Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
143/10.2GBSTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ERNESTO NASCIMENTO.
Descritores: ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
NULIDADE DE SENTENÇA
Nº do Documento: RP20110518143/10.2GBSTS.P1
Data do Acordão: 05/18/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: A alteração da qualificação jurídica resultante do facto da sentença ter convolado a acusação pelo crime de Violência doméstica, condenado o arguido pela prática de um crime de Ofensa à integridade física e um crime de Ameaça agravada, tem de ser previamente comunicada ao arguido, nos termos do art. 358.º, n.º 1 e 3, do CPP, sob pena de nulidade da sentença [art. 379.º, al. b), do CPP].
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo comum singular 143/10.2GBSTS do 2º Juízo Criminal de Vila Nova de Famalicão

Relator - Ernesto Nascimento.

Acordam, em conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

I. 1. No processo identificado em epígrafe, foi o arguido B…, acusado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º/1 alínea b) e 2 C Penal.

I. 2. Efectuado o julgamento veio a ser proferida sentença, que julgou a acusação parcialmente procedente e, consequentemente:

1. absolveu o arguido do imputado crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º/1 alínea a) e 2 C Penal, e

2. convolando os factos deduzidos na acusação pública, condenou o arguido,

2. 1. como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º/1 C Penal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 7,00 e,
2. 2. como autor material de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153º/1, 151º/1 alínea a) C Penal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 7,00 e,
2. 3. operando o cúmulo jurídico destas penas, na pena única de 120 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, o que perfaz um montante total de € 840,00.

I. 3. Inconformado, com o assim decidido, interpôs recurso, o arguido – pugnando pela revogação da sentença, a fim de ser cumprido o disposto no artigo 358º/1 e 3 C P Penal - sustentando as conclusões que a seguir se transcrevem:

1. vem o presente recurso interposto da sentença que condenou o arguido ­como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143°/1 C Penal e como autor material de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153°/1 alínea a) C Penal, em cúmulo jurídico, na pena única de 120 dias de multa, à taxa diária de € 7,00 condenação esta por crime diverso daquele de que vinha acusado, após convolação feita na sentença;
2. o arguido vinha acusado da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152°/1 alínea b) e 2 C Penal, do qual foi absolvido;
3. a sentença alterou a qualificação jurídica dos factos feita na acusação sem que se desse cumprimento ao disposto no n.º 3 do artigo 358° C P Penal, pelo que enferma da nulidade prevista no artigo 379º/1 alínea b) C P Penal;
4. foi violado na sentença proferida pelo Tribunal a quo o princípio do acusatório, constitucionalmente consagrado no artigo 32º/5, segundo o qual são a acusação ou a pronúncia que definem e fixam o objecto do processo;
5. a vinculação temática do tribunal implicada no princípio da acusação é tida como a "pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido" e assegura, também, os seus direitos de contraditoriedade e audiência (Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, I, reimpressão, 144 e ss.;
6. se inicialmente em 1992.12.2 o STJ emitiu o Assento 2/93 (in DR, I-A de 1993.3.10) que fixou jurisprudência a considerar que “para os fins dos artigos 1º alínea f), 120º, 284º/1, 303°/3, 309º/2, 389º/1 e 2 e 379° alínea b) C p Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, a simples alteração da qualificação jurídica (ou convolação) ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave”, posteriormente o Tribunal Constitucional, pelo Acórdão 279/95, de 95.5.31, apreciando a constitucionalidade do artigo 1º alínea f) C P Penal, à luz do referido Assento, veio a “julgar inconstitucional - por violação do princípio constante do artigo 32º/1 da Constituição - o disposto no artigo 1º alínea f) C P Penal, conjugado com os artigos 120º, 284º/1, 303º/3, 309º/2, 359°/1 e 2 e 379° alínea b), e interpretado nos termos constantes do Assento 2/93, como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão-só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que o arguido seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela a oportunidade de defesa”;
7. mais afirma o aresto que "um exercício eficaz do direito de defesa não pode deixar ter por referência um enquadramento jurídico-criminal preciso", uma vez que "dele decorrem, ou podem decorrer, muitas das opções básicas de toda a estratégia de defesa (a escolha deste ou daquele advogado, a opção por determinadas provas em vez de outras, o sublinhar de certos aspectos e não de outros, etc.)";
8. a doutrina deste acórdão foi seguida no Acórdão do TC 16/97, de 1997.1.14 (in www.tribunalconstitucional.pt) e finalmente acolhida no Acórdão do mesmo tribunal 445/97, de 1997.6.25 (in DR, I-A de 1997.8.5), que fixou doutrina;
9. referiu-se no Acórdão do mesmo tribunal 518/98 que “o sentido e alcance da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral constante do mencionado acórdão 445/97, é, pois, o seguinte: o tribunal que proceda a uma diferente qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, que importe a condenação do arguido em pena mais grave, antes de a ela proceder, deve prevenir o arguido de tal possibilidade, dando-lhe quanto a ela, oportunidade de defesa”;
10. ensina Teresa Beleza, a propósito das alterações de 1998 aos artigos 339º/4 e 358°/4 C P Penal, que estas alterações significam que o legislador quis estatuir expressamente duas coisas: “a liberdade de qualificar os factos ­como prerrogativa do juiz; o direito a contra-argumentar sobre essa qualificação como garantia da defesa" (Dizer e Contraditar o Direito: a qualificação jurídica dos factos em processo crime in Scientia Iuridica, Jan-Junho de 1999, 277/279, 67 e ss.);
11. este entendimento é unânime quer na Jurisprudência quer na Doutrina, podendo consultar-se no mesmo sentido, para além dos já citados, designadamente, os seguintes Acórdãos: TRP de 6.5.2009, de 4.3.2009; de 17.12.2008; TRL de 2.6.2009, todos in www.gde.mj.pt e do STJ de 2009.9.17 (processo 169/07.3GCBNV.S1 in www.dgsi.pt;
12. no caso dos autos, o tribunal efectuou uma alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação na sentença que proferiu, condenando o arguido por crime diverso daquele de que vinha acusado, numa violação manifesta da comunicação que o artigo 358º/3 C P Penal exige, coarctando a defesa do arguido;
13. a Mma. Juíza do Tribunal a quo não poderia ter procedido à alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação sem comunicar ao arguido essa alteração, concedendo-lhe prazo para preparação da sua defesa, ocorrendo assim a nulidade a que se refere o artigo 358º/3 e o artigo 379° alínea b) C P Penal;
14. a sentença recorrida violou as disposições constantes dos artigos 358°/3 e 379º/1 alínea b) C P Penal;
15. assim, deve a mesma ser revogada e determinar-se que, na 1ª instância, seja cumprido o disposto no artigo 358º/1 e 3 C P Penal, relativamente à alteração da qualificação jurídica dos factos praticados pelo arguido.

I. 4. Na resposta que apresentou o MP pugna pelo não provimento do recurso, sustentando as seguintes conclusões:

1. concatenando-se o teor do despacho de acusação proferido nos presentes autos, com os factos dados como provados na sentença condenatória proferida nos mesmos, claramente se constata que, a factualidade subjacente aos tipos legais pelos quais o recorrente foi condenado (atinentes ao crime de ofensa à integridade física e ameaça agravada) já se encontravam concretizados e individualizados na factualidade do libelo acusatório, embora sobre a veste de uma diferente subsunção jurídica, a do crime de violência doméstica (p. e p. pelo artigo 152°/1 a), b) e 2 C Penal);
2. relativamente ao qual, os tipos legais de ameaça e de ofensa, conforme é consabido e unanimemente entendido, representam um "minus”;
3. a factualidade dada como provada no âmbito da sentença proferida, no que concerne ao crime de ofensa à integridade física e ao crime de ameaça agravada, já constava do despacho de acusação estando devidamente concretizada e circunstanciada, espacial e temporalmente, no mesmo, ou seja já fazia parte do objecto do processo, do “thema decidendum”, não se tendo verificado qualquer alteração ou adicionamento de factos;
4. consequentemente, o tribunal "a quo" não extravasou na sua decisão o objecto do processo e o princípio da vinculação temática que lhe é ínsito e, muito menos, coarctou afectou qualquer dimensão, dos direitos, garantias de defesa e contraditório do recorrente, não tendo assim violado o artigo 32° da CRP ou o princípio do acusatório;
5. não é necessário proceder à comunicação do artigo 358°/1 C P Penal, quando a alteração da qualificação jurídica ocorre para uma infracção que representa um “minus" relativamente à da acusação ou da pronúncia, pois que o arguido teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e a possibilidade de os contraditar;
6. se a alteração resulta da imputação de um crime simples, ou “menos agravado”, quando da acusação ou da pronúncia resulta a atribuição do mesmo crime, mas em forma mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravativo inicialmente imputado, não há qualquer alteração relevante para este efeito, pois que arguido se defendeu em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por diferente crime (mas consumido pela acusação ou pronúncia);
7. o mesmo deve ser entendido e adoptado em casos como o presente, em que o recorrente, acusado de um crime "composto" - na medida em que integra condutas que em si mesmo já são consideradas crime, mas que obtêm umas cominação mais grave em resultado da qualidade especial do autor, ou do dever que sobre ele impende, ou seja o crime de violência doméstica - acaba condenado por dois dos crimes que o integravam (neste caso o crime de ofensa à integridade física e o crime de ameaça agravada);
8. neste tipo de situações se a prova produzida não permite a condenação pelo crime composto, a defesa do arguido em nada é prejudicada ou surpreendida com a condenação pelos tipos de crime integrantes, não havendo lugar (por tal ser desnecessário) à comunicação do artigo 358º C P Penal;
9. na verdade cumpre diferenciar, em função de casos concretos, aquelas situações em que a omissão da comunicação impede a possibilidade de defesa eficaz do arguido, daquelas (como a do presente caso) em que tal ausência de comunicação (por desnecessária) não tem qualquer impacto negativo na estratégia de defesa do arguido;
10. a referida comunicação, não deve então, ser compreendida como sendo uma obrigação formal, de funcionamento automático, mas apenas, como um instrumento/mecanismo que deve ser observado por forma a assegurar os direitos de defesa do arguido, evitando que ele seja surpreendido com uma condenação por factos que não constavam da acusação (ou pronúncia) ou suportada por uma qualificação jurídica distinta da que nela constava, o que pelos motivos e razões supra expostas não se verifica no presente caso.

II. Remetidos os autos a este tribunal, aqui o Exmo. Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

No exame preliminar, o Relator considerou que o recurso foi admitido com o efeito adequado e que nada obstava à apreciação do respectivo mérito.

Seguiram-se os vistos legais.

Os autos foram submetidos à conferência.

Cumpre agora apreciar e decidir.

III. Fundamentação

III. 1. Como é por todos consabido, são as conclusões, resumo das razões do pedido, extraídas pelo recorrente, a partir da sua motivação, que define e delimita o objecto do recurso, artigo 412º/1 C P Penal.

Assim, a questão suscitada pelo recorrente, para apreciação pelo tribunal de recurso, é a de saber se os autos evidenciam, ou não, a nulidade da sentença prevista no artigo 379º alínea b) C P Penal – condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º.

III. 2. Sem se pretender aqui e agora, curar do acerto da qualificação jurídica efectuada, o recorrente que vinha acusado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º/1 alínea b) e 2 C Penal, veio a ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p pelo artigo 143º/1 e de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153º/1 e 155º/1 alínea a) C Penal.

Insurge-se contra o decidido, pretextando que esta alteração da qualificação jurídica não lhe foi comunicada como impõe o artigo 358º/3 C P Penal, o que acarreta a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379º alínea b) C P Penal.

Apesar da literalidade do artigo 379º/1 C P Penal que estabelece os casos em que a sentença é nula, sendo um deles, o previsto na sua alínea b), que é o que aqui interessa, quando se “condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º”, a condenação por incriminação distinta da incluída na acusação ou pronúncia sem cumprimento do disposto no artigo 358º/3, quando ela deva ter lugar, conduz, da mesma forma, á nulidade da sentença.
Isto porque – no que ao caso interessa – o artigo 358º se reporta à alteração não substancial, incluindo a da qualificação jurídica – que é o que aqui está em causa. [1]

III. 3. “Se, como é sabido, a acusação do MP delimita o objecto do processo, não delimita o objecto da discussão. [2]
Com efeito, o tribunal está vinculado ao objecto do processo definido pela acusação ou pela pronúncia, mas não está vinculado à acusação ou à pronúncia – sendo que este último segmento do que vem de ser dito, carece de ser entendido em termos mais complexos.
É certo que o tribunal está vinculado ao objecto do processo, definido pela acusação ou pela pronúncia, e o objecto do processo pode ser definido, segundo uma concepção prevalecente na doutrina e na jurisprudência, “como o facto, o acontecimento global da vida, o acontecimento histórico, incluindo todos os acontecimentos com ele ligados, do qual deriva a acusação admitida”. [3]
“Portanto, um facto que pode ser constituído por uma multiplicidade de factos singulares que se conjugam numa unidade de sentido, permitindo apercebê-lo como um acontecimento da vida real, dotado de individualidade e de características próprias (o tal pedaço de vida), incindível enquanto formando um todo significante do ponto de vista social e do ponto de vista jurídico, na medida em que esse complexo de elementos pode ser também relevante deste último ponto de vista e, nomeadamente, do ponto de vista jurídico-penal.
Por conseguinte, o objecto do processo é a acusação, sim, mas enquanto descrevendo esse pedaço de vida, esse acontecimento da vida real e social, portador de uma unidade de sentido e, como tal, susceptível de um juízo de subsunção jurídico-penal. Esse é que é o quid que se tem de manter idêntico até à decisão final (a eadem res), não obstante as mutações que venha a sofrer. Em tal sentido, a acusação funciona como garantia para o arguido: ”(…) a garantia de que apenas do que é acusado se terá de defender, e de que só por isso será julgado, posto que a eadem res da acusação à sentença é seguramente uma fundamental garantia para uma defesa pertinente e eficaz, segura de não deparar com surpresas incriminatórias e de ter assim um julgamento leal -, mas, por outro lado, no sentido também de não frustrar uma averiguação e um julgamento justos e adequados da infracção acusada”. [4]
Nessa perspectiva, começou por defender-se que a alteração da qualificação jurídica era livre e totalmente isenta de restrições, dado que não representa nenhuma alteração do objecto do processo, tomado como aquele acontecimento da vida social que se descreve na acusação ou na pronúncia, mantendo-se os factos idênticos e apenas variando a subsunção jurídica. Estando o tribunal apenas vinculado à lei e sendo constitucionalmente independente, devia ser livre para aplicar a lei e dizer o direito.
“O arguido se tem que defender dos factos imputados e não das qualificações jurídicas que deles se fazem» acabava por sustentar que «a qualificação jurídica é portanto livre, no pressuposto de que a base factual trazida pela acusação (ou pelo requerimento de abertura de instrução por parte do assistente) se mantenha inalterada”. [5]
Mas mesmo CASTANHEIRA NEVES, defendia que a garantia da identidade de objecto se devia compatibilizar com “uma averiguação e um julgamento justos e adequados da infracção acusada”, que não deviam ser frustrados. E mais ainda: o mesmo Autor assinalava que “não é o expresso sentido jurídico com que o acusador vê o caso concreto a julgar o que individualiza essencialmente o objecto do processo, e que antes se poderá dizer que aquele sentido jurídico é só uma primeira posição, precária e não vinculante, tomada sobre algo que ele próprio pressupõe, ou sobre algo que subsistirá idêntico (“o mesmo”) sob a possível modificação, ampliação ou mutação de sentido a impor”. [6]
E advertia que “(…) não temos que pensar como “coincidentes o critério da identidade do delito e o critério da identidade do objecto do processo. O que se pretende assegurar com a exacta definição e delimitação da unidade material do delito é a exclusão do bis in idem punitivo”. [7]
Basicamente, essa doutrina assenta no direito de que ser ouvido fazendo parte integrante do direito de defesa do arguido, sendo certo que o enquadramento legal ou a subsunção jurídico-penal de determinados factos é legalmente exigida, enquanto se prescreve que a acusação e a pronúncia contenham as disposições legais aplicáveis, artigos 283º/3 alínea c) e 308º/2, servindo essa subsunção legal de referência à fase de julgamento e sendo com base nela que se adopta determinada estratégia de defesa. [8]

Sem colocar em causa a liberdade de qualificação jurídica pelo tribunal, no entanto, veio o Tribunal Constitucional entender que se devia compatibilizar essa liberdade com um mecanismo que tornasse efectivo o direito do arguido a ser ouvido nos casos em que, mantendo-se os factos os mesmos, fosse alterada a qualificação para incriminação mais grave.
Numa breve resenha dos antecedentes desta alteração legislativa - mas cremos que absolutamente indispensável para melhor se entender a ratio legis da norma e por forma a proceder à sua interpretação de acordo com ela, cumpre salientar o seguinte:

o STJ acolhendo o entendimento de que o Juiz dispunha de uma total liberdade de qualificação jurídica dos factos, através do então denominado Assento 2/93 de 27.1, uniformizou jurisprudência no sentido de que “para os fins do artigos 1º alínea f), 120º, 284º/1, 303º/3, 309º/2, 359º/1 e 2 e 379º alínea b) C P Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave”;
porém, o Tribunal Constitucional, em recurso interposto deste Acórdão, o Tribunal Constitucional no Acórdão 279/95 decidiu julgar inconstitucional por violação do princípio constante do artigo 32º/1 da Constituição, “o artigo 1.º, alínea f), conjugado com os artigos 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 359.º, n.ºs 1 e 2, e 379.º, alínea b), e interpretado nos termos constantes do Assento n.º 2/93, como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que o arguido seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa”;
seguiu-se-lhe o Acórdão 16/97 do mesmo tribunal, que concluiu no mesmo sentido e, por fim, o Acórdão 445/97 que fixou esta doutrina com força obrigatória geral;
nesta sequência, o STJ veio a reformular, por Acórdão de 13.11.97, aquela primeira decisão no sentido de que, “ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta exista, o Tribunal pode proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente dê conhecimento e, se requerido, prazo, ao arguido, da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo possa organizar a sua defesa jurídica”. [9]

Era este o entendimento da jurisprudência mais avalizada que o legislador, através da Lei 59/98, veio a acolher, alterando, nos termos referidos, o artigo 358º, passando a incluir o referido n.º 3.
Com esta alteração visou-se a clarificação da controvérsia surgida no domínio da versão originária do C P Penal, resolvida, da forma descrita, pelo mencionado Acórdão com força obrigatória geral do Tribunal Constitucional.
Subjacente a esta norma está, sem margem para dúvida, o princípio do contraditório, o qual, encarado sob o ponto de vista do arguido, pretende assegurar os seus direitos de defesa, com a abrangência imposta pelo artigo 32º/1 e 5 da CRP, no sentido – no que ao caso interessa - de que nenhuma decisão deve ser proferida, sem que previamente tenha sido precedida de ampla e efectiva possibilidade de ser contestada ou valorada pelo sujeito processual contra o qual, é dirigida.
Reconduz-se este princípio, no caso concreto, ao direito do arguido a ser ouvido, a dispor de uma efectiva oportunidade processual para tomar uma posição sobre aquilo que directamente o afecta.[10]

Só que – parece-nos certo - o legislador foi mais longe, deixando cair, a alteração da qualificação jurídica para crime mais grave.
Isto porque, não previu, tão só – como afinal se vinha discutindo - a questão do exercício do contraditório quando a convolação operar para crime mais grave. [11]
De resto, na mesma ocasião, o legislador alterou, também, o artigo 339º, aditando-lhe o já referido, n.º 4: “sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369”.
Refira-se ainda que na recente alteração do CPP, levada a cabo pela Lei 48/2007, de 29AGO, se previu no artigo 424º, quanto aos tribunais superiores, que “sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias”, cfr. n.º 3.

Assim, se o legislador não distingue - entre alteração para crime mais grave ou para crime menos grave e, apenas focaliza, nestas 3, recentes alterações legais, depois de toda a controvérsia gerada, que culminou com a sua intervenção, naturalmente, tida como esclarecedora e pacificadora, em temos de segurança jurídica - não deve o intérprete distinguir.
Até por que as razões que fundamentam o exercício do direito de defesa, de audição, do contraditório em relação à alteração da qualificação jurídica para crime mais grave, se verifica, à mesma, se a alteração ocorrer, ainda que, para crime menos grave – seja o não ser o arguido surpreendido com uma decisão surpresa - passe o pleonasmo.

Revertendo ao caso sub judice, o que o tribunal fez foi uma alteração da qualificação jurídica, não uma alteração dos factos.
Com efeito, para ocorrer uma tal alteração factual, é necessário que aos factos constantes da acusação ou da pronúncia outros se acrescentem ou substituam, ou, pelo contrário, se excluam alguns deles. [12]
Como, aliás, é lógico. Ora, no caso que nos ocupa, não ocorreu nenhuma alteração desse jaez.
O que o tribunal fez foi qualificar, sem os modificar, os factos descritos na acusação de maneira diversa. Essa alteração de qualificação consistiu, em autonomizar os factos inicialmente descritos como integradores do tipo legal de violência doméstica, integrando-os agora nos tipos legais de ofensa à integridade física e de ameaça.
Nisto consistiu a alteração efectuada.

Ora, como vimos já, a alteração de qualificação jurídica tem de ser comunicada ao arguido nos termos do n.º 1 do artigo 358.º, uma vez que o n.º 3 desse artigo manda aplicar esse regime. Tal comunicação é oficiosa ou efectuada a requerimento e, se o arguido o requerer, é-lhe concedido prazo para preparação da sua defesa, pelo tempo estritamente necessário. [13]

Foi isto que não foi feito. Omissão, contra a qual o recorrente agora se insurge.
Na omissão do cumprimento do procedimento deste normativo, reside a incorrecção da 1ª instância, o que implica a nulidade da decisão, nos termos do artigo 379º alínea b).
Com efeito, a comunicação ao recorrente da alteração da qualificação jurídica era a única maneira de se respeitar o princípio de que se ao MP compete fazer a acusação, ao tribunal - e só a ele - compete constitucionalmente aplicar a lei e dizer o direito, decidindo os casos que lhe são apresentados e sendo independente nessa função, artigo 203º da CRP, pois que estando o tribunal vinculado à lei e sendo independente, tem, no entanto, a liberdade para qualificar juridicamente de maneira diversa os factos descritos na acusação, apenas devendo prevenir o arguido de qualquer alteração de qualificação, nos termos sobreditos.

Neste sentido discordamos, com a devida vénia e salvo o sempre – acentuado, no caso particular - devido respeito por posição contrária, do sentido do decidido no Acórdão deste Tribunal de 12.1.2011, invocado pelo MP na sua resposta, onde se considerou que:
importará distinguir, em função dos casos concretos, aquelas situações em que a omissão da comunicação impede a possibilidade de defesa eficaz do arguido, daquelas outras em que tal omissão não tem qualquer impacto negativo na estratégia de defesa do arguido;
a própria Lei ressalva que a comunicação só tem lugar se a alteração tiver “relevo para a decisão da causa” e se não tiver “derivado de factos alegados pela defesa” [n.º 1 e 2 do citado art.].
se a jurisprudência tem adicionado outros que com eles partilham a mesma irrelevância negativa para os direitos de defesa do arguido – vg. casos em que a alteração resulta da imputação de um crime simples, ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime mas em forma mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravativo inicialmente imputado;
o mesmo entendimento deve ser seguido no caso presente, em que o recorrente, acusado pela prática de um crime “composto” – na medida em que integra condutas que em si mesmo já são consideradas crime mas que obtêm uma cominação mais grave em resultado da qualidade especial do autor ou o dever que sobre ele impende, maus tratos – acaba condenado por um dos crimes integrantes, ofensa à integridade simples;
quando, como no caso presente, a prova produzida não permite a condenação pelo tipo “composto” [“agravado”], a defesa do arguido em nada é prejudicada ou surpreendida com a condenação pelo tipo de crime integrante;
à semelhança dos casos anteriormente apontados, entendemos que também aqui a não notificação do arguido da alteração da qualificação jurídica dos factos não impediu a possibilidade de uma defesa eficaz.

Isto porque, cremos que erradamente se terá interpretado a remissão do n.º 3 para o regime do n.º 1.
Com efeito.
O n.º 3 do artigo 358º sob a epígrafe de “alteração não substancial dos factos” dispõe que o disposto no n.º 1 desse artigo é correspondentemente aplicável quando o tribunal altera a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
Prescrevendo esse n.º 1 que se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
Salvo se a alteração tiver derivado de factos alegados pela defesa (n.º 2), caso em que se não aplica o referido n.º 1.
Ou seja, a mera alteração da qualificação jurídica não constitui alteração de factos (substancial ou não substancial), mas é-lhe aplicado o regime jurídico da alteração não substancial dos factos.
E se reportado a este regime - de alteração dos factos - se exige que a alteração seja de relevo para a decisão da causa – como requisito da obrigatoriedade de comunicação ao arguido - a alteração de Direito, da qualificação jurídica, será - por definição e pela própria natureza da questão - sempre de relevo, para a decisão da causa, indubitavelmente – e, por isso mesmo, e, por decorrência, sê-lo-á, essencialmente para o direito de defesa do arguido.
Que não pode ser assim postergado, pela omissão da comunicação da alteração.

Nestes termos, cremos que efectivamente ao se não haver dado cumprimento ao estatuído no artigo 358º/3, incorreu-se na nulidade prevenida pela alínea b) do artigo 379º C P Penal, a importar, a anulação do processado, que lógica e cronologicamente, se lhe seguiu.

IV. Dispositivo

Atento todo o exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido B… e, em consequência anular, não só, a sentença recorrida, mas ainda os actos próprios da audiência de julgamento, que devem ser retomados, no momento que antecedeu a leitura, por forma que se proceda agora à comunicação em falta ao arguido, prevista no artigo 358º/1 e 3.

Sem tributação.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1º signatário.

Porto, 2011.Maio.18
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
Olga Maria dos Santos Maurício
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[1] A mera alteração da qualificação jurídica, isto é a convolação, a que se referia o artigo 447º C P Penal29, quando assente na mesma matéria de facto - como o recorrente aceita acontecer no caso - não é uma alteração de factos (substancial ou não substancial), exactamente porque os factos são os mesmos - não foram alterados.
No entanto,
o n.º 3 do artigo 358º sob a epígrafe de “alteração não substancial dos factos” dispõe que o disposto no n.º 1 desse artigo é correspondentemente aplicável quando o tribunal altera a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia,
prescrevendo esse n.º 1 que se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. Salvo se a alteração tiver derivado de factos alegados pela defesa (n.º 2), caso em que se não aplica o referido n.º 1.
Ou seja, a mera alteração da qualificação jurídica não é alteração de factos (substancial ou não substancial), mas é-lhe aplicado o regime jurídico da alteração não substancial dos factos.
[2] Cfr. o n.º 4 do artigo 339º. “sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368º e 369º”.
[3] Cfr. FREDERICO ISASCA, Alteração Substancial Dos Factos E Sua Relevância No Processo Penal Português, 84.
[4] Cfr. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 210.
[5] Cfr. Frederico Isasca, ob. cit., 103/4.
[6] Cfr. idem, 250.
[7] Cfr. ibidem 244/245.
[8] Vg. se contrata determinado advogado e se arrolam determinadas testemunhas.
[9] Entretanto, o STJ no Acórdão 3/00 de 15.12.1999, veio novamente, uniformizar jurisprudência, agora no sentido de que, “na vigência do regime dos Códigos de Processo Penal de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento e, se requerido, prazo ao arguido da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo pudesse organizar a respectiva defesa”.
[10] Aquilo, que, afinal, também, o C P Civil no seu artigo 3º, prevê – a proibição de decisões surpresa.
[11] “E esse regime aplica-se em relação a toda e qualquer alteração da qualificação, seja para figura criminal mais grave, seja para menos grave, nisso tendo o legislador ido mais longe do que o impunha a exigência do Tribunal Constitucional. Como anota PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário Do Código De Processo Penal, citando fonte legislativa, o que está aqui em causa não é a liberdade de qualificação jurídica, mas apenas a protecção do contraditório”, apud. Ac STJ de 17.9.2009.
[12] Crf. Frederico Isasca, ob. cit., 98.
[13] Ocorrendo a alteração da qualificação em audiência, tem de aplicar o disposto no n.º 1 do artigo 358º, ou seja, a comunicação ao arguido nos termos já referidos, pois que o n.º 3 manda aplicar correspondentemente o disposto no n.º 1 - o que significa o mesmo que com as devidas adaptações – donde, como decorrência, constituindo a alteração da qualificação jurídica uma operação de subsunção dos factos descritos na acusação ou na pronúncia ao direito, não está dependente da produção de prova, ao contrário do que acontece com a alteração dos factos (substancial ou não substancial).