Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
25192/16.3T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: ALOJAMENTO LOCAL
CONCEITO RESTRITO
DELIBERAÇÃO DA ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
Nº do Documento: RP2019011025192/16.3T8PRT.P1
Data do Acordão: 01/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ACÇÃO DECLARATIVA
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º159, FLS.85-96)
Área Temática: .
Sumário: I - Prevendo o título constitutivo da propriedade horizontal que determinada fracção se destina à habitação, não existe, em princípio, impedimento a que o seu proprietário a afecte a alojamento local de turistas.
II - O conceito de alojamento, mais restrito, acha-se contido no conceito de habitação, de maior abrangência.
III - Sem a concordância do proprietário da fracção afecta a alojamento local não pode a assembleia de condóminos deliberar no sentido de proibir ou impor restrições ao uso da fracção para essa finalidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 25.192/16.3T8PRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível do – J5

Relatora: Judite Pires
1ºAdjunto: Des. Aristides de Almeida
2ª Adjunta: Des. Inês Moura
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO.
1. B…, Lda., C…, D… e E… propuseram acção declarativa contra F…, G…, H…, I…, Lda., J…, S.A., K…, L…, M…, N…; O…, P…, Q…, S…, T…, U…, V…, W…, X…, Y…, Z…, AB…, AC… e contra o Condomínio AD…, pedindo a declaração de nulidade ou ineficácia das deliberações da assembleia de condóminos que identifica nos autos.
Para fundamentarem a sua pretensão alegaram, em síntese, em petição inicial corrigida (fls. 196 e ss) que exercem a atividade de alojamento local nas suas frações urbanas identificadas nos autos. Na assembleia de condóminos realizada em 24 de Outubro de 2016 foi deliberado que fosse vedado o acesso ao prédio a quem não fosse condómino, residente ou convidado, impedindo-se o uso das frações para a atividade de alojamento local. Estribam a sua pretensão em argumentos doutrinais e jurisprudenciais.
Os réus contestaram a fls. 83, deduzindo pedido reconvencional.
Alegaram, em súmula, que as fracções se situam num condomínio fechado, sendo que a parte habitacional comporta um conjunto de comodidades como piscina, sala de ginástica e bilhar, depósito de contentores e lixo, serviços estes pagos por todos os condóminos. As frações urbanas estão exclusivamente adstritas à função habitacional, nos termos do título constitutivo da propriedade horizontal. Enumeram as consequências do maior afluxo de pessoas às partes comuns, fazendo um conjunto de considerações doutrinais e jurisprudenciais.
Deduzem pedido reconvencional pedindo que os autores sejam condenados a cessar a exploração dos estabelecimentos de alojamento local que vêm desenvolvendo nas suas frações.
Os autores replicaram (fls. 146).
Alegaram, em súmula, que o réu administrador do condomínio carece de legitimidade activa para deduzir o pedido reconvencional. Impugnaram a demais factualidade alegada pelos réus, fazendo referências doutrinais e jurisprudenciais.
Na sequência da concordância do despacho de adequação do processado, proferido em sede de tentativa de conciliação, e face à dispensa de audiência prévia, foram concedidos 10 dias aos réus para se pronunciarem sobre a matéria da réplica, antecipando-se um acto que poderia ser praticado em tal audiência, tendo as partes sido advertidas da possibilidade de prolação de saneador-sentença (fls. 275).
Efectuado o saneamento do processo, apreciada a excepção da ilegitimidade passiva dos reconvintes, deduzida pelos reconvindos, foi a mesma julgada improcedente, com a afirmação da legitimidade das partes, tendo ainda sido declarada a regularidade e validade do processo.
Mencionando conterem os autos todos os elementos necessários à apreciação do objecto da acção e conhecimento dos pedidos nela formulados, foi proferida sentença que:
- Julgou improcedente o pedido formulado pelos autores, dele o absolvendo os réus;
- Julgou procedente o pedido reconvencional deduzido, condenando os autores a cessarem a actividade de exploração de alojamento local nas suas fracções do edifício “Condomínio AD…” designadas pelas letras “AA”, “AN” e “AU”.
2. Não se conformando com o decidido, interpôs o Autor C… recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
A. A Decisão proferida pelo Tribunal a quo que julga improcedente o pedido de declaração de nulidade ou ineficácia das deliberações identificadas no ponto 1 da ordem de trabalhos da Acta nº 35 de 24 de Outubro de 2016 da Assembleia Geral do Condomínio do Edifício AD…, socorre-se da interpretação de conceitos, como o é o de “pensão ou equivalente”, para limitar o direito de propriedade do Recorrente, o que é absolutamente inadmissível e ilegal, por violação do disposto no artigo 1305º do Código Civil e no disposto no ponto 6.1. do Regulamento de Condomínio do Edifício AD….
B. A Douta Sentença labora num erro que vicia e contamina toda a decisão, pois não existe qualquer deliberação que proíba o exercício do alojamento local mas sim, uma deliberação que proíbe ou restringe o acesso ao condomínio e em consequência às diferentes fracções, nomeadamente a do aqui Recorrente, sendo que a questão colocada ao Tribunal a quo foi a de saber se a assembleia de condomínio, à revelia do regulamento de condomínio, pode escolher ou definir o tipo ou categoria de pessoas que os proprietários, em caso, o Recorrente, permite ou autoriza que entre e pernoite na sua fracção, a resposta tem de ser que não, sob pena de clara, manifesta e inadmissível violação do direito de propriedade do Recorrente.
C. Ademais, qualquer limitação ao direito de propriedade do Recorrente tem de ser determinada de forma expressa, clara e inequívoca no título constitutivo de propriedade horizontal.
D. Em nenhum local do Regulamento do Condomínio é mencionado que está vedado aos proprietários das fracções autónomas utilizar o seu apartamento como alojamento local e uma alteração ao título constitutivo, por forma a nele incluir a proibição da actividade de alojamento local nas fracões habitacionais, só é possível através da unanimidade de todos os condomínios, que não existe in casu.
E. O Tribunal a quo faz ainda uma errada interpretação do ponto 6.1 do Regulamento de condomínio, pois que o ponto 6.1 do Regulamento do Condomínio é apenas dirigido ao conjunto de frações autónomas (nos pisos térreos) destinadas a comércio, restauração, serviços e outros.
F. O Tribunal a quo, na Douta Sentença proferida, confunde fracções destinadas a comércio (para as quais o Regulamento de Condomínio proíbe que as mesmas se destinem a colégio, pensão ou equivalente, sociedade ou clube recreativo, discoteca, casa de jogo, dependências ou instituições políticas ou religiosas e, em geral, a quaisquer atividades ilícitas suscetíveis de ofender os bons costumes) com fracções destinadas a habitação, nas quais tais actividades nunca seriam possíveis - atenta a finalidade para as quais estão destinadas - a não ser pela alteração do título constitutivo.
G. O conceito de alojamento local não se enquadra no conceito de “pensão ou equivalente”, nem o facto de existir no Regulamento de Condomínio uma enumeração exaustiva de fins proibidos, entre os quais não consta o alojamento local, leva a concluir, com a certeza que o Tribunal a quo o faz, que, se em 2001 o alojamento local tivesse a mesma expressão que tem actuamente, tal teria certamente sido proibido.
H. Quando o ponto 6.1 do Regulamento foi elaborado e nele se escreveu que é proibido destinar a fracção “a pensão ou equivalente”, a interpretação correcta a dar ao adjectivo “equivalente” não pode ser outra que não a que se compatibilize com as normas legais plasmadas no DL 167/97 e Decreto Regulamentar 36/97, os quais enquadram a pensão como estabelecimento hoteleiro.
I. O alojamento local não é, nem na forma, nem na substância, um empreendimento turístico, nem é um estabelecimento hoteleiro. Não o é agora, nem era à data da construção do Edifício AD… e de elaboração do Regulamento de Condomínio (em 2001), sendo que n.º 2º artigo 2º do DL n.º 39/2008, de 07/03, afasta totalmente a figura do empreendimento turístico do regime jurídico aplicável ao alojamento local.
J. A cedência, pelo Recorrente, da sua fracção autónoma para o alojamento local destina-se exclusivamente, a habitação(8), pelo que a utilização daquela fracção não viola o título constitutivo da propriedade horizontal, pois que não lhe é dado um fim diferente ao que se destina, em cumprimento do artigo 1422º n.º 2 al. c) do CC.
K. O Tribunal recorrido fez ainda errada e notória interpretação dos factos e inadequada aplicação do Direito na Sentença em crise, pois que limita o direito de propriedade do Recorrente com base em pré-conceitos que não têm qualquer sustentação na factualidade constante dos presentes nos autos, ou sequer se tratam de argumentos de direito ou de factos notórios - como se retira do exposto na página 14 da Douta Sentença recorrida.
L. A urbanidade na utilização dos espaços, privados ou comuns, não depende do título jurídico que legitima a sua utilização, pelo que não se aceita que os utentes do alojamento local, pelo simples facto de o serem, sejam menos normais ou urbanos do que o Recorrente e sua família, ou arrendatários, respectivos agregados familiares e possíveis hospedes.
M. Aliás, negando uma diferença qualitativa entre condóminos e demais residentes, mas considerando um critério quantitativo entre os utentes do alojamento local e restantes residentes, a utilização feita por aqueles ficará por certo aquém da utilização feita pelo Recorrente, arrendatários e respectivos agregados familiares (em numero não limitado) e ainda 3 hóspedes (9).
N. Não se alcança, nem se aceita, que os turistas tenham, em tese e obrigatoriamente, de afectar o descanso e a privacidade dos demais condóminos do Edifício AD… e onerá-los com maiores encargos e despesas só porque são turistas.
O. O alojamento temporário de turistas não difere, em regra, de uma utilização similar à que seria feita pelo proprietário ou por um arrendatário para habitação do respectivo agregado familiar, donde a decisão em crise é, como se constata, discriminatória e em caso algum se pode aceitar.
P. Ao considerar válida a deliberação identificada no n.º 1 do ponto 1 da ordem de trabalhos viola ainda o Tribunal a quo o direito de propriedade do Recorrente, consagrado na Constituição da República Portuguesa, na medida em que impede a fruição e gozo pleno da sua fracção autónoma, uma vez que procura impossibilitar o acesso ao seu apartamento das pessoas que bem entenda poderem entrar e, a final, proibir o alojamento local.
Q. Por outro lado, a Douta Sentença em crise ao considerar válida a deliberação a deliberação n.º 2 do ponto 1 da ordem de trabalhos, que impõe ao administrador realizar tarefas que não caem no âmbito de “bens ou serviços comuns”, é também ilícita por contrariar disposições legais e regulamentares aplicáveis, designadamente o artigo 1305.º do Código Civil e os pontos e 6.1 e 27.1 e 2 do Regulamento do Condomínio.
R. Das competências e funções do Administrador previstas no ponto 27.1 e 27.2 v) do Regulamento do Condomínio não consta a de fazer comunicações a sites ou plataformas informáticas sobre deliberações da assembleia de condóminos, bem como não consta a competência para executar deliberações que afectem o uso e fruição de fracções autónomas, tanto mais quando essas comunicações têm como fim impedir o uso e fruição da fracção autónoma do Recorrente, o que constitui uma violação do direito de propriedade disposto no artigo 1305.º do CC.
S. Uma vez que as duas primeiras deliberações são inválidas, também o são as deliberações seguintes do ponto 1 da ordem de trabalhos da identificada deliberação, na medida em que dependem das duas primeiras.
T. Quanto à condenação do Recorrente a cessar a actividade de exploração de alojamento local na sua fracção AN de que é proprietário no Edifício AD… (em procedência do pedido reconvencional), resulta da motivação da Sentença dada à matéria de facto e dos documentos juntos aos autos notórios erros de julgamento.
Do erro notório na apreciação da prova:
U. Foi incorrectamente julgado, ao ser dado como provado na Sentença recorrida, o facto referido em F) dos factos provados.
V. O Tribunal de 1ª instância dispunha de elementos suficientes para responder em termos diferentes daqueles em que o fez, designadamente porque da confissão invocada na motivação da Sentença, como o demonstram o artigo 5º da PI e artigo 8º da PI Aperfeiçoada, retira-se que, relativamente às fracções do Recorrente, o exercício da actividade de alojamento local ocorre somente na fracção autónoma designada pela letra AN e que a titularidade da licença para o exercício de alojamento local foi atribuída a AE…, na sequência da celebração de contrato de comodato entre esta e o Recorrente, relativo à referida fração.
W. Isso mesmo resulta ainda da cláusula terceira n.º 1 e 2 do Contrato de Comodato celebrado entre o Recorrente e AE… em 22 de Setembro de 2016 (junto aos autos como doc. n.º 8 na PI) onde consta que o local cedido (fracção autónoma designada pela letra AN do Condomínio AD…, conforme disposto cláusula primeira segunda), se destina à exploração da actividade que AE…, ali Segunda Contraente, desenvolve e que, nesse sentido, o Recorrente expressamente a autoriza a utilizar a fracção referida para prestação de serviços de alojamento a turistas.
X. De igual modo, consta da Comunicação prévia e do documento de atribuição do n.º 35348/AL, juntos como documentos n.º 3 e 4 à PI Aperfeiçoada, que a Requerente a quem foi atribuída a licença para alojamento local da referida fracção e, como tal, o titular da exploração, é AE….
Y. Pelo que deve ser alterada a matéria de facto dado como provada, alterando se o facto referido em F) para “A 1ª e 3º e 4ª Autores exercem a actividade de alojamento local nas fracções autónomas referidas nas alíneas C) e E), estando devidamente licenciados para o efeito.”
Z. E aditada à matéria de facto provada o seguinte: - No caso das fracções do 2º Autor o exercício da actividade de alojamento local ocorre somente na fracção autónoma designada pela letra AN e a titularidade da licença para o exercício de alojamento local foi atribuída a AE…, na sequência da celebração de contrato de comodato entre esta e o 2º Autor, relativo à referida fração, estando AE… devidamente licenciada para o efeito.
Da modificabilidade jurídica da Sentença recorrida no que tange à procedência do pedido reconvencional:
AA. Perante a factualidade supra exposta, resulta clara a ilegitimidade processual passiva do Recorrente para configurar como Reconvindo na Reconvenção deduzida pela Recorrida, pelo que violou o Tribunal a quo, na Sentença recorrida, o disposto no artigo 30º e no artigo 578º do CPC.
BB. O Recorrente não tem qualquer interesse direto e relevante na relação jurídica material controvertida, tal como vai definida pela Requerida.
CC. No caso concreto do Recorrente, este não exerce a actividade de alojamento local nas fracções de que é proprietário no Edifício AD…, logo, por maioria de razão, o Recorrente não tem vindo a dar à sua fracção autónoma um uso diverso (actividade de alojamento local) do fim a que, segundo o título constitutivo da propriedade, elas são destinadas (habitação).
DD. O Recorrente é parte ilegítima na Reconvenção deduzida pela Ré, excepção dilatória de conhecimento oficioso, devendo, assim, por via do disposto na alínea e), do artigo 577º e) do n.º 2, do artigo 576º, ambos do CPC, ser absolvido da instância quanto ao pedido reconvencional, o que se invoca e requer a esse Venerando Tribunal10.
EE. Caso assim não se entenda, o que só por mera questão de patrocínio se equaciona, no que se refere ao Recorrente, deve improceder o pedido reconvencional deduzido pela Recorrida por impossibilidade do mesmo.
FF. É impossível cessar uma actividade que só e simplesmente não exerce, ou seja, o Recorrente nunca conseguiria cumprir a decisão, pois que, para isso, teria de iniciar a actividade para depois a cessar (tudo conforme factualidade constante dos autos e acima referida).
GG. Sem prescindir, sempre se diga que o Tribunal recorrido condenou o Recorrente a cessar a actividade de alojamento local na fracção AN com fundamento em meras e erradas conclusões, desprovidas de qualquer sustentação fáctica ou legal, pois que o fez por remissão para as considerações expostas sobre o pedido de invalidade das deliberações identificadas no ponto 1 da ordem de trabalhos da Acta nº 35 de 24 de Outubro de 2016 da Assembleia Geral do Condomínio do Edifício AD…, que, como vimos já nas conclusões _ a _ supra e que aqui se reproduzem integralmente, não podem proceder.
HH. A Douta Sentença em crise apresenta-se, por tudo o quento vai exposto, ilegal porque desconforme com o disposto no artigo 1305º do Código Civil e com o disposto no ponto 6.1. e 27.1 e 2 v) do Regulamento de Condomínio do Edifício AD…, merecendo, por isso, ser revogada por esse Venerando Tribunal e alterada por outra que julgue inválida, por nula, anulável ou ineficaz, as deliberações identificadas no ponto 1 da ordem de trabalhos da Acta no 35 de 24 de Outubro de 2016 da Assembleia Geral do Condomínio do Edifício AD…, e (i) absolva o Recorrente da instância quanto ao pedido reconvencional ou, caso assim não se intenda o que só por mera questão de patrocínio se equaciona, (ii) julgue improcedente o pedido reconvencional deduzido pela Recorrida.
Termos em que concedendo provimento ao presente Recurso, revogando a Douta Decisão que julgou improcedente o pedido de declaração de nulidade ou ineficácia das deliberações identificadas no ponto 1 da ordem de trabalhos da Acta n.º 35 de 24 de Outubro de 2016 da Assembleia Geral do Condomínio do Edifício AD… e condenou o Recorrente a cessar a actividade de exploração de alojamento local na sua fracção AN de que é proprietário no Condomínio AD…, e substituindo-a por outra que julgue inválida, por nula, anulável ou ineficaz as ditas deliberações e absolva o Recorrente da instância quanto ao pedido reconvencional ou, caso assim não se intenda o que só por mera questão de patrocínio se equaciona, julgue improcedente o pedido reconvencional deduzido pela Recorrida, Vossas Excelências, Senhores Desembargadores farão inteira e sã Justiça.
A Administradora do Condomínio denominado “Condomínio AD…”, por si e em representação dos 22 condóminos demandados, contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso e confirmação do decidido
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II. OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- Se correu erro na apreciação da prova;
- Validade da deliberação social impugnada;
- Se deve o recorrente ser absolvido da instância relativamente ao pedido reconvencional contra ele deduzido, ou absolvido do mesmo pedido.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:
A) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto, freguesia de … e …, sob o n.º 251, um prédio urbano denominado Condomínio AD…, composto por um edifício de 11 pisos, inscrito na matriz urbana sob o n.º 13, sito na Rua … …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, …, … e Calçada …. B) Em 24 de Outubro de 2016 realizou-se uma assembleia geral de condóminos do Edifício AD…, nos termos e com o conteúdo constantes a fls. 32 verso a 35 verso dos autos onde, além do mais, foi deliberado que “Conferem-se poderes ao sr. administrador do condomínio para, em representação dos condóminos, intentar acção judicial e eventual procedimento cautelar, decorrido que seja o prazo definido na proposta número três, tendo em consideração que a abertura ao público do edifício, através da actividade de alojamento local, põe em causa a segurança dos condóminos e residentes”.
C) A autora B…, Lda., é proprietária da fração autónoma designada pela letra AA, Habitação .., destinada a habitação tipo T4 Duplex, no 5.º e 6.º piso do Edifício …, com 2 aparcamentos automóveis 27 e 28 e arrecadação 27, no piso 5.º, sito na Rua …, …, …, …, e Calçada …, n.º …, …. - …, Porto, descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 251/20010205-AA, freguesia de … e inscrita na matriz urbana sob o n.º 13 da União de freguesias de … e …, concelho do Porto.
D) O autor C… é proprietário da fração autónoma designada pela letra AN, Habitação .., destinada a habitação, tipo T3 Duplex, nº 9.º e 10.º piso do Edifício E, com 2 aparcamentos automóveis 17 e 18 e dois arrumos 18 e 22 no piso 5, sita na Rua …, …, …, … e Calçada … n.º …, …. - … Porto, descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 251/19981216, freguesia de … e inscrita na respetiva matriz urbana sob o art.º 13 da União de freguesias de … e …, concelho do Porto, e da fracção autónoma designada pela letra Q, Habitação 53, destinada a habitação tipo T5 Triplex, no 4.º, 5.º e 6.º piso, do Edifício B, sito na Rua …, …, …, … e Calçada …, n.º …, …. - … Porto, freguesia de … e inscrita na respetiva matriz urbana sob o artigo 13 da União de freguesias de … e …, concelho do Porto.
E) Os autores D… e E… são proprietários da fração autónoma designada pela letra AU, Habitação .., destinada a Habitação tipo T3, no 7.º piso do Edifício F, com 2 aparcamentos automóveis identificados com os números 70 e 71 e duas arrecadações 18 e 71 no piso 4, sita na Rua …, …, …, … e Calçada … n.º …, …. - … Porto, descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 251/20010205-AU, freguesia de … e inscrita na respectiva matriz urbana sob o artigo 13, da União de freguesias de … e …, concelho do Porto.
F) Os autores exercem a atividade de alojamento local nas frações autónomas referidas nas alíneas C), D) e E), estando devidamente licenciados para o efeito.
G) O Condomínio AD… rege-se por um regulamento de condomínio nos termos e com o conteúdo constantes de fls. 37 a 49.
H) Por escritura pública lavrada em 2 de Fevereiro de 2001, nos termos e com o conteúdo constante a fls. 113 verso a 139 foi constituída a propriedade horizontal do Edifício Condomínio AD….
III.2. E a mesma instância considerou que não se provaram os demais factos alegados, “designadamente que estejam em contradição com os dados como provados”.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Reapreciação da decisão relativa à matéria de facto.
Discorda o apelante da apreciação da prova efectuada pelo tribunal de primeira instância, no que tange à matéria constante do ponto F) dos factos provados, propondo que, de acordo com a matéria por si alegada e documentos por si juntos aos autos, seja alterada a redacção do aludido segmento decisório, devendo ainda ser adicionado um outro facto aos dados como provados pelo tribunal a quo.
Dispõe hoje o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:
“A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Como refere A. Abrantes Geraldes[1], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Na alínea F), que o recorrente coloca em crise através da impugnação recursivamente deduzida, o tribunal recorrido deu como provado que “Os autores exercem a atividade de alojamento local nas frações autónomas referidas nas alíneas C), D) e E), estando devidamente licenciados para o efeito”.
É certo que a matéria em causa traduz o alegado no artigo 4.º da petição inicial.
Porém, quer na petição inicial primeiramente apresentada, quer no mesmo articulado corrigido, apresentado posteriormente, é expressamente alegado – artigo 5.º - que “Sendo que, no caso do 2.º Autor, o exercício dessa actividade ocorre somente na fracção autónoma designada pela letra AN e a titularidade da licença para o exercício de alojamento local foi atribuída à filha do 2.º Autor, AE…, em virtude da celebração de contrato de comodato entre esta e o 2.º Autor, relativo à referida fração”.
Do assim alegado, decorre, pois:
- que, relativamente ao 2.º Autor, o aqui recorrente, apesar de ser ele proprietário de duas fracções – a designada pela letra AN e a designada pela letra Q – a actividade de alojamento local apenas na primeira é exercida;
- que a titularidade da licença para o exercício dessa actividade foi atribuída à filha do 2.º Autor, AE…, tendo entre ambos sido celebrado contrato de comodato relativo à referida fracção AN.
A matéria constante do referido artigo 5.º não foi objecto de impugnação.
Com a petição inicial foi junta cópia do invocado contrato de comodato, datado de 22 de Setembro de 2016, celebrado entre o 2.º Autor, enquanto proprietário da aludida fracção designada pela letra AN, e AE…, mediante o qual o primeiro a cede, por empréstimo, à segunda, que a toma a esse título, para nela exercer a actividade económica que desenvolve. Tal documento também não foi impugnado.
Procede, assim, a impugnação deduzida à decisão sobre a matéria de facto, e, nessa conformidade, altera-se o ponto F) dos factos provados, cuja redacção passará a ser a seguinte:
Ponto F): A 1.ª Autora e os 3.º e 4.º Autores exercem a actividade de alojamento local nas fracções autónomas referidas nas alíneas C) e E), estando devidamente licenciados para o efeito.
Adita-se ainda à matéria de facto provada – sob o ponto F.1) - o seguinte facto, admitido por acordo:
Ponto F.1): Relativamente às fracções de que o 2º Autor é proprietário – alínea D) -, o exercício da actividade de alojamento local ocorre somente na fracção autónoma designada pela letra AN, sendo que a titularidade da licença para o exercício de alojamento local foi atribuída a AE…, na sequência da celebração de contrato de comodato entre esta e o 2º Autor, relativo à referida fração.
2. Da aplicação do Direito aos factos apurados.
Pretendeu o recorrente – juntamente com outros proprietários de fracções nas quais também desenvolvem ou desenvolveram actividade de alojamento local, mas que, entretanto, se conformaram com a sentença proferida, dela não recorrendo – impugnar as deliberações da assembleia de condóminos do Edifício AD…, sito na Calçada …, e Rua … … a …, no Porto, realizada a 24 de Outubro de 2016, relativamente às medidas através delas tomadas quanto ao exercício da actividade de alojamento local prosseguido em algumas das fracções do prédio constituído em propriedade horizontal.
De acordo com o acervo factual apurado, o ora recorrente é proprietário de duas fracções, sendo que em apenas uma delas – a fracção designada pela letra AN – é exercida a actividade de alojamento local, não por intermédio dele, mas da sua filha, AE…, titular da respectiva licença, e para quem foi cedida a dita fracção através de contrato de comodato celebrado entre ela e o recorrente, proprietário do imóvel.
Na medida em que as deliberações tomadas na mencionada assembleia de condóminos afectam o direito de propriedade do recorrente, limitando-o, deve ser-lhe reconhecida a possibilidade de impugnação de tais deliberações com recurso à via judicial.
Do mesmo modo, a comprovar-se que a actividade desenvolvida na fracção AN, propriedade do recorrente, conflitua com direitos dos demais condóminos que devam sobrepor-se ao exercício de tal actividade, ou contrarie o título de constituição da propriedade horizontal, pode o proprietário ser judicialmente compelido a cessar a actividade de alojamento temporário de turistas, ainda que, como no caso, não seja ele a exercê-la, nem estando licenciado para o efeito, mas antes a comodatária, titular da respectiva licença, a quem o recorrente autorizou a utilização da fracção para esse fim, como expressamente decorre da cláusula terceira, número dois, do contrato de comodato.
Esclarecidos tais aspectos, impõe-se apreciar o deliberado na assembleia de 24 de Outubro de 2016, com os votos contra do recorrente, além de outros condóminos.
As deliberações resultantes dessa assembleia, cuja validade/eficácia o recorrente coloca em causa, recaem, como resulta da respectiva acta [acta n.º 35], sobre a utilização de fracções autónomas do prédio constituído em propriedade horizontal como unidades de alojamento local e definem medidas contra o prosseguimento dessa utilização.
O fenómeno social associado ao forte crescimento turístico que nos últimos anos se vem manifestando em Portugal, sobretudo nas suas principais cidades, teria necessariamente de se repercutir na procura de alojamento turístico e na necessidade de oferta de soluções capazes de responder a essa crescente procura, levando à criação de mecanismos alternativos à tradicional oferta hoteleira ou afim.
Essa realidade social motivou muitos proprietários de imóveis a apostarem na actividade turística, para, através do fornecimento, remunerado, de serviços de alojamento, rentabilizarem, de forma bastante expressiva, os imóveis que lhes pertencem.
Segundo notícia publicada em órgão de comunicação social nacional, “a capital portuguesa é a 8.ª cidade a nível mundial onde á possível fazer mais dinheiro alugando um imóvel comparando com o valor médio que se receberia por uma renda no mesmo apartamento: num apartamento com uma renda média de 600 euros por mês, o aluguer a turistas pode garantir um rendimento anual de 14 mil euros, quase o dobro.”
Dados de Abril de 2017 dão conta que no Registo Nacional de Alojamento Local (RNAL) estão registados mais de 43 mil alojamentos locais, constatando-se que as propriedades estão sobretudo concentradas em Lisboa, Porto e Algarve.
Tem-se, com efeito, assistido a uma transferência de uso de imóveis do arrendamento habitacional permanente para o alojamento local, com as implicações que essa transferência necessariamente acarreta para o mercado do arrendamento habitacional e a substancial redução de oferta neste domínio.
Esta solução, economicamente vantajosa para os proprietários de imóveis que decidem adoptá-la para assegurar a sua rentabilização, é encarada por outros com desconfiança, desagrado e mesmo oposição, que muitas vezes assumem tradução prática em deliberações de conteúdo similar às aqui questionadas pelo recorrente.
As propostas apresentadas à assembleia de condóminos de 24 de Outubro de 2016 pela condómina Dr.ª AF…, votadas favoravelmente por maioria, tinham pretensamente por objectivo que fracções, como a designada pela letra AN, de que o recorrente é proprietário, pudessem continuar a ser usadas com fim diverso do previsto no respectivo documento de constituição de propriedade horizontal, ou seja, habitação, apresentando medidas estabelecidas com vista a fazer cessar a actividade de alojamento local exercida em algumas fracções.
O Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de Março veio instituir a figura do alojamento local, ao permitir a prestação de serviços de alojamento temporário em estabelecimentos que não reunissem os requisitos legalmente exigidos para poderem ser qualificados como empreendimentos turísticos.
De acordo com o artigo 3.º do referido normativo, são estabelecimentos de alojamento local as moradias, apartamentos e estabelecimentos de hospedagem que, dispondo de autorização de utilização, prestem serviços de alojamento temporário, mediante remuneração, mas não reúnam os requisitos para poderem ser considerados empreendimentos turísticos.
Confrontado com o desencadear de “uma série de realidades que ofereciam serviços de alojamento a turistas sem qualquer formalismo e à margem da lei” e constatando que “a dinâmica do mercado da procura e oferta do alojamento fez surgir e proliferar um conjunto de novas realidades de alojamento [que não são] um fenómeno passageiro [ou] residual, mas um fenómeno consistente e global”[2], após a experiência das Portarias n.º 517/2008, de 25 de Junho, e n.º 138/2012, de 14 de Maio, que regulavam aspectos do alojamento local, o legislador sentiu necessidade de regular de forma autónoma esta realidade turística, aprovando o regime jurídico da exploração dos estabelecimentos de alojamento local através do Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto, entretanto alterado pelo Decreto-Lei n.º 63/2015, de 23 de Abril e, mais recentemente, pela Lei n.º 62/2018, de 22 de Agosto.
O artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto definia como «estabelecimentos de alojamento local» aqueles que prestem serviços de alojamento temporário a turistas, mediante remuneração, e que reúnam os requisitos previstos no presente decreto-lei”. E nos termos do artigo 4.º do mesmo diploma, “para todos os efeitos, a exploração de estabelecimento de alojamento local corresponde ao exercício, por pessoa singular ou colectiva, da actividade de prestação de serviços de alojamento”.
A Lei 62/2018, de 22 de Agosto, ao considerar como estabelecimentos de alojamento local “aqueles que prestam serviços de alojamento temporário, nomeadamente a turistas, mediante remuneração, e que reúnam os requisitos previstos no presente decreto-lei”, adopta um conceito mais alargado para a caracterização deste tipo de estabelecimentos, mantendo o seu artigo 4.º, n.º 1 a redacção do anterior diploma.
A utilização da fracção AN, de que o recorrente é proprietário, integra o tipo de actividade traduzida nos mencionados normativos, afastando-se, deste modo, do fim a que se acha destinada pela escritura de constituição da propriedade horizontal [habitação].
Como destaca o acórdão desta Relação de 15.09.2016[3], relatado pelo desembargador Aristides de Almeida, aqui adjunto, e que, pela sua pertinência argumentativa, acompanharemos de perto, os conceitos de habitação e alojamento não são coincidentes, pelo que a habitação (do proprietário ou de terceiros mediante autorização do proprietário ou contrato com este celebrado, designadamente de arrendamento) e o alojamento temporário de turistas não são equivalentes. O conceito de habitação é mais amplo ou intenso. O turista é alguém que está de passagem, que se desloca para conhecer ou visitar outros locais e que vai regressar ao espaço onde tem organizada a sua vida e onde habita. Por isso, o turista não habita nos locais onde se hospeda ou aloja, ele apenas pernoita e descansa nesses locais para satisfação das suas necessidades de sono e repouso, aí guardando, durante o tempo da estadia, os bens indispensáveis à viagem que está a fazer.
Todavia,
o conceito de alojamento está contido no conceito de habitação. Habitar é algo mais do que apenas alojar, mas inclui todos os actos e utilidades característicos do conceito de alojar. Proporcionar habitação é mais do que alojar, mas é também alojar. Nesse contexto, sendo certo que quem pode o mais deverá poder o menos, a utilização para alojamento temporário de turistas não diverge da utilização para habitação (de não turistas ou mesmo de turistas), porque a pessoa alojada não pratica no local de alojamento algo que nela não pratique quem nele habita: dorme, descansa, pernoita, tem as suas coisas.
Acresce que os estabelecimentos de alojamento local não são equipamentos hoteleiros que tenham de dispor de equipamentos, serviços e funcionários para recepção dos turistas e prestação de outros serviços desejados pelos turistas (alimentação, limpeza, animação, piscina, spas, etc.). No alojamento local o prestador de serviço limita-se a proporcionar ao turista o local de alojamento, os seus cómodos, mobiliário e equipamento doméstico, franqueando-lhe o acesso e a utilização do mesmo e cobrando a respectiva remuneração. Por outro lado, na actual conjuntura o contacto entre o dono do estabelecimento e o turista é feito por via electrónica, através da internet e do correio electrónico, dispensando a existência de qualquer balcão físico ou pessoas no local de alojamento. Nessa medida, ainda que de uma prestação de serviços se trate, no alojamento local o único serviço que é prestado é o próprio alojamento e, como tal, o espaço é utilizado unicamente para alojamento. O contrato de prestação de serviços é apenas o modo como a utilização é proporcionada a terceiros, não é algo que defina por si mesmo o âmbito ou as características dessa.
Temos assim duas ordens de razões que por um lado afastam – ser uma prestação de serviços - e por outro lado aproximam – o serviço prestado é o alojamento - a utilização para alojamento local da utilização para habitação.
Não se encontra no regime jurídico do alojamento local norma legal que resolva este conflito, isto é, norma legal que se ocupe de definir que autorização de utilização deve o espaço possuir para poder ser usado para alojamento local”.
O referido acórdão aponta, como via possível para equação do problema que resulta dessa indefinição legal, a “interpretação da vontade que presidiu à constituição da propriedade horizontal”.
Não fornecem os autos elementos seguros que permitam atingir a solução da questão por essa via interpretativa.
A escritura de constituição da propriedade horizontal do prédio - que foi formalizada em 2 de Fevereiro de 2001, data em que o alojamento temporário fora dos estabelecimentos hoteleiros tradicionais não constituía prática corrente, e o mercado não estava ainda dotado dos mecanismos que conduziram à massificação daquele tipo de alojamento – nada prevê quanto à permissão ou proibição de actividades relacionadas com o alojamento local nas várias fracções que constituem a parte habitacional do prédio, certamente porque, não prevendo a possibilidade da utilização das mesmas para esse fim, não se vislumbrou sequer a necessidade de nela introduzir qualquer previsão a esse respeito.
Tal lacuna deve, assim, ser sanada nos termos do artigo 239.º do Código Civil, solução também apontada pelo citado acórdão de 15.09.2016.
Nele se refere: “Como é bom de ver, esta questão coloca em confronto o direito do proprietário individual de obter melhores proveitos financeiros com a utilização da sua fracção quando não necessita dela para a sua própria habitação, cedendo o seu gozo a terceiros na modalidade que considera mais proveitosa, e o interesse do condomínio e dos demais condóminos em evitar que o prédio seja continuamente acedido por estranhos que apenas utilizam a fracção temporariamente e logo são substituídos por outros desconhecidos, situação que potencia inevitavelmente o sentimento de insegurança, para além de poder gerar maiores despesas para o condomínio e situações de perturbação da paz, do sossego e da tranquilidade dos demais condóminos que se vêm obrigados a coexistir no mesmo edifício com turistas.
Afigura-se-nos que do ponto de vista da boa fé não se deve atribuir um valor decisivo a estas preocupações do condomínio e dos demais condóminos. Não que as mesmas não mereçam tutela, mas porque a defesa dos seus interesses não fica desprotegida com a autorização do funcionamento do alojamento local. Com efeito, o direito ao descanso e à tranquilidade na sua própria habitação são dimensões do direito de personalidade de qualquer pessoa, pelo que sempre que esse direito seja violado ou posto em crise, o seu titular pode accionar os mecanismos de defesa do direito que a ordem jurídica coloca à sua disposição, pelo que a proibição de utilização para alojamento de turistas apenas porque estes podem – e muitas situações haverá em que isso não sucede porque os turistas também podem ser pessoas respeitáveis, respeitadoras e cuidadosas – vir a perturbar esses direitos de personalidade seria excessiva e desproporcionada”.
Por outro lado, resulta da escritura de constituição de propriedade horizontal do imóvel denominado “Condomínio AD…” que dele fazem parte diversas fracções destinadas a comércio, serviços ou restauração, actividades que, por comparação com as relativas ao alojamento temporário, claramente se revelam mais perturbadoras do direito ao descanso e segurança dos condóminos que habitam as demais fracções, como igualmente contribuem em maior grau para o desgaste do imóvel, e que deitam ainda por terra eventuais argumentos de que os proprietários das fracções destinadas à habitação as adquiriram com a justa expectativa de que as diversas fracções que integram o imóvel apenas se destinariam à utilização para habitação dos seus proprietários ou arrendatários.
Dos autos não resulta ainda demonstrado que na fracção AN, de que é o recorrente proprietário, tenha sido instalado qualquer escritório ou recepção com pessoa(s) destinadas a receber turistas interessados na permanência temporária na fracção, mediante retribuição, em mostrar-lhes a mesma para esse efeito, ou a proporcionar-lhe outros serviços que não os estritamente relativos ao alojamento temporário.
Neste enquadramento, de acordo com o mesmo acórdão, “o alojamento temporário de turistas não diferirá em regra de uma utilização similar à que seria feita pelo proprietário ou por um arrendatário para habitação do respectivo agregado familiar. O barulho que os turistas farão pode ficar mesmo aquém do que seria feito pelos membros desse agregado, designadamente se o mesmo integrar crianças ou jovens, estudantes universitários ou pessoas com uma vida social doméstica intensa. Nessa medida, não vislumbramos qualquer incompatibilidade essencial para recusar à partida a possibilidade de a fracção destinada à habitação ser usada para alojamento temporário de turistas.
Isto dito, embora admitindo dúvidas e aceitando que novos argumentos possa surgir, somos levados a concluir que resultando da constituição da propriedade horizontal que a fracção se destina à habitação mas não resultando que isso exclua o alojamento temporário de turistas, a circunstância de esse alojamento ser prestado em regime de prestação de serviços não é bastante para afirmar que a utilização para alojamento é diversa e incompatível com a utilização para aquele destino autorizado”.
Entendimento que a recente alteração legislativa parece, de resto, reforçar.
Segundo o n.º 4 do artigo 4.º da Lei n.º 62/2018, de 22 de Agosto, “não pode haver lugar à instalação e exploração de «hostels» em edifícios em propriedade horizontal nos prédios em que coexista habitação sem autorização dos condóminos para o efeito, devendo a deliberação respetiva instruir a comunicação prévia com prazo”.
A circunstância de o referido diploma não prever para a exploração de estabelecimento de alojamento local restrição ou limitação similar às que fixa para a exploração de hostels só poderá significar que o legislador não considerou a actividade referente ao alojamento local incompatível com a utilização, para tal exercício, de fracção destinada à habitação, não tendo colocado quaisquer entraves à coexistência dessa actividade com a utilização de outras fracções do mesmo prédio para habitação - dos seus proprietários ou de terceiros, designadamente arrendatários ou comodatários.
Da não existência de norma com conteúdo equiparado ao do citado artigo 4.º, n.º 4 para a exploração da actividade de alojamento local em prédio constituído em propriedade horizontal decorre que o exercício dessa actividade não depende de prévia autorização dos demais condóminos, sendo que o direito de estes se oporem à mesma só pode ter por fundamento a verificação do circunstancialismo previsto no artigo 9.º, n.º 2 da referida Lei e de acordo com os apertados condicionalismos aí definidos[4].
Voltando ao que nos autos se debate: consta da cláusula 6.ª do Regulamento do Condomínio – fls. 19 – que “As frações autónomas e respetivas partes comuns têm as finalidades e afetações de uso previstas no título constitutivo da propriedade horizontal, sendo expressamente proibido a qualquer condómino ou à entidade que a qualquer título ocupe as referidas frações autónomas dar utilização diversa a partes comuns do Edifício, ainda que se tratem de partes comuns de utilização exclusiva de uma ou várias frações. É nomeadamente proibido destinar no seu todo ou em parte, qualquer fração autónoma a colégio, pensão ou equivalente, sociedade ou clube recreativo, discoteca, casa de jogo, dependências ou instituições políticas ou religiosas e, em geral, a quaisquer atividades ilícitas suscetíveis de ofender os bons costumes.”.
Socorremo-nos, uma vez mais, dos esclarecimentos prestados pelo citado acórdão de 15.09.2016, desta Relação: “O regulamento do condomínio é, nos termos do artigo 1429.º-A do Código Civil o instrumento destinado a disciplinar o uso, a fruição e a conservação das partes comuns do edifício. O artigo 1418.º, n.º 2, do Código Civil prevê ainda que possa ainda fazer parte do título constitutivo da propriedade horizontal um regulamento do condomínio a disciplinar o uso, a fruição e a conservação quer das partes comuns quer das fracções autónomas. Em qualquer dos casos, o regulamento, pela sua própria definição, tem natureza regulatória, de pura disciplina de um regime que ficou definido em termos gerais no título constitutivo e na lei mas que importa ajustar ao caso concreto e às particularidades das necessidade e da vontade dos condóminos.
Excepto se houver concordância do condómino afectado, o regulamento não pode ultrapassar esse âmbito e interferir directamente com o conteúdo material do direito de cada um dos condóminos sobre a sua fracção, reduzindo-o ou excluindo algumas das suas valências. Se o condómino adquire a sua fracção encontrando-se a mesma autorizada pelo título e pela licença de utilização a ser afecta a determinado fim, ao condómino não pode posteriormente, contra a sua vontade, ser oposta pela assembleia de condóminos uma deliberação que a propósito de disciplinar o uso da fracção importe na prática uma restrição material do conteúdo do seu direito exclusivo de propriedade sobre a fracção que lhe pertence.
Só assim se compreende, aliás, o disposto no artigo 1422.º do Código Civil que impede os condóminos de darem à sua fracção um uso diverso do fim a que é destinada: o mais que os restantes condóminos podem exigir é que o fim a que a fracção é destinada seja respeitado, não podem impor eles mesmos uma alteração, modificação ou restrição desse uso desde que ele respeite a autorização contida no título de constituição da propriedade horizontal que delimita o conteúdo do direito real transmitido para o adquirente da fracção. Será o caso, por exemplo, de o regulamento estabelecer que as fracções habitacionais não poderão ser arrendadas ou que não o poderão ser a turistas, a estudantes ou a pessoas de determinada etnia, raça ou nacionalidade. Quando isso suceder, as disposições do regulamento são pura e simplesmente ineficazes em relação ao condómino afectado”.
Ao contrário do que entende a sentença recorrida, não existe qualquer incompatibilidade entre o título da constituição da propriedade do imóvel e/ou o regulamento do condomínio, nomeadamente a sua cláusula 6.ª e a actividade de alojamento local desenvolvida em alguma das suas fracções destinadas a habitação, a qual, para efeitos da mesma, jamais poderá reconduzir-se ao conceito de “pensão ou equivalente”, não resultando comprovado nos autos que, além dos serviços inerentes ao estrito alojamento dos clientes, outros serviços, com ele conexos, sejam prestados, designadamente, fornecimento de refeições, tratamento de roupas, nem que exista instalada na fracção onde tal actividade é desenvolvida qualquer estrutura física destinada à recepção dos clientes, com afectação de pessoas a essa finalidade.
Pelas razões já antes adiantadas, os argumentos de que a afectação de fracções a uso relacionado com a prestação de serviços de alojamento local gera para os demais condóminos consequências negativas, comprometendo, designadamente, o seu direito ao descanso, privacidade e aconchego familiar, não colhem, não resultando evidenciado que o desenvolvimento de tal actividade implique um acréscimo de despesas, nomeadamente, com a limpeza das partes comuns do prédio, com luz e elevadores.
Por outro lado, não faz sentido convocar o disposto no artigo 1093.º do Código Civil e as restrições por ele impostas para afastar a possibilidade de uso de fracções para alojamento temporário de turistas, porquanto “o que está em causa não é o regime jurídico da utilização que o arrendatário pode fazer – nos termos do contrato - mas o regime jurídico da utilização que o proprietário pode fazer e, como todos aceitaremos com facilidade, o proprietário só pode fazer do edifício ou fracção autónoma a utilização que estiver autorizado a fazer e não é a celebração de um contrato de arrendamento que lhe vai permitir transferir para o arrendatário faculdades de utilização que não estiverem contidas no seu direito de propriedade e indirectamente passar a ter, por maioria de razão, faculdades de utilização que não estavam autorizadas só porque um arrendatário delas poderia supostamente usufruir – cf. neste sentido Sandra Passinhas, in A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, 2.º edição, Almedina, pág. 134 e seguintes -.
Isso mesmo se extrai do disposto no artigo 1067.º do Código Civil quando estabelece que o arrendamento urbano pode ter fim habitacional ou não habitacional, mas quando nada se estipule,
o local arrendado pode ser gozado no âmbito das suas aptidões, tal como resultem da licença de utilização. Não é pois pela colocação da hipótese de um arrendamento que se definirão as possibilidades de utilização do proprietário, mas, bem pelo contrário, é a determinação destas que conduzirá inelutavelmente à delimitação das possibilidades de utilização que caberão ao eventual arrendatário e isto independentemente do regime jurídico do arrendamento pois, repete-se, se ao proprietário estiver vedado algo em relação à utilização da sua fracção não será o contrato de arrendamento a um terceiro a possuir a virtualidade jurídica que contornar o disposto no artigo 1422.º do Código Civil. Com interesse para a questão que nos ocupa, o mais que se pode retirar do regime jurídico do contrato de arrendamento para habitação é que aquele regime oferece um exemplo de uma situação em que o legislador considera o alojamento de terceiros (independentemente de serem turistas) compatível com o fim da habitação”[5].
Do que se deixa exposto, haverá, pois, de concluir-se que não vedando quer o instrumento notarial de constituição de propriedade horizontal do prédio, quer o respectivo regulamento de condomínio, a possibilidade de nas fracções destinadas a fins habitacionais ser exercida a actividade de alojamento local, com uso das mesmas para prestação dos correspondentes serviços de alojamento temporário a turistas, só com a concordância dos proprietários das aludidas fracções poderia a assembleia de condóminos validamente deliberar no sentido de introduzir proibições, ou apenas restrições, ao uso das fracções para afectação ao desenvolvimento dessa actividade.
Ora, e no que concerne especificamente ao recorrente, não tendo o mesmo dado anuência ao que na assembleia de condóminos de 24 de Outubro de 2016 foi deliberado acerca do uso da fracção AN, de que é proprietário, para prestação de serviços de alojamento local, tendo, pelo contrário, ele [como outros condóminos] se oposto às propostas que nela foram aprovadas, tais deliberações são quanto a ele ineficazes.
Deste modo, procede a apelação, com a revogação da sentença recorrida no que concerne à decidida improcedência do pedido formulado pelo Autor, ora recorrente, C…, e procedência do pedido reconvencional contra ele deduzido, condenando-o a cessar a actividade de exploração de alojamento local na sua fracção “AN”, declarando-se, consequentemente, ineficazes, quanto ao mesmo, as deliberações da assembleia geral de condóminos de 24 de Outubro de 2016, a que se refere o ponto B) dos factos provados, e julgando, também relativamente a ele, improcedente o pedido reconvencional, absolvendo-o do mesmo.
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Síntese conclusiva:
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Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo apelante C…, revogando a sentença recorrida na parte em que, quanto a ele, julgou a acção improcedente e procedente o pedido reconvencional contra ele formulado, declarando-se, em consequência, ineficazes, quanto ao mesmo, as deliberações da assembleia geral de condóminos de 24 de Outubro de 2016 e julgando, também relativamente a ele, improcedente o pedido reconvencional, absolvendo-o desse pedido.
Custas: pelos apelados.
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Acórdão elaborado pela primeira signatária através de processamento informático.
Porto, 10.01.2019
Judite Pires
Aristides Almeida
Inês Moura
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[1] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[2] Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto.
[3] Processo n.º 4910/16.5T8PRT-A.P1, www.dgsi.pt.
[4] “No caso de a atividade de alojamento local ser exercida numa fração autónoma de edifício ou parte de prédio urbano suscetível de utilização independente, a assembleia de condóminos, por decisão de mais de metade da permilagem do edifício, em deliberação fundamentada, decorrente da prática reiterada e comprovada de atos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos condóminos, pode opor-se ao exercício da atividade de alojamento local na referida fração, dando, para o efeito, conhecimento da sua decisão ao Presidente da Câmara Municipal territorialmente competente”.
[5] Citado acórdão da Relação do Porto de 15.09.2016.