aprovado quanto ao avalista.

III. FACTOS PROVADOS

A sentença recorrida considerou os seguintes, que se fixam:

“- O banco exequente é dono e legítimo portador das livranças dadas à execução: no montante de €1.424.062,50, vencida em 10.02.2012, subscrita pela sociedade “C…, SA”, em garantia do cumprimento das obrigações emergentes de Adiantamentos de Remessas de Exportação, e avalizada a favor da subscritora pelos executados E… e mulher F…, G… e mulher H… e B…; no montante de €2.594.565,60, vencida em 24.02.2012, subscrita pela sociedade “C…, SA”, em garantia do cumprimento das obrigações emergentes do Contrato de Organização, Registo e Garantia de Colocação de Papel comercial, celebrado em 07.09.2006, com posteriores aditamentos/alterações, e avalizada a favor da subscritora pelos executados E… e mulher F…, G… e mulher H… e B….
- A sociedade C…, SA requereu, em 04.06.2012, um processo especial de revitalização, que correu termos sob o nº2972/12.3TBVFR, no 2º Juízo cível do Tribunal de Santa Maria da Feira.
- No âmbito do referido processo foi aprovado e homologado por sentença, já transitada em julgado, um plano de recuperação, aprovado com o voto favorável dos credores representando 71,43%, que prevê, no que diz respeito aos créditos reclamados pelo banco exequente, o seguinte:
- perdão de 60% do valor do capital e perdão dos juros vencidos e encargos financeiros.”

IV. APRECIAÇÃO/SUBSUNÇÃO JURÍDICA

a) O apelante remata as suas alegações aludindo – sem mais nada dizer – à violação dos artigos 154º e 615º, alínea d), do CPC.

Referem-se tais normas à necessidade de fundamentação e à omissão ou excesso de pronúncia.

Não indica, minimamente, onde e por que razão a decisão recorrida sofrerá de qualquer falta, a tal nível.

Por isso, nem sequer é susceptível de conhecimento o eventual vício.

b) O nº 5, do artº 17º-F, do CIRE, relativamente à homologação do plano de recuperação em processo especial de revitalização manda aplicar, com as necessárias adaptações, as regras na matéria vigentes quanto ao plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artºs 215º e 216º.

Tal capítulo compreende os artºs 192º a 222º e dispõe, designadamente, sobre a aprovação e homologação do plano de insolvência, bem como sobre a sua execução e efeitos.

Relativamente ao PER, nenhuma outra norma a tal se refere, a não ser o nº 6, do citado artº 17º-F: a decisão do juiz vincula todos os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações.

Ninguém duvidando que no mais, quanto aos credores do devedor e a terceiros, nomeadamente garantes, se aplicam as normas gerais do CIRE – isso não vem aqui questionado, antes é pressuposto – salientam-se, a propósito as normas do artº 192º, nº 3, segundo o qual “o plano só pode afectar por forma diversa a esfera jurídica dos interessados, ou interferir com direitos de terceiros, na medida em que tal seja expressamente autorizado neste título ou consentido pelos visados” (indicações que devem constar claramente dele, por força do artº 195º, nº1) e, bem assim, do artº 217º, relativo aos efeitos gerais e do qual decorre que as alterações dos créditos sobre a insolvência introduzidas pelo plano produzem-se independentemente de tais créditos terem sido ou não reclamados e verificados; que a sentença homologatória confere eficácia a quaisquer actos ou negócios jurídicos naquele previstos “desde que constem do processo, por escrito, as necessárias declarações de vontade de terceiros e dos credores que o não tenham votado favoravelmente”; e, ainda, quanto ao efeito das providências referidas no artº 196º, no que tange a direitos dos credores sobre condevedores e terceiros.

A questão colocada no recurso está, a nosso ver, claramente solucionada na lei, em termos que têm gerado consenso na jurisprudência e impõem que se negue mérito à argumentação esgrimida pelo apelante e, consequentemente, que, sem grande demora, se julgue improcedente a apelação.

Com efeito, em termos algo diversos do que sucedia no antigo CPEREF – o que logo afasta doutrina e jurisprudência construída no domínio da sua vigência[1] de sentido contrário àquele para que ora propendemos – o artº 217º, nº 4, do actual CIRE, regula o problema dos efeitos produzidos pelas providências aprovadas no Plano em relação aos terceiros garantes de obrigações do devedor, dispondo, apesar das alterações reconhecidas pelo nº 1 consequentes à sua homologação, que: “As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos”.

Trata-se, na expressão de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[2], de norma “verdadeiramente nova” quanto à “disciplina que consagra”, diferente da opção acolhida no CPEREF.

Como aí se noticia, no regime anterior, “quando os credores houvessem votado favoravelmente qualquer providência de recuperação, ou, independentemente disso, a tivessem aceitado, os seus direitos contra co-obrigados e garantes ficavam afectados na medida da extinção ou modificação dos respectivos créditos relativamente à devedora recuperada”.

Porém, explicam aqueles autores, o legislador mudou de orientação “de sorte que agora, seja qual for a posição assumida no processo, o credor mantém incólumes os direitos de que dispunha contra condevedores e terceiros garantes, podendo exigir deles tudo aquilo por que respondem e no regime de responsabilidade originário.”

Trata-se, pois, independentemente das consequências e do desagrado, nomeadamente para os garantes, de uma opção legislativa, logo de cariz político, cujo respeito se nos impõe por força dos artºs 203º, da Constituição, e 8º, do Código Civil, desde que nela se não perscrute – como no caso – qualquer indício de afronta a normas ou princípios constitucionais, de direito internacional ou fundamentadores do nosso sistema jurídico.

Secundando-se aqui as considerações tecidas pela sentença recorrida em torno da natureza e características das obrigações em causa, destrinça entre a relação cambiária (vinculante de subscritor e avalista) e a correspondente relação subjacente e a definição, função e finalidades do aval – e que podemos bordar ainda com as (por exemplo) tecidas exaustivamente sobre a matéria no Acórdão Uniformizador do STJ nº 4/2013[3] e em que nos louvamos particularmente quanto à autonomia, independência e abstracção de tal garantia – não encontramos razões para divergir do caminho tomado pela Jurisprudência, praticamente unânime, que consultámos e ponderámos.

Claro que, nos termos dos artº 32º e 47º, da LULL (aplicáveis ex vi do artº 77º), o dador de aval responde solidariamente[4] da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.

Todavia, o sentido e aplicação de tais normas têm de ser conjugados e harmonizados com as do processo de insolvência e à luz dos específicos interesses e finalidades que informam o respectivo regime, mormente a do citado artigo 217º, nº 4.

É isso que tem sido feito na Jurisprudência em termos que respondem às objecções suscitadas pelo apelante.

Nessa linha, entende e explica o STJ[5]: “A razão de ser do referido art. 32 é ser o aval um acto cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma.
A obrigação do avalista é uma obrigação materialmente autónoma, ainda que formalmente dependente da do avalizado, pois o avalista responsabiliza-se pela pessoa que avaliza, assumindo a responsabilidade, abstracta e objectiva, pelo pagamento do título.
Com efeito, a obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade desta provier de um vício de forma – art. 32 da LULL.”

E, depois, transcrevendo parcela do já referido Acórdão Uniformizador nº 4/2013, onde se enfatiza a autonomia, independência, emancipação, literalidade e abstracção da obrigação cartular do avalista em face da relação subjacente, continua:

“O avalista não é responsável ou não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado, mas tão só ao pagamento da quantia titulada no título de crédito.
A obrigação firmada pelo avalista é perante a obrigação cartular e não perante a relação subjacente.
Do que ficou dito supra, o avalista não se obriga perante o avalizado, mas sim perante o titular da letra ou livrança, constituindo uma obrigação autónoma e independente e respondendo como obrigado cartular, pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança.
A circunstância de ocorrerem vicissitudes na relação subjacente não captam a virtualidade de se transmitirem à obrigação cambiária, pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante acção cambiária, perante o avalista para obter a satisfação da quantia titulada na letra.
A circunstância da relação subjacente se modificar ou possuir contornos de renovação não induz ou faz seguir que esses efeitos se repercutam ou obtenham incidência jurídica na relação cambiária.
A relação cambiária constituída permanece independente às mutações ou alterações que se processem na relação subjacente, não acompanhando as eventuais transformações temporais e/ou de qualidade da obrigação causal”.

Salientando e invocando doutrina e jurisprudência no sentido de que o avalista não pode defender-se com as excepções que o seu avalizado pode opor ao portador do título, salvo a do pagamento, conclui:

“Esta doutrina da autonomia da obrigação do avalista está conforme e harmoniza-se perfeitamente com o preceituado no art. 217, nº4, do CIRE […].
Daí que, no caso do aval em questão, não se mostrem violados os invocados art. 8º, nº1, da Constituição da República, nem os arts 32 da LULL e 217, nº4, do CIRE.
É, pois, de concluir que a aprovação do plano de insolvência da sociedade subscritora da livrança […], onde passou a existir uma moratória para o cumprimento das suas obrigações, quanto ao pagamento dos seus débitos, não é invocável pelos respectivos avalistas, ora recorrentes, contra quem o Banco portador da mesma livrança instaurou a presente execução para obter o seu pagamento.
Na verdade, o plano de insolvência é constituído por um conjunto de medidas que só se aplicam à sociedade insolvente.
Ao votar a favor de tal plano, o credor fá-lo apenas por se tratar de medidas aplicáveis a uma sociedade que está numa particular situação de impossibilidade de cumprir as suas obrigações para com os credores.
Não seria razoável que o credor ficasse inibido de accionar os respectivos avalistas, que não são insolventes, nem se encontram impossibilitados de cumprir as obrigações que livremente assumiram, face à autonomia da obrigação do aval que prestaram.
Com efeito, o credor do insolvente, ao votar favoravelmente um plano de insolvência, fá-lo apenas em relação ao insolvente.
Os garantes estão fora do âmbito da insolvência e do que nesta se delibera.”

Sendo a obrigação cambiária do avalista abstracta, apenas formalmente ligada à do avalizado em que se apoia – nisso se esgotando a sua característica acessoriedade – mas material ou substancialmente desvinculada, autónoma e independente, a ponto de ela se manter, ainda que a obrigação garantida seja nula por qualquer razão (salvo vício de forma), implicando uma responsabilidade, directa e pessoal[6], distinta da daquele, que não contempla sequer oposição, pelo avalista, das excepções pessoais do avalizado em relação ao portador do título, compreende-se a coerência com o regime adoptado no nº 4, do artº 217º, do CIRE.

Assim se decidiu já na Relação de Guimarães[7], na de Lisboa[8] e nesta[9], não se encontrando, nem o apelante mostrando, razões convincentes para divergir, como se fez no invocado Acórdão de 24-04-2012, cuja perspectiva e solução colidem com o entendimento predominante e que abraçamos sem relutância.

De qualquer modo, note-se, já o artº 63º, do CPEREF, ressalvava dos efeitos das providências de recuperação os direitos dos credores contra os co-obrigados ou os terceiros garantes que não as tivessem aceitado ou aprovado, hipótese que, neste caso, o apelante não refutou, muito menos demonstrou e o apelado negou, dizendo até que votou contra (item 26 da sua contestação). Isso mesmo não deixou de se salientar no Acórdão do STJ, de 04-12-2007[10], que o apelante a seu favor invoca mas dele citando uma parte truncada dessa referência precisamente constante do parágrafo anterior respectivo que, por isso e por distante do regime actual, é aqui irrelevante. Tal como o é o também citado Acórdão desta Relação de 12-02-1996[11], de que apenas se conhece o sumário e, em todo o caso, também foi proferido no domínio de diferente legislação.

De resto, os argumentos de que a aprovação do Plano deve “forçosamente” – ao arrepio do nº 4, do artº 217º, do CIRE, para que se preconiza uma “interpretação coerente” – ter efeitos na relação (material e processual) do credor/exequente com o executado/avalista e vincular “todas as partes”, de que se trata de “interpretação mais equitativa” e consonante com “a nossa tradição jurídica” e a possibilitar a oposição daquele nos termos dos artºs 47º, da LULL, e 522º, do CC, não se apresentam com qualquer base plausível nem se coadunam com as razões acima expostas, muito menos como o preconizado “logro”, sendo de rejeitar.

Tal como o são os vagamente invocados “abuso de direito”[12], contrariedade a “princípios gerais e fundamentais” da nossa ordem jurídica e da comunitária, e “inconstitucionalidade”, para que se não invoca mínimo fundamento.

Também a alusão de que o Plano implica uma “nova dívida”, um “novo título” e que “o título original desapareceu”, bem como a inferência a partir daí tirada de que não existe a possibilidade nem se verificam as condições para o apelado executar o apelante, improcedem também face a tudo quanto foi exposto a propósito da obrigação do avalista na perspectiva da medida aprovada.

Não merece, pois, provimento o recurso, devendo confirmar-se a decisão recorrida.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas pelo apelante – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).

Notifique.

Porto, 09-07-2013
José Amaral
Teles de Menezes
Mário Fernandes
____________
[1] Como tentou o apelante.
[2] CIRE Anotado, Quid Juris, 2008, página 724.
[3] Datado de 11-12-2012, publicado no DR, 1ª série, nº 14, de 21-01-2013, maxime páginas 436 a 438.
[4] Solidariedade imprópria, como se explica A. Pereira Delgado en nota ao artº 47º, da LULL.
[5] Acórdão de 26-02-2013, cujo sumário, aliás, na decisão recorrida (Relator: Consº Azevedo Ramos).
[6] “O avalista não assegura que o avalizado pagará, mas sim que o título será pago; não participa da obrigação dos outros, mas, ao invés, fá-la própria (non alienae obligationi accedit sed alienam facit propriam); a designação da pessoa a favor a quem se presta o aval tem tão só a finalidade de fazer assumir ao avalista uma responsabilidade cambiária de igual grau que a do avalizado” – citado AU nº 4/2013, página 438.
[7] Acórdãos de 04-12-2008 (Raquel Rego), de 05-12-2013 (Heleno Melo), de 30-05-2013 (Manuel Bargado) e de 17-12-2013 (Edgar Gouveia Valente).
[8] Acórdão de 26-06-2012 (Pedro Brighton).
[9] Acórdão de 12-09-2013 (Teresa Santos).
[10] Relator: Consº Salvador da Costa.
[11] Relator: Desemb. Guimarães Dias.
[12] Ainda assim, sobre esta matéria, cfr. o Acórdão desta Relação de 08-03-2012, proferido sobre caso similar, onde se refutam proficientemente tal hipótese.
__________
Sumário:
Do artº 217º, nº 4, do CIRE, aplicável ao PER, resulta que, não obstante o plano de recuperação aprovado, o avalista de livrança subscrita pelo devedor avalizado pode ser executado pelo respectivo portador.

José Amaral