Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
399/14.1T9STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ERNESTO NASCIMENTO
Descritores: CRIME DE BURLA
PRINCÍPIO DA SUBSIDARIEDADE
CARÊNCIA DE TUTELA
Nº do Documento: RP20170426399/14.1T9STS.P1
Data do Acordão: 04/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 715, FLS.330-339)
Área Temática: .
Sumário: I - Para que ocorra o crime de burla nos contratos civis, o propósito, do arguido, de enganar, precede ou é contemporâneo da sua celebração.
II - O princípio da subsidiariedade do direito penal tem como reverso um princípio de auto responsabilização dos titulares concretos dos bens jurídicos, que pode levar à ausência de tutela jurídico-penal.
III - Se a vítima não aproveitou as oportunidades de auto-tutela que lhe foram oferecidas e que lhe era exigível que o fizesse, colocou-se fora do âmbito de tutela da norma incriminadora.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo comum singular 399/14.1T9STS da Comarca do Porto, Santo Tirso, Instância Local, Secção Criminal, J1.

Relator – Ernesto Nascimento
Adjunto – José Piedade

Acordam, em conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
I. 1. Efectuado o julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu, parte criminal:

julgar improcedente por não provada a acusação pública e absolver o arguido B…, da prática dos crimes de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º/1 e 218.º/2 alínea a) C Penal e de falsificação, p. e p. pelo artigo 256.º/1 alínea d) C Penal, parte cível:

julgar o pedido de indemnização cível, deduzido pela demandante C…, improcedente por não provado e, da mesma forma, dele absolver o arguido/demandado.

I. 2. Inconformada com o assim decidido, recorre a assistente C…, rematando a motivação coma as conclusões que se passam a transcrever:

1. há manifesta contradição entre o teor do n.º 26 dos factos provados e o teor das alíneas d), e), f), g), h), i) e j) dos factos não provados;
2. para ultrapassar a patente contradição deve o teor das alíneas atrás citadas ser dado como provado, pois os n.ºs 27, 29, 30, 31, 33 e 34 dos factos provados não podem deixar de ter o significado de que o arguido teve conhecimento da penhora e omitiu-o à assistente;.
3. do elenco dos factos provados deve passar a constar, por relevantes para a decisão, para ser dado como assente o conhecimento da penhora pelo arguido e a sua não comunicação à assistente, tudo quanto se alegou acerca dos pagamentos por conta efectuados no âmbito do processo de execução fiscal – processo n.º 0450201201054686 da Repartição de Finanças de V. N. de Famalicão – cujo pedido de remessa a estes autos a título devolutivo se requer para instrução do recurso;
4. a sentença recorrida deve ser revogada;
5. proferindo-se nova decisão que condene o arguido como autor material de um crime de burla qualificada e falsificação de documento, previstos e punidos pelos artigo 202.º alínea b), 217.º, 218.º/2 alínea a) e 256.º/1 alínea d) C Penal;
6. julgar procedente e provado o pedido cível de indemnização, condenando o arguido na quantia de €140.000,00, acrescida de juros de mora a contar da citação.

I. 3. Na resposta defende o Magistrado do MP o não provimento do recurso.

II. Subidos os autos a este Tribunal o Exmo. Sr. Procurador Geral Adjunto, emitiu parecer, aderindo ao teor da resposta e assim, defendendo o não provimento do recurso.

No exame preliminar o relator deixou exarado o entendimento de que o recurso fora admitido com o efeito errado, suspensivo, em vez de não suspensivo e assim, se alterou, em conformidade e, quanto ao mais, que nada obstava ao conhecimento do respectivo mérito, tendo, na mesma ocasião aproveitado o ensejo para indeferir ao pedido de remessa, a título devolutivo, para instrução do recurso, do identificado processo de execução fiscal, por falta de fundamento legal.

Seguiram-se os vistos legais.
Foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.
III. Fundamentação.
III. 1. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso - e, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, então, a questão suscitada no presente é, tão só, a de saber se, se verifica o vício do artigo 410.º/2 alínea b) C P Penal.

III. 2. Vejamos primeiro, a matéria de facto definida pelo Tribunal recorrido:
FACTOS PROVADOS
1) D…, mãe da ofendida C…, decidiu em inícios de 2009 adquirir um apartamento de tipologia T3 para a sua filha, a aqui ofendida.
2) Na sequência dessa decisão, contactou o arguido, pessoa que já conhecia de outros negócios, dizendo estar interessada em adquirir um apartamento T3 no edifício que este tinha em construção.
3) Nesse seguimento, o arguido e D… celebraram na freguesia de …, no concelho de Santo Tirso, com data de 06 de Setembro de 2009, o contrato-promessa de compra e venda junto a fls. 227 e ss., na qual o primeiro, como legal representante da sociedade da qual é sócio-gerente “E…, Lda.”, prometeu vender à segunda pela quantia de €120,000.00 (cento e vinte mil euros), o apartamento de tipologia T3, 1.º andar esquerdo, Bloco B, e ainda uma garagem fechada com os n.os 22 e 23, sitas no prédio urbano, em propriedade horizontal, constituído por uma cave, com garagens fechadas e aparcamentos, no rés-do-chão, com 4 estabelecimentos comerciais, três T2 e um T1, no 1.º andar, com quatro T3, três T2 e um T1 e no 2.º andar com quatro T3, três T2 e um T1, do qual o arguido era construtor.
4) Nas Clausulas 3.º e 4.º do citado contato promessa e relativas às condições de pagamento, a ofendida, na qualidade de segunda outorgante, prometeu no ato de assinatura de tal contrato liquidar a quantia de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros), sendo o remanescente pago do seguinte modo: €19.000,00 (dezanove mil euros) em 09 de Setembro de 2009; o remanescente de €76.000,00 (setenta e seis mil euros) no ato da celebração da escritura.
5) O arguido, na qualidade de primeiro outorgante, obrigou-se a entregar, aquando do cumprimento daquele mesmo contrato, aquele prédio prometido vender, registado em seu nome na respetiva Conservatória do Registo Predial, entregando-o, assim, à ofendida livre de quaisquer ónus ou encargos.
6) No âmbito de tal contrato, D… entregou ao arguido as seguintes quantias, para pagamento do preço do apartamento: €25.000,00 (vinte e cinco mil euros) na data da assinatura do contrato; €19.000,00€ (dezanove mil euros) cerca de duas semanas depois; €11.000,00€ (onze mil euros) em data posterior; num total de €55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros).
7) Logo após a assinatura do contrato, a mãe da ofendida solicitou que o referido contrato ficasse em nome da filha, aqui ofendida, ao que o arguido anuiu.
8) Assim, o arguido e a ofendida celebraram na freguesia de …, no concelho de Santo Tirso, com data de 06 de Setembro de 2009, o contrato-promessa de compra e venda junto a fls. 231 e ss., na qual o primeiro, como legal representante da sociedade da qual é sócio-gerente “E…, Lda.”, prometeu vender à segunda pela quantia de €120,000.00 (cento e vinte mil euros), o apartamento de tipologia T3, 1.º andar esquerdo, Bloco B, e ainda uma garagem fechada com os n.os 22 e 23, sitas
no prédio urbano, em propriedade horizontal, constituído por uma cave, com garagens fechadas e aparcamentos, no rés-do-chão, com 4 estabelecimentos comerciais, três T2 e um T1, no 1.º andar, com quatro T3, três T2 e um T1 e no 2.º andar com quatro T3, três T2 e um T1, do qual o arguido era construtor.
9) Nas Clausulas 3.º e 4.º do citado contato promessa e relativas às condições de pagamento, a ofendida, na qualidade de segunda outorgante prometeu no ato de assinatura de tal contrato liquidar a quantia de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros), sendo o remanescente pago do seguinte modo: €19.000,00 (dezanove mil euros) em 09 de Setembro de 2009; o remanescente de €76.000,00 (setenta e seis mil euros) no ato da celebração da escritura.
10) O arguido, na qualidade de primeiro outorgante, obrigou-se a entregar, aquando do cumprimento daquele mesmo contrato, aquele prédio prometido vendido, registado em seu nome na respetiva Conservatória do Registo Predial, entregando-o, assim, à ofendida livre de quaisquer ónus ou encargos.
11) Posteriormente, D… contactou o arguido, dizendo estar de más relações com a filha, aqui ofendida, já não estando, por isso, interessada na aquisição do apartamento T3.
12) Na sequência de tal contacto, e a pedido de D…, o arguido, na qualidade de legal representante da sociedade “E…, Lda.”, enviou à ofendida a carta junta a fls. 237, datada de 05 de Maio de 2012, na qual a convocava para uma reunião.
13) Em 20 de Junho de 2012, a ofendida compareceu nessa reunião, tendo no final da mesma o arguido, na qualidade de legal representante da sociedade “E…, Lda.”, e a ofendida C… subscrito o contrato denominado “acordo de revogação de contrato de contrato promessa”, junto a fls. 240 e 241, no qual declararam que a ofendida em tal data havia já pago um total de €55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros) de preço devido pela compra da fração, aí tendo a ofendida declarado que “não pode cumprir o contrato promessa de compra e venda e, por isso, resolve o contrato com efeitos a partir de 20 de Junho de 2012 e em consequência desta resolução as quantias entregues a título de sinal ficarão a pertencer a D…, com quem nesta data será realizado novo contrato promessa de compra e venda do mesmo imóvel”, tendo o arguido, na qualidade de legal representante da sociedade, declarado “aceitar a resolução do citado contrato promessa nos termos exarados”.
14) Posteriormente, D… contactou o arguido, dizendo já não ter interesse no apartamento T3 e pretender a devolução do montante já pago, ao que o arguido respondeu que não poderia devolver o dinheiro nem ficar com o apartamento, propondo-lhe que, se o conseguisse vender, acertaria contas com ela.
15) Não tendo o arguido conseguido vender o apartamento, no final das férias de 2012, D… contactou o arguido, reiterando não ter interesse no apartamento T3 e dizendo pretender trocá-lo por um apartamento T1, o que o arguido aceitou, tendo sido acordada a venda da fração “BB”, correspondente a um apartamento T1, pelo preço de €90.000,00 (noventa mil euros).
16) Em execução desse acordo, D… entregou ao arguido a quantia total de €35.000,00 (trinta e cinco mil euros), em tranches de €10.000,00, €5.000,00, €10.000,00 e €10.000,00.
17) Entretanto, D… reconciliou-se com a filha e voltou a contactar o arguido, pedindo que lhe vendesse o T3 que inicialmente tinham acordado comprar.
18) Esse apartamento T3 havia sido entretanto vendido, pelo que D… perguntou pela existência de T2, tendo o arguido exibido, dando-os à escolha, três apartamentos dessa tipologia à ofendida.
19) A ofendida escolheu o T2 que foi objeto do contrato promessa referido na acusação, designadamente por o mesmo se situar no rés-do-chão.
20) Nessa sequência, o arguido, na qualidade de legal representante da sociedade “E…, Lda.”, acordou com a ofendida C… a venda da fração autónoma destinada à habitação, sita na Rua …, com o n.º … correspondente ao …, destinada à sua habitação, sito na freguesia de …, concelho de Santo Tirso, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º 343.
21) Na sequência desse acordo, o arguido e a ofendida celebraram na freguesia de …, no concelho de Santo Tirso, com data de 19 de Dezembro de 2012, o contrato-promessa de compra e venda, na qual o primeiro, como legal representante da sociedade da qual é sócio-gerente “E…, Lda.”, prometeu vender à segunda pela quantia de €110,000.00 (cento e dez mil euros), a dita fração para habitação, do apartamento de tipologia T2, Rés-do-chão direito, fração “AT”, Bloco C e ainda, uma garagem fechada com a fração “K” e um lugar de aparcamento para dois carros com a fração “T”, sitas no prédio urbano, em propriedade horizontal, constituído por uma cave, com garagens fechadas e aparcamentos, no rés-do-chão, com 4 estabelecimentos comerciais, três T2 e um T1, no 1.º andar, com quatro T3, três T2 e um T1 e no 2.º andar com quatro T3, três T2 e um T1, do qual o arguido era construtor.
22) Nas Clausulas 3.º e 4.º do citado contato promessa e relativas às condições de pagamento, a ofendida, na qualidade de segunda outorgante prometeu no ato deste contrato a liquidar a totalidade do preço acordado de €110,000.00 (cento e dez mil euros) e o arguido, na qualidade de primeiro outorgante, obrigou-se a entregar aquando do cumprimento daquele mesmo contrato, aquele prédio prometido vendido, registado em seu nome na respetiva Conservatória do Registo Predial, entregando-o, assim, à ofendida livre de quaisquer ónus ou encargos (cf. cláusulas 3.º e 4.º do contrato-promessa junto a fls. 6 a 7 dos autos).
23) Assim, como o prédio ainda não estava concluído, o arguido fez constar do contrato-promessa que se obrigava a entregar a dita fração, garagem e aparcamento, livre de ónus ou encargos.
24) Concluído o prédio urbano, em propriedade horizontal, constituído por uma cave, com garagens fechadas e aparcamentos, no rés-do-chão, com 4 estabelecimentos comerciais, três T2 e um T1, no 1.º andar, com quatro T3, três T2 e um T1 e no 2.º andar com quatro T3, três T2 e um T1, o arguido entregou à ofendida o apartamento T2, Rés-do-chão direto, fração “AT”, Bloco C e uma garagem fechada coma fração “K” e um lugar de aparcamento para dois carros com a fração “T”, que esta de imediato ocupou e onde começou a residir.
25) No momento da entrega, D… entregou ao arguido a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros) necessária para perfazer os €110.000,00 (cento e dez mil euros) de preço acordado.
26) No entanto e face à não disponibilização do arguido para celebrar a escritura de compra e venda, como prometido, a ofendida, junto do Serviço de Finanças e da Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso, aferiu que a fração destinada à habitação, garagem e aparcamento, que foram objeto do contrato-promessa, ainda, se encontravam hipotecadas ao Banco G…, para além de que a mesma fração que correspondia à habitação de tipologia T2, já se encontrava penhorada pela Fazenda Nacional, por uma dívida de €13.740,33 (treze mil, setecentos e quarenta euros e trinta e três cêntimos), desde 20 de Setembro de 2012, ou seja, mais de dois meses antes da celebração do contrato-promessa.
27) A sociedade “E…, Lda.” foi citada para os termos da execução fiscal no dia 18 de Setembro de 2012, tendo o aviso de receção sido assinado por F… (fls. 4 do processo de execução apenso).
28) Na sequência dessa penhora da Fazenda Nacional, o Banco G… foi citado para reclamar o crédito hipotecário que tinha sobre o rés-do-chão, porquanto o arguido não pagou a dívida no âmbito do processo de execução fiscal.
29) Por carta registada enviada em 10 de Dezembro de 2012, a sociedade “E…, Lda.” foi notificada da decisão de venda da fração “AT” (fls. 29 e 30 do processo de execução apenso).
30) Os editais anunciando a venda da fração “AT” foram afixados no prédio em 17 de Dezembro de 2012 (fls. 35 e verso do processo de execução apenso).
31) De seguida foi adjudicado o citado rés-do-chão em venda judicial ao Banco G… em 21 de Março de 2013.
32) A ofendida viu assim, a fração que correspondia ao rés-do-chão direito e que lhe tinha sido prometida vender, sem ónus ou encargos, vendida ao Banco G…, que o registou, ficando impedida de fazer a escritura de compra e venda constante do contrato-promessa, pois para além da penhora da habitação, a garagem e aparcamento continuam hipotecadas.
33) A penhora da fração destinada à habitação da ofendida ocorreu cerca de três meses antes da celebração do contrato-promessa de compra e venda.
34) O arguido agiu sempre de forma livre e voluntária.
35) Aquando da celebração do contrato promessa, o rés-do-chão não estava ainda acabado, tendo a ofendida solicitado algumas alterações, que foram aceites pelo arguido, tendo tudo sido executado em conformidade.
Mais se provou:
36) Ao arguido não são conhecidos quaisquer antecedentes criminais (cfr. CRC de fls. 222).
Provou-se ainda:
37) O arguido nasceu no dia 20/12/1949, tendo atualmente 66 anos de idade.
38) O arguido é casado, tendo dois filhos já maiores de idade.
39) Encontra-se reformado, auferindo de pensão de reforma o montante mensal de €800,00, que se encontra 1/3 penhorado.
40) A esposa do arguido encontra-se também reformada, auferindo mensalmente o montante de €500,00
41) Reside em casa arrendada pela qual paga o montante de €300,00 por mês.
42) Tem o 4º ano de escolaridade.
FACTOS NÃO PROVADOS
a) Que a ofendida tenha pago, no ato de celebração e assinatura do contrato-promessa referido na acusação o preço integral acordado de €110,000.00 (cento e dez mil euros) porquanto lhe foi prometido entregar o prédio livre de ónus e encargos e para que o arguido pudesse continuar com a obra e fazer o distrate da hipoteca daquela fração junto do Banco.
b) Que o arguido com a descrita conduta, tenha levado a ofendida a entregar-lhe, no momento da celebração do contrato-promessa, o valor total da venda, de €110.000,00 (cento e dez mil euros), e com este dinheiro podia e devia ter pago a divida fiscal, evitando a venda judicial da fração e subsequente adjudicação ao Banco G…, o que não fez, dele se apropriando em seu benefício e causando àquela um prejuízo, pelo menos, nesse montante.
c) Que a ofendida só tenha entregue aquele montante ao arguido crente que, na verdade, não existiam ónus ou encargos sobre os bens objeto do contrato-promessa e que este lhos entregaria nesse estado, como prometido.
d) Que o arguido, ao omitir a existência da penhora que recaía sobre a fração para habitação da ofendida, e que sabia existir há cerca de três meses, antes da data da celebração do contrato-promessa, tenha feito constar facto juridicamente relevante daquele contrato-promessa, que sabia ser falso, fazendo constar que o iria entregar livre de quaisquer ónus ou encargos, bem sabendo de antemão que tal não era possível e não se coibiu de o fazer e de celebrar o contrato com a ofendida nesses termos, omitindo tal dado, no momento da celebração do contrato-promessa.
e) Que o arguido, ao agir do modo descrito, bem sabendo ao celebrar em 19 de Dezembro de 2012, com a ofendida o contrato-promessa de compra e venda, que o objeto do contrato que vendia não se encontrava livre de ónus ou encargos, como falsamente do mesmo fez constar, pois que já estava desde 20 de Setembro de 2012, penhorado pelo Serviço de Finanças.
f) Que o arguido, nunca tenha informado a ofendida das dívidas - ónus e encargos -, que sobre os bens objeto do contrato impendiam, antes ocultando, fazendo menção do contrário e levando-a a crer que adquiria os bens livres de quaisquer hipoteca e de penhora;
g) Que o arguido, bem sabendo de antemão da existência da penhora que recaía sobre a citada fração, não se tenha coibido de a vender à ofendida, omitindo tal dado, no momento da celebração do contrato-promessa, enganando-a de forma astuciosa, causando-lhe um prejuízo patrimonial de valor consideravelmente elevado e conseguindo, por via, disso um enriquecimento ilegítimo para si.
h) Que o arguido tenha feito constar, assim, facto que bem sabia ser falso, deste modo, pondo em causa, de forma consciente e voluntaria a força probatória do contrato-promessa, omitindo a existência daquela penhora à Fazenda Nacional e fazendo crer à ofendida na existência de facto que de todo não era verdadeiro, bem sabendo da sua falsidade, agindo em seu próprio benefício, o que quis e fez, causando prejuízo patrimonial à mesma, que só assim, lhe entregou a totalidade do valor acordado para aquisição dos bens, objeto do contrato-promessa que ambos celebraram. Desta forma causou o arguido B… um prejuízo patrimonial à ofendida C… no valor de €110.000,00 (cento e dez mil e euros), tendo plena consciência do carácter ilícito das suas condutas.
i) Que o arguido tenha feito constar falsamente do contrato-promessa de compra e venda que celebrou com a ofendida, que lhe entregaria aquando do cumprimento do contrato os bens livres de ónus ou encargos, sabendo que tal, não era verdade, tanto mais que a fração para a habitação já estava penhorada à Fazenda Nacional, há cerca de três meses, antes da celebração daquele contrato.
j) Que a ofendida tenha tido um prejuízo de €110,000.00 (cento e dez mil euros).
k) Que para mobilar os dois quartos de dormir, a sala de jantar e a sala de estar, a ofendida tenha encomendado móveis executados de acordo com as medidas dos respetivos cómodos, tendo nisso despedido a quantia de €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros).
l) Que para o quarto de banho tenha sido adquirida uma cabine polibã com massagem encastrada na parede, no que foi despendida a quantia de €750,00 (setecentos e cinquenta euros).
m) Que devido ao atraso na celebração da escritura e porque a ofendida ia contrair casamento em breve, pretendendo que os imóveis a adquirir fosse considerados bens próprios, tenha tido que ser celebrada convenção antenupcial, no que foram despendidos €150,00 (cento e cinquenta euros).
n) Que a ofendida ao tomar conhecimento de que o rés-do-chão além de onerado por uma hipoteca, já havia sido adquirido, tenha sofrido um enorme choque emocional, causador de fortíssima perturbação e depressão.
No mais, e no que concerne à matéria constante na acusação, no pedido de indemnização civil e na contestação e que não foi enunciada como provada ou não provada, consigna-se qual tal se fundamenta na circunstância de se tratar de matéria conclusiva e / ou de Direito, ou mera repetição, ou matéria não relevante para a decisão da causa.

Porque tal questão releva igualmente para a discussão do recurso, vejamos, também, o que em sede de fundamentação se deixou exarado no que concerne à convicção assim formada pelo Tribunal.

O Tribunal fundou a sua convicção, no que respeita à factualidade provada e não provada, nas declarações do arguido B…, da ofendida C…, nos depoimentos prestados pelas testemunhas H… (comprou um apartamento ao arguido; administrador do condomínio onde mora a ofendida), D… (mãe da ofendida C…), I… (primo da ofendida) e J… (filha do arguido), nos documentos juntos aos autos, mormente os contratos promessa, os recibos, o acordo de revogação, a carta dirigida à ofendida, bem como a análise do processo de execução fiscal que foi solicitado pelo Tribunal, tudo criticamente apreciado e conjugado com as conclusões que derivam da aplicação de regras da lógica e da experiência comum ao caso concreto.
A factualidade constante de 1) a 26) resultou provada da conjugação das declarações do próprio arguido, com as declarações da ofendida C… e com os depoimentos das testemunhas D… (mãe da ofendida C…) e J… (filha do aqui arguido), em conjugação com a prova documental junta aos autos. Na verdade, ficou claro que as partes celebraram diversos contratos promessa, de forma sucessiva, e relativos a vários apartamentos, contratos esses que não chegaram a dar origem à celebração de contratos definitivos por ter a mãe da ofendida mudado de ideias, sempre tendo o arguido anuído na alteração do apartamento a vender e na transferência das quantias pagas de um contrato para outro, mormente pela relação de confiança existente e por já conhecer a testemunha D… de outros negócios. Decorreu cabalmente da prova produzida que tal assim sucedeu mercê da boa vontade do arguido, que foi sucessivamente anuindo nos pedidos feitos pela testemunha D…, bem como pela própria C….
Ficou também demonstrado – conjugando as declarações do arguido, da ofendida e das testemunha D… e J… que o preço (€110,000,00) não foi pago no ato da celebração e assinatura do contrato promessa, mas sim ao longo de um determinado período, em diversas tranches, sendo certo que o dinheiro pago foi sendo transferido de um contrato para os outros (daí a prova negativa dos factos constantes nas alíneas a), b) e c).)
Por outro lado, e no que se refere à fração em causa nestes autos – apartamento de tipologia T2 – decorreu da prova produzida, mormente do próprio depoimento da ofendida C…, que foi ela quem escolheu este apartamento. Foram dados à escolha da ofendida três frações de tipologia T2, tendo sido a própria ofendida a escolher o T2 aqui em causa, designadamente por ser num rés-do-chão. Deste modo, resultou claro, designadamente do depoimento da própria ofendida, que não foi o arguido que impôs à ofendida ou à sua mãe o apartamento que acabou por ser objeto do contrato promessa referido na acusação, antes tendo o arguido colocado à escolha daquelas três apartamentos distintos, tendo sido a ofendida que escolheu aquele que acabou por ser alvo do contrato.
Também da prova que se produziu, mormente conjugando as declarações do arguido que pareceram sérias e honestas e, portanto, credíveis, corroboradas pelo depoimento da sua filha, a testemunha J…, não ficou demonstrado que apesar da citação para o processo de execução fiscal da sociedade da qual o arguido era legal representante este estivesse ciente da penhora do apartamento e da sua venda iminente. Além do mais, e conforme resulta do processo de execução fiscal, o arguido mal se apercebe da situação, numa fase posterior, tenta pagar a dívida, fazendo um acordo de pagamento. Por aqui também se conclui que o arguido não sabia da penhora e venda, sendo confrontado com tal facto quando é abordado pela própria ofendida C…, tendo aí pagar a dívida (em janeiro de 2013). E quanto ao pagamento da dívida fiscal também se diga que o arguido não poderia ter pago a mesma com os €110,000,00 que recebeu na data da celebração do último contrato-promessa porque, como vimos, tal montante não foi pago nessa data, mas sim anteriormente em diversas tranches.
Da factualidade apurada também não resultou que o dinheiro entregue ao aqui arguido para pagamento do preço dos apartamentos pertencesse à ofendida C…. Não obstante a ofendida ter dito que o dinheiro era seu, que até lhe foi emprestado por terceiros encontrando-se a pagar tal dívida, o certo é que resulta dos autos, bem como da prova testemunhal que se produziu, que as tranches de dinheiro foram sempre entregues pela testemunha D…, não existindo outra prova nos autos, mormente documental que demonstre ser o dinheiro propriedade da ofendida. Deste modo, não se pode igualmente concluir ter ofendida C… sofrido qualquer prejuízo patrimonial (alínea j)
Quanto ao mais, mormente quanto aos factos alegados no pedido de indemnização civil não se fez prova dos mesmos (nem documental, nem testemunhal), designadamente das despesas alegadas pela ofendida C…, daí a prova negativa dos factos constantes nas alíneas (k a n).
Para a prova dos factos atinentes à sua condição pessoal, familiar, profissional e económico-social baseou-se o Tribunal nas declarações do arguido.
A ausência de antecedentes criminais do arguido provou-se com base no Certificado de Registo Criminal junto aos autos.
III. 3. A isto que contrapõe a assistente?
Como vimos pugna a recorrente pela revogação da sentença absolutória do arguido e pela sua consequente condenação, quer na parte criminal, quer no pedido cível, estruturando esta sua pretensão na alegação de que, se não valorou correctamente a prova produzida em audiência - e, por isso aplicou mal o direito - pois que, da análise da matéria de facto dada como provada e não provada, resultam contradições e omissões com relevo, e por isso essenciais, para a decisão da causa, concretizando através da formulação da questão de saber como é possível conciliar o ponto 26 dos factos provados com as alíneas d), e). f) g), h), i) e j) dos factos não provados, com os números 27, 29, 30 e 33 dos factos provados.
Assim,
- segundo o ponto 26, “… face à não disponibilização do Arguido para celebrar a escritura de compra e venda como prometido, a Ofendida junto do Serviço de Finanças e da Conservatória … aferiu que a fracção destinada a habitação, garagem e aparcamento que foram objecto de contrato promessa, … já se encontrava penhorada pela Fazenda Nacional por uma dívida de € 13.740,33 desde 20 de Setembro de 2012, ou seja, mais de 2/3 meses antes da celebração do contrato promessa”, permite concluir com toda a segurança que a recorrente jamais foi informada da pendência da penhora pelo arguido, na verdade, só após a celebração do contrato promessa e devido à indisponibilidade do arguido em celebrar a escritura de compra e venda como prometido, é que, mediante indagação nas Finanças e na Conservatória se tomou conhecimento da penhora levada a efeito em 20 de Setembro de 2012, ou seja, mais de 2/3 meses antes da celebração do contrato promessa, sendo óbvio que o arguido tomou conhecimento da penhora, pois como resulta do ponto 27 dos factos provados, a promitente vendedora fora citada para os termos da execução fiscal em 18 de Setembro de 2012, nem o facto de o aviso de recepção não ter sido assinado pelo arguido quer dizer ou significar que ele não tenha tomado conhecimento da citação;
- por outro lado, em relação ao afirmado nos pontos 29, “… por carta registada enviada em 10 de Dezembro de 2012, a sociedade E…, Lda. foi notificada da decisão da venda da fracção “AT” (fls. 29 e 30 do processo de execução apenso)” e 30, “… os editais anunciando a venda da fracção “AT” foram afixados no prédio em 17 de Dezembro de 2012 (fls. 35 e verso do processo de execução apenso)”, apurou-se em audiência de julgamento da análise do aludido processo de execução, que não consta do elenco dos factos provados, que,
a) em 11 de Janeiro de 2013 – fls. 36 – estando designado dia para abertura de propostas com vista à venda da fracção “AT” a sociedade E… efectuou um pagamento por conta de 20% do montante exequendo, o que provocou que tivesse ficado sem efeito a abertura de propostas – vide fls. 37,
b) posteriormente, foi designada nova data para abertura de propostas – 30 de Janeiro de 2013 – e a sociedade E… Lda. efectuou novo pagamento por conta de 20% tendo novamente sido dada sem efeito a abertura de propostas – vide fls 40,
c) posteriormente foi designada nova data para abertura de propostas – fls. 44 – para 15 de Fevereiro de 2013 e a sociedade E… apresentou um pedido de SIREVE – vide fls. 45 a 47 – o qual veio a se indeferido – fls. 50 – em 14 de Fevereiro de 2013 e em 21 de Março a fracção “AT” foi adjudicada ao Banco G…, para daqui, voltar a questionar se perante este conjunto de factos, de notificações, pagamentos por conta e requerimentos será admissível considerar-se que o arguido ignorou tudo isto – não colhendo, de resto, a desculpa invocada em julgamento de que estava adoentado quando tal “suposta doença” não o impediu de subscrever o contrato promessa!!! em data posterior à notificação da penhora, questionando, outra vez, se será admissível considerar-se como não provado que o arguido lhe tenha omitido, a si, quer a penhora das finanças, quer a pendência do processo de execução fiscal, para logo depois, afirmar que a má fé do arguido resulta patente do teor do ponto 25 dos factos provados - seja, no momento da entrega da fracção a mãe da recorrente entregou ao arguido a quantia de €20.000,00 para perfazer os €110.000,00 do preço acordado e constante do contrato promessa, voltando a questionar se a execução fiscal era de cerca de €13.740,00, porque razão esta dívida não foi paga na íntegra quando tinha acabado de receber €20.000,00, sendo certo que andou a fazer dois pagamentos por conta de 20% no total de €5.428,00, ficando apenas por pagar €8.312,00.
O facto de sobre a fracção “AT” pender uma hipoteca contraída pela promitente vendedora, jamais acarretaria para a Ofendida a perda do preço pago no contrato promessa, face à aquisição pelo Banco G… no processo de execução fiscal.
Na verdade, sendo a fracção destinada a habitação e encontrando-se a Ofendida na posse efectiva da mesma – nº 24 dos factos provados – o exercício do direito de retenção garantia-lhe a restituição do preço pago.
Também foi clausulado no contrato promessa conforme consta do nº 23 dos factos provados que a fracção AT, a garagem e o aparcamento seriam entregues livres de ónus e encargos.
Obviamente a Ofendida sabia da pendência da hipoteca mas o que foi acordado era que a mesma seria distratada aquando da celebração da escritura de compra e venda, como de resto é usual.
O problema, o ónus oculto, escondido e consabidamente existente pelo Arguido, era a penhora!!!
Aí é que está o dolo, a má-fé, o prejuízo da perda da fracção e do preço.
Bastaria em desespero de causa após o 2.º pagamento por conta ter sido feito um derradeiro esforço de pagamento, ou até alertar a Ofendida para a necessidade de pagar os restantes €8.312,00!!!, com vista a evitar o prejuízo da perda da fracção e do preço.
III. 4. Apreciando.
Reduz a recorrente o recurso ao segmento da matéria de facto e estrutura a sua pretensão recursória – e, por esta via, a condenação do arguido - no facto de, na sua óptica, a prova não ter sido devidamente apreciada, pois que, da análise da matéria de facto dada como provada e não provada, resultam contradições e omissões com relevo, e por isso essenciais, para a decisão da causa, que concretiza, através do método, que terá por mais eficaz e enfático, da interrogação.
O certo é que não enquadra processualmente esta sua pretensão.
No entanto, na cogitação da recorrente não estará - seguramente pelos termos e forma como, em substância, se exprime – a pretensão de impugnar a matéria de facto, isto, porque, nem no corpo da motivação, nem nas conclusões, chega a invocar, expressa ou implicitamente, as normas legais contidas no artigo 412.º/3 e 4 C P Penal – nem estas nem quaisquer outras, de resto - e, muito menos, dá cumprimento, nem pretende dar, de resto, aos exigentes requisitos ali mencionados.
E, assim, resta a outra possibilidade de alteração/modificação da matéria de facto.
Que reside na existência, na verificação, de um qualquer dos vícios do artigo 410.º/2 C P Penal - cujo conhecimento, como se sabe, de resto é do conhecimento oficioso.
Vícios que são, o da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e, o do erro notório na apreciação da prova.
Até porque alega, a recorrente, que da análise da matéria de facto dada como provada e não provada, resultam contradições e omissões com relevo, que vem a concretizar.

III. 4. 1. Os vícios da decisão previstos no artigo 410.º/2 C P Penal.
Como se sabe, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão, da 1ª instância, relativa à matéria de facto pode ser modificada - artigo 431.º alínea b) C P Penal - quando a prova tiver sido impugnada de acordo com o disposto no artigo 412.º/3 do mesmo diploma.
Estamos, então, perante 2 vias que podem conduzir à modificação/alteração do julgamento da matéria de facto.
Se no caso do artigo 412.º C P Penal - impugnação da matéria de facto – estamos perante erros de julgamento, no caso dos vícios do artigo 410.º/2 C P Penal estamos perante vícios da decisão.
Qualquer das situações referidas no artigo 410.º/2 C P Penal, traduzem-se, sobretudo em deficiências na construção e estruturação da decisão e ou dos seus fundamentos, maxime na sua perspectiva interna, não sendo por isso o domínio adequado para discutir os diversos sentidos a conferir à prova.
Qualquer um dos vícios previstos no n.º 2 do referido artigo 410.º C P Penal, é inerente ao silogismo da decisão e apenas dela pode ser apurado, nos termos do artigo 410.º/2 C P Penal - não sendo possível o recurso a outros elementos que não o texto da decisão, para sua afirmação - ainda que conjugado com as regras da experiência, sendo a consequência lógica e imediata, da sua existência, salvo o caso de ser possível conhecer da causa, o reenvio do processo, artigo 426º C P Penal.
Na sequência lógica destes pressupostos, a sua emergência, como resulta expressamente referido no artigo 410.º/2 C P Penal, terá que ser detectada do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
Em sede de apreciação dos vícios do artigo 410.º C P Penal, não está em causa a possibilidade de se discutir a bondade do que se considerou provado ou não provado, a maior ou menor abundância de prova para sustentar um facto.
Qualquer dos vícios do artigo 410.º/2 C P Penal, pressupõe uma outra evidência e a argumentação da recorrente gira, então, em volta de uma melhor avaliação, ponderação e, quiçá, interpretação do que foi dito, donde estrutura a existência daqueles apontados vícios, não numa análise da decisão na sua componente interna, de racionalidade, de lógica e de coerência das diversas asserções dadas como provadas, mas antes, numa perspectiva de expressar o seu inconformismo com o resultado do julgamento da matéria de facto, que lhe foi desfavorável.
Os vícios do artigo 410.º/2 C P Penal não podem ser confundidos – como de forma patente, faz a recorrente - com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão tomada em sede de matéria de facto, nem podem emergir da mera divergência entre a sua convicção pessoal sobre a prova produzida em julgamento e a convicção que o tribunal firmou sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inserto no artigo 127.º C P Penal.
Aqui poderá haver erro de julgamento, sindicável, nos, apertados e deveras exigentes, termos, definidos no artigo 412.º C P Penal.
A valoração da prova em sentido diverso - fora o caso de erro notório - ao pugnado pelo recorrente, merece tratamento em sede erro de julgamento, nos termos do artigo 412.º C P Penal, através do controlo do erro na apreciação das provas (sobre a sua admissibilidade e valoração dos meios de prova) e a consequência imediata da sua procedência, é a modificação da matéria de facto, artigo 431.º C P Penal.
E, assim, cremos resultar manifesta a conclusão de que não se verifica a ocorrência de qualquer dos vícios nela previstos.
Com efeito, da leitura da nova decisão e, designadamente dos segmentos dos factos provados e da motivação, caldeada com as regras da experiência comum, pois que a outros elementos não pode o Tribunal socorrer-se, não se vislumbra que se patenteie, quer, o ainda que imperfeitamente invocado, da contradição insanável na fundamentação ou entre esta e a decisão, já que não se descortina a existência de factos ou de afirmações que estejam entre si numa relação de contradição.
Tão pouco, os não expressamente, invocados, da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, pois não se vê que matéria de facto, com utilidade e pertinência, poderia o tribunal, mais ter averiguado ou, do erro notório na apreciação da prova, pois que não existem pontos de facto fixados na decisão recorrida, tão manifestamente arbitrários, contraditórios ou violadores das regras da experiência comum.

Isto sendo certo que desde logo e, em relação ao que se pode ter tido como razoavelmente invocado pela recorrente, por contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, alínea b) do nº. 2 do artigo 410.º C P Penal, entende-se a omissão de 2 proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras ou falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo, diferem na quantidade ou na qualidade.
Para os fins desta norma, constitui contradição só aquela que, como expressamente se postula, se - apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Só existe, pois, contradição insanável da fundamentação, quando, de acordo com o raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados.
Ou seja, há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada e, há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.
E, assim sendo, é manifesto que nenhuma destas situações se verifica, no caso.
Com efeito.
A recorrente pretende existir contradição no facto de se ter julgado como provado que a fracção destinada a habitação, garagem e aparcamento, objecto do contrato promessa, não estava livre de ónus e encargos desde, pelo menos, dois meses antes da celebração daquele contrato e, por outro lado, se ter julgado como não provado que o arguido conhecesse, nessa data, da existência daquele ónus e encargos que recaiam sobre a referida fracção, e que, dessa forma e ardilosamente, a induziu em erro.

III. 4. 2. Atentemos no tipo legal de burla, desde logo, para melhor entendermos o que acabamos de afirmar.
E dizemos, o de burla pois que o de falsificação, aqui neste contexto, a surgir, seria sempre como crime instrumento daquele que seria o crime fim – ainda assim, naturalmente, em concurso real e dos fundamentos do recurso, não se vê que a recorrente se mostre, fundada e especificamente discordante e impugnante desse preciso segmento, da decisão recorrida, isto não obstante genericamente, pugnar pela condenação do arguido pelos 2 crimes.
O certo é que não aduz nada, de nada em relação ao alegado crime de falsificação, que dos factos provados se não evidencia, de todo.
Assim.
O artigo 450º/4 C Penal de 1886 previa como crime de burla, a situação de alguém alhear como livre, uma coisa especialmente obrigada a outrem, encobrindo maliciosamente a obrigação.
Dava-se assim, protecção ao interesse do adquirente que sofria prejuízo patrimonial com a aquisição de uma coisa, por esta se não encontrar livre de encargos e portanto sujeita acção do credor.
Encargos aqui, entendidos, como ónus reais e como direitos reais de garantia.
Ao ser alienada como livre uma coisa onerada com algum daqueles encargos, o vendedor recebia o preço injusto, por superior ao valor da coisa, à custa do património do comprador, que, porventura se soubesse da existência daquele ónus, não celebraria o negócio, ou só o celebraria por preço inferior.
Pagando um preço injusto por superior ao valor da coisa, o comprador sofreria um prejuízo patrimonial, definidor de um dos elementos materiais do crime de burla, caso os encargos se mantivessem após a venda, por virtude do direito de sequela. Independentemente de o titular do ónus real ou do direito real de garantia vir mais tarde a exercer o seu direito.
Aquele que vende como livre uma coisa sobre a qual incide um ónus real ou um direito real de garantia, enganando o comprador acerca de tal qualidade, obtém um enriquecimento ilegítimo à custa do comprador, produz uma diminuição no património deste. Em tal caso é nítido o prejuízo do comprador, contanto que os encargos subsistam após a venda[1].
O C Penal de 1982, não contém norma semelhante.
O crime de burla, originariamente previsto no artigo 313º e agora depois da reforma operada através do Decreto Lei 48/95, no artigo 217º, está inserido no capítulo dos crimes contra o património em geral e está previsto, para a situação de “quem com a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo através de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial”.
Requisitos deste tipo legal surgem, assim: uma actividade enganadora; a intenção de obter um enriquecimento ilegítimo; a prática de actos pelo enganado; o prejuízo patrimonial do enganado ou de outrem; o duplo nexo causal, entre a actividade enganadora do agente e o erro do enganado e entre estes actos e o prejuízo patrimonial.
A conduta enganadora deve ser adequada a produzir um erro no sujeito passivo, deve será a causa do erro, pressupondo um nexo de causalidade entre ambos.
Para que o engano seja causa adequada a produzir o erro é suficiente que possa exercer influência no ânimo do sujeito passivo. O meio enganador não é, no entanto, suficiente; torna-se necessário que ele consubstancie a causa do erro, em que se encontra o burlado. Como da mesma forma não será suficiente a simples verificação do estado de erro; necessário, será, ainda, que nesse engano resida a causa da prática pelo enganado dos actos donde decorre o prejuízo patrimonial.
O crime de burla, enquanto crime de dano, consuma-se com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro, que passa, então, por aquele apontado duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta do agente e a prática pelo burlado dos actos tendentes a uma diminuição do património e, depois, entre estes e a efectiva verificação do prejuízo.
O engano é o mais melindroso dos elementos deste tipo legal, se bem que seja, em simultâneo, o decisivo. É ele que individualiza o crime de burla em face das restantes figuras de enriquecimento ilegítimo.
Enganar é fazer crer a alguém, por acção ou de qualquer forma concludente, algo que não é verdade.
Por sua vez, a par da idoneidade do meio enganador, objectivamente apreciada, deve-se tomar em consideração a personalidade do burlado.
Aquilo que pode não revelar idoneidade como meio para enganar a generalidade das pessoas, pode-o assumir, no caso concreto, em face da particular credulidade ou falta de resistência do burlado, vg, mercê da fragilidade intelectual ou inexperiência ou de especiais relações de confiança para com o agente.
A pedra de toque da distinção entre o crime de burla e o incumprimento de obrigações civis, centra-se no facto de que o crime de burla apenas tem a virtualidade de criminalizar os contratos civis, quando o propósito de enganar, precede a celebração do contrato ou ocorre no momento de celebração do contrato, determinando a vontade da outra parte. O dolo no incumprimento das obrigações tem, ao invés, carácter subsequente e surge posteriormente à conclusão de um negócio lícito contraído de boa fé, na fase de cumprimento e execução.
Assim, apenas poderá ocorrer o crime de burla se a intenção de não cumprir existia ab initio, não podendo aqui ocorrer uma situação de dolo subsequente[2].
O erro entende-se como o estado psicológico de falsa representação da realidade, consequência do engano e causa do acto de disposição patrimonial. Não é no entanto qualquer erro que o crime de burla pressupõe. O erro, aqui, tem que ser provocado astuciosamente, de forma fraudulenta. Maliciosamente era a expressão utilizada no já citado tipo legal previsto no nº. 4 do artigo 450º C Penal de 1886.
Na actividade de apreciação do preenchimento dos elementos do tipo legal de burla, há que com muito cuidado apreciar e avaliar as palavras e declarações expressas, os actos concludentes e os silêncios, pois que o engano pode ser produzido por omissão.
O acto concludente ou engano implícito, assume a maioria das vezes uma conduta do agente que leva associada ou implícita a ideia de que vai cumprir a contraprestação, mas em que na realidade tal propósito não existe e a sua aparência outra finalidade não tem senão a de induzir em erro o ofendido[3]. Eis, o artifício fraudulento.
No entanto, no ensinamento do Prof. Faria Costa[4], importa proceder à delimitação do âmbito de protecção do ilícito subjacente a este tipo legal: apesar da característica acentuadamente solidária dos actuais Estados de Direito social, persiste a convicção de que, em primeira alinha, compete a cada pessoa cuidar dos seus próprios interesses, surgindo a obrigação de salvaguardar bens jurídicos alheios – até por razões reportadas à preservação da autonomia da esfera privada – com carácter subsidiário e residual.
Este facto adquire particular acuidade na esfera das relações patrimoniais, quer de natureza civil, quer, sobretudo, comerciais, no âmbito do mundo dos negócios.
Com efeito, numa economia de mercado, assente em mecanismos de livre concorrência, o sucesso liga-se, as mais das vezes, ao superior conhecimento das características do sector concreto de actividade e assim, em termos de erro ou de ignorância dos seus competidores. Dentro de certos limites, o mencionado domínio do erro consubstancia um elemento constitutivo, intrínseco, do regular funcionamento de uma economia de mercado. Neste caso o correspondente exercício apresenta-se conforme à ordem jurídica, não podendo integrar a previsão do ilícito criminal em apreciação.
A questão será já diversa, quando tal domínio corresponder a uma actuação ofensiva das relações de lealdade que deve acompanhar o comércio jurídico e como tal consubstanciando o domínio do erro penalmente relevante[5].
Como da mesma forma, o Prof. Costa Andrade[6], defende que importa ponderar a existência, ou não, de um critério legal de interpretação da factualidade típica susceptível de em certos domínios, um deles a burla, permitir valorar a conduta da vítima do ponto de vista da carência de tutela jurídica e, por essa via, excluir determinadas expressões da vida do âmbitos da factualidade típica. Citando Hassemer, que parte do princípio da subsidariedade do direito penal – a que atribui dignidade constitucional – segundo o qual a intervenção do direito criminal só é legítima quando a tutela de bens jurídicos em causa, não puder ser garantida por outras vias, que impliquem custos menos gravosos para os direitos do homem, tal princípio vale sem limites, ié, tanto em relação ao outras alternativas estaduais como alternativas privadas, nomeadamente a auto-tutela que se permite e se reclama aos portadores concretos de bens jurídico-penais.
Quer dizer o princípio da subsidariedade do direito penal tem como reverso um princípio de auto-responsabilização dos titulares concretos dos bens jurídico-penais.
O direito não pode exigir que os indivíduos se fechem à participação social e evitem todo o contacto histórico-socialmente adequado mesmo que susceptível de criar risco para os respectivos bens jurídico-penais. Mas já pode reclamar que não sejam eles a elevar as cotas de risco em termos que ultrapassem o limiar de que a lei, de forma abstracta e típica, faz depender a sua intervenção. Pois se aquele limiar só foi atingido e excedido por razões imputáveis à vítima – que não aproveitou as oportunidades de auto-tutela que lhe eram oferecidas e cujo aproveitamento lhe era exigível, então terá que se concluir, à luz dos princípios da subsidariedade e da proporcionalidade, que ela se colocou fora do âmbito de tutela da norma penal incriminatória.
Aplicando esta construção à interpretação da factualidade típica do crime de burla, interroga-se Hassemer, sobre se deverá considerar-se o elemento erro da vítima em todos os casos em que a sua situação cognitiva se caracteriza pela dúvida concreta: nos casos em que, não sendo de convicção subjectiva quanto à verdade do estado de coisas apresentado fraudulentamente pelo agente, ultrapassa, todavia, o grau de mera dúvida difusa adequada ao tráfego normal comercial.
Dúvida concreta, existirá, quando o comprador do automóvel usado, a quem o vendedor garante que o mesmo nunca sofreu qualquer colisão, sendo que o estado da pintura e da chaparia, apresenta sinais concretos que torna razoável a representação da possibilidade de ocorrência da colisão e, por seu lado, dúvida difusa, ocorrerá, quando, o mesmo comprador, sem ignorar a eventualidade e mesmo frequência de fraude nesta actividade, não vê sinais externos e concretos susceptíveis de fazer ultrapassar este estado difuso e generalizado de dúvida.
Sustenta, então, Hassemer, que o enquadramento de cada uma destas duas situações, deve ser diferenciado: ninguém pretenderá excluir a subsunção da 2ª hipótese na factualidade típica do crime de burla, em especial no elemento erro. Será diferente quanto à 1ª situação: se com a dúvida concreta se verificar, cumulativamente, que sem custos ou sacrifícios inexigíveis, o comprador poderia alargar o seu campo de informação ou, em alternativa, renunciar à transacção. Se o portador do bem jurídico não assume qualquer destas atitudes alternativas, embora tal lhe fosse possível e exigível, então falha a sua carência de tutela e por isso, a aplicabilidade do elemento da factualidade típica, erro, com a consequência de ter que se excluir, pelo menos, a condenação por burla consumada.
Claro que esta teoria não é decisiva para fundamentar a carência de tutela penal do bem jurídico, sobretudo em sociedades como a portuguesa, mal habituada para aceitar subtilezas da doutrina, antes habituada a recorrer à protecção que lhe é facultada pelo direito criminal para resolver problemas decorrentes de negócios jurídicos tutelados pela lei civil ou comercial. É certo que o direito criminal presta apoio com as suas técnicas específicas a outros ramos de direito, mas resta saber se tal apoio não deverá, em certas situações particulares sofrer algumas restrições, sobretudo quando os lesados omitem as precauções exigíveis e normais em contraentes prudentes e avisados[7].
Apreciemos agora se a actuação do arguido é susceptível de o revelar ou fazer constatar.
É patente que não.
Não consta do elenco dos factos provados, que o arguido não tinha, na ocasião, o propósito nem de pagar a quantia exequenda nem de efectuar o distrate da hipoteca.
Factos, que nem sequer constavam da acusação.
E o propósito de o arguido, desde logo, não vir a pagar a quantia exequenda nem efectuar o distrate da hipoteca, é que no caso constituía o engano fraudulento.
O arguido não fez crer, nem expressamente, nem por qualquer acto concludente, que não tinha o propósito de o fazer, o que de qualquer forma sempre seria difícil de concluir.
Se tivesse manifestado o propósito de efectuar o pagamento e o distrate, quando no fundo, nunca o pretendia vir a fazer, como já havia, de resto, decidido, não fazer, isto, apenas para que o negócio se concluísse, aí, também, estaria o engano fraudulento.
Não consta que o arguido tenha feito crer, por acção ou por omissão, ao comprador algo que não era verdade.
O simples facto, derivado da existência dos apontados ónus e encargos, que é o que vem provado, é em absoluto compatível com o facto de inexistir qualquer erro, qualquer fraude. Tal não permite, só por si, se extraia a conclusão de que o vendedor não tinha qualquer intenção, tinham, mesmo, já tomado a decisão de não vir a efectuar, no futuro o pagamento e o distrate.
A existência, a 2 meses de distância, daqueles ónus e encargos, compagina-se com o facto de, com lealdade e seriedade, o vendedor assumir (e o comprador confiar) em que irá tratar do pagamento da quantia exequenda e do distrate da hipoteca.
Hoje começa a surgir, por uma razão ou por outra, cada vez com mais frequência situações em que se dá como pago e recebido o preço ou parte, numa escritura, quando depois se vem a produzir prova em sentido contrário.
Ninguém defenderá, que neste quadro, se verifica, sem mais, a factualidade típica da falsificação ou da burla. O sem mais que aqui, faz toda a diferença, entre incumprimento do contrato e criminalização da conduta, reside, então, como se disse antes, no facto de estar já tomada a decisão, desde logo, de não pagar o preço, apesar do que, em contrário, consta da escritura. Apenas se tal situação ocorrer é que a conduta tem contornos de burla e já não, seguramente, caso se não prove que aquela intenção é preexistente ou contemporânea, da outorga do contrato promessa.
A apurada conduta do arguido – omissão pura e simples, não se mostra, de resto adequada a enganar o comprador.
Com efeito, constitui procedimento, não normal, mas que por vezes acontece, ficar a constar da escritura que a alienação é feita livre de ónus e encargos – como de resto, a outro nível, a referida recepção do preço - e os adquirentes, acreditarem, na manifestação de vontade do alienante, promessa de a distratar no futuro e, aceitarem outorgar, nesses termos, não obstante bem saberem que o facto ali exarado não corresponde à verdade e dos riscos que correm.
O dolo não se presume e deve, na falta de prova directa, ser conclusão a extrair do conjunto da materialidade e contexto dos factos provados.
Que a penhora e a hipoteca estavam registadas, é um facto, que a simples leitura, da certidão, o evidenciava.
Uma pessoa normal, aperceber-se-ia desse facto, pela mera leitura do documento.
Que o contrato promessa tinha a cláusula da venda ser feita livre de quaisquer ónus ou encargos, constitui indício certo de que houve a cautela, de, então, se prevenir tal situação, no interesse do comprador.
A conduta omissiva, recorde-se pelo retrato que a decisão recorrida nos dá, do arguido, não só não é adequada a por si só, induzir alguém em erro. Muito menos, com ardil, artifício, artimanha, astuciosa, maliciosamente. Não se pode concluir que o arguido tenha recorrido a qualquer estratagema, já engendrado na ocasião, para prejudicar o património da assistente e assim enriquecer, ilegitimamente.
Em resumo, dos factos provados, nem sequer, de resto, dos que constavam da acusação pública, não resulta que o arguido apesar de ter ficado a constar do contrato promessa que a alienação era livre de ónus e encargos, que nunca, ou pelo menos até ao momento da outorga do contrato prometido, não tivesse a intenção de pagar nem a quantia exequenda, nem o distrate da hipoteca.
Aqui residiria o engano fraudulento.
Como parece medianamente evidente, então os apontados factos não são, em si mesmo, necessariamente contraditórios, pois que, desde logo – independentemente da questão do conhecimento – o certo e decisivo, é que sempre se afigura como possível que entre as duas datas, o arguido tivesse a intenção de desonerar a fracção, para poder cumprir.
E, como é sabido, só o dolo inicial - e não o subsequente - só o existente momento da consumação do crime se pode ter como relevante, no que se traduz que apenas teria ressonância criminal se desde sempre, ab initio, o arguido não tivesse, nunca tivesse tido a intenção de cumprir.

Improcede, assim, o recurso.
IV. DISPOSITIVO
Nestes termos e com os fundamentos mencionados acordam os juízes que compõem este tribunal, negar provimento ao recurso apresentado pela assistente C…, assim, se mantendo a decisão recorrida no segmento que vem impugnado.

Taxa de justiça pela assistente, que decaiu, na totalidade d recurso, que se fixa no equivalente a 4 UC,s

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1º signatário.

Porto, 2017.Abril.26
Ernesto Nascimento
José Piedade
___
[1] 1. Acórdão STJ de 16.4.1997, in CJ, S, II, 181
[2] Acórdão deste Tribunal relatado pela Sra. Desembargadora Isabel Pais Martins, de 16.2.2005, in CJ, 219.
[3] Voto de vencido subscrito pelo então Desembargador Santos Cabral no Acórdão da RC de 13.12.2000, in CJ, V, 54.
[4] C Penal Conimbricense, II, 263
[5] Voto de vencido subscrito pelo então Desembargador Santos Cabral no Acórdão da RC de 13.12.2000, in CJ, V, 54.
[6] Citado no Acórdão do STJ de 1.7.1998, de que foi relator o Conselheiro Lopes Rocha, in CJ, S, II, 223 e extraído do estudo denominado “Sobre o estudo e Função da Criminologia Contemporânea, in Separata do BMJ 13, 25.
[7] Citado acórdão de 1.7.98