Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1548/10.4TBVCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
TESTAMENTO
VONTADE DO TESTADOR
Nº do Documento: RP201407031548/10.4TBVCD.P1
Data do Acordão: 07/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O Tribunal da Relação só pode modificar a decisão da matéria de facto se constarem do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos impugnados da matéria de facto.
II - A omissão do auto de inspecção judicial é uma nulidade secundária que tem de ser arguida pelas partes no próprio acto; não tendo sido arguida em devido tempo nem nas alegações de recurso e não sendo de conhecimento oficioso, a Relação está impedida de conhecer e declarar a nulidade.
III - Na interpretação do testamento prevalece a orientação subjectivista, valendo as disposições testamentárias de acordo com a vontade real do testador, pelo que a tarefa do intérprete consiste em averiguar, com recurso a todos os meios disponíveis, a efectiva vontade do testador, a qual prevalecerá desde que encontre no texto do testamento um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.
IV - A acção destinada a obter a declaração judicial de que um determinado imóvel não está incluído no objecto legado, instaurada por um herdeiro que suscitou essa questão no inventário e foi remetido para os meios comuns, é uma acção de simples apreciação negativa, cabendo ao legatário o ónus de demonstrar que o testador quis efectivamente legar também esse imóvel e que o contexto e a redacção do testamento correspondem minimamente a essa vontade real.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 1548/10.4TBVCD.P1 [Tribunal Judicial da Comarca de Vila do Conde]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.
B… e marido C…, residentes em …, e D… e marido E…, residentes em …, ambas localidades de Vila do Conde, instauraram acção judicial contra F…, viúva, G… e mulher H…, todos residentes em …, Matosinhos, pedindo a condenação dos réus a reconhecerem que do legado constante do testamento referido na petição inicial não faz parte o prédio rústico denominado “I…” também descrito na petição inicial.
Mediante requerimento dos autores foi admitida a intervenção principal dos demais interessados na herança J… e marido K…, residentes em …, Canadá; L… e mulher M…, residentes em …; N…, residente em …; O... e marido P…, residentes em …, Bélgica; Q… e S…, ambos residentes no …, Brasil.
Para fundamentar o seu pedido, os autores alegaram que T… faleceu em 17 de Março de 2006, sem descendentes ou ascendentes, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os seus irmãos e descendentes destes, aqui autores, réus e intervenientes. Por testamento, o falecido legou ao sobrinho G… e mulher H…, “a sua casa de morada, com casa da eira e eira, sita no … da Freguesia …”. Desse objecto legado não faz parte o prédio rústico denominado “I…”, sito no …, da referida freguesia …, inscrito na respectiva matriz rústica sob o artigo 354º. Esta questão foi suscitada no inventário por óbito do testador mas as partes foram relegadas para os meios comuns.
A acção foi contestada, pugnando-se pela improcedência total do pedido, mediante a alegação de que os prédios que correspondem aos artigos 163º e 354º da matriz urbana e rústica de …, constituem uma única unidade predial, de natureza urbana, descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º 11627, encontrando-se ligados entre si funcional e economicamente – são a casa e o quintal -, pelo que o referido quintal (também conhecido por eira, leira, eirado, cortinha ou eido) faz parte integrante do legado do T… ao sobrinho G… e mulher H….
Em reconvenção, os réus pedem que se declare que o prédio inscrito no artigo 354º da matriz rústica de …, faz parte integrante do legado e os autores e intervenientes sejam condenados a reconhecer esse facto.
A acção prosseguiu até julgamento, findo o qual foi proferida sentença julgando a reconvenção improcedente e a acção procedente, condenando os réus a reconhecerem que do legado constante do testamento outorgado por T…, em 08.01.1986, a fls. 18 e 18-v do Livro nº 71 de testamentos do então 1º Cartório Notarial de Vila do Conde, não faz parte o prédio rústico denominado “I…” sito no …, da freguesia de …, inscrito na matriz rústica de … sob o artigo 354º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde como parte do nº 11627 do Livro B nº 31 e agora nº 1544 da freguesia ….
Do assim decidido, os réus e reconvintes interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1.º- Ocorreu a gravação da Audiência e os Recorrentes, nos termos do art. 640.º do CPC, indicaram supra os concretos meios de prova, constantes do processo e do registo de gravação, indicando ainda com exactidão as passagens da gravação, e em que tudo se fundam para discordar, no que concerne aos arts. 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º e 7.º da Base Instrutória, da decisão proferida (deixa-se aqui reproduzido todo o teor do vertido em I – Primeiro das Alegações).
2.º- Os depoimentos acima transcritos são unânimes no sentido de que: Os prédios descritos em D) e E) encontram-se ligados por uma porta com cerca de 2 metros de largura; O prédio descrito em D) corresponde ao quintal do prédio descrito em E); O prédio descrito em D) servia e serve para produzir vinho, fruta, batatas, cebolas e hortaliça para consumo das pessoas do prédio descrito em E); O prédio descrito em D) servia e serve para produzir erva para o gado existente no prédio descrito em E); O acesso do prédio descrito em E) ao prédio descrito em D) é efectuado por um portão com mais de 2 metros de largura; Não sendo possível aceder de carro ou de tractor ao prédio descrito em E) sem ser pelo prédio descrito em D).
3.º- O tribunal não valorou os documentos (doc. n.º 1 junto com a Contestação/Reconvenção, do qual se colhe que os prédios a que correspondem os arts. 163.º e 354.º , respectivamente , da matriz urbana e rústica de … constituem uma única unidade predial e estrutural – natureza urbana -, descrito no numero 11627 , do Livro B-31 – fls. 126 v.º da Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde e o doc. junto com a mesma peça processual como doc. n.º 2, correspondente a decisão judicial, transitada em julgado, no processo n.º 50/80 do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Vila do Conde , que determinou que estes prédios constituem uma única unidade predial e estrutural), não impugnados pelos Autores, que nos termos do art.371.º, n.º1 do Código Civil, têm força probatória plena (vide alínea G) da matéria assente);
4.º- Do exposto, conjugado com os docs. juntos com a Contestação/Reconvenção como docs. 1 e 2 supra referidos em 3, resulta , rigorosamente , que deve o Tribunal da Relação dar como não provado o facto vertido em 1 da Base Instrutória e provados os factos constantes dos artigos 2, 3, 4, 5, 6 e 7, com a redacção seguinte :
Os prédios descritos em D) e E) encontram-se ligados por uma porta com cerca de 2 metros de largura;
O prédio descrito em D) corresponde ao quintal do prédio descrito em E);
O prédio descrito em D) servia e serve para produzir vinho, fruta, batatas, cebolas e hortaliça para consumo das pessoas do prédio descrito em E);
O prédio descrito em D) servia e serve para produzir erva para o gado existente no prédio descrito em E);
O acesso do prédio descrito em E) ao prédio descrito em D) é efectuado por um portão com mais de 2 metros de largura;
Não sendo possível aceder de carro ou de tractor no prédio descrito em E) sem ser pelo prédio descrito em D).
5.º- DE DIREITO (atenta a matéria de facto a fixar definitivamente pelo Tribunal da Relação do Porto):
6.º- Os prédios a que correspondem os art. 163º e 354º, respectivamente, da matriz urbana e rústica de Vila Chã, constituem uma única unidade predial (de natureza urbana), descrito no número 11627, do livro B-31 – fls. 126 vº da Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde (cfr. doc. nº 1 junto com a contestação/reconvenção).
7.º- Porque constituem uma única unidade predial e estrutural foi, por decisão judicial, proferida em 4-10-1982, no Proc. nº 50/80, 1º Juízo do Tribunal Judicial de Vila do Conde, já transitada em julgado, o bem correspondente ao art. 354º, da matriz rústica de …, junto ao bem correspondente ao art. 163º, da matriz urbana de …, conforme tudo melhor se alcança do doc. junto com doc. nº 2 com a contestação/reconvenção.
8.º- Correspondendo o art. 354º da matriz rústica de … ao quintal (também conhecido, por eira, leira, eirado, cortinha ou eido) que á luz do elemento físico, a casa e o quintal, também conhecido, repete-se, por eira, leira, eirado, cortinha ou eido (correspondentes, respectivamente, aos arts. 163º e 354º já referidos) formam um todo, uma única unidade predial (de natureza urbana).
9.º- Sendo que, para além do elemento físico/natural é determinante o elemento funcional/económico.
10.º- Situando-se o prédio numa aldeia (…) a cerca de 7 kms de Vila do Conde (conforme é facto publico e notório), a casa e o quintal, também conhecido, repete-se, por eira, leira, eirado, cortinha ou eido (correspondentes, respectivamente, aos arts. 163º e 354º já referidos) são funcional e economicamente complementares entre si.
11.º- O quintal (também conhecido, repete-se, por eira, leira, eirado, cortinha ou eido) servia e serve para produzir vinho, fruta, batatas, cebolas e hortaliça para consumo das pessoas da casa (prolongamento da casa) e para produzir erva para alimentar o gado existente nesta.
12.º- Não devem considerar-se prédios rústicos os logradouros de prédios urbanos tais como jardins, pátios ou quintais – antes, se deve atribuir a mesma natureza do edifício a que estão ligados.
13.º- Assim, quando prevalece na afectação o elemento urbano pela afectação, conforme resulta da matéria que consideramos provada (e que o Tribunal da Relação fixará definitivamente), do prédio a um fim habitacional, pois a parte formalmente qualificada de rústica assume natureza de parte componente de um prédio urbano (sendo vista como o quintal deste), conforme dispõe o segundo trecho do n.º 2 do artigo 204.º do Código Civil e o prédio, em si mesmo (parte rústica e parte urbana) deve ser considerado como afecto a um fim que não é a cultura (aqui significando actividade agrícola).
14.º- Existindo, por conseguinte, a preponderância do elemento urbano, já que sobressai a finalidade de habitar um espaço (a casa) que associa, através do uso do terreno, aliás, como referido, designadamente, pelas Testemunhas U… e V… o mesmo era usado como “eirado” e quintal da casa.
15.º- No dia 8 de Janeiro de 1986, na Secretaria Notarial de Vila do conde, T…, solteiro, maior, legou por testamento (cfr. doc. junto como doc. nº 3 junto com a contestação/reconvenção) ao seu sobrinho G… e a mulher deste H…, a sua casa de morada com casa da eira e eira (também conhecida, por quintal, leira, eirado, cortinha ou eido), descrita na Conservatória do Registo Predial de vila do Conde sob o número 11627, do Livro B-31 a fls. 126 vº, e inscrita na matriz urbana e rústica de …, respectivamente sob os arts.163º e 354º.
16.º- Deste legado faz parte integrante o referido quintal (também conhecido, por eira, leira, eirado, cortinha ou eido), inscrito na matriz rústica de … sob o art. 354º, porquanto, o quintal (também conhecido, repete-se, por eira, leira, eirado, cortinha ou eido) é o prolongamento do edifício (casa) a que está ligado (fazendo-se, no sentido casa-quintal, o acesso directo ao quintal por uma abertura-portão que abre ou fecha - com mais de 2 metros de largura, sendo que, no sentido casa-quintal, não é possível aceder de carro – de bois ou automóvel – ou de tractor ao interior do dito edifício (casa), sem ser pelo dito quintal) e servia e serve para produzir vinho, fruta, batatas, cebolas e hortaliça para consumo das pessoas da casa e para produzir erva para alimentar o gado existente nesta.
17.º- Correspondendo tal ao efectivamente querido pelo referido T…, no testamento referido no art. 8º da Contestação/Reconvenção.
18.º- A sentença recorrida violou as disposições atrás invocadas, designadamente o segundo trecho do n.º 2 do artigo 204.º do Código Civil.
Os recorridos responderam a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.
As conclusões das alegações de recurso demandam deste Tribunal solução para as seguintes questões:
i) Se é possível conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto e, na afirmativa se a matéria de facto deve ser alterada em função da reapreciação dos meios de prova produzidos nos autos.
ii) Se a decisão de mérito deve ser confirmada.

III.
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. Em 17 de Março de 2006, faleceu T… sem deixar descendentes ou ascendentes, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros legítimos, os seus irmãos e descendentes destes, aqui Autores, Réus e intervenientes. [al. A) dos factos assentes]
2. Procedeu-se a Inventário para partilha da herança daquele T…, o qual correu termos sob o nº 8594/06.0TBMTS, pelo 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos. [al. B) dos factos assentes]
3. O falecido T… deixou testamento, outorgado em 08.01.1986 no então 1º Cartório Notarial de Vila do Conde a fls. 18 e 18-v do Livro nº 71 de testamentos, através do qual legou ao sobrinho G… e mulher H…, “…a sua casa de morada com casa da eira e eira, sita no …, da referida Freguesia … …”. [al. C) dos factos assentes].
4. Naquele processo de Inventário, não foi relacionado pela cabeça de casal F…, aqui 1ª Ré um prédio rústico denominado “I…”, sito no …, da referida freguesia …, inscrito na matriz rústica de … sob o artigo 354º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde como parte do nº 11627 do Livro B nº 31 e agora nº 1544 da freguesia …. [al. D) dos factos assentes].
5. Como parte da descrição da Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde nº 11627 do Livro B nº 31 e agora nº 1544 da freguesia … consta ainda um prédio urbano denominado casa de morada com casa da eira e eira sita no …, da freguesia …, inscrito na matriz urbana de … sob o artigo 163º. [al. E) dos factos assentes].
6. Os prédios identificados em D) e E) foram relacionados, respectivamente, sob as verbas n.º 2 e 1 do Inventário a que se procedeu por óbito de W… e mulher, pais de T…. [al. F) dos factos assentes]
7. Na conferência de interessados daquele inventário, realizada em 04.10.1982, foi proferida decisão judicial na qual se determinou a junção daquelas duas verbas, que passaram a constituir uma única verba. [al. G) dos factos assentes]
8. Essa verba foi licitada por T… e adjudicada ao mesmo. [al. H) dos factos assentes]
9. Os prédios descritos em D) e E) estão separados por um muro alto de pedra de mais de dois metros de altura. [item 1º da base instrutória]
10. Existindo a ligá-los apenas uma porta com cerca de dois metros de largura. [item 2º da base instrutória]
11. O prédio descrito em D) servia para produzir vinho, fruta, batatas, cebolas e hortaliça para consumo das pessoas do prédio descrito em E). [item 4º - parcial - da base instrutória]
12. O prédio descrito em D) servia para produzir erva para o gado existente no prédio descrito em E). [item 5º - parcial - da base instrutória]
13. O acesso do prédio descrito em E) ao prédio descrito em D) é efectuado por uma porta com cerca de 2 metros de largura referida no item 2º da base instrutória. [item 6º - parcial - da base instrutória].

IV.
A] da matéria de facto:
Os recorrentes começam o seu recurso por defender que a matéria de facto dos artigos 1.º a 7º da base instrutória foi incorrectamente julgada, reclamando a alteração da decisão relativa a esse pontos da matéria de facto.
Sucede que o processo enferma de uma adversidade não anotada pelos recorrentes, nem pelos recorridos, e que consiste em se ter realizado inspecção judicial ao local mas não se ter lavrado o necessário auto de inspecção, conforme exigido pelo artigo 615.º do Código de Processo Civil em vigor à data da realização da inspecção e que corresponde sem modificações ao artigo 493.º do novo Código de Processo Civil, vindo apesar disso a dar-se especial relevo a este meio de prova na motivação da decisão da matéria de facto.
O auto de inspecção que a norma citada determina que seja elaborado, para além de ter de ser ditado pelo Mmo. Juiz que procede à inspecção, deve conter o relato daquilo que ele observou nos locais e pontos que as partes lhe sugeriram que observasse ou que entendeu observar. O auto não serve para apenas dizer que se fez a diligência ou como ela foi conduzida, deve servir para documentar o resultado da observação feita, descrever os aspectos objectivos que foram constatados no local e percepcionados directamente pelo julgador.
O objectivo da redacção do auto de inspecção é, como é fácil de intuir, o de permitir que em sede de recurso o tribunal ad quem possa, através da simples leitura do auto, ter ao menos uma ideia clara do que foi percepcionado pelo julgador em ordem a formular conclusões sobre essas observações que lhe permitam compreender e interpretar os outros meios de prova.
Isso mesmo resulta claro do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, no qual, a propósito da prova por inspecção judicial, se menciona que se consagrou a redução da mesma a auto, independentemente da estrutura colegial ou singular do órgão julgador, até para melhor e mais efectivo exercício dos poderes de controlo, em matéria de facto, em caso de recurso da respectiva matéria.
No caso, da acta da audiência consta apenas a menção de que a inspecção foi realizada, o que, evidentemente, não constitui a título algum um auto de inspecção ao local que pressupõe um mínimo de descrição do resultado da observação feita no local.
A omissão do auto integrava a nulidade secundária prevista então no nº 1 do artigo 201.º (hoje 195.º) do Código de Processo Civil, mas, em virtude do disposto no artigo 205.º (hoje 199.º), nº 1, 1ª parte, do mesmo diploma, tinha de ser arguida pelas partes no próprio acto, o que não foi feito.
Não o tendo sido, nem em devido tempo nem agora em sede de recurso, e não sendo a nulidade de conhecimento oficioso, o tribunal ad quem está impedido de a conhecer e declarar – nesse sentido Acórdãos da Relação do Porto de 12.06.2012, relatado por Ramos Lopes, e da Relação de Coimbra de 04.10.2005, relatado por Monteiro Casimiro, e de 27.03.2012, relatado por Carlos Querido, in www.dgsi.pt –.
Em resultado desta vicissitude o tribunal ad quem encontra-se privado da totalidade dos elementos probatórios em que a primeira instância fundou a decisão relativamente a tais factos impugnados. E, uma vez que a modificação da matéria de facto pela Relação apenas pode ter lugar se constarem do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa resta excluída a possibilidade de a Relação alterar a decisão da matéria de facto em relação a tal matéria – artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil –.
O mais que a Relação pode fazer, não tendo a omissão sido arguida e sanada em devido tempo, é anular, nos termos do artigo 662.º, nº 2, alínea c), 1ª parte, do Código de Processo Civil, a decisão proferida pela 1ª instância com vista à repetição de tal meio de prova, quando reconhecer que, devido à falta de registo dos elementos observados e colhidos na diligência, a decisão sobre os pontos impugnados da matéria de facto é deficiente, obscura ou contraditória.
Na motivação da decisão da matéria de facto a Mma. Juíza a quo afirmou que “estribou a sua convicção, fundamentalmente, com a inspecção realizada ao local, estando aliás juntas aos autos as fotografias – bem elucidativas - do mesmo - vide fls. 325 a 334.” Quanto ao relevo da inspecção, afirmou que “essa diligência, indiscutivelmente, auxiliou na percepção das questões de facto em discussão, e viabilizou deste modo a compreensão deste tribunal sobre a composição dos prédios em causa, e desde logo que estamos em presença de dois distintos prédios, a casa e a “I…”, separados por um muro alto de pedra de mais de dois metros de altura, e a ligá-las existe apenas uma porta com cerca de dois metros de largura.”
É assim evidente que neste caso concreto a inspecção judicial teve um relevo probatório decisivo e que as observações realizadas contribuíram para formação da convicção sobre a matéria de facto em discussão. Acresce que não se vislumbra nem vem acusada a existência de qualquer deficiência, obscuridade ou contradição na decisão relativa à matéria de facto. A mesma é perfeitamente perceptível, permitindo descortinar totalmente aquilo que a Mma. Juíza a quo quis decidir e decidiu efectivamente.
Em suma, face ao relevo da inspecção judicial para a decisão proferida, à inexistência do auto de inspecção judicial e à impossibilidade de este vício ser agora conhecido e produzir efeito em relação ao processado, o tribunal não dispõe efectivamente de todos os meios de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados e, como tal, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, não pode alterar a decisão da matéria de facto que vem impugnada.

É certo que foram juntas aos autos fotografias supostamente do local. Todavia, a sua junção foi feita pelos autores, sendo sua a iniciativa de as tirar e juntar e bem assim o critério da escolha dos pontos a fotografar e da perspectiva das fotografias. Acresce que ao ser confrontada com a junção das fotografias a parte contrária fez consignar em acta a declaração de que se trata de “montagens fotográficas dado que deturpam a realidade e por isso se impugna todo o seu teor”. Pese embora os autores tenham respondido que “as fotografias em causa foram tiradas no local e na data em que se realizou a inspecção judicial” e “retratam a realidade verificada no local da inspecção”, não foi proferido qualquer despacho a admitir as fotografias e também não houve o cuidado de consignar o reconhecimento pelo tribunal das fotografias, esclarecendo as dúvidas quanto ao seu rigor e correspondência com as observações feitas no local.
Por isso, quando na motivação da decisão da matéria de facto se assinala que as fotografias de folhas 325 a 334 são “bem elucidativas” do local, continuamos sem saber aquilo que era obrigatório que o auto de inspecção assinalasse: como confrontam entre si os prédios; que elementos naturais ou construídos pelo homem os separam e distinguem; como é feito o acesso a cada um deles; que características possuem cada um deles. Eventualmente isso poderia ser feito por remissão para as fotografias[1], mas então era necessário que tivesse sido o tribunal a ordenar a obtenção das fotografias, a determinar o que se fotografava e de que perspectiva, a consignar a observação que se pretendia descrever através de cada uma das fotografias. Sem isso, continuamos sem poder afirmar que estão à disposição deste tribunal de recurso todos os meios de prova que serviram de base à decisão da matéria de facto recorrida que é, como vimos, condição indispensável para que a decisão impugnada possa ser reapreciada.

A dado momento os recorrentes argumentam que o tribunal a quo não levou em consideração os dois documentos juntos com a contestação, os quais “não foram impugnados pelos autores” e “têm força probatória plena”.
O artigo 662.º do Código de Processo Civil, relativo à modificabilidade da decisão de facto, estabelece, com efeito, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida impuser uma decisão diversa. O requisito para que isso suceda é que o Tribunal disponha de todos os meios de prova em que se baseou a decisão impugnada. Se esta condição não se verificar, o mais que a Relação pode fazer é anular a decisão proferida na 1.ª instância mas isso apenas quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto (alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil). Como vimos já este requisito não está verificado e, como tal, a possibilidade de alterar ou anular a decisão não tem cobertura legal.
Na versão do Código de Processo Civil anterior à Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, as coisas passavam-se diferentemente. Então, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 712.º do Código de Processo Civil, a decisão da matéria de facto podia sempre ser alterada se os elementos fornecidos pelo processo impusessem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas. Quando este preceito se referia a elemento probatório que impunha decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, tinha em mente, nos casos em que esse elemento era um documento, os documentos que pudessem fazer prova plena dos factos em discussão uma vez que só esses, não tendo sido arguida e demonstrada a sua falsidade, podiam produzir um valor probatório insusceptível de ser destruído por quaisquer outras provas (cf. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil – Novo Regime, 2.ª edição, pág. 274).
Ora a verdade é que os documentos juntos de forma alguma fazem prova plena dos factos em discussão e que os recorrentes pretendem ver modificados.
Recordamos que os factos que constavam dos artigos 1 a 7 da base instrutória eram os seguintes:
1) Os prédios descritos em D) e E) estão separados por um muro alto de pedra de mais de dois metros de altura?
2) Existindo a ligá-los apenas uma porta com cerca de dois metros de largura?
3) O prédio descrito em D) corresponde ao quintal do prédio descrito em E)?
4) O prédio descrito em D) servia e serve para produzir vinho, fruta, batatas, cebolas e hortaliça para consumo das pessoas do prédio descrito em E)?
5) O prédio descrito em D) servia e serve como zona de lazer do prédio descrito em E) e para produzir erva para o gado existente neste último prédio?
6) O acesso do prédio descrito em E) ao prédio descrito em D) é efectuado por um portão com mais de 2 metros de largura?
7) Não sendo possível aceder de carro ou de tractor ao prédio descrito em E) sem ser pelo prédio descrito em D)?
Sucede que desta matéria de facto o tribunal a quo julgou provada a matéria que acima se especificou (a totalidade dos artigos 1.º e 2.º e parte dos artigos 4.º, 5.º e 6.º), e julgou não provada a seguinte:
Que o prédio descrito em D) corresponde ao quintal do prédio descrito em E). (artigo 3º)
Que o prédio descrito em D) serve para produzir vinho, fruta, batatas, cebolas e hortaliça para consumo das pessoas do prédio descrito em E). (parte do artigo 4.º)
Que o prédio descrito em D) servia e serve como zona de lazer do prédio descrito em E) e serve para produzir erva para o gado existente neste último prédio. (parte do artigo 5.º)
Que o acesso do prédio descrito em E) ao prédio descrito em D) é efectuado por um portão com mais de 2 metros de largura. (parte do artigo 6.º)
Que não é possível aceder de carro ou de tractor ao prédio descrito em E) sem ser pelo prédio descrito em D). (item 7º da base instrutória).
Pretendem os recorrentes que se julgue não provado o facto do artigo 1.º da base instrutória e, no tocante ao que consta dos demais artigos, provados os seguintes factos:
Os prédios descritos em D) e E) encontram-se ligados por uma porta com cerca de 2 metros de largura.
O prédio descrito em D) corresponde ao quintal do prédio descrito em E).
O prédio descrito em D) servia e serve para produzir vinho, fruta, batatas, cebolas e hortaliça para consumo das pessoas do prédio descrito em E).
O prédio descrito em D) servia e serve para produzir erva para o gado existente no prédio descrito em E).
O acesso do prédio descrito em E) ao prédio descrito em D) é efectuado por um portão com mais de 2 metros de largura.
Não sendo possível aceder de carro ou de tractor no prédio descrito em E) sem ser pelo prédio descrito em D).
É fácil de ver que estão em causa factos relativos a características físicas de dois prédios e da ligação física e funcional entre eles, pelo que dificilmente tais factos poderiam obter prova plena de documentos, sendo certo que os elementos da descrição de um prédio na Conservatória do Registo Predial são elementos meramente acessórios relativos à identificação do imóvel e não estão por isso abrangidos pela força probatória plena de qualquer certidão emitida a partir desse registo[2].
O primeiro dos documentos em causa é uma certidão do registo predial onde consta a descrição dos prédios e da qual se vê que os imóveis correspondentes às duas inscrições matriciais em discussão nos autos (o artigo 163.º da matriz urbana de …, descrito como “casa de morada com casa da eira e eira” e inequivocamente compreendido no legado, e o artigo 354.º da matriz rústica que se discute nos autos se foi objecto do legado) estão descritos na Conservatória do Registo Predial sob o mesmo número, concretamente o antigo nº 11.627 (Livro B, nº 31) e actual nº 1.544 da freguesia de ….
Só que isso não só já constava da matéria de facto assente como nada demonstra quanto às características físicas dos imóveis ou a ligação física e funcional que possa existir entre eles, para além da mera situação de confinância entre os prédios que é inerente à circunstância de estarem contidos na mesma descrição predial. Tal como, aliás, também não obstava e não obstou a que uma só descrição predial possa ser composta por mais que um artigo matricial e, consequentemente, que sob a mesma e única descrição predial possam coexistir mais que um prédio.
O segundo dos documentos não é mais relevante. Trata-se de uma certidão da acta da conferência de interessados realizada no inventário (processo n.º 50/80) aberto por óbito de antepassados do testador e no qual os imóveis envolvidos na discussão que aqui se trava (foi por essa via que foram adquiridos pelo testador) foram relacionados e descritos como verbas separadas (verbas n.º 1 e 2), tendo sido decidido na conferência de interessados juntar ambas as verbas, isto é, passar a tratar ambos os bens como uma única verba (como ocorreu em relação a outros bens).
Como é óbvio este documento apenas faz prova plena de que os interessados presentes ou representados na conferência deliberaram tratar ambas as verbas do inventário como uma única verba e não que isso tenha sido objecto de qualquer decisão judicial (que aliás nada justificava ou consentia em sede de conferência de interessados, uma vez que nesta é aos interessados que cabe definir por acordo os vários aspectos que contendem com a relação de bens, a sua descrição e composição, a forma de os descrever, de os licitar, de os tratar nas adjudicações posteriores).
Também não faz prova plena dos motivos pelos quais isso foi deliberado, não resultando do documento que isso tenha sido decidido por os interessados terem considerado que as duas verbas constituíam de facto um único prédio, já que não é a mesma coisa considerar que as duas verbas constituíam um prédio único ou decidir que fossem tratadas no inventário como uma única verba. Não é, no entanto, difícil supor que essa decisão tivesse em mente as licitações que se iriam seguir e a posterior adjudicação dos bens, isto é, tivesse a intenção de assegurar que a licitação seria feita conjuntamente para ambos os prédios e estes fossem depois adjudicadas ao mesmo herdeiro, como se fossem uma única verba, evitando a sua adjudicação a herdeiros distintos (precisamente pelo interesse em os reunir no mesmo titular visto serem confinantes). Também este documento não produz, portanto, prova plena das características dos imóveis e da sua eventual ligação física e funcional, para além da circunstância de confinarem um com o outro como já estava assente e ninguém discute.
Tanto basta para afirmar que os documentos juntos não podiam fazer prova plena dos factos cuja decisão se pretendia que fosse alterada ou conduzir, per se, à margem dos demais meios de prova produzidos, a uma conclusão forçosa sobre essa matéria. Por essa razão não é possível a este Tribunal da Relação alterar a resposta aos factos controvertidos assinalados apenas com base nos documentos. O mais que seria possível era proceder à reapreciação da decisão com base no conjunto dos meios de prova produzidos, mas, como vimos, estes não estão todos disponíveis, o que inviabiliza a sua reapreciação.

Cabe referir que apesar disso ouvimos a gravação dos depoimentos prestados em audiência. Foi com total surpresa que detectámos (para além da extrema e lamentável animosidade com que as testemunhas foram quase sempre tratadas e que levou muitas vezes a que por exclusiva responsabilidade dos inquiridores ficassem por explicar devidamente alguns aspectos dos depoimentos) que a redução a escrito dos depoimentos que consta das alegações de recurso não é fiel, não reproduz exactamente o que foi dito pelos depoentes, consistindo por vezes num mero resumo ou súmula das declarações, com supressão de partes relevantes e que ajudavam a perceber outras passagens do depoimento, havendo mesmo momentos em que o que está escrito é diferente (!) do que foi efectivamente declarado em audiência, situação que aqui nos abstemos de qualificar.
As únicas testemunhas ouvidas que podiam ser usadas para prova dos factos que os recorrentes pretendam que sejam julgados provados são as testemunhas U… e V…. A primeira revelou que trabalhou como jornaleira nestes prédios quando “tinha 20, 22 anos” sendo certo que tem agora “75” e que desde essa altura apenas “passa” pelo local, sabendo que já não há lavoura no prédio há mais de “30”, “40” anos, desde que morreu a mãe do testador e este deixou de viver lá. Tanto basta para perceber que o seu depoimento se reporta a um tempo já muito longínquo, que não traduz a situação real dos prédios nas últimas décadas e, sobretudo, na altura da celebração do testamento que seria o momento relevante para aferir a factualidade que haveria de ajudar na interpretação do testamento. Também a testemunha V… acabou por situar a utilização do prédio que descreveu (quintal da casa, secagem de milho) há várias décadas atrás (30/40 anos), num tempo muito distante, admitindo que nas últimas décadas tudo isso mudou e acabou, estando a própria casa desabitada.
Na motivação da decisão matéria de facto, a Mma. Juíza a quo escreveu que estes depoimentos “denotaram globalmente … uma falta de precisão e rigor, uma similitude no discurso e ainda um empenho excessivo na confirmação da tese dos Réus, que não logrou convencer-nos. Genericamente … revelaram-se pouco ou nada esclarecedores para a descoberta da verdade material”. Ao longo das alegações de recurso os recorrentes não indicam uma única razão ou motivo para questionar esta interpretação do tribunal a quo e levar este tribunal de recurso a qualificar e interpretar de modo diferente estes depoimentos[3].
Independentemente disso, face ao que se anotou em relação a tais depoimentos e tendo presente o teor dos demais depoimentos produzidos em audiência em sentido diverso ou mesmo oposto, nunca os mesmos poderiam constituir prova suficiente da materialidade focada no recurso, pelo que mesmo que se pudesse proceder à sua reapreciação, tais depoimentos não nos conduziriam a alterar a decisão da matéria de facto, a qual, repete-se, não pode deixar de resultar em grande parte das observações que o tribunal fez no local e parece absolutamente conforme com aquilo que se observa nas fotografias juntas aos autos.
Assim, improcede o recurso da decisão da matéria de facto, mantendo-se a respectiva decisão.

B] da matéria de direito:
Ao impugnarem a aplicação do direito aos factos realizada na decisão recorrida, os recorrentes baseiam o seu recurso exclusivamente na matéria de facto que pretendem que seja alterada por este tribunal. Por outras palavras, os recorrentes não suscitam uma única questão jurídica em virtude da qual a decisão devesse ser diferente da que foi proferida mesmo por referência aos factos julgados provados em 1.ª instância, limitam-se a pretender que se altere a matéria de facto e que aplicando o direito aos novos factos se conclua diferentemente do que se concluiu na decisão recorrida.
Por conseguinte, mantendo-se a matéria de facto que provinha da 1.ª instância, inexiste no recurso questão jurídica que cumpra apreciar em ordem a verificar se a decisão final deve ser alterada no sentido sustentado pelos recorrentes, pelo que o conhecimento do recurso poderia ficar por aqui.
Ainda assim, dir-se-á o seguinte:
O Código Civil dispõe de uma norma específica sobre a interpretação dos testamentos. Trata-se do artigo 2187º que dispõe o seguinte:
“1. Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.
2. É admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.”
Esta disposição consagra para a interpretação do testamento a chamada orientação subjectivista, ou seja, as disposições testamentárias devem valer em conformidade com a vontade real do testador, com aquilo que ele efectivamente quis com a disposição. Daí que comportando a disposição mais que um sentido, o intérprete deva procurar averiguar, com recurso a todos os meios disponíveis, a efectiva vontade do testador em ordem a fazer prevalecer essa vontade. Dessa forma procura-se fazer cumprir a vontade do testador, matéria em que “nenhum (outro) interesse, de destinatários ou do tráfego, prevalece sobre este objectivo substancial” (cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30.01.2003 e de 17.04.2012, in www.dgsi.pt).
Para valer, a vontade real do testador necessita apenas de encontrar no texto do testamento um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa. Essa exigência, que se relaciona com a natureza formal do testamento e com as razões que a justificam, deve procurar-se ao nível do contexto do próprio testamento, considerando não apenas o tempo da elaboração e aprovação do texto, como ainda a totalidade das circunstâncias reconhecíveis ao tempo da sua abertura (cf. Ferrer Correia, in Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, pág. 225; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17.02.2011, in www.dgsi.pt).
Citando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.86, in Boletim do Ministério da Justiça nº 362, pág. 550, anotado por Galvão Telles, in “O Direito”, Ano 121º, 1989, IV, págs. 771 e seguintes, afirma o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 13.01.2005, relatado por Araújo de Barros, que “a interpretação dos testamentos deve fazer-se, em primeira linha, pelo apuramento da vontade real e contemporânea do testador, usando para essa averiguação simultaneamente o contexto do testamento e a prova complementar ou extrínseca que sobre isso puder reunir-se. (...) Fixado, por esse modo ou com esses materiais, aquilo que efectivamente estava no pensamento do testador, não significa, porém, isto o termo do processo interpretativo, dado que sendo o testamento um acto formal ou solene, para que a vontade real ou verdadeira, assim apurada, seja atendível, necessário se torna que tenha, no contexto testamentário, um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa (...) Assim, a limitação contida no nº 2 do artigo 2187º do Código Civil não restringe o recurso a prova complementar, proibindo apenas que, com o uso de tais meios, se ultrapasse o processo de interpretação para apurar o que seria verdadeira alteração ou modificação informal do próprio testamento”.
Também no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.09.2012, relatado por Ana Paula Boularot, in www.dgsi.pt, se consiga que “a directriz subjectivista da busca da vontade real do testador surge-nos claramente mitigada não sendo atendida se não encontrar naquele o sentido juridicamente relevante, sendo de atribuir ao próprio testamento o significado conforme com essa intenção ou vontade tendo em atenção o carácter formal do negócio testamentário, «A reconstituição da mens testantis deve pois fazer-se, antes de mais, recorrendo aos elementos intrínsecos, isto é, retirados dos próprios termos do testamento enquanto documento (“o contexto” a que se refere o art. 2187.º, nº.1º).», apud Menezes Leitão, A Interpretação do Testamento, 1993, 96 e cfr neste mesmo sentido Galvão Telles, Interpretação de Negócio Jurídico Formal: Correspondência entre vontade e documento, in O Direito, 121º, 844 e Pamplona Corte-Real, Curso de Direito das Sucessões, Centro de Estudos Fiscais, 1985, 169/170.”.
Dito isto, vejamos o que nos oferecem os factos provados.
A] No testamento, outorgado em Janeiro de 1986, o falecido T… declarou legar ao sobrinho G… e mulher H…, “…a sua casa de morada com casa da eira e eira, sita no …, da referida Freguesia de … …”.
B] O T… era proprietário de um prédio rústico denominado “I…”, sito no …, da freguesia …, inscrito na matriz rústica de … sob o artigo 354º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde como parte do nº 11627 do Livro B nº 31 e agora nº 1544 da freguesia ….
C] E era proprietário do prédio urbano denominado casa de morada com casa da eira e eira sita no …, da freguesia …, inscrito na matriz urbana de … sob o artigo 163º descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob outra parte do nº 11627 do Livro B nº 31 e agora nº 1544 da freguesia ….
D] No inventário a que se procedeu por óbito dos pais do T…, estes prédios foram relacionados como verbas separadas mas na conferência de interessados realizada em 1982 foi decidido tratá-los como um verba única, a qual foi licitada e depois adjudicada ao T….
E] Estes prédios estão separados um do outro por um muro alto de pedra de mais de dois metros de altura, havendo a ligá-los apenas uma porta com cerca de dois metros de largura, que permite aceder de um para o outro.
F] O prédio rústico servia para produzir vinho, fruta, batatas, cebolas e hortaliça para consumo das pessoas do prédio urbano e erva para o gado existente neste prédio.
Perante estes factos é totalmente abusiva a conclusão dos recorrentes de que o seu familiar lhes legou, como afirmam, “a sua casa de morada com casa da eira e eira (também conhecida, por quintal, leira, eirado, cortinha ou eido), descrita na Conservatória do Registo Predial de vila do Conde sob o número 11627, do Livro B-31 a fls. 126 vº, e inscrita na matriz urbana e rústica …, respectivamente sob os arts.163º e 354º.”. Tivesse o testamento essa redacção e certamente não haveria necessidade da acção.
A descrição do bem legado que consta do testamento é apenas a seguinte: “casa de morada com casa da eira e eira, sita no …, da referida Freguesia … …”. No testamento não se menciona se o bem legado se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial ou inscrito na matriz predial e, consequentemente, também não se indicam os respectivos números e artigos. Isto apesar de o testador bem saber, em virtude da relação e descrição de bens apresentada no inventário aberto por óbito de seus pais e no qual licitou e adquiriu estes bens, que os mesmos estavam descritos na Conservatória do Registo Predial e possuíam mesmo inscrições matriciais distintas, quer quanto ao artigo quer quanto à natureza (um urbano e outro rústico).
De referir, aliás, que no referido inventário tais prédios foram relacionados e descritos um como “casa de rés do chão e andar, com quinteiro, eira e dependências agrícolas” e o outro como “leira a quintal”. Por sua vez nas matrizes respectivas são descritos um como “prédio para habitação” com “superfície coberta 194 m2; dependência 110m2; pátio 120m2” e o outro como “quintal” para “cultura”. A “casa de morada com casa da eira e eira” a que se refere o testador no testamento é uma descrição absolutamente compatível com o primeiro destes prédios, não havendo na descrição deste nada que fique fora da descrição feita no testamento.
A menção constante da matriz à existência, para além da casa, de uma dependência de 110m2 e um pátio de 120m2 parece perfeitamente compatível com a descrição do bem legado no testamento como incluindo quinteiro, eira e dependências agrícolas. Tanto assim que segundo o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora a palavra eido tem o significado de aido ou quinteiro, pátio interior ou pequeno quintal junto a uma casa, e eira, por sua vez, é um terreno liso e duro ou lajeado onde se desgranam e secam os cereais. O que não se encontra no dicionário é a associação que os recorrentes pretendem fazer entre eira, aido ou eido e cortinha ou leira para cultivo.
A nosso ver, mesmo que o prédio rústico pudesse estar a ser utilizado como um verdadeiro quintal, ou seja, um terreno destinado ao cultivo dos géneros agrícolas e hortícolas habitualmente consumidos pelas pessoas (batatas, feijões, tomates, alface, couve, cebolas), daí não adviria nunca a necessidade de o considerar parte integrante ou componente do prédio urbano legado. Não só porque sendo ambos do mesmo proprietário nada obstava a que o mesmo assim fosse utilizado, tanto mais que confinava com a casa e, portanto, facilitava o acesso e a deslocação ao mesmo para cultivar e colher tais produtos. Mas sobretudo porque para efeitos do legado o que importava determinar não era se um prédio estava afecto normalmente à utilização dos moradores no outro (coisa que como já se referiu não acontece há décadas), mas sim se o testador quis dispor de ambos a favor do legatário, isto é, teve a vontade de legar ambos os prédios ainda que se tivesse expressado no testamento de forma insuficiente ou incorrecta. Desse modo, face à insuficiência do texto do testamento para incluir o prédio rústico cabia ao legatário demonstrar não a ligação entre os prédios, não a forma como eram utilizados, mas sim que a vontade real do testador correspondia a legar ambos os prédios. Ora esse facto, definitivamente, não ficou demonstrado nos autos.
Cabe referir, por último, que pese embora a forma menos correcta como se encontra formulado o pedido (condenação dos réus a reconhecerem que …), a presente acção está configurada como uma acção de simples apreciação, no caso negativa.
Com efeito, o que os autores pretendem é somente pôr termo à incerteza quanto à inclusão do prédio rústico no objecto legado pelo testador, devido ao facto de terem requerido que esse bem fosse relacionado e partilhado no inventário por óbito deste e os réus aí se terem arrogado num direito sobre o bem (emergente do legado) que o excluiria do inventário. Nessa medida, o que os autores reclamam é somente que seja declarado (em rigor: judicialmente declarado) que o direito reclamado pelos réus sobre o bem em causa não existe, e não propriamente que os réus seja condenados a qualquer prestação correspondente à posição de sujeição correlativa a um direito dos autores (o pedido de condenação dos réus a reconhecerem algo não se ajusta à tipologia de acções previstas no artigo 4.º do Código de Processo Civil, actual 10.º, e não é correcto, porque quem declara o direito ou a situação jurídica é o tribunal, através da decisão judicial, e esta impõe-se às partes quer elas reconheçam quer não o que o tribunal declara).
Devendo a acção ser tratada como acção de simples apreciação negativa, segue-se que era aos réus que cabia o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que se arrogam (artigo 343.º, n.º 1, do Código Civil). Para satisfazer esse ónus, os réus careciam de demonstrar que o testador quis efectivamente legar, em conjunto, o prédio urbano e o prédio rústico e, por outro lado, que o contexto e a redacção do testamento eram compatíveis e consentâneos com essa vontade real. Manifestamente, não resulta da matéria de facto o preenchimento desses requisitos, sendo que no tocante à vontade real a matéria de facto é mesmo totalmente omissa. Por conseguinte, não podia a acção ter deixado de ser, como foi, julgada procedente. E o recurso não pode, consequentemente, deixar de improceder.

V.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes (tabela I-B).
*
Porto, 3 de Julho de 2014.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto156)
José Amaral
Teles de Menezes
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[1] Todavia, nem o artigo 615.º do antigo nem o artigo 493.º do novo Código de Processo Civil permitem substituir o auto pelas fotografias, apenas que o auto possa ser complementado pelas fotografias.
[2] Neste sentido os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29.10.92, in Boletim do Ministério da Justiça 420, pág. 590, de 11.5.93 in Colectânea de Jurisprudência 1993, II, pág. 95, de 11.5.95 in loc. cit. II, pág. 75, de 17.6.97, in loc. cit., II, pág. 126, de 11.3.99, in loc. cit. I, pág. 150, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 10.10.89, in Boletim do Ministério da Justiça 390, pág. 464, de 16.11.89, in loc. cit. 391, pág. 701, de 27.3.90, in loc. cit. 395, pág. 674, de 16.9.91, in Colectânea de Jurisprudência IV, pág. 249, de 19.5.94 in loc. cit. III, pág. 213, de 16.1.95, in loc. cit. I, pág. 197, de 10.7.97, in loc. cit IV, pág. 181, de 07.04.2011, 14.10.2013 e 14.01.2014, estes in www.dgsi.pt, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.6.90, in Boletim do Ministério da Justiça 398, pág. 599, de 21.2.93, in Colectânea de Jurisprudência I, pág. 28, de 10.5.94 in Boletim do Ministério da Justiça 437, pág. 602, de 19.3.96, in loc. cit. 455, pág. 584, e de 9.3.99, in Colectânea de Jurisprudência III, pág. 14. Igualmente se tem entendido que os elementos constantes da matriz constituem presunção apenas para fins tributários – cf. Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 11.5.95 in Colectânea de Jurisprudência II, pág. 75 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.3.88, in loc. cit. II, pág. 196.
[3] Um recurso não é a mera indicação de que não se concorda com o decidido e se quer que se decida diferentemente. Um recurso é sempre a exposição motivada das razões ou fundamentos pelos quais o tribunal de recurso deve analisar as questões concretamente indicadas pelo recorrente e em função desses fundamentos decidir estas questões no sentido especificado pelo recorrente. Por isso, querendo impugnar a decisão da matéria de facto motivada dessa forma, o requerente tinha a obrigação de justificar porque devia o tribunal interpretar de outra forma os depoimentos, sendo certo que, como qualquer prático forense sabe, entre a literalidade das afirmações dos depoentes e aquilo que o tribunal pode e deve extrair dos respectivos depoimentos vai quase sempre uma enorme distância.