Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3714/09.6TAMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: ARMA
BASTÃO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CONHECIMENTO OFICIOSO
MATRACAS
Nº do Documento: RP201404233714/09.6TAMTS.P1
Data do Acordão: 04/23/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O tribunal superior pode alterar oficiosamente a qualificação jurídica dos factos quando está em causa matéria de direito, pelas implicações que ela pode ter na medida da pena, mas ressalvada a proibição da reformatio in pejus.
II – Se não afetar a defesa do arguido, a alteração não implica qualquer comunicação prévia.
III – Um tubo metálico, oco, de 20,5 cm de comprimento, que serve para acondicionar matracas não reúne condições para ser utilizado como arma de agressão ou defesa, já que as reduzidas dimensões, aliadas à quase ausência de peso, reduzem naturalmente a energia cinética.
IV – A ausência de licença de uso e porte de matracas [arma da classe F] constitui um elemento do tipo da contraordenação prevista pelo art. 97.º, da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro [que aprova o regime jurídico das armas e suas munições].
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3714/09.6TAMTS.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Coletivo que corre termos no 4º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Matosinhos com o nº 3714/09.6TAMTS, foram submetidos a julgamento os arguidos:
B…,
C…,
D…,
E…,
F…,
G…,
H…,
I…,
J…,
K…,
L…,
M… e
N…,
tendo a final sido proferido acórdão, depositado em 27.05.2013, que condenou, entre outros, o arguido:
K…, pela prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. no artº 86º nº 1 al. d) da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro, alterada pela Lei nº 17/2009 de 06 de Maio, 14º e 26º do Cód. Penal, na pena de 180 dias de multa à taxa diária de € 5,00, perfazendo a multa global de € 900,00.
Inconformado com a decisão condenatória, dela veio o arguido K… interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. Considera o recorrente verificar-se a violação do princípio “in dubio pro reo” e da livre apreciação da prova (artº 127º do C.P.P.), na valoração das buscas, apreensões e registos fotográficos imputados ao recorrente;
2. Contou também para sua decisão o depoimento prestado pelo OPC Agente O… que exemplifica a forma como identificou o arguido como detentor das matracas bastão, violando os princípios referidos anteriormente:
Inquirição do Agente O… 0:50 minutos
Ministério Público – Já disse que conhece o Sr. K…?
Agente O… – Nem o Sr. K… reconheço (…)
1:31 minutos
Ministério Público – Efetuou alguma busca a alguma residência?
Agente O… – Efetuei sim senhora na Rua …, nº …., …, que é a residência do Sr. K…
3:51 minutos
Defensor – Quem estava dentro de casa?
Agente O… – Sr. Dr. eu não me recordo sei que o visado estava o Sr. K….
Defensor – Quantas pessoas estavam lá?
Agente O… – Não me recordo Sr. Dr.
Defensor – Estava lá mais gente?
Agente – Não me recordo não lhe sei precisar (…)”
3. A dúvida razoável impunha resposta negativa aos factos da acusação, o que o Tribunal não levou em consideração;
4. Contou também o Tribunal com seguinte facto provado: “8-Mora num aglomerado habitacional designado como “ilha” numa casa de reduzidas dimensões pertencente aos progenitores, subsiste quer dos apoio que no quotidiano estes asseguram a nível da alimentação, quer do valor mensal de € 180,00 correspondente à prestação pecuniária do rendimento social de inserção. Dando origem a uma dúvida razoável se era o Recorrente arguido o detentor das matracas bastão, violando os princípios da livre apreciação da prova e “in dubio pro reo”;
5. Impugna o recorrente a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos do artº 412º nº 3 do C.P.P.;
6. Entende que foi incorretamente julgado o seguinte ponto de facto que se transcreve: “(…) Foram apreendidos aos arguidos, os seguintes bens que estes detinham na sua posse:
(…) ix. K…
1. um bastão com um sistema de parafuso e porca no meio que quando desenroscado permite a sua transformação num par de matracas metálicas que ficam ligadas através de uma corrente metálica de 21,5 cm de comprimento, corrente que se encontra no seu interior;
7. O arguido recorrente discorda que se tenha dado como provado os factos em análise designadamente que o arguido seja o proprietário da matraca e bastão;
8. As provas que no entender da defesa impunham decisão diversa são aquelas que o tribunal valorou para formar a sua convicção nomeadamente as buscas, a apreensão e o depoimento prestado pelo OPC Agente O…, transcrito supra;
9. O bastão matraca é um objeto com aplicação definida, e essa aplicação consiste nas artes marciais, facto notório e do conhecimento geral, mas também expressamente descrito na lei, no seu artº 3º da Lei 5/2006 alterada pela Lei 17/2009 de que refere são armas da classe F: a) As matracas, sabres e outras armas brancas tradicionalmente destinadas às artes marciais ou a ornamentação, faltando um dos requisitos (não ter aplicação definida) do artº 86º al. d), para que seja considerada arma proibida. Não preenche o elemento objetivo do tipo legal de detenção de arma proibida. Trata-se de uma arma que está incluída na classe F, e porque se trata de arma que a própria lei considera tradicionalmente destinada às artes marciais é uma arma com aplicação definida, não tendo por fim exclusivo ser usada como arma de agressão. Sendo arma branca com aplicação definida, mesmo que o respetivo detentor não justifique a posse, não se mostra preenchida a previsão do crime de detenção de arma proibida;
10. O Tribunal a quo ao considerar como não provado que: O arguido K… utilizava o bastão, exclusivamente, como arma de agressão e para intimidar pessoas, que se trata de uma arma proibida e que a sua detenção é proibida e punida por lei (…) não pode considerar depois que o arguido agiu com dolo direto nos termos do artº 14º do Código Penal, existindo desta forma os vícios constantes nos artºs. 410º al. a) e al. b) do C.P.P.;
11. Não tendo sido provado que o arguido sabia que a arma era proibida, não pode o Tribunal a quo referir na decisão de direito: “(…) Uma vez que ficou provado que os arguidos conheciam esse circunstancialismo e quiseram atuar da forma como fizeram, não resta senão a conclusão de que os arguidos em questão, praticaram o crime de detenção de arma proibida, relativamente ao qual vinham publicamente acusados (…)” – pág. 68 do Acórdão – deveria ter absolvido o arguido existindo desta forma os vícios constantes nos artºs. 410º al. a) e al. b) do C.P.P.;
12. Nestes termos o Acórdão violou o artº 410º nº 2 al. a) do C.P.P., pois da leitura do douto acórdão, não se vislumbra qual o suporte fáctico ou o raciocínio lógico que foi feito pelo meritíssimo juiz a quo, dentro do seu poder de livre apreciação da prova, que lhe tenha permitido a “construção” da sua convicção e que lhe permitiu dar como provados os factos que deu;
13. O Tribunal a quo ao considerar como não provado que: O arguido K… utilizava o bastão, exclusivamente, como arma de agressão e para intimidar pessoas, que se trata de uma arma proibida e que a sua detenção é proibida e punida por lei (…) não pode considerar depois que a arma já é afinal proibida e que a sua detenção passa a ser proibida e punida por lei existindo os vícios constantes nos artºs. 410º al. a) e al. b) do C.P.P.;
14. O Tribunal a quo ao considerar como não provado que: O arguido K… utilizava o bastão, exclusivamente, como arma de agressão e para intimidar pessoas, que se trata de arma proibida e que a sua detenção é proibida e punida por lei (…) não pode considerar depois que o arguido agiu com dolo direito nos termos do artº 14º do Código Penal. O Tribunal a quo considerou como não provado as matracas tratarem-se de uma arma proibida e também antagonicamente considerou as matracas nos factos provados e mais tarde considerou ser arma proibida o que configura o vício constante do normativo 410º nº 2 al. b) do C.P.P., contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão;
15. O tribunal a quo não refere na sua decisão de facto, nem nos factos provados nem nos factos não provados que o arguido sabia que a arma era proibida, mas mais tarde na sua decisão considera que o arguido sabia que a arma bastão/matracas era proibida, o que configura o vício de erro na apreciação da prova com a consequente insuficiência para a decisão da matéria de facto provada nos termos do artº 410º nº 2 al. a) e al. b) do C.P.P.;
16. O Tribunal a quo na determinação da medida da pena considerou justo e adequado a aplicação da pena de 180 dias de multa à razão de € 5 por dia, num total de € 900 violando o artº 71º nº 2 al. d) do Código Penal, quando deveria ter considerado justo e adequado a pena de 50 dias de multa à razão de € 5 por dia num total de € 250,00, tendo em conta as possibilidades do arguido;
17. Entende o recorrente que a pena aplicada é desajustada à realidade em concreto apurada, devendo ser-lhe reduzida aquela para uma outra mais próxima do mínimo legal, por se afigurar mais justa e adequada com os factos e a personalidade do arguido sem que daí sejam prejudicadas as elevadas exigências de prevenção, particularmente ao nível da prevenção geral de integração pois como acima se referiu as exigências de prevenção especial positiva justificam que as penas a aplicar-lhe se situem abaixo do estabelecido no douto acórdão, pugnando pois, pela diminuição da medida da pena que lhe foi aplicada.
*
Na 1ª instância o Mº Público respondeu às motivações de recurso concluindo que o mesmo deve ser julgado improcedente, uma vez que a decisão recorrida não apresenta quaisquer vícios que a inquinem e não viola qualquer disposição legal.
*
Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer concordante com a resposta do Mº Público na 1ª instância.
*
Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P. não foi apresentada qualquer resposta.
*
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
*
*
II – FUNDAMENTAÇÃO
O acórdão sob recurso considerou provados os seguintes factos, no que ao recorrente respeita: (transcrição)
«[…] 2. Foram apreendidos aos arguidos, os seguintes bens que estes detinham na sua posse:
ix. K…
1. um bastão com um sistema de parafuso e porca no meio, que quando desenroscado permite a sua transformação num par de matracas metálicas que ficam ligadas através de uma corrente metálica de 21,5 cm de comprimento, corrente que se encontra no seu interior;
2. um telemóvel da marca Nokia, modelo …, com o IMEI nº ……………;
3. um telemóvel da marca Nokia, modelo …, com o IMEI nº ……………;
4. um aparelho localizador da marca Wosat, com o IMEI nº ……………;
[…]
5. O arguido K… sabia que o bastão/matraca é um objeto sem aplicação definida, passível de ser utilizado como arma de agressão e para intimidar pessoas, bem sabendo este arguido que se trata de uma arma proibida, e que a sua detenção é proibida e punida por lei;
[…]
10. Todos os arguidos agiram livre deliberada e conscientemente.
[…]
18. O arguido K… tem antecedentes criminais, tendo sido condenado: em 30/07/2009, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, numa pena de 100 dias de multa à razão de € 2 por dia; em 10/12/2009, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, numa pena de 20 meses de prisão suspensa por igual período; em 14/01/2010, pela prática de um crime de falsidade de testemunho, numa pena de 6 meses de prisão, substituída por 180 dias de multa à razão diária de € 5 por dia;
[…]
22. Condições sociais e pessoais dos arguidos:
x. K…
1. K… é proveniente dum núcleo familiar sócio-culturalmente desfavorecido, constituído pelos progenitores e dois irmãos de nível etário superior. Os recursos económicos da família, provenientes das atividades profissionais desempenhadas pelas figuras parentais, respetivamente, torneiro mecânico e empregada doméstica, proporcionaram, ao longo do seu processo de crescimento, um padrão de qualidade de vida minimamente adequando à satisfação das suas necessidades básicas.
2. A dinâmica familiar caracterizada pela existência de dificuldades ao nível da conjugalidade parental, resultado de interações disfuncionais entre ambos, assim como ao nível da parentalidade, consequência duma certa insuficiência na assunção das responsabilidades educativas e afetivas necessárias à estimulação de K… e irmãos.
3. Inserido no sistema de ensino até aos 16 anos de idade, K… foi alvo de várias retenções, não tendo concluído as aquisições ao nível do 3º ciclo, após reprovação no 8º ano de escolaridade. Posteriormente, no âmbito do ensino alternância também não completou o seu plano de formação, em resultado duma frequência de curta duração dum curso de técnico auxiliar de computadores. A desmotivação e ausência de incentivos ao nível familiar para a prossecução da escolaridade, a par da emissão de comportamentos desajustados no contexto sócio-escolar, foram fatores que influenciaram negativamente a sua performance neste contexto.
4. Desvinculado do sistema de ensino a partir de meados de 1998 e do exercício da modalidade desportiva de futebol, no P…, no ano seguinte, aparentemente pelo desinteresse progressivo no investimento neste tipo de atividades e no cumprimento das rotinas inerentes à sua prática, K… inicia um percurso vivencial, a partir dos 18 anos de idade, marcado pela inatividade ocupacional, e pelo contacto e inserção em grupos de pares do contexto sócio-residencial, da mesma faixa etária, com práticas e estilos de vida pouco convencionais.
5. Esteve emigrado em Inglaterra, cerca de dez meses, integrando o núcleo familiar do irmão, período durante o qual desempenhou, duma forma mais consistente, uma atividade laboral.
6. Terminou ao fim de cinco anos de duração, em meados do ano de 2010, duma ligação afetiva complexa, materializada em união de facto com uma companheira com sintomatologia de índole psiquiátrica.
7. O seu quotidiano é marcado pela inatividade ocupacional e entrecortado pelo cumprimento de trabalho comunitário, em sede da execução de medidas alternativas à pena de prisão.
8. Mora num aglomerado habitacional designado como “ilha” numa casa de reduzidas dimensões pertencente aos progenitores, subsiste quer dos apoios que no quotidiano estes asseguram a nível da alimentação, quer do valor mensal de € 180 correspondente à prestação pecuniária do rendimento social de inserção.
9. Neste contexto sócio-residencial, K… usufrui duma imagem positiva, extensível ao núcleo familiar.
10. Caracterizado como instável, com pouca tolerância às frustrações, influenciável pela pressão do grupo de pares.
11. Nos tempos livres de que dispõe K… interage com grupos de amigos/conhecidos em contextos de lazer/espaços de convívio por vezes associados a contextos de risco, nos quais o consumo de substâncias, cannabis, é frequente, ainda que o seu uso no quotidiano seja refutado.
[…]
*
Foram considerados não provados os seguintes factos, no que respeita ao recorrente K…: (transcrição)
a) Os arguidos …… K… …… dedicavam-se à venda de estupefacientes;
b) Todos arguidos formavam uma rede de venda de substâncias estupefacientes a indivíduos conhecidos pelos agentes da .ª EIC como consumidores daquelas substâncias;
c) Os arguidos reuniam-se regularmente em estabelecimentos de restauração e bebidas, nomeadamente no café “Q…” para falarem e decidirem das questões relacionadas com a sua atividade de vendedores de substâncias estupefacientes;
d) Os arguidos tinham na sua posse, designadamente:
viii. K…:
1. Trezentos e quinze euros, provenientes da venda de produtos estupefacientes;
e) Os arguidos nunca tiveram qualquer atividade profissional e faziam face a todas as suas despesas diárias com o dinheiro obtido, exclusivamente, no tráfico de estupefacientes;
f) Os arguidos atuaram, sempre, de forma concertada e previamente planeada;
g) O arguido K… utilizava o bastão, exclusivamente, como arma de agressão e para intimidar pessoas, que se trata de uma arma proibida, e que a sua detenção é proibida e punida por lei.
*
A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
A convicção do tribunal resultou do conjunto de prova produzida em audiência de julgamento, analisada de uma forma crítica e com recurso a juízos de experiência comum.
Designadamente, teve-se em consideração os documentos juntos aos autos, designadamente:
[…]
- auto de busca ao arguido K…, de fls. 1743 e ss, teste rápido de estupefaciente de fls. 1747;
- fotografias do interior da residência do arguido K…, tiradas aquando da busca, de fls. 1765 e ss:
[…]
- auto de exame ao bastão/matracas e à munição apreendidos de fls. 1944 verso e fotografias de fls. 1945 e ss;
[…]
- comprovativo de inscrição do arguido K… no Centro de Emprego de fls. 4509;
Teve-se, assim, em conta os exames toxicológicos acima elencados, como meios de prova pericial que permitiram classificar os estupefacientes apreendidos, e os autos de exame de objetos apreendidos – armas -, para determinar as características dos mesmos.
[…]
No que tange à atividade empreendida pelo arguido K…, teve-se ainda em conta:
- o auto de busca, esquema da habitação e fotografias de fls. 1743 e ss e 1765 e ss, confirmados que foram pela testemunha O…, agente da PSP que levou a cabo a diligência de busca, assim confirmando o descrito no auto e fotos tiradas;
- auto de exame às matracas de fls. 1944 e ss e fotos de fls. 1945;
- considerando que se alcança dos documentos acima elencados, e do depoimento da testemunha O…, que o arguido K… se encontrava sozinho em casa aquando da diligência de busca – realizada pelas 6.40 h da manhã -, que a casa do arguido apenas dispunha de um quarto de dormir, e que as matracas se encontravam penduradas atrás da porta da entrada, não restaram dúvidas ao Tribunal que o arguido detinha tal arma na sua posse, não obstante o arguido não tenha prestado declarações ao Tribunal. É certo que o arguido ali morava, e atenta a localização das matracas, não poderia desconhecer a sua existência (sendo certo que inexiste qualquer indício de que o arguido vivesse acompanhado).
[…]»
*
*
III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente na respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Como resulta das motivações do recurso e das respetivas conclusões, o recorrente delimita o objeto do recurso à impugnação da matéria de facto considerada provada na sentença, ao vício de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, ao vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e à medida concreta da pena.
Considerando, porém, que, ainda que implicitamente, o recorrente questiona a qualificação jurídica dos factos efetuada na decisão sob recurso, iremos apreciar em primeiro lugar a referida questão, aderindo à posição que vem sendo defendida pelo Supremo Tribunal de Justiça[3], de que o tribunal superior pode sempre conhecer da qualificação jurídica, estando em causa matéria de direito, pelas implicações que pode ter na medida da pena, ressalvada a proibição da “reformatio in pejus” e também, como afirmou o Ac. desta Relação do Porto de 06.05.2009[4], sem necessidade de qualquer comunicação prévia desde que tal alteração não prejudique a defesa do arguido.
Entendeu o tribunal a quo que o objeto examinado a fls. 1944 e 1945, encontrado na posse do recorrente, se integrava na categoria das armas proibidas previstas na al. d) do artº 86º da Lei nº 5/2006 de 23.6, alterada pela Lei nº 17/2009 de 06.05 – arma da classe E: instrumentos sem aplicação definida, que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse.
Como resulta da matéria de facto provada, entre os objetos apreendidos ao recorrente, encontrava-se “um bastão com um sistema de parafuso e porca no meio, que quando desenroscado permite a sua transformação num par de matracas metálicas que ficam ligadas através de uma corrente metálica de 21,5 cm de comprimento, corrente que se encontra no seu interior”.
Ora, pese embora a decisão recorrida tenha atribuído relevância ao recipiente metálico em forma de tubo onde se encontravam acondicionadas as matracas, acabando por identificar o objeto apreendido como bastão/matracas, o certo é que a parte exterior do referido objeto apenas serve de recetáculo para guardar as matracas, não tendo qualquer relevo como arma de agressão, nem tendo capacidade para ser utilizado com essa finalidade.
E se é certo que a lei não define o que deve ser entendido como bastão, enquanto arma, apenas dando uma breve definição, no artº 2º nº 1 als. m) e n) da Lei nº 17/2009, do bastão elétrico [arma elétrica com a forma de um bastão] e do bastão extensível [instrumento portátil telescópico, rígido ou flexível, destinado a ser empunhado como meio de agressão ou defesa], todos concordarão que um tubo metálico, oco (se não tiver as matracas no seu interior) e com 20,5 cm de comprimento (cfr. exame de fls. 1944 vº), não reúne as condições necessárias para ser utilizado como arma de agressão ou defesa, já que as reduzidas dimensões, aliadas à quase ausência de peso, reduzem naturalmente a energia cinética, sabido que “a massa” de um corpo é proporcional à sua força cinética.
Sem dúvida que qualquer objeto, independentemente das suas dimensões e características físicas, pode ser utilizado como meio de agressão. Contudo, não é por esse motivo que é suscetível de ser qualificado como arma, designadamente como “instrumento sem aplicação definida, que pode ser usado como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse”, para efeitos da sua integração na vulgarmente denominada Lei das Armas. Sabido que o legislador classificou, em diferentes categorias, as armas e as munições de acordo com o respetivo grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização [cfr. artº 3º nº 1 da Lei nº 17/2009], é óbvio que o tubo metálico de 20,5 cm de comprimento no qual se encontravam acondicionadas as matracas, não se enquadra em qualquer das classes de armas previstas na lei.
Razão por que não pode o arguido/recorrente ser condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. no artº 86º al. d) da Lei nº 5/2006, na redação introduzida pela Lei nº 17/2009 de 06.05.
O mesmo não se pode dizer relativamente às matracas apreendidas ao recorrente.
O legislador classificou as matracas como armas de classe F - artº 3º nº 8 al. a): as matracas, sabres e outras armas brancas tradicionalmente destinadas às artes marciais ou a ornamentação. E sujeitou a sua aquisição, detenção, uso e porte a uma licença de uso e porte de arma da classe F, a ser concedida nos termos e condições previstos no artº 17º da Lei nº 17/2009, punindo a detenção ou uso sem licença com uma coima de € 600,00 a € 6.000,00 – artº 97º do mesmo diploma.
Face às considerações supra expendidas, podemos concluir que, no caso em apreço, o arguido detinha uma arma da classe F.
Contudo, para se apurar da sua eventual responsabilidade contra-ordenacional, necessário seria que se tivesse imputado ao arguido K… a detenção das matracas sem que fosse titular da necessária licença, apesar de saber que não as poderia deter fora das condições legalmente previstas, o que se desconhece no caso dos autos, por não constar da matéria de facto provada nem vir alegado na acusação.
Conclui-se, assim que a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito a proferir. Contudo, não se trata de vício da decisão a que alude o artº 410º nº 2 al. a) do C.P.P., uma vez que os factos supra referidos nem sequer constavam da acusação.
Ora, por força do princípio do acusatório e da vinculação temática, com consagração constitucional (artº 35º nº 2 da CRP), o tribunal só pode investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos pela acusação. É esta que define e fixa, perante o Tribunal o objeto do processo. É ela que delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e é nela que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade e da consunção do objeto do processo penal.
Constituindo a ausência de licença um elemento objetivo do tipo da referida contra-ordenação e não competindo ao arguido a demonstração do facto contrário, ou seja, de que é titular de licença de uso e porte de matracas, não constando da acusação todos os elementos objetivos do tipo, e não se tratando, como se disse, de vício do acórdão suprível nos termos do artº 426º do C.P.P., impõe-se a absolvição do arguido, ficando assim prejudicada a apreciação das questões suscitadas pelo recorrente.
*
*
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso, embora com fundamento diverso do alegado, absolvendo o arguido/recorrente K… do crime de detenção de arma proibida que lhe era imputado.
Sem tributação.
*
Porto, 23 de Abril de 2014
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Lobo
Alves Duarte
_______________
[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Cf., por todos, Ac. do STJ de 24.02.2010, Proc. nº 59/06.7GAPFR.P1.S1, Cons. Raul Borges e disponível em www.dgsi.pt.
[4] Proferido no Proc. nº 104/03.8GAVFR.P1, relator Manuel Braz, disponível em www.dgsi.pt