Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2768/17.6T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
PARTICIPAÇÃO DO SINISTRO
SINISTRADO
FASE CONCILIATÓRIA
PROCESSO
PAGAMENTO DE TRANSPORTES E ESTADA
DISCORDÂNCIA DO SINISTRADO QUANTO À INCAPACIDADE
Nº do Documento: RP201902042768/17.6T9PNF.P1
Data do Acordão: 02/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NÃO PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO (SOCIAL), (LIVRO DE REGISTOS N.º289, FLS.59-65)
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTIGO 39, N.º2 DA LEI N.º98/2009 DE 04.09
Sumário: I - Os campos de aplicação dos arts. 25º, nº 1, al. f) e 39º da Lei 98/2009, por um lado, e do art. 17º, nº 8, do RCP, por outro, são distintos: os primeiros dispõem sobre o direito do sinistrado ao pagamento de transportes e estada; enquanto que o art.º 17º, incluindo o seu nº 8, se reporta “às remunerações devidas às entidades que intervenham nos processos ou que coadjuvem em quaisquer diligências, ou seja, às devidas aos intervenientes acidentais a que se reporta”.
II - A fase conciliatória do processo emergente de acidente de trabalho é de realização obrigatória e corre sob a direcção do Ministério Público, visando alcançar a satisfação dos direitos emergentes do acidente de trabalho para o sinistrado através da composição amigável, embora necessariamente sujeita a regras legais imperativas (direitos indisponíveis), atendendo aos interesses de ordem pública envolvidos.
III - Como decorre do art.º 117.º, do CPT, o início da fase contenciosa depende da apresentação de petição inicial ou o requerimento a que se refere o n.º2, do art.º 138.º. Como o sinistrado, pese embora tenha discordado do resultado da perícia médica realizada no INML, acabou por não apresentar requerimento no prazo legal, a fase contenciosa não se iniciou
IV - A lei assegura aos sinistrados a faculdade de participarem o acidente de trabalho ao tribunal competente, não estando o exercício desse direito sujeito a qualquer restrição ou condição. No essencial, visa não só salvaguardar o sinistrado das situações em que não é feita a participação devida a juízo – pela seguradora ou por entidade empregadora que não tenha transferida a responsabilidade infortunística -, mas também permitir-lhe que haja um controle e fiscalização sobre a forma como foram assegurados os seus direitos indisponíveis, mormente sobre a avaliação da incapacidade após a alta clínica, tendo em vista uma composição amigável.
V - Na fase conciliatória, no rigor processual, não há ainda um litígio propriamente dito, nem verdadeiras partes processuais. Mais, nem tão pouco recai sobre o sinistrado o dever de impulso processual, com vista a que o processo atinja a sua finalidade.
VI - Desencadeado o processo em razão de participação apresentada pelo sinistrado, por força desses direitos indisponíveis e por se estar perante interesses de ordem pública, não lhe é possível travar a sua marcha até que seja atingida a tentativa de conciliação e, para além disso, está sujeito ao dever de comparência obrigatória no exame médico, para ser observado e avaliada a sua situação clínica, bem como em quaisquer outros actos para que seja convocado, máxime aquele em que culmina esta fase, isto é, a tentativa de conciliação.
VII A discordância do sinistrado quanto à incapacidade de 0% não constitui um pedido em que tenha decaído.
VIII - Neste contexto, processualmente não pode considerar-se que houve um pedido do sinistrado que veio a ser julgado improcedente. Ora, só nesses caso é que opera o n.º2, do art.º 39.º da Lei 98/2009.
IX - O facto de ter sido decidido que o sinistrado “se encontra sem qualquer incapacidade permanente para o trabalho decorrente” das lesões sofridas no acidente de trabalho que sofreu e veio participar em juízo, não obsta ao direito ao reembolso das despesas por si suportadas com transportes para deslocações para ser observado no GML e para intervenção na tentativa de conciliação, actos a que estava obrigado a comparecer nos termos previstos imperativamente pelas regras processuais que regem o processo emergente de acidente de trabalho.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 2768/17.6T8PNF.P1
SECÇÃO SOCIAL

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I. RELATÓRIO
I.1 Na presente acção especial emergente de acidente de trabalho, em que é sinistrado B… e entidade responsável a Companhia de Seguros “C… - Sucursal em Portugal”, realizada a tentativa de conciliação as partes acordaram sobre a existência e caracterização do acidente como de trabalho, bem como quanto à relação de causalidade entre o acidente e as lesões e no valor da retribuição transferida e coberta pelo seguro de acidentes de trabalho.
Contudo, a conciliação frustrou-se em virtude da discordância do sinistrado quanto ao coeficiente da incapacidade de 0% que lhe foi atribuído pelo INML.
Decorrido o prazo legal sem que tenha sido requerido o exame por junta médica para dar início à fase contenciosa, os autos foram conclusos ao Senhor Juiz para os efeitos do artigo 138º, nº2, do C.P.T..
I.2 O tribunal a quo proferiu sentença, nos termos previstos no art.º 138.º 2, do CPT, concluída com o dispositivo seguinte:
-«(..)
Pelo exposto, aplicando os citados normativos à matéria de facto apurada, nos termos do disposto no art.138º, nº2, do C.P.T., observando-se o disposto no nº3 do artigo 73º do mesmo Código, decido:
A) Que o sinistrado B…, no dia 12 de Abril de 2017 sofreu um acidente de trabalho, do qual se encontra sem qualquer incapacidade permanente para o trabalho decorrente desse acidente.
B) Condenar a seguradora “C… - Sucursal em Portugal” a pagar ao sinistrado a quantia de €14, a título de despesas com deslocações a Tribunal e ao Gabinete Médico-Legal de Penafiel, acrescida de juros de mora á taxa legal desde 09-01-2018 até integral e efectivo pagamento.
C) Absolver a seguradora “C… - Sucursal em Portugal” do demais peticionado.
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Fixo como valor à presente causa €14, (cfr. artigo 120º do Código do Processo do Trabalho).
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Encargos com os exames realizados a suportar pela entidade responsável-artigo 17º, nº8, do RCP.
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Registe e Notifique.
(..)».
I.3 Inconformada com esta decisão a seguradora apresentou recurso de apelação,
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I.6 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho] a questão suscitada para apreciação pela recorrente consiste em saber se o tribunal a quo errou o julgamento ao condená-la no pagamento no pagamento das despesas de deslocação ao sinistrado, em violação do disposto no art.º 39.º n.º2, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. MOTIVAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes para a apreciação do recurso são os que constam no relatório, bem assim os fixados pelo Tribunal a quo, que abaixo se passam a transcrever e, ainda, o que a final aditamos:
1-O sinistrado nasceu em 30-08-1971.
2-No dia 12 de Abril de 2017, cerca das 17:00 horas, em … - Paredes, o sinistrado sofreu um acidente de trabalho, quando exercia as funções de marceneiro de 1ª, sob as ordens, direcção e fiscalização da entidade empregadora D….
3- O acidente ocorreu quando trabalhava com uma esquadrajadeira, a serra empancou na madeira e embateu com o dedo médio da mão esquerda na serra resultando esfacelo distal.
4-A responsabilidade infortunística-laboral encontrava-se integralmente transferida para a seguradora C… - Sucursal em Portugal mediante contrato de seguro titulado pela apólice dos autos, quanto ao trabalhador aqui sinistrado.
5-O sinistrado auferia a retribuição anual de €557,00 x 14 + €107,16 x 11 (total anual de €8.976,76).
6- O sinistrado teve alta em 31 de Maio de 2017.
7- A seguradora pagou-lhe todas as indemnizações e demais despesas acessórias devidas até à data da alta.
8- O sinistrado despendeu a quantia de €14,00 em deslocações obrigatórias para comparecer neste Tribunal e ao Gabinete Médico-Legal de Penafiel.
9 - (aditado por nós) No “auto de não conciliação” consta, para além do mais, o seguinte:
«[pelo] SINISTRADO foi dito:-Que no dia 12 de Abril de 2017, cerca das 17:00 horas, em … - Paredes, foi vítima de um acidente de trabalho quando exercia as funções de marceneiro de 1ª, sob as ordens, direcção e fiscalização da entidade empregadora D…, Endereço: Rua …, …, …. - … …, mediante a retribuição anual de €557,00 x 14 + €107,16 x 11 (total anual de €8.976,76), cuja responsabilidade se encontrava integralmente transferida para as Seguradoras.
O acidente ocorreu quando trabalhava com uma esquadrajadeira a serra empancou na madeira e embateu com o dedo médio da mão esquerda na serra resultando esfacelo distal.
Submetido a exame médico no gabinete médico-legal de Penafiel foi-lhe atribuído o grau de incapacidade de 0% e fixada a data da alta em 31 de Maio de 2017, cujo resultado declara NÃO ACEITAR.
A seguradora pagou-lhe todas as indemnizações e demais despesas acessórias devidas até à data da alta.
Despendeu da quantia de €14,00 de deslocações ao GML e ao Tribunal.
Pelo legal representante da Companhia de Seguros, foi dito: Aceita a existência e caracterização do acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente, a retribuição de €557,00 x 14 + €107,16 x 11 e o grau de incapacidade atribuído pelo perito médico do gabinete médico-legal.
Aceita pagar as despesas de deslocação dos transportes caso, em sede de junta médica se venha a atribuir IPP ao sinistrado.
Nada lhe compete pagar ao sinistrado, uma vez que o Perito Médico do Tribunal o deu como curado sem qualquer desvalorização.
Aceita pagar as despesas de deslocação dos transportes caso, em sede de junta médica se venha a atribuir IPP ao sinistrado.
(..)».
II.2 MOTIVAÇÃO de DIREITO
Entende a recorrente que o tribunal a quo errou na aplicação do art.º 39.º n.º2, da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, ao condená-la no pagamento ao sinistrado a quantia de €14,00 a título de despesas com deslocações ao Tribunal e ao Gabinete Médico-Legal de Penafiel e respetivos juros de mora.
Sustenta esta discordância na consideração de foi o sinistrado a participar o acidente a Tribunal, assim dando início ao presente processo, por não se conformar com a avaliação da incapacidade efetuada pela seguradora que, após ter assumido o seu tratamento e recuperação, deu-lhe alta em 07 de Julho de 2017, considerando-o curado sem qualquer desvalorização de caráter permanente. A seguradora não participou o sinistro, nem tinha que o fazer dada a cura sem desvalorização.
Porém, submetido a perícia médica, o senhor perito foi de parecer que o sinistrado está curado sem desvalorização, não lhe fixando qualquer I.P.P.
Na Tentativa de Conciliação o sinistrado não aceitou a desvalorização atribuída pelo senhor perito médico, mas não requereu a realização de exame por junta médica.
Nesse quadro, a recorrente seguradora não se conforma com a decisão recorrida, por entender que não foi reconhecida qualquer utilidade à participação/pedido do sinistrado, pois que todos os direitos emergentes do acidente de trabalho já lhe haviam sido assegurados.
Na sua perspectiva, está-se apenas face a despesas decorrentes de uma pretensão de iniciativa do sinistrado que veio a ser julgada totalmente improcedente, como tal caindo no âmbito do disposto artigo 39º nº 2 in fine da Lei nº 98/2009, de 04/09, não podendo o tribunal a quo tê-la condenado no seu pagamento ”(..) uma vez que estas foram consequência de um pedido do sinistrado que veio a ser julgado totalmente improcedente”.
Invoca, ainda, que aquela norma tem caráter imperativo e, enquanto norma especial, prevalece sobre a norma constante do art.º 17º nº 8 do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26/02.
Importa agora atentar na fundamentação da sentença na parte em que incide sobre esta questão, onde se lê o seguinte:
-«(..)
O exame médico dos autos mostra-se fundamentado e alicerçado na Tabela Nacional de Incapacidades.
Como já se referiu, no caso dos autos, o Sr. Perito médico, no exame médico realizado, concluiu que em consequência do acidente dos autos o sinistrado apresenta-se com uma IPP de 0 %.
Assim, tendo em conta as informações clínicas constantes dos autos sobre a natureza das lesões, a gravidade destas, o estado geral, a idade e a profissão do sinistrado, sendo certo que inexiste fundamento que permita um entendimento diverso do expendido pelo Sr. Perito médico, nos termos do disposto no artigo 138º, nº2, do Código do Processo do Trabalho, observando-se o disposto no nº3 do artigo 73º do mesmo Código, considero que o sinistrado em consequência do acidente de trabalho a que se reportam os presentes autos, encontra-se sem qualquer incapacidade permanente para o trabalho, não tendo consequentemente direito a receber qualquer pensão.
Reclama o sinistrado o montante de €14,00 de despesas de deslocação. Importa ter em conta que, conforme decidiu o Ac. RP, de 8.7.2004 (www.dgsi.pt/jtrp- Nº Convencional JTRP00037107) “o sinistrado não deixa de ter direito ao reembolso das despesas por si suportadas em tratamentos, medicamentos e de transporte, em consequência e por causa do acidente, pelo facto de ter ficado curado em qualquer desvalorização funcional”.
E assim, tem o sinistrado direito a receber da entidade responsável o peticionado a título de despesas de transporte (cfr. artigos 23º, 25º e 39º, todos da Lei nº98/2009, de 4 de Setembro e citado Ac. RP, de 8.7.2004).
Assim sendo, impõe-se condenar a entidade seguradora a pagar esse montante ao sinistrado, acrescido dos juros de mora, à taxa legal, sobre tal prestação pecuniária em atraso (artigo 135º do Código de Processo do Trabalho).
(..)».
II.2.1 Vejamos então, começando por enunciar o quadro legal a considerar.
O art.º 23.º, da Lei 98/2009, de 04 de Setembro [Regulamenta o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais], estabelece, como a própria epígrafe elucida, o “Princípio Geral” no que respeita às prestações compreendidas no direito dos sinistrados à reparação, distinguindo dois tipos: “Em espécie” e “Em dinheiro”.
Interessam-nos aqui as primeiras, resultado da noção geral da norma que abrangem o seguinte: “prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa”.
No mesmo diploma legal, mais adiante o artigo 25.º vem especificar em concreto, como a epígrafe também logo anuncia, as “Modalidades das prestações” em espécie. O n.º1, enuncia nas suas várias alíneas as prestações em espécie compreendidas “na alínea a) do artigo 23.º”, entre elas constando [al.f)]: “Os transportes para observação, tratamento ou comparência a actos judiciais”.
Ainda do mesmo diploma legal, o art.º 39.º, com a epigrafe “Transporte e estada”, na parte que aqui interessa, estabelece o seguinte:
1 - O sinistrado tem direito ao fornecimento ou ao pagamento de transporte e estada, que devem obedecer às condições de comodidade impostas pela natureza da lesão ou da doença.
2 - O fornecimento ou o pagamento referidos no número anterior abrangem as deslocações e permanência necessárias à observação e tratamento e as exigidas pela comparência a actos judiciais, salvo, quanto a estas, se for consequência de pedido do sinistrado que venha a ser julgado improcedente.
(..)».
Por último, atenta a invocação desta norma pela recorrente, cabe atentar no n.º8, do art.º 17.º do Regulamento das Custas Processuais, onde se dispõe o seguinte:
- «Nas acções emergentes de acidente de trabalho ou de doença profissional incumbe à pessoa legalmente responsável pelo acidente ou pela doença, ainda que isenta de custas, o pagamento da remuneração aos peritos e da despesa realizada com autópsias ou outras diligências necessárias ao diagnóstico clínico do efeito do sinistro ou da doença.”.
II.2.2 Prosseguindo, o primeiro ponto a resolver respeita à invocação desta última norma do RCP, adiantando-se já que a mesma não tem qualquer aplicação ou interesse para a apreciação da questão colocada pela recorrente.
No acórdão desta Relação e Secção de 11.09.2017 [proc.º 986/13.5T4AVR.1.P1, Desembargadora Paula Leal de Carvalho], no qual interveio como adjunto o aqui relator, em questão similar à presente – discutia-se o direito a despesas de deslocações para realização das perícias médicas no âmbito de incidente de revisão em que foi mantida a IPP do requerente sinistrado -, sendo também de assinalar que a ai recorrente era precisamente a também aqui recorrente C… - Sucursal em Portugal, sobre as razões que justificam aquela afirmação inicial elucida-se o seguinte:
- «Os campos de aplicação dos arts. 25º, nº 1, al. f) e 39º da Lei 98/2009, por um lado, e do art. 17º, nº 8, do RCP, por outro, são distintos: os primeiros dispõem sobre o direito do sinistrado ao pagamento de transportes e estada, enquanto que o art. 17º, incluindo o seu nº 8, se reporta “às remunerações devidas às entidades que intervenham nos processos ou que coadjuvem em quaisquer diligências, ou seja, às devidas aos intervenientes acidentais a que se reporta.” – Cfr. Salvador da Costa, in Regulamento das Custas Processuais Anotado e Comentado, 3ª Edição, Almedina, pág. 290.
O que está em causa nos autos e na decisão recorrida é o pagamento de transportes ao sinistrado, que nada tem a ver com o art. 17º, nº 8, do RCP, pelo que não se compreende a invocação, pela Recorrente, de tal preceito, ainda que para afastar a sua aplicação. E o Mmº Juiz, na decisão recorrida, também não o invocou, não tendo sido, ao seu abrigo, que foi considerado ser devido o pagamento do reembolso dos transportes. Não tem pois sentido a alegação da Recorrente de que o citado art. 17º, nº 8, cede perante o art. 39º, nº 2, da LAT, tratando-se de argumento sem qualquer utilidade pois que esse preceito do RCP não foi, nem tinha que ser, utilizado para fundamentar a decisão condenatória da Ré no pagamento de tais despesas».
Estas considerações, que aqui se acolhem, têm aqui inteira aplicação, inclusive em razão de a norma em causa nem sequer ter sido invocada na sentença recorrida.
II.2.3 A resolução da questão radica pois exclusivamente no regime constante das demais normas enunciadas, em particular, a al.f) do nº 1 do art.º 25.º e os n.ºs 1 e 2, do art.º 39º, da Lei 98/2009.
Da conjugação desses normativos decorre que o sinistrado tem direito ao fornecimento ou ao pagamento de transportes para deslocações que sejam necessárias para observação e tratamento ou exigidas para comparência em actos judiciais. Quanto a estas últimas, que pressupõem a existência de um processo emergente de acidente de trabalho, a lei ressalva que o pagamento deixa de ser devido quando forem “consequência de pedido do sinistrado que venha a ser julgado improcedente”.
Num ponto a norma não oferece dificuldade de interpretação, melhor explicando, a ressalva da parte final do n.º2, do art.º 39.º, reporta-se apenas às despesas com deslocações para comparência a actos judiciais. Só relativamente a estas é que não será devido o seu pagamento, quando tenham sido “consequência de pedido do sinistrado que venha a ser julgado improcedente”.
Estão excluídas dessa ressalva e, logo, serão sempre devidas, as despesas realizadas com transportes para deslocação necessária para observação e tratamento do sinistrado.
Na tentativa de conciliação o sinistrado reclamou o pagamento de €14, relativos a despesas realizadas com “deslocações ao GML e ao Tribunal”.
Não distingue o auto qual foi o montante de uma e outra despesa, mas é inequívoco que uma parte daquele montante foi despendido com a deslocação do sinistrado ao gabinete de medicina legal do INML, para ser submetido ao exame médico singular, previsto no art.º 105.º do CPT.
Ora, esta deslocação, ainda que também se trate de comparência a um acto judicial, na medida em que se integra nos actos processuais de realização obrigatória na fase conciliatória do processo emergente de acidente de trabalho, consubstancia também, em rigor, uma deslocação necessária para “observação” médica do sinistrado. Parafraseando o acórdão desta Relação acima invocado, essa deslocação «(..) destina-se também, e até mais propriamente, à observação do sinistrado. A lei não restringe as situações necessárias à observação do sinistrado a determinado tipo de “observação”, nem se compreenderia que nesta pudessem estar incluídas, por hipótese, as deslocações do sinistrado a atos de “observação” levados a cabo pelos serviços clínicos da Seguradora e/ou a exames complementares de diagnóstico, mas não já as deslocações para comparência aos exames médico singular e por junta médica, estes, por excelência, os atos de observação do sinistrado e determinantes e imprescindíveis à avaliação do seu estado clínico».
Por conseguinte, pelo menos na parte das despesas que tivessem sido realizadas por aquele motivo, logo por aí, não seria de reconhecer razão à recorrente.
Mas ainda que assim não se entenda, pelas razões que de seguida adiantaremos, cremos que não assiste razão à recorrente, não só quanto a essa parte das despesas, mas também quanto à que resultou da necessidade de comparência no acto de tentativa de conciliação.
II.2.4 Começaremos por deixar umas breves notas, mas essenciais para a apreciação da questão, sobre o processo emergente de acidente de trabalho.
O processo para efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, regulado nos artigos 99.º a 150.º do CPT, compreende duas fases distintas: uma primeira, chamada fase conciliatória, de realização obrigatória e sob a direcção do Ministério Público; e, uma segunda, a fase contenciosa, de realização eventual e sob a direcção do Juiz.
Através da primeira, como a sua própria denominação o indica, procura-se alcançar a satisfação dos direitos emergentes do acidente de trabalho para o sinistrado através da composição amigável, embora necessariamente sujeita a regras legais imperativas (direitos indisponíveis), atendendo aos interesses de ordem pública envolvidos. Para possibilitar aquele objectivo, a tramitação desta fase compreende, por sua vez, três fases, uma primeira, de instrução, que tem em vista a recolha e fixação de todos os elementos essenciais à definição do litígio, de modo a indagar sobre a“(..) veracidade dos elementos constantes do processo e das declarações das partes”, habilitando o Ministério Público a promover um acordo susceptível de ser homologado (art.ºs 104.º 1, 109.º e 114.º); uma segunda, que consiste na realização do exame médico singular, devendo este no relatório “deve indicar o resultado da sua observação clínica, incluindo o relato do evento fornecido pelo sinistrado e a apreciação circunstanciada dos elementos constantes do processo, a natureza das lesões sofridas, a data de cura ou consolidação, as sequelas e as incapacidades correspondentes, ainda que sob reserva de confirmação ou alteração do seu parecer após obtenção de outros elementos clínicos ou auxiliares de diagnóstico” (art.ºs 105.º e 106.º); e, finalmente, a tentativa de conciliação presidida pelo Ministério Público, com a finalidade primordial de obtenção de acordo susceptível de ser homologado pelo Juiz (art.º 109.º) [Cfr. João Monteiro, Fase conciliatória do processo para a efectivação do direito resultante de acidente de trabalho – enquadramento e tramitação, Prontuário do Direito do Trabalho, n.º 87, CEJ, Coimbra Editora, pp. 135 e sgts.].
Como decorre do art.º 117.º, do CPT, o início da fase contenciosa depende da apresentação de petição inicial ou o requerimento a que se refere o n.º2, do art.º 138.º. A necessidade de apresentação de petição inicial [n.º/al.a] configura-se nos casos que não caiam no âmbito da previsão da alínea b), ou seja, quando o interessado “se não conformar com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo, para efeitos de fixação da incapacidade para o trabalho”.
Seria esse o caso dos autos, mas como o sinistrado, pese embora tenha discordado do resultado da perícia médica realizada no INML, acabou por não apresentar requerimento no prazo legal, a fase contenciosa não se iniciou. Daí que, em cumprimento do disposto no n.º2, do art.º 138.º CPT, não tendo sido apresentado o requerimento no prazo legal, o Senhor juiz proferiu “decisão sobre o mérito, fixando a natureza e graus de desvalorização e o valor da causa, observando-se o disposto no n.º3, do art.º 73.º”.
O processo emergente de acidente de trabalho inicia-se sempre tendo por base a apresentação de participação do acidente e, como se disse, compreende necessariamente uma primeira fase conciliatória dirigida pelo Ministério Público (art.º 99.º1, CPT).
No caso, como refere a recorrente, não recaía sobre ela a obrigação de participar o acidente de trabalho ao tribunal competente. A obrigação de participação a juízo pela seguradora é apenas devida quando considere que do acidente resultou uma incapacidade permanente - avaliada quando é dada a alta ao sinistrado no pressuposto de ter sido atingida a cura clínica possível-, bem assim nos casos em que do acidente tenha resultado a morte (art.º 90.º n.º1, da Lei 98/2009).
O processo iniciou-se tendo por base a participação apresentada pelo recorrido sinistrado, procedimento que se enquadra na previsão do art.º 92.º, da Lei 98/2009, com a epígrafe “Faculdade de participação a tribunal”. No que aqui releva, dispõe a norma:
- «A participação do acidente ao tribunal competente pode ser feita:
a) Pelo sinistrado, directamente ou por interposta pessoa;
(..)».
O exercício deste direito de exercício facultativo não está sujeito a qualquer restrição ou condição. No essencial, visa não só salvaguardar o sinistrado das situações em que não é feita a participação devida a juízo – pela seguradora ou por entidade empregadora que não tenha transferida a responsabilidade infortunística -, mas também permitir-lhe que haja um controle e fiscalização sobre a forma como foram assegurados os seus direitos indisponíveis, mormente sobre a avaliação da incapacidade após a alta clínica, tendo em vista uma composição amigável.
Nesta fase conciliatória, no rigor processual, não há ainda um litígio propriamente dito, nem verdadeiras partes processuais. Mais, nem tão pouco recai sobre o sinistrado o dever de impulso processual, com vista a que o processo atinja a sua finalidade. O processo corre oficiosamente e nesta fase sob a direcção do Ministério Público, sobre quem recai o dever ordenar ou praticar os actos necessários para que o processo atinja a sua finalidade, entre eles, determinando a realização da perícia médica singular e, quando esta esteja realizada, marcando e realizando a tentativa de conciliação com a finalidade primordial de obtenção de acordo susceptível de ser homologado pelo Juiz.
O sinistrado, como aqui aconteceu, apenas teve a iniciativa processual de apresentar a participação em juízo, exercendo o direito que a lei lhe faculta para salvaguarda dos seus direitos indisponíveis.
Desencadeado o processo, por força desses direitos indisponíveis e por se estar perante interesses de ordem pública, não lhe é possível travar a sua marcha até que seja atingida a tentativa de conciliação e, para além disso, está sujeito ao dever de comparência obrigatória no exame médico, para ser observado e avaliada a sua situação clínica, bem como em quaisquer outros actos para que seja convocado, máxime aquele em que culmina esta fase, isto é, a tentativa de conciliação.
II.2.5 A recorrente parte do pressuposto que estamos face a despesas decorrentes de uma pretensão de iniciativa do sinistrado que veio a ser julgada totalmente improcedente, como tal caindo no âmbito do disposto artigo 39º nº 2 in fine da Lei nº 98/2009, de 04/09.
Como devido respeito, não se concorda com esta leitura.
Em primeiro lugar, importa não esquecer ser ponto assente que ocorreu um evento qualificável como acidente de trabalho, em consequência do qual o sinistrado sofreu lesões que implicaram uma situação de incapacidade temporária para o trabalho, visto que a segurado pagou-lhe “todas as indemnizações e demais despesas acessórias devidas até à data da alta”.
A discordância do sinistrado quanto à incapacidade de 0% não constitui um pedido em que tenha decaído. Simplesmente, assistia-lhe o direito a discordar da avaliação feita pelos serviços clínicos da seguradora e dispunha da faculdade que exerceu de poder recorrer ao processo emergente de acidente de trabalho para haver um procedimento exterior à seguradora e imparcial, com vista à obtenção de acordo, se porventura o resultado do exame médico singular tivesse sido no sentido de existir uma incapacidade permanente parcial.
É certo que o sinistrado não concordou com o resultado do exame médico que confirmou a avaliação da seguradora, mas também não o é menos que acabou por se conformar com o mesmo, visto não ter apresentado o necessário requerimento para realização do exame por junta médica. Por conseguinte, a actuação do sinistrado limitou-se à apresentação da participação em tribunal - faculdade que seguramente lhe assistia dada a existência de um acidente de trabalho -, com essa iniciativa apenas tendo dado azo ao início da fase conciliatória do processo.
Neste contexto, com o devido respeito por opinião contrária, processualmente não pode considerar-se que houve um pedido do sinistrado que veio a ser julgado improcedente. Ora, só nesses caso é que opera o n.º2, do art.º 39.º da Lei 98/2009.
Ademais, como se refere no acórdão de 08-07-2004, desta Relação, invocado na decisão recorrida [proc.º 0412994, Desembargador Ferreira da Costa, disponível em www.dgsi.pt], pelo facto de no exame singular ter sido atribuída a IPP de 0% - e de o sinistrado não ter reagido – “(..) não se pode concluir sem mais que não há incapacidade, nem diminuição da capacidade geral de ganho. Na verdade, pode haver recidiva ou agravamento das lesões, consequentes ao acidente, juridicamente relevantes (..) e nem por isso a entidade responsável poderá invocar em futuro incidente de revisão que ao A. foi dada alta, curado com 0% de incapacidade. A lesão, a incapacidade e a consequente diminuição da capacidade de trabalho ou de ganho, todas derivadas do acidente, existem, se não em acto, pelo menos em potência (..) são juridicamente actuáveis através do incidente de revisão, como resulta do disposto no artº 25º da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro”.
Concluímos, pois, que o facto de ter sido decidido que o sinistrado “se encontra sem qualquer incapacidade permanente para o trabalho decorrente” das lesões sofridas no acidente de trabalho que sofreu e veio participar em juízo, não obsta ao direito ao reembolso das despesas por si suportadas com transportes para deslocações para ser observado no GML e para intervenção na tentativa de conciliação, actos a que estava obrigado a comparecer nos termos previstos imperativamente pelas regras processuais que regem o processo emergente de acidente de trabalho.
III. DECISÃO
- Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso improcedente, em consequência confirmando a sentença recorrida.
- Custas do recurso a cargo da recorrente, (art.º 527.º CPC).
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Porto, 4 de Fevereiro de 2019
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Rita Romeira