Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1035/17.0T9PRD-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: SENTENÇA PENAL
TÍTULO EXECUTIVO
PARTES
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RP202011041035/17.0T9PRD-B.P1
Data do Acordão: 11/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A sentença penal delimita objetiva e subjetivamente o título que irá servir de fundamento à execução.
II - Partes na acção executiva são aquelas que figurem como credor e devedor na sentença penal.
III - Condenados os arguidos pela autoria de um crime de abuso de confiança à segurança social, p. e p. pelos artigos 105.º, n.º 1 e 107º, n.ºs 1 e 2 do R.G.I.T., figurando aqueles, na sentença, como obrigados relativamente à perda de vantagens, e como credor o Estado, serão estas as partes da acção executiva.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1035/17.0T9PRD-B.P1 – 4.ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO
1.1 Por despacho saneador/sentença de 09/03/2020, proferido no Processo nº 1035/17.0T9PRD-B, que corre termos no Juízo Local Criminal de Paredes, Juiz 1, Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, foi decidido o seguinte:
“Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade processual passiva deduzida pelos embargantes, ali executados e, consequentemente, declarar a existência de título executivo bastante quanto aos mesmos.
Na ausência de qualquer outro fundamento de embargos de executado invocado pelos embargantes, ali executados que cumpra apreciar, decide-se julgar improcedentes os presentes embargos de executado, determinando-se o prosseguimento dos ulteriores trâmites da execução de que estes autos correm por apenso.”
1.2. Não se conformando com tal decisão, dela interpuseram recurso os embargantes B… e C…, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões: (…)
1.3. O Ministério Público respondeu, concluindo pela negação de provimento ao recurso, nos seguintes termos: (…)
1.4. O Sr. Procurador-Geral-Adjunto neste Tribunal teve vista do processo.
1.5. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelos embargantes e os poderes de cognição deste Tribunal, importa apreciar e decidir se os mesmos são partes ilegítimas na ação executiva contra si instaurada pelo Ministério e, consequentemente, se ocorre tal exceção dilatória de ilegitimidade processual ou ad causam, com a sua consequente absolvição da instância executiva.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Factos a considerar
2.1.1 Na sentença que serve de título à execução instaurada contra os arguidos, ora embargantes, B… e C…, foi decidido o seguinte:
1. Condenar a arguida D…, Lda., pela prática de um crime de abuso de confiança à segurança social, previsto e punido pelos artigos 105.º, n.º 1 e 107º, n.ºs 1 e 2 do R.G.I.T., na pena de multa 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de €5 (cinco) euros, perfazendo o montante global de €1.750 (mil, setecentos e cinquenta euros).
2. Condenar o arguido B… pela prática de um crime de abuso de confiança à segurança social, previsto e punido pelos artigos 105.º, n.º 1 e 107º, n.ºs 1 e 2 do R.G.I.T., na pena de multa 170 (cento e setenta) dias de multa à taxa diária de €6 (seis) euros, perfazendo o montante global de €1.020 (mil e vinte euros).
3. Condenar a arguida C… pela prática de um crime de abuso de confiança à segurança social, previsto e punido pelos artigos 105.º, n.º 1, e 107º, n.ºs 1 e 2, do R.G.I.T., na pena de multa 170 (cento e setenta) dias de multa à taxa diária de €6 (seis) euros, perfazendo o montante global de €1.020 (mil e vinte euros).
4. Julgar totalmente procedente, por provado, o pedido de indemnização cível deduzido contra D…, Lda., B… e C…, e, em consequência Condenar solidariamente os demandados a pagar ao Instituto de Segurança Social a quantia de €93.382,33 (noventa e três mil, trezentos e oitenta e dois e trinta e três cêntimos), acrescida de juros de mora, nos termos legais, vencidos e vincendos calculados nos termos previstos no artigo 16º do Decreto-Lei n.º 411/91, de 17 de Outubro até integral pagamento.”
Declarar a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial que para a sociedade arguida D…, Lda., sobreveio pela prática pelos arguidos de um crime de abuso de confiança segurança social, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1 e 107.º, n.ºs 1 e 2 do R.G.I.T., no valor de €93.382,33 (noventa e três mil, trezentos e oitenta e dois e trinta e três cêntimos)”.
2.1.2 A decisão de perda de vantagens, assim determinada, foi fundamentada nos seguintes termos:
(…)
ficou provado que os arguidos apropriaram-se a favor da sociedade arguida do montante de cotizações no valor de €93.382,33, ou seja, os arguidos obtiveram uma vantagem patrimonial ilícita no valor de €93.382,33 com a prática de um crime por que vêm acusados. (…) Fazendo nossas, as palavras de João Conde Correia, Procurador da República, e Hélio Rigor Rodrigues, Procurador-Adjunto, publicado na sobredita Revista, “a remoção dos incentivos económicos subjacentes à prática do crime, concretizada através do confisco das respetivas vantagens, constitui o único modo verdadeiramente eficaz de combater a atividade ilícita que visa o lucro. As finalidades preventivas que por esta via se alcançam, em conjugação com o quadro normativo vigente, impõem que se conclua de forma inequívoca que inexiste qualquer limite ao confisco motivado pela mera possibilidade de ser deduzido um pedido de indemnização civil”, (sublinhado nosso), pelo que ao abrigo do disposto no artigo 110º, n.º 1, al. b) do Código Penal, declara-se a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial que para a sociedade arguida sobreveio com a conduta dos arguidos C… e B…, concretamente pela prática de um crime abuso de confiança à segurança social, previsto e punido pelo artigo 105º, n.º 1 e 107º, n.ºs 1 e 2 do R.G.I.T., no valor de €93.382,33 (noventa e três mil, trezentos e oitenta e dois e trinta e três cêntimos), sem prejuízo dos direitos da ofendida Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. (…)”.
2.2 Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos
2.2.1. Da ilegitimidade ad causam dos embargantes, enquanto executados na ação de que os presentes embargos são apensos e da absolvição da instância executiva por ambos pretendida
Como vimos supra, a questão fundamental a resolver consiste em saber se os embargantes, enquanto executados na ação executiva contra si instaurada pelo Ministério Público são partes ilegítimas e se ocorre a exceção dilatória de ilegitimidade processual ou ad causam, com a sua consequente absolvição da instância executiva – art.ºs 53º, nº 1, 577º, al. e) e 576º, nº 2, ex vi 551º, todos do Código de Processo Civil.
Descentrar a verdadeira essência da causa de pedir da ação executiva, isto é, o título executivo consistente na sentença penal pela qual se decretou a perda de bens relativamente a todos os arguidos, foi pretexto fornecido aos executados pelo Ministério Público, ao formular um pedido executivo em termos que não têm correspondência literal com o título dado à execução, porquanto no mesmo não foi proferida, relativamente à perda de bens a favor do Estado, “expressis verbis”, qualquer decisão de condenação solidária dos recorrentes no pagamento de quantia certa, formulação esta normalmente usada nas decisões condenatórias proferidas em ações declarativas de condenação cível, decorrente do estabelecido no art.º 10º, nºs 1, 2 e 3, al. b), do Código de Processo Civil, nem assim tinha de ser, porquanto o titulo dado à execução é uma sentença penal, proferida nos termos e com os fundamentos exigidos pelo direito penal e processual penal, e não pela lei civil ou processual civil, como já aconteceria, em parte, caso a respetiva decisão condenatória estivesse ancorada ou fosse consequência de um pedido de indemnização cível deduzido no processo penal pelo sujeito processual lesado, designadamente tendo em vista o ressarcimento de perdas e danos emergentes da prática do crime, hipótese em que teria lugar a aplicação das normas do direito civil relativas à responsabilidade civil extracontratual (nomeadamente art.ºs 483º e ss. do Código Civil, ex vi art.º 129º do Código Penal) e a justificação da dedução do pedido de natureza cível (enxertado) na ação penal teria fundamento no princípio da adesão consagrado no art.º 71º do Código de Processo Penal.
Ora, a perda de produtos e vantagens do crime, a que alude ao art.º 110º do Código Penal, com as consequências que dela advêm na esfera jurídico-patrimonial dos respetivos arguidos, é um instituto estritamente penal.
O processo civil apenas é chamado ao caso, em virtude da necessidade de se recorrer à ação executiva, após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, e apenas como instrumento processual de realização coerciva do pagamento da perda aí determinada à luz do direito penal, como meridianamente resulta do art.º 510º do CPP e flui do disposto 110º, nº 4, do Código Penal, este último ao estabelecer a possibilidade de a substituição da perda de produtos ou vantagens que não possam ser apropriados em espécie pelo pagamento ao Estado do respetivo valor poder operar a todo o tempo, mesmo na fase executiva da sentença.
A natureza jurídica da perda de vantagens do crime, nas palavras do Professor Jorge de Figueiredo Dias, é a de "uma providência sancionatória análoga à da medida de segurança (...), no sentido de que é sua finalidade prevenir a prática de futuros crimes, mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de facto ilícito-típico, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito; e que, por isso mesmo, esta instauração se verifica com inteira independência de o agente ter ou não atuado com culpa"[1].
E tal perda, diretamente conexionada que está com o crime praticado[2], além de dever ser decretada na sentença penal, é-o “por forma obrigatória, contra os agentes do facto ilícito-típico (autores e comparticipantes), não contra terceiros”[3] (sublinhado nosso).
Ou seja, a configuração, em termos de declaração, com efeitos na esfera jurídico-patrimonial do réu, que a decisão de condenação à realização da prestação de uma coisa ou de um facto, a favor do autor, tem na ação declarativa de condenação, no âmbito cível (normalmente com o uso da fórmula “condeno o réu”), assume no direito penal a expressão sacramental ou a fórmula de declaração de perda da vantagem patrimonial (“declaro” ou decide-se “declarar a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial que…”), gerada pelo comportamento ilícito típico (crime praticado), por estar com este diretamente conexionada, e por o arguido ter sido por ele também condenado. Sendo por isso, logicamente, que a perda fica a cargo dos arguidos condenados pela prática do crime, pois é tal condenação que também determina essa mesma perda, como concretamente ocorreu no caso dos autos, e fundamentadamente resulta da sentença que serve de título à execução, nomeadamente quando aí se diz que “ficou provado que os arguidos apropriaram-se a favor da sociedade arguida do montante de cotizações no valor de €93.382,33, ou seja, os arguidos obtiveram uma vantagem patrimonial ilícita no valor de €93.382,33 com a prática de um crime por que vêm acusados. (…) pelo que ao abrigo do disposto no artigo 110º, n.º 1, al. b) do Código Penal, declara-se a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial que para a sociedade arguida sobreveio com a conduta dos arguidos C… e B…, concretamente pela prática de um crime abuso de confiança à segurança social, previsto e punido pelo artigo 105º, n.º 1 e 107º, n.ºs 1 e 2 do R.G.I.T., no valor de €93.382,33 (noventa e três mil, trezentos e oitenta e dois e trinta e três cêntimos), sem prejuízo dos direitos da ofendida Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. (…)” (Sublinhado nosso).
Sendo, portanto, desse modo que na sentença penal se gerou a delimitação objetiva e subjetiva do título que iria servir de fundamento à execução, nos termos previstos nas disposições conjugadas dos art.ºs 110º do Código Penal, 10º, nºs 5 e 6, do Código de Processo Civil, ex vi art.º 510º do CPP. Sendo também por isso, valendo ademais como contributo para a clarificação da específica conformação que o título que serve de fundamento à execução assume na decisão condenatória penal, que o nº 4 do art.º 110º do CP prescreve perentoriamente que “se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no art.º 112º-A”, isto é, com os limites advenientes dos prazos de prescrição aí previstos.
Dito isto, podemos agora mais eficazmente abordar a questão da ilegitimidade processual suscitada pelos embargantes, ora recorrentes.
Nos termos do art.º 10º, nº 5, do CPC, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.
Entre esses limites, situam-se os de ordem subjetiva, isto é, os que determinam as pessoas que hão de e contra quem há de ser instaurada a ação executiva, devendo estas para o efeito figurar no título executivo – art.º 53º, nº 1, do CPC.
Assim temos que para aferirmos da existência do pressuposto processual da legitimidade na ação executiva, partes nessa ação serão aquelas que no título executivo figurarem como credor e devedor.
No caso dos autos o título dado à execução é a sentença penal pela qual foram condenados os arguidos (agora embargantes) B… e C…, juntamente com a sociedade comercial D…, Lda., pela autoria de um crime de abuso de confiança à segurança social, previsto e punido pelos artigos 105.º, n.º 1 e 107º, n.ºs 1 e 2 do R.G.I.T., nas penas acima referidas, assim como na perda a favor do Estado da vantagem patrimonial no valor de € 93.382,33 que para a sociedade arguida D…, Lda., sobreveio pela prática por aqueles mesmos arguidos do crime por que foram condenados, de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1 e 107.º, n.ºs 1 e 2 do R.G.I.T..
Resulta assim perfeitamente delimitado o âmbito objetivo e subjetivo do título dado à execução, nele figurando como obrigados relativamente à perda de vantagens os arguidos condenados, incluindo os ora embargantes, e como credor o Estado.
Claudica assim a exceção de ilegitimidade processual invocada pelos embargantes ao abrigo do art.º 729º, nº 1, al. c), do Código de Processo Civil.
Não tem, de iure, qualquer fundamento a invocação pelos embargantes do facto de não terem sido beneficiários da vantagem patrimonial de €93.382,33, mas sim a sociedade comercial, também arguida, porquanto, além de tal questão estar coberta pelo caso julgado, objeto da sentença condenatória que titula a execução, e ademais não constituir facto extintivo ou modificativo da obrigação que pudesse ser posterior ao encerramento da discussão no processo penal em que se deu a condenação, para que assim também pudesse servir fundamento aos embargos, nos termos e para os efeitos do art.º 729º, al. g), do CPC, olvidam ostensivamente os recorrentes que a decisão de perda de vantagens podia e devia ser contra si proferida, mesmo que as vantagens por ambos produzidas o tivessem sido exclusivamente a favor de terceiro, porquanto assim o impõe o nº 1, al. b), do art.º 110º do CP, ao dizer que são declaradas perdidas a favor do Estado “as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem” (sublinhado nosso). Ou seja, não seria o facto de as vantagens terem sido obtidas pelos ora embargantes, como efetivamente foram, através do crime cometido, mas depois as destinaram a favor de terceiro, que a perda podia deixar de ser decretada relativamente a eles.
Finalmente, a perda de vantagens foi decretada no âmbito de um processo penal justo e equitativo, no qual os arguidos puderam sempre exercer os seus direitos, incluindo o direito ao recurso, e no qual se encontraram sempre representados por advogado. Sendo que a decisão que serve de título à execução se mostra devidamente fundamentada.
Razão por que irá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
2.3. Das custas do processo
Por terem saído vencidos, as custas do recurso ficarão a cargo dos embargantes, nos termos do art.º 527º, nºs 1 e 2, do CPC.
3. Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelos embargantes B… e C…, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo dos recorrentes.

Porto, 04 de novembro de 2020
Francisco Mota Ribeiro
Elsa Paixão
____________
[1] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra 2005, p. 638.
[2] Conexão, congruentemente reafirmada no âmbito da Lei n.º 88/2009, de 31/08, que aprovou o regime jurídico da emissão e execução de decisões de perda de instrumentos, produtos e vantagens do crime, ao definir no seu art.º 2º, nº 1, al. c), a «Decisão de perda» como sendo “uma sanção ou medida de carácter definitivo, imposta por um tribunal relativamente a uma ou várias infrações penais, que conduza à privação definitiva de um bem”.
[3] Jorge de Figueiredo Dias, Idem, p. 636.