Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
368/08.0TAVNF.P1
Nº Convencional: JTRP00042588
Relator: FRANCISCO MARCOLINO
Descritores: CRIME
EMISSÃO DE CHEQUE SEM PROVISÃO
BURLA
Nº do Documento: RP20090520368/08.0TAVNF.P1
Data do Acordão: 05/20/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO - LIVRO 581 - FLS 136.
Área Temática: .
Sumário: I - Havendo uma relação de especialidade entre o crime de emissão de cheque sem provisão e o crime de burla, por força do princípio da especialidade subsiste apenas o crime de emissão de cheque sem provisão.
II - Assim, sendo os factos subsumíveis ao crime de emissão de cheque sem provisão, não pode indagar-se se são subsumíveis ao crime de burla e falsificação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso 368/08.0TAVNF.P1

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Nos autos de instrução supra identificados, do .º Juízo Criminal de Vila Nova de Famalicão, “B………., Lda., com sede na Rua ………., ………., ………., Vila Nova de Famalicão, apresentou queixa-crime contra “C………., Lda.”, com sede na ………., n.º .., freguesia de ………., concelho de Santo Tirso, pela prática dos seguintes factos:
1. No âmbito das transacções comerciais celebradas entre a denunciante e a denunciada, esta adquiriu àquela 1.017 unidades de Lençol 100 X 150 em felpo .........., no valor líquido de €2.695,05; 1.992 unidades de Toalha 50 X 100 em felpo .........., no valor líquido de €1.792,80; 1980 unidades de toalhetes 30 X 50 em felpo .........., no valor líquido de €594,00, perfazendo, assim, o valor global de €6.149,04, IVA incluído.
2. Os aludidos artigos foram levantados na sede da denunciante pelo sócio gerente da denunciada D………., no dia 17 de Outubro de 2007, e ao qual também foi entregue a respectiva factura n.º ….. - cf. doc. 1, que ora se junta e que aqui se dá por reproduzido para os devidos e legais efeitos.
3. No dia 17 de Outubro de 2007, o sócio gerente da denunciada emitiu e enviou para a denunciante, através do filho, um cheque pré-datado, no valor de €6.149,04, do E………., sob o numero ………. para pagamento da aludida factura - cfr. doc n.º 2 que ora se junta e que aqui se dá por reproduzido para os devidos e legais efeitos.
4. No dia 17 de Janeiro de 2008, conforme combinado, a denunciante apresentou o cheque para pagamento junto do seu banco. Acontece que, surpreendentemente, a ordem da denunciante se fazer pagar pelo aludido cheque foi cancelado a 22 de Janeiro de 2008, alegando a referida Instituição de crédito para o efeito tratar-se de uma situação de falta ou vício de vontade.
5. Ora, nada mais incongruente pois não restam dúvidas que houve, de facto, uma transacção comercial efectuada entre a denunciante e a denunciada, na qual esta manifestou de modo, livre, voluntário e consciente, a sua intenção de adquirir daquela os artigos acima referidos, mediante o pagamento de €6.149,04.
6. Com efeito, todas as condições da celebração do negócio foram oportunamente explanadas, como a denunciada bem sabe, tanto mais que esta emitiu um cheque pré-datado para dar cumprimento efectivo à obrigação que lhe cumpria.
7. Deste modo, é com surpresa que a denunciante toma conhecimento da devolução do aludido cheque e mais, dos fundamentos que sustentam tal devolução por desprovidos de qualquer veracidade.
8. Não pode, pois, a denunciada após celebrado e concluído o negócio, e uma vez já adquiridas e recebidas as respectivas mercadorias, vir agora, arguir a falta ou vício de vontade.
9. Na verdade, e como a denunciada bem sabe, e ao contrário que a mesma pretende fazer demonstrar, a denunciante não se serviu de qualquer artifício para se fazer pagar de serviços supostamente por si prestados.
10. Pelo contrário, é a denunciada que pretende obter para si um enriquecimento ilegítimo, como ela bem sabe, mediante meios que astuciosamente acarretam prejuízo à denunciante.
11. Não há, deste modo, e como não pode haver, falta ou vício de vontade quando é a própria denunciada que manifesta a vontade de celebrar o aludido negócio.
12. Mais, a inexistir essa manifestação de vontade ou a existir algum vício que impeça a formação exacta e livre da vontade, a denunciada nunca aceitaria receber a factura que discrimina todos os artigos, objectos da negociação feita pela denunciante e denunciada, assim como, nunca permitiria, receber os artigos e nem tão pouco deixá-los permanecer na sua empresa, ou até mesmo já os ter vendido a terceiros, e, mais, não emitiria um cheque pré-datado, o qual vencer-se-ia em 17 de Janeiro de 2008 como forma de pagamento dos serviços pela denunciante prestados.
13. Deste modo, está a denunciada a agir de má fé ao servir-se de estratagemas para se esquivar à sua responsabilidade de cumprir com a obrigação de pagar o preço da mercadoria.
14. Com esta conduta quis a denunciante locupletar-se, como efectivamente se locupletou, prejudicar como efectivamente prejudicou e, ainda, apropriar-se ilegitimamente de coisa que ela bem sabe não lhe pertencer, acrescendo, ainda, o facto de não se coibir de se servir de artifícios proibidos por lei.
15. Pelo exposto e porque tais factos constituem ilícito criminal requer-se procedimento criminal contra a sociedade C………., Lda.

Sem efectuar qualquer diligência, o Ex.mo Magistrado do M.º P.º determinou o arquivamento dos autos, com a seguinte fundamentação:
1. Os vertentes autos tiveram início com a queixa apresentada pelo legal representante da sociedade comercial denominada B………., Lda. contra os legais representantes da C………., Lda.
Do teor da queixa resulta, em síntese e no essencial, que:
● No âmbito de transacções comerciais havidas entre a denunciante e a denunciada, esta adquiriu àquela mercadorias, no valor global de € 6.149,04, que lhe foram entregues no dia 17.10.07;
● Nesse mesmo dia, para pagamento da quantia em sujeito, o sócio gerente da denunciada emitiu, através do filho, um cheque pré-datado;
● Apresentado a pagamento, como combinado, no dia 17.01.08, foi aquele título devolvido por falta ou vício de vontade.
2. A factualidade em sujeito, tal como surge enquadrada é insusceptível de consubstanciar a prática, pelo legal representante da denunciada, de crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art. 11º, nº 1, al. b) do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro, e pela Lei nº 4 8/05, de 29 de Agosto.
Vejamos porquê.
Nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 3 do art. 11º do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro, e pela Lei nº 48/05, de 29 de Agosto, são elementos objectivos típicos do crime de emissão de cheque sem provisão:
● A emissão e entrega de cheque;
● De valor superior a 150,00;
● Que não seja integralmente pago por falta de provisão ou irregularidade do saque, ou seja proibida à instituição sacada o pagamento desse cheque, quando apresentado a pagamento nos termos e prazos da LURC;
● Que o seu não pagamento cause prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro;
● Que não seja emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador.
Cotejando os elementos do tipo com a factualidade trazida aos autos, por via da queixa e dos elementos juntos, uma conclusão, desde logo, se impõe: não avulta preenchido o último dos apontados requisitos.
Com efeito, o cheque em sujeito é pré-datado - foi emitido em data anterior à que do mesmo consta (foi entregue em 17 de Outubro de 2007 com data de 17 de Janeiro de 2008).
A factualidade denunciada, abstractamente tomada, é também insusceptível de consubstanciar a prática, por banda dos legais representantes da sociedade denunciada, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelas disposições combinadas dos art°s. 202°, al. a), 217°, nº 1 e 218°, nº 1 todos do C. Penal.
Com efeito, conjugando o teor da queixa com o teor dos documentos juntos (cópia da factura e do cheque) concluímos que inexistem indícios de que este ilícito tenha tido verificação.
Flui do disposto no art. 217°, nº 1 do C. Penal que incorre na prática de crime de burla “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial (...)”.
O art. 218°, nº 1, do mesmo diploma legal, prevê e pune, entre o mais, as actuações causadoras de prejuízo patrimonial “de valor elevado”, ou seja, aquele que excede 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto (cfr. art. 202°, al. a), do C. Penal).
Temos, então, como elementos objectivos típicos do crime de burla:
a) O uso, pelo agente, de erro ou engano sobre factos, astuciosamente provocado;
b) Com o escopo de determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial.
Como elementos subjectivos do mencionado ilícito surpreendemos:
a) O conhecimento de todos os elementos objectivos e a vontade de os realizar, consistindo esta vontade no dolo (dolo genérico) em qualquer uma das modalidades (directo, necessário ou eventual), e
b) A intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo (dolo específico).
Como ensina o Prof. Almeida Costa, em anotação ao art. 217° do C. Penal, in Comentário Conimbricense, Parte Especial, Tomo II, pág. 293, «A burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios. Para que se esteja em face de um crime de burla, não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais».
Vertendo ao caso dos autos, não avulta que o legal representante da denunciada ou alguém a seu mando haja assumido qualquer comportamento enganoso, direccionado a determinar a denunciante à prática de actos que lhe causassem prejuízo patrimonial.
Nenhum comportamento, contemporâneo da celebração do contrato de compra e venda, susceptível de integrar o tipo legal do crime de burla, terá sido protagonizado por quem quer que seja - pelo menos no foi denunciado nem comunicado.
Temos para nós que a matéria sob inquérito reveste natureza exclusivamente cível e deverá, consequentemente, ser dirimida nas instâncias próprias.

A denunciante, que se constituiu assistente, requereu a abertura da instrução por entender que se indicia a prática de um crime de burla, que não subsume a qualquer preceito legal.
Alegou:
1. A Requerente apresentou junto da Procuradoria do Ministério Publico desta Comarca queixa-crime contra “C………., Lda.”, com os seguintes fundamentos:
2. No âmbito das transacções comerciais celebradas entre a Requerente e a Requerida, esta adquiriu àquela 1.017 unidades de Lençol 100 x 150 em felpo .........., no valor líquido de €2.695,05; 1.992 unidades de Toalha 50 x 100 em felpo .........., no valor líquido de €1.792,80; 1.980 unidades de Toalhetes 30x50 em felpa .........., no valor líquido de €594,00, perfazendo, assim, o valor global de €6.149,04, IVA incluído.
3. Os aludidos artigos foram levantados na sede da Requerente pelo sócio gerente da Requerida D………., no dia 17 de Outubro de 2007, e ao qual também foi entregue o respectiva factura n.º ..... - cf. doc. 1, já junto nestes autos.
4. Na sequência, nessa mesma data, o sócio gerente da Requerida emitiu e enviou para a requerente, através do filho dos sócios gerentes da Requerida, um cheque pré-datado, no valor de €6.149,04, do E………., sob o numero ………. para pagamento da aludida factura - cfr. doc n.º 2 junto aos autos.
5. Assim, na data acordada entre Requerida e Requerente, concretamente no dia 17 de Janeiro de 2008, esta apresentou o cheque a pagamento junto do seu banco, tudo conforme acordado entre as partes.
6. Ora, acontece que, surpreendentemente, a Requerente não logrou obter pagamento do aludido cheque, porquanto o mesmo foi cancelado, a 22 de Janeiro de 2008, por ordem expressa da Requerida.
7. Com efeito, e de acordo com informação aposta no verso do cheque a mesma havia ser cancelada por ordem do seu subscritor, aqui Requerida e com fundamento em falta ou vício de vontade.
8. Ora, nada mais incongruente, pois, não restam dúvidas que houve, de facto, uma transacção comercial efectuada entre a Requerente e a Requerida, na qual esta manifestou de modo livre, voluntário e consciente, a sua intenção de adquirir daquela os artigos acima referidos, mediante o pagamento de €6.149,04.
9. Com efeito, todas as condições da celebração do negócio foram oportunamente explanadas como a Requerida bem sabe, tanto mais que, esta emitiu um cheque pré-datado para dar cumprimento efectivo à obrigação que lhe cumpria.
10. Não podia, jamais, a Requerida invocar que a vontade da celebração do negócio, que efectivamente celebrou, foi viciada.
11. A Requerida apenas teve, com tal atitude, um único propósito, que é o de não pagar as aludidas mercadorias e com isso obter, astuciosamente, vantagens económicas à custa da Requerente.
12. Foi pois, com surpresa, que a Requerente tomou conhecimento da devolução do aludido cheque e mais, dos fundamentos que sustentam tal devolução por desprovidos de qualquer veracidade.
13. Não pode, pois, a Requerida após celebrado e concluído o negócio, e uma vez já adquiridas e recebidas as respectivas mercadorias, vir agora, arguir a falta ou vício de vontade.
14. Na verdade, e como a Requerida bem sabe, e ao contrário que a mesma pretende fazer demonstrar, a Requerente não se serviu de qualquer artifício para se fazer pagar de serviços por si prestados.
15. Pelo contrário, é a Requerida que pretende obter para si um enriquecimento ilegítimo, como ela bem sabe, mediante meios que astuciosamente acarretou e ainda acarretam prejuízo à Requerente e, salvo melhor entendimento, susceptível de consubstanciar a pratica de ilícito criminal.
16. Não há, deste modo, qualquer falta ou vício de vontade quando é a própria Requerida que manifesta a vontade de celebrar o aludido negócio.
17. Mais, a inexistir essa manifestação de vontade ou a existir algum vício que impedisse a formação exacta e livre da vontade, a Requerida nunca aceitaria receber a factura que discrimina todos os artigos, objectos da negociação feita pela Requerente e Requerida, assim como, nunca permitiria, receber os artigos e nem tão pouco deixá-los permanecer na sua empresa, ou até mesmo já os ter vendido a terceiros.
18. E, mais, jamais emitiria um cheque pré-datado, com data de vencimento em 17 de Janeiro de 2008 como forma de pagamento dos serviços pela Requerente, alusiva à factura supra referida.
19. Deste modo, está a Requerida a agir de má fé ao servir-se de estratagemas astuciosos para se esquivar à sua responsabilidade de cumprir com a obrigação de pagar o preço da mercadoria, servindo-se de um mecanismo previsto na LULL, por forma a que, sem ofender o seu bom nome e reputação junto da banca, sempre conseguiu prejudicar a Requerente, inventando um vício, que bem sabe inexistir.
20. Aliás, o recurso ao cancelamento do cheque com tais fundamentos, verifica-se prática abundante no enquadramento financeiro da banca em Portugal, constituindo, mesmo, uma forma subtil e astuciosa de não pagar os débitos de que bem sabem ser devedores.
21. O vício de falta de vontade, prevista e expressa na lei, adequa-se a circunstâncias muito aquém das aqui relatadas.
22. De facto, tal instituto está previsto, apenas, para situações de vontade forçada e até mesmo coagida.
23. Ora, no caso, nada disto se verificou, ao invés, a estar alguém lesado, o mesmo está á vista e reputa-se na pessoa jurídica da Requerente.
24. Demais, o sócio gerente da Requerida, Sr. D………., fez saber junto da funcionaria da Requerente, F………., que nunca pagaria qualquer mercadoria e que iria invocar a falta de vício na formação da vontade, junto do E………., quantas vezes lhe fosse possível, por forma a lograr obter o premeditado.
25. Disse ainda aquele sócio gerente que tudo fez e sempre faria com o intuito de não pagar as aludidas mercadorias, pois não gostava do sócio gerente da Requerente, G………. e pretendia vingar-se dele, utilizando para o efeito esta artimanha.
26. Com esta conduta quis a Requerida locupletar-se, como efectivamente se locupletou, prejudicar como efectivamente prejudicou e, ainda, apropriar-se ilegitimamente de coisa que ela bem sabe não lhe pertencer, acrescendo, ainda, o facto de não se coibir de se servir de artifícios proibidos por lei.
27. Tendo por fundamentos tais factos, procedeu a Requerente à apresentação da queixa em causa, peticionando pela instauração dos respectivos procedimentos criminais contra a Requerida.
28. Mais requereu a Requerente, e uma vez que se vislumbra de especial interesse para a descoberta da verdade, que fossem ouvidas os sócios gerentes desta, G………. e H………. e ainda os funcionários daquela, F………. e I………., pois que dos factos bem conhecem e deles foram intervenientes directos.
29. Ora, uma vez notificada do despacho de arquivamento e tendo a Requerente verificado a ausência da produção de qualquer meio de prova por si requerido, pelo que a Requerente se sente injustiçada.

Efectuado o debate instrutório, o Sr. Juiz lavrou despacho de não pronúncia, que assim fundamentou:
“Com relevância para a decisão a proferir, importa ponderar da recolha de elementos probatórios, na fase processual de Instrução, já que não houve qualquer meio de prova produzido em sede de Inquérito, no sentido da existência de indícios da prática pela sociedade arguida dos factos pelos quais foi requerida a abertura de instrução pela sociedade assistente e da submissão daquela ou não a julgamento.
Conforme resulta do preceituado no art.º 286°, n.º 1 e 2, do Código de Processo Penal, na fase processual penal (facultativa) de instrução, visa-se a «(...) comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».
Com tal fase não se pretende um novo inquérito, mas a comprovação, por parte do Juiz de Instrução Criminal da decisão proferida pelo Ministério Público, de acusação ou de arquivamento, não obstante o Juiz de Instrução dever instruir autonomamente os factos em apreço, não se limitando ao material probatório apresentado pelos sujeitos processuais.
Estabelece o art.º 308°, n.º 1, do Código de Processo Penal da seguinte forma: «Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhido indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, pro fere despacho de não pronúncia».
Nesta sequência - e conforme o estabelecido pelo art.º 283.°, n.º 2, do Código de Processo Penal - a suficiência de indícios encontra-se dependente de «deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».
No seguimento do entendimento preconizado pelo Ac. RC de 26/06/1963, in JR., 3, 777, os indícios suficientes configurarão “vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes de que há crime e de que o arguido é responsável” - vide, ainda, os Acs. RC de 09/11/1983, CJ, V, 71 e RC de 31/03/1 993, CJ, 1993, II, 65.
Reportando-nos ao caso dos autos e procedendo a essa articulação, fazendo-se consignar que presidimos a todos os meios de prova produzidos, com os inerentes benefícios da imediação, criamos a seguinte convicção:
Sociedade assistente e sociedade arguida estabeleceram relações comerciais entre si, nos termos das quais, a sociedade arguida adquiriu mercadorias para as quais emitiu (no que aqui releva) um cheque pós-datado; após a emissão de tal cheque e previamente à sua apresentação a pagamento/depósito, por dificuldades de tesouraria, o legal representante da sociedade arguida declarou à entidade bancária respectiva, o extravio de tal cheque, atenta a sua falta de provisão (e eventual - e não totalmente relevante - discussão da continuação de fornecimento em termos acordados que foram cortados pela sociedade assistente), na sequência do que foi recusado o seu pagamento; a sociedade arguida, por via do seu legal representante passava por um período de dificuldades económicas de que a sociedade assistente tinha conhecimento desde o início do ano de 2007, ou seja previamente à emissão e entrega do cheque a que se alude nos autos, dando-lhe uma certa «facilitação de crédito» (inclusivamente com a legal representante da sociedade assistente a fazer-lhe um empréstimo!), na sequência mesmo de letras anteriores cujo pagamento a sociedade arguida não conseguia dar, tendo a sociedade assistente tido necessidade, a partir de dado momento, de recorrer à via judicial, para tentar obter pagamentos.
Esta a factualidade, sumariamente apurada, decorrente não só dos elementos documentais juntos aos autos, mas dos próprios depoimentos recolhidos, inclusive dos adiantados pela própria assistente.
Cremos inexistirem elementos que nos permitam concluir que aquando da emissão e entrega do cheque em apreço (e mesmo em qualquer momento subsequente), a sociedade arguida ou o seu legal representante tivessem já intenção de enganar a sociedade assistente; aliás, cotejando-se o depoimento de H………., legal representante da sociedade assistente, constata-se que é a mesma a afirmar que o legal representante da sociedade arguida estaria de boa-fé nesta história.
Ora, ponderando o supra exposto e conforme se pode ler na anotação do Comentário Conimbricense do Código Penal, II, 292, a burla constitui «um crime material ou de resultado, cuja consumação depende da verificação de um evento que se traduz na saída dos bens ou valores da esfera de disponibilidade fáctica do legítimo detentor dos mesmos ao tempo da infracção; (...) por outro lado, a burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios».
Simplesmente não basta o mero emprego de um meio enganoso, tornando-se necessário que ele «consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais».
Desta forma, «tratando-se de um crime material ou de resultado, a consumação da burla passa, pois, por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial».
Conforme se sustenta no Ac. RP de 06-06-2001, in www.dgsi.pt/jtrp, importa, ainda, que «O comportamento do agente seja convincente e hábil quanto baste para iludir o cuidado que, nesse domínio de actividade, é exigível e normalmente existente em cada um».
Ora, no caso dos autos, conforme referido, por referência a um qualquer engano astuciosamente provocado pela sociedade arguida, atendendo ao comportamento anterior do legal representante da mesma para com a assistente, com dificuldades de pagamento das mercadorias por si adquiridas àquela, emissão de cheques pós-datados, letras anteriores cujo pagamento a sociedade assistente não lograva, empréstimos efectuados pela legal representante da assistente ao legal representante da sociedade arguida, não vislumbramos a susceptibilidade objectiva e subjectiva de poder falar-se em engano astucioso; efectivamente, a sociedade assistente, neste quadro descrito, não poderia deixar de considerar a forte possibilidade e sobretudo forte probabilidade de tal comportamento - ou qualquer outro nesse sentido - da sociedade arguida vir a ocorrer, sendo certo que a circunstância de estarmos perante um cheque pós-datado sugere, igualmente, uma forte possibilidade e forte probabilidade (por dificuldades) de o montante nele inscrito não ser pago.
Salientaremos, neste domínio, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto supra citado, nos termos do qual, dúvidas não há de que o beneficiário directo/tomador do cheque tem a expectativa da obtenção de boa cobrança do montante inscrito no cheque; simplesmente, «como é da experiência de todos, ao aceitar o pagamento através de cheque, o vendedor também conhece bem o risco de que os cheques não venham a ser pagos»; não se vislumbra, assim, qualquer especial artifício enganoso em tal situação por parte seja de quem for.
Acresce que - e conforme já supra exposto - nada nos autos sugere que aquando da emissão do cheque em apreço a sociedade arguida ou o seu legal representante tivesse já a intenção de obviar ao pagamento do mesmo e pretender a quitação por parte da assistente, pretendendo declarar posteriormente o extravio; pelo contrário, ponderando o comportamento anterior da sociedade arguida ou do seu legal representante para com a sociedade assistente e até mesmo o comportamento da legal representante da assistente para com o legal representante da sociedade arguida (com a concessão de um empréstimo pessoal!), criamos a convicção de que o mesmo teria emitido os cheques pós datados por não ter fundos imediatos, na expectativa, no entanto, de, na data em que fossem apresentados a pagamento, os mesmos pudessem ser saldados.
Ponderando todo o exposto, é nosso entendimento que a factualidade dada como indiciada não é susceptível de permitir a qualificação respectiva como crime de burla, impondo-se, por conseguinte, concluir que se nos afigura manterem-se válidos os pressupostos de facto e de direito que estiveram subjacentes à prolação do despacho final de Inquérito de arquivamento, o que equivale a concluir no sentido de uma decisão de não pronúncia da sociedade arguida, por falta de indícios e pela formulação de um juízo de prognose de absolvição da mesma, se sujeita a julgamento, nos termos pretendidos pela assistente, restando, quando muito, uma mera questão cível a decidir”.

Ainda não convencida, a assistente interpôs recurso, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões:
1. Entre a sociedade assistente e a sociedade arguida foram estabelecidas relações comerciais, nos termos das quais, a sociedade arguida adquiriu daquela mercadorias para as quais emitiu, no que a estes autos releva, um cheque pós-datado, no valor de €6.149,06 (seis mil, cento e quarenta e nove euros e seis cêntimos).
2. Com efeito, no dia 7 de Outubro de 2007, os artigos foram levantados na sede da assistente pelo sócio gerente da arguida, o Sr. D………., e foi-lhe, também, entregue a respectiva factura.
3. Nesse mesmo dia e na sequência da transacção comercial, o sócio gerente da arguida voluntariamente preencheu, assinou e entregou à sociedade assistente, o já falado cheque pós-datado, do E………., com o n.º ………., para pagamento da aludida factura.
4. Na data acordada entre arguida e assistente, concretamente no dia 17 de Janeiro de 2008, esta apresentou o cheque a pagamento, tendo sido o mesmo devolvido a 22 de Janeiro de 2008, com a inscrição no verso de “falta ou vício de vontade”, no local do motivo da devolução.
5. Isto porque, a sociedade arguida, no dia 14 de Novembro, praticamente um mês posterior à emissão do cheque, deu ao Banco sacado ordem para revogar aquele mesmo cheque.
6. A arguida actuou de forma livre e consciente, com intenção de impedir o pagamento do cheque dos autos, sabendo que, em consequência da emissão da referida declaração, e ao ter previamente emitido o cheque, ia dar azo a que a assistente não recebesse o montante de, pelo menos, €6.149,04, o que aconteceu, ao que foi indiferente.
7. Pelo que, a recorrente não pode concordar com a douta sentença que não pronunciou a arguida como autora material do crime de burla, porquanto, vem sustentar-se, neste recurso, que à ora recorrente não foi feita justiça e, por isso, a reclama com a maior veemência, pois nenhuma prova, minimamente credível, foi produzida em sede de Debate Instrutório que razoavelmente possa sustentar outra decisão que não seja a pronúncia da sociedade arguida.
8. Vem a recorrente recorrer da douta sentença quer quanto à matéria de facto, quer quanto à matéria de direito, nos termos do art.º 428° do Código de Processo Penal.
9. A sentença recorrida está escassamente fundamentada, limitando-se praticamente a enunciar que o comportamento da sociedade arguida, ao comunicar falsamente ao banco sacado o extravio do cheque, apresentado a pagamento, e motivando com isso a recusa do seu pagamento, por parte do banco, não preenche os elementos constitutivos do crime de burla.
10. A verdade é que, o Tribunal a quo formou a convicção de não pronúncia pois, com o maior e devido respeito, considerou que, em momento algum, aquela arguida ou o seu legal representante, revelou quer aquando da emissão e entrega do cheque, neste autos em causa, quer em outro momento subsequente, ter já a intenção de enganar a sociedade assistente e portanto, obviar o pagamento do cheque.
11. Isto porque, do depoimento de H………., legal representante da sociedade assistente, resultou que entre esta e o legal representante da sociedade arguida existia uma relação de amizade, de confiança, pelo que, a esta cabia prever “a forte possibilidade e sobretudo forte probabilidade de tal comportamento - ou qualquer outro nesse sentido - da sociedade arguida vir a ocorrer sendo certo que a circunstância de estarmos perante um cheque pós-datado sugere, igualmente, uma forte possibilidade e forte probabilidade (por dificuldades) de o montante nele inscrito não ser pago porquanto, nesta história toda, nunca a arguida se serviu de astúcia ou qualquer outro meio engenhoso para obter para si um beneficio ilegítimo.
12. Ora, se assim é, questiona-se, então, o que significará, emitir voluntária e conscientemente um cheque pós-datado e antes de atingida a data acordada para pagamento, revogar aquele mesmo cheque, alegando vício ou falta de vontade, quando o mesmo sacado já beneficiou das mercadorias, nunca tendo comunicado o quer que fosse à assistente, sabendo que tal declaração não corresponde à verdade.
13. Com o devido respeito pela douta sentença, e que é muito, não pode a ora recorrente conformar-se com tal entendimento. De facto, nos dias de hoje e face à conjectura económico-financeira que atravessamos, se os empresários não confiam nos cheques como meio de pagamento, perguntar-se-á, então, em que meio de pagamento poderão confiar? Em numerário???
14. Em qualquer relação negocial, principalmente numa comercial como a presente, é certo que existem diversas formas de pagamento, sendo certo que todas elas devem gerar no vendedor uma expectativa de recebimento do preço acordado.
15. Com o devido respeito pela douta sentença, não pode a recorrente concordar com o raciocínio de que um cheque pós-datado contrariamente às demais formas de pagamento não possa gerar no vendedor a confiança e credibilidade do cheque como meio eficaz de pagamento.
16. Por outro lado, mal andou o Tribunal a quo ao desconsiderar o depoimento do legal representante da arguida, o Sr. D………., no qual resulta inequivocamente a má-fé daquele, já que, o mesmo admite que é devedor da recorrente, que entregou um JIPE para abater a dívida, dívida esta que excedia, em muito, o valor em dívida no já falado cheque, tudo, de resto, aceite e confessado pela recorrida, na pessoa do seu legal representante.
17. Mais, a recorrida confessa, ainda, que deu ordem para revogar o cheque após ter entregue o JIPE, tendo perfeito conhecimento que o valor daquele ficava muito aquém do remanescente em dívida.
19. Ora, se isto é assim, o que efectivamente é, do comportamento da recorrida não se pode aferir outra coisa que não um aproveitamento especial da relação de confiança e de amizade que existia entre si e a legal representante da recorrente para, assim, beneficiar de mais uma facilidade de crédito, isto é, a recorrida serviu-se dessa relação para persuadir a recorrente e enganá-la, como efectivamente, enganou.
19. A verdade é que, em momento algum, quer durante a emissão do cheque e a entrega do mesmo, quer aquando da revogação do mesmo, agiu aquela recorrida de boa-fé, pelo contrário, esta admite e confessa no seu depoimento que aquando da emissão do cheque, que nestes autos releva, não atravessava dificuldades económicas, ou melhor, “nessa altura acha que não”.
20. Pelo que, a convicção do Tribunal a quo de que, nos autos nada sugere que aquando da emissão do cheque, a sociedade arguida ou o seu legal representante tivessem já a intenção de obviar ao pagamento do mesmo e, ainda, que não vislumbra a susceptibilidade objectiva e subjectiva de poder falar-se em engano astucioso é, de todo, errónea, aliás, a própria recorrida, na pessoa do seu legal representante, admite ter revogado o cheque quando tinha perfeito conhecimento que a dívida existia, não estava paga, bem pelo contrário.
21. Com efeito, ao ter dado, em 14 de Novembro de 2007, ordem ao Banco sacado para revogar o já falado cheque, com fundamento de vício ou falta de vontade, a recorrida bem sabia que a sua conduta era ilícita e, ainda, injustiçada, pois, se o problema desta era falta de liquidez, existiam como, efectivamente, existem outros meios para solucionar o problema.
22. Ora, o cheque em discussão nestes autos é um cheque pós-datado, por conseguinte, o sacado prevê que na data do vencimento daquele terá condições de liquidez, pelo que não se compreende, a comunicação da recorrida ao banco, exactamente, um mês depois ao preenchimento e emissão do cheque.
23. Demais, não pode vir agora a sociedade arguida alegar que na altura passava por dificuldades económicas, quando do seu depoimento se retira o contrário, nem tão pouco, alegar que revogou o cheque porque a dívida para com a recorrente estava já totalmente liquidada quando, também, do seu depoimento se retira o contrário.
24. Posto isto, se o problema da recorrida era falta de liquidez, não teria sido mais razoável e prudente por banda daquela, ter deixado o cheque ser devolvido por falta de provisão, pois, se assim fosse, não estaríamos, agora, a discutir o tipo legal de crime, porquanto, a devolução de cheque pós-datado por falta de provisão, não é entendido pela nossa jurisprudência como crime.
25. Do exposto, não restam pois dúvidas, que a sociedade recorrida se serviu de um meio astucioso para esquivar às responsabilidades contratuais assumidas com a sociedade assistente, causando nesta um efectivo prejuízo patrimonial.
26. Resulta do art. 217°, nº 1 do C.P. que o tipo legal de burla tipifica aquelas situações em que o agente, com a intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo, induz outra pessoa em erro, fazendo com que esta, por esse motivo, pratique actos que causem a si mesma, prejuízos de carácter patrimonial.
27. Razão por que, tanto do enquadramento sistemático, como da sua concreta configuração legal, depreende-se, de forma evidente, que a burla é um crime contra o património.
28. Sendo isto assim, como o é, o bem jurídico em causa no crime de burla é a lesão ao património, razão por que a burla constitui um crime de dano, que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção.
29. Por outro lado, a burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência da utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro, que por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios (vide em Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pg. 293).
30. Ora, como resulta do exposto, pela sociedade recorrida, mais concretamente, na pessoa do seu legal representante foi empregue um meio enganoso - aproveitamento das relações de confiança e de amizade que existia entre legal representante da recorrida e recorrente, em que aquele, aproveitando-se da boa-fé desta, emitiu um cheque pós-datado, recusando posteriormente o pagamento daquele por motivo de falsa comunicação de extravio.
31. Foi exactamente a confiança por banda da recorrente na relação de amizade e de confiança, pois nunca antes a recorrida tinha faltado ao cumprimento das obrigações que contratualmente assumia, que a recorrente aceitou a emissão daquele cheque pós-datado, confiou naquela arguida e, consequentemente, naquele cheque como meio eficaz de pagamento.
32. Ora, não restam, pois, dúvidas que o meio engenhoso daquela arguida foi persuadir a recorrente, colocá-la em estado de erro, pois, só assim, isto é, só acreditando nas promessas de pagamento rápido das dividas, nos vários anos de relações contratuais que se estabeleceram, confiando, até, na relação de amizade que então se criou, esta recorrente, ao longo dos tempos, e mais concretamente, nesta relação comercial, foi facilitando o pagamento, até ao dia em que a recorrida abusou no seu direito, empregando falsamente a menção de extravio de cheque para, obter para si uma vantagem patrimonial lícita, porquanto, está, assim, explicitamente o modus operandi da burla.
33. Analisado profusamente os pressupostos legais do citado tipos de crime e atendendo à prova produzida em se de instrução, impunha-se ao Tribunal a quo uma decisão oposta à que resulta da decisão instrutória, ora recorrida, considerando, assim, que a recorrente foi vitima de um crime de burla, devendo, por isso, a final, pronunciar a sociedade arguida.

Respondeu o M.º P.º, concluindo:
1. Não merece reparo o despacho de não pronúncia posto em crise, uma vez que não avultam indiciados quaisquer elementos objectivos ou subjectivos do crime de burla, tal como ele surge configurado nos art. 2170 e 218° do C. Penal.
2. Tendo em conta a prova existente (documental e declarações produzidas em sede de instrução), não avulta que o legal representante da sociedade arguida ou alguém a seu pedido ou sob sua orientação, haja assumido qualquer comportamento enganoso, direccionado a determinar a assistente à prática dos actos que lhe causaram prejuízo patrimonial.
3. Nenhum comportamento, contemporâneo da celebração do contrato de compra e venda, susceptível de integrar o tipo legal do crime de burla, terá sido protagonizado por quem quer que seja.
4. A factualidade indiciada reveste contornos cíveis e não criminais.

Nesta Relação, o Ex.mo PGA emite douto parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Colhidos os Vistos dos Ex.mos Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

Conquanto a Ilustre Recorrente suscite no recurso questões como a da falta de fundamentação do despacho recorrido (que está devidamente fundamentado em termos de facto e de direito, com cuja fundamentação se concordará ou discordará, mas não pode alegar-se falta de fundamentação), e a de alteração da matéria de facto provada (não se dizendo concretamente o que se pretende provado), o certo é que se trata de questões não essenciais, que em nada influem na decisão do recurso, cujo destino terá de ser sempre a da improcedência face à forma como a assistente requereu a abertura da instrução, como veremos.
Para a decisão do recurso, relevante é o facto de a denunciada ter entregue à assistente um cheque pré-datado e, antes da data do vencimento, ter dado ordens de não pagamento ao banco por falta e vícios de vontade, como se confessa no requerimento de abertura de instrução
Considera a Recorrente que tal ordem configura um estratagema e, por isso, cometeu a arguida um crime de burla.
Importa desde já adiantar duas notas, que são importantíssimas:
● A primeira é que a ordem de não pagamento foi dada ao banco sacado, como é óbvio, pelo sócio-gerente da arguida, não tendo esta capacidade para, por si, dar a ordem. Por isso, o requerimento de abertura de instrução, que configura verdadeira acusação, deveria ter sido dirigido contra o sócio-gerente que deu a ordem. Certo que a arguida podia igualmente ser acusada, existindo responsabilidade cumulativa[1]. Mas, para isso, teria de se alegar que o crime de burla foi cometido em seu próprio nome e interesse [art.º 11º, n.º 2, al. a), do C. Penal]. Inexistindo, no requerimento de abertura da instrução, factos que levem à conclusão de que a ordem de não pagamento foi dada em nome da arguida e no seu interesse, jamais esta podia ser pronunciada.
● A segunda, no sentido de que se tal ordem configurasse um estratagema, o mesmo teria como destinatário o banco sacado e não a assistente. Ora, para efeitos de consumação do crime de burla relevante seria o facto de a assistente ter entregue a mercadoria à arguida porque esta lhe entregou um cheque, e que esse cheque a induziu em erro, naquele momento e não a posterior. Isto é, e como infra melhor veremos, para a consumação do crime é essencial que a entrega do bem patrimonial tenha na sua base um engano provocado astuciosamente pela arguida, seja, o sujeito activo do delito leva o sujeito passivo a entregar-lhe um bem por meio de um engano que provocou. Ora, confessa a assistente que entregou a mercadoria à arguida sem que esta sequer lhe tenha entregue o cheque. E que este lhe foi posteriormente enviado para ser descontado passados 90 dias. Antes da data dele constante, o gerente da arguida deu ordem de não pagamento ao banco invocando falta ou vício de vontade, facto esse que é falso. Não tendo a mercadoria, como confessa a assistente, sido entrega por erro ou engano provocado pela arguida, jamais o crime de burla podia verificar-se.

Acresce:
A questão suscitada nos autos há muito vem sendo colocada e decidida nos tribunais, nem sempre de forma concordante.
O STJ, por acórdão de 25 de Setembro de 2008, publicado no DR, I Série, de 27 de Outubro de 2008, assim uniformizou jurisprudência divergente: “Verificados que sejam todos os restantes elementos constitutivos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito, integra o crime de emissão de cheque sem provisão previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto -Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, a conduta do sacador de um cheque que, após a emissão deste, falsamente comunica ao banco sacado que o cheque se extraviou, assim o determinando a recusar o seu pagamento com esse fundamento”.
O STJ fundamentou assim:
“1 - Com a publicação do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, que procurou disciplinar de uma forma sistemática a matéria penal relativa aos crimes de cheque sem provisão, pondo cobro, como se diz na preâmbulo, ao «persistente acréscimo» desse tipo de crime, ao clima de generalizada desconfiança em relação ao cheque como meio de pagamento e à «excessiva absorção de polícias e tribunais» na investigação e julgamento desses casos, o tipo legal de crime de emissão de cheque sem provisão passou a incluir na sua previsão típica o elemento prejuízo patrimonial (artigo 11º, n.º 1).
2 - Para ser crime, o não pagamento do cheque terá de causar prejuízo ao beneficiário ou portador - um elemento que terá de ser apurado autonomamente, «integrando o conceito de ‘prejuízo patrimonial’ o não recebimento para si ou para terceiro, pelo portador do cheque, quando da sua apresentação a pagamento, do montante devido correspondente à obrigação subjacente relativamente à qual o cheque constituía meio de pagamento» (Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2007, de 30 de Novembro de 2006, in Diário da República, 1.ª série, n.º 32, de 14 de Fevereiro de 2007).
3 - Devesse ou não já, na fase anterior a esse diploma legal, o crime de emissão de cheque sem provisão ser considerado como um crime de resultado ou de dano, o certo é que a doutrina e a jurisprudência dominantes viam nele, fundamentalmente, um crime de perigo abstracto, protegendo o bem jurídico da confiança e da credibilidade do cheque como meio de pagamento (ou seja, um interesse de natureza supra -individual) e que se consumava com a simples emissão e entrega do cheque, sabendo o sacador que não tinha no banco sacado os necessários fundos para o seu pagamento.
4 - Daí a querela doutrinal e jurisprudencial sobre a natureza do crime e a continuidade dos seus elementos típicos, a partir do mencionado decreto-lei - querela essa que culminou no Assento n.º 6/93, que, embora considerando que a protecção da confiança e credibilidade do título continuava a ser o bem jurídico predominantemente tutelado com a incriminação, tinha o prejuízo material como conatural ao não pagamento do cheque, sendo este prejuízo uma condição objectiva de punibilidade e, como tal, devendo considerar -se, na esteira de certa doutrina, pertencente ao tipo legal de crime.
5 - Entre as alterações introduzidas pelo mencionado diploma legal, conta-se a introdução de várias modalidades de comportamento típico (as previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 11.º), que não se reconduziam à clássica falta de provisão, consistindo uma delas em proibir à instituição sacada o pagamento de cheque emitido e entregue.
6 - Para além das várias modalidades da conduta, também os agentes do crime passaram a ser pessoas diferentes do sacador, estendendo-se essa possibilidade ao endossante do cheque que conheça a falta de provisão, causando com isso um prejuízo patrimonial.
7 - As penas cominadas para o crime de emissão de cheque sem provisão passaram a ser as do crime de burla, acentuando-se por essa via, e pelas modalidades da conduta, a analogia com este tipo de crime, tendo ambos como elemento típico fundamental o prejuízo patrimonial da vítima e a sanção penal escalonada de acordo com a gravidade do prejuízo causado.
8 - A consumação do crime de emissão de cheque sem provisão também deixou de poder reportar -se ao momento da emissão e entrega do cheque.
9 - Com o Decreto-Lei n.º 316/97, que alterou o Decreto-Lei n.º 454/91, não só se consolidou como se aprofundou a natureza patrimonial do crime de emissão de cheque sem provisão, tutelado penalmente enquanto meio de pagamento imediato de uma obrigação actual subjacente, distinta da obrigação cartular e cujo não pagamento tem de causar prejuízo em qualquer das modalidades da conduta típica. Este prejuízo não pode ser o prejuízo identificado com o simples não pagamento do cheque, isto é, com a frustração do direito de crédito baseado na relação cambiária, mas tem de ligar-se ao incumprimento de uma obrigação subjacente, actual e exigível. Por isso mesmo, os cheques pós-datados deixaram de merecer tutela penal.
10 - Elevou-se o montante a partir do qual a emissão de cheque constitui crime punível.
11 - O bem jurídico protegido é fundamentalmente o património do ofendido, como claramente se afirmou no preâmbulo do referido diploma legal.
12 - Nas modalidades da conduta típica, para além de a irregularidade do saque, previram -se outras modalidades não constantes do Decreto-Lei n.º 454/91, como sejam o encerramento da conta sacada e a alteração por qualquer modo das condições da sua movimentação, assim se impedindo o pagamento do cheque.
13 - O crime passou a ser sempre semipúblico, admitindo, assim, desistência de queixa, nos termos do artigo 116.º, n.º 2, do C.P., seja qual for o valor do cheque. Além disso, a responsabilidade criminal extingue-se quando verificada a falta de pagamento e notificado o sacador obrigatoriamente pela instituição de crédito, a situação seja regularizada, «mediante a consignação em depósito ou pagamento directamente ao portador do cheque, comprovado perante a instituição de crédito sacada, do valor do cheque e dos juros moratórios calculados à taxa legal, fixada nos termos do Código Civil, acrescida de 10 pontos percentuais» (artigos 1.º-A e 11.º, n.º 6).
14 - As penas continuam a ser equiparadas às do crime de burla, mas agora com uma limitação da pena a 5 anos de prisão ou multa até 600 dias, correspondente ao cheque de valor elevado, tendo desaparecido a agravante do valor consideravelmente elevado e as restantes agravantes previstas no n.º 2 do artigo 218.º do CP para o crime de burla qualificada especialmente qualificada.
15 - De tudo resulta que a caracterização do crime de emissão de cheque sem provisão se afasta cada vez mais da disciplina da relação cartular, passando mesmo por cima de certas características fundamentais desta, nomeadamente a característica da abstracção, e aproximando –se mais dos crimes de natureza patrimonial, especialmente o crime de burla.
16 - Uma das modalidades da conduta prevista como típica do crime de emissão de cheque sem provisão consiste em proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque [artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 454/91, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 316/97].
17 - Essa questão prende-se com a revogação do cheque, que é uma proibição de pagamento. Trata-se de uma matéria doutrinária e jurisprudencialmente muito controvertida, conexionando-se com o sentido a atribuir ao artigo 32.º da LURC e com a vigência ou não do artigo 14.º - 2.ª parte do Decreto n.º 13.004.
18 - A doutrina maioritária pende para a revogação pela LURC deste artigo 14.º, n.º 2, e a corrente mais liberal, com tradições na doutrina portuguesa, interpreta aquele artigo 32.º como querendo apenas significar que a revogação do cheque, durante o prazo de apresentação a pagamento, é ineficaz, continuando o cheque a valer como tal e conservando o portador o seu direito de acção contra todos os responsáveis cambiários. Não que o banco sacado não possa acatar a ordem de proibição de pagamento emanada do seu cliente, de quem é mandatário e executante das suas instruções, configurando-se o contrato ou convenção de cheque como um contrato de mandato para prestação de serviços, ao qual é totalmente estranho o beneficiário ou portador do cheque. Além disso, o banco não é responsável cambiário, não podendo aceitar nem avalizar o cheque.
19 - Acresce que o terceiro beneficiário ou portador não teria direitos sobre a provisão, que não foram regulados pela LURC.
20 - Numa outra versão mais restrita, o mandato contido no cheque pode ser revogado desde que haja justa causa, no âmbito do artigo 1170.º, n.º 2, do CC, precisamente porque o contrato ou convenção de cheque reveste a forma de um mandato conferido também no interesse de terceiro.
21 - Nesse contexto, o próprio Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária (SICOI), constante da parte VII do anexo à Instrução n.º 125/96, do Banco de Portugal, admite a revogação com justa causa, indicando como constituindo justa causa o furto, o roubo, o extravio, a coacção moral, a incapacidade acidental e qualquer situação em que se manifeste falta ou vício na formação da vontade.
22 - Ao menos nesses casos conceber-se-ia a revogação do cheque, ou seja, a proibição do seu pagamento.
23 - Para quem, na linha das discussões travadas no âmbito da Conferência de Genebra, entenda que a questão do furto, roubo ou perda do cheque se não enquadra na figura da revogação, mas na da oposição, que não ficou regulamentada na LURC, deixando -se essa disciplina às legislações nacionais, nos termos do 2.º parágrafo do II Anexo à Convenção Estabelecendo uma Lei Uniforme em Matéria de Cheques, de 19 de Março de 1931, essa oposição tem também o sentido de obstar ao pagamento, ainda que eventualmente de forma temporária ou suspensiva, por meio da invocação de uma justa causa, sujeitando-se o invocante à prova do facto e a eventuais sanções penais no caso de falsidade. O próprio iniciador dessa discussão na Conferência - Sichermann - definiu a oposição como «[...] um simples escrito particular, um aviso ao portador, seja ou não o sacador, alertando o sacado para a perda, vol, etc., e proibindo-o de pagar ao terceiro portador. [...] O aviso tem por efeito imediato impedir, obstar ao pagamento. Deste efeito principal da oposição resulta que esta é, no fundo, idêntica à revogação, ou, pelo menos, irmã gémea [...]» (citado no Assento n.º 4/2000).
24 - Falando a lei penal do cheque [artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 454/91, com as alterações introduzidas pelo Decreto -Lei n.º 316/97] em proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque, aí se inclui qualquer conduta do agente que vise revogar ou obstar ao pagamento do título, invocando uma causa aparentemente idónea a produzir esse efeito, nomeadamente extravio do cheque, servindo-se normalmente de aviso ou escrito endereçado ao banco sacado, cujo conteúdo se vem a revelar falso.
25 - Ao banco sacado não compete averiguar da veracidade do motivo invocado, sendo certo que a lei penal do cheque tipifica como ilícito criminal o comportamento do agente que falsamente invoca uma dessas causas, como extravio, furto ou roubo, com o intuito de proibir o seu pagamento e causando com esse facto prejuízo, que tem de estar conexionado com uma relação jurídica subjacente.
26 - É certo que o artigo 8.º do diploma legal invocado se refere à recusa justificada da instituição sacada do pagamento do cheque, por motivo diferente da falta ou insuficiência da provisão, nomeadamente por «existência de sérios indícios de falsificação, furto, abuso de confiança ou apropriação ilegítima do cheque». Todavia, tal norma inscreve-se no âmbito das situações que se configuram como obrigação da instituição sacada de pagar o cheque, ainda que este não tenha provisão ou tenha provisão insuficiente, não sendo essas situações transponíveis para o domínio do ilícito criminal tipificado no artigo 11.º
27 - Neste último âmbito, só o autor do ilícito é responsável, incorrendo nas sanções penais pertinentes, ficando a cargo da autoridade judiciária averiguar a existência do facto ilícito, por meio do processo adequado.
28 - O que pode suceder é que algum dos responsáveis do banco sacado, agindo em nome dele ou em sua representação, tenham responsabilidade na prática dos factos, podendo estes ser-lhes imputados a título de autoria ou de qualquer forma de comparticipação. E, nesse caso, o banco poderá também ser responsável, a título de responsabilidade civil extracontratual, pelos danos causados”.

A decisão que resolve o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativamente à jurisprudência fixada naquela decisão – n.º 3 do art.º 445º do CPP.
In casu, não só não há divergência como, já antes da sua prolação (Ac. tirado no processo 5568/08) decidimos no mesmo sentido.
Há, por isso, que acatar a referida jurisprudência.
Considerando-se, como se considerou no Acórdão uniformizador, que a conduta do sacador de um cheque que, após a emissão deste, falsamente comunica ao banco sacado que o cheque se extraviou, assim o determinando a recusar o seu pagamento com esse fundamento, integra o crime de emissão de cheque sem provisão previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, se verificados todos os restantes elementos constitutivos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito, naturalmente que não pode ter-se por verificado o crime de burla, que estaria consumido por aquele, ainda que se verificassem os elementos do tipo, e não se verificam.
Com efeito, o eventual crime de burla estaria em concurso aparente com o de emissão de cheque sem provisão. Ora, atendendo às regras da especialidade, apenas poderia prevalecer o crime de emissão de cheque sem provisão.
Como este não está verificado o crime de emissão de cheque sem provisão, por se tratar de cheque pré-datado, como a assistente reconhece, e porque o crime de burla está consumido, não faz sentido dizer-se que há crime de burla quando falta um dos requisitos do crime de emissão de cheque sem provisão.
Acrescentaremos apenas que os crimes de burla e de falsificação[2], quando cometidos através de cheque, estão numa relação de especialidade com este, como, de resto, foi intenção do legislador, colhida no exórdio do Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro pelo que, havendo concurso aparente de normas, apenas uma delas subsiste sob pena de, assim não acontecendo, se violar o princípio ne bis in idem.
O concurso aparente assenta no pressuposto de que várias leis penais concorrem só em aparência porquanto uma delas há-de excluir as outras.[3] E essa exclusão ocorre porque entre as normas em apreço há uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consumpção.
Ainda segundo o mesmo autor – Jescheck -, a relação de especialidade existe quando um preceito penal reúne todos os elementos de outro e só se diferencia dele pelo facto de que, pelo menos contém um elemento adicional que permite ver o facto sob um ponto de vista específico. Na especialidade concorre, pois, a relação lógica de dependência própria da subordinação, pois toda a acção que configure o tipo do delito especial também configura, necessariamente, ao mesmo tempo o tipo geral, embora o contrário não seja verdadeiro. Em Direito Penal a consequência é a lei especial derroga a lei geral (realce nosso)[4].
Ou, como diz o Prof. Eduardo Correia:[5] A relação de especialidade “Traduz-se na relação que se estabelece entre dois ou mais preceitos, sempre que na «lex specialis» se contêm já todos os elementos duma «lex generalis», isto é, da aquilo que chamamos um tipo fundamental de crime, e, ainda certos elementos especializadores. Esta relação terá como efeito, evidentemente, a exclusão da lei geral pela aplicação da lei especial: «lex specialis derogat legi generali» - e isto, contra o que pensava HONIG, independentemente da referência de ambos os preceitos a uma só conduta. Ponto será só que a realização de um tipo especial de crime esgote a valoração jurídica da situação; sob pena, de outra forma, de se violar o princípio me bis in idem»” (sublinhado nosso).
Havendo uma relação de especialidade entre o crime de emissão de cheque sem provisão, que contempla, como se referiu, a situação alegada pela Assistente de proibição à instituição sacada do pagamento, invocando um facto (que até será falso) de falta ou vício de vontade na emissão, e o crimes de burla, por força do princípio da especialidade, subsiste apenas o crime de emissão de cheque sem provisão. O que tem como efeito, nas acertadas palavras do Prof. Eduardo Correia, a exclusão da lei geral pela aplicação da lei especial.
Porque assim, sendo os factos subsumíveis ao crime de emissão de cheque sem provisão, não pode indagar-se se são subsumíveis ao crime de burla e de falsificação.
O que sempre levaria à não pronúncia pois que, como se disse, falta um dos elementos objectivos do tipo de cheque sem provisão já que este foi emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador.

AINDA:
O art.º 217º, n.º 1 pune com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de factos que lhe causem ou causem a outra pessoa prejuízo patrimonial.
O art.º 218º agrava a pena face a determinadas circunstâncias modificativas, que, naturalmente, são taxativas, e entre as quais se conta o valor da coisa.
O crime de Burla é um “crime comum, de dano, contra o património, material por acção ou de resultado, de forma vinculada, com participação da vítima, doloso e de resultado cortado ou parcial” - Cfr. José António Barreiros, Crime Contra o Património, Universidade Lusíada, p.150.
É um crime que se manifesta de forma altamente complexa, tendo algo do furto, porque com ele se obtém coisa alheia com defraudação da fazenda alheia; algo do abuso de confiança, porque o agente obtém a entrega da coisa por vontade do seu dono; algo de extorsão, porque o acto de entrega não é senão aparentemente voluntário; algo da falsidade, porque há nele uma alteração da verdade. Contudo, não se confunde nem com o furto, nem com o abuso de confiança, nem com a extorsão nem com a falsidade - Cfr. Carrara, vol. IV, p. 507.
Trata-se de um crime que se manifesta como uma forma evoluída de captação do alheio, - nomeadamente se o compararmos com os demais crimes contra o património - cuja aptidão exigida para a sua prática não é característica comum à generalidade das pessoas.
O bem jurídico protegido é, como refere o Prof. Costa Andrade em parecer não publicado (processo 1081/03-1ª Secção do TRP), em primeira linha, o património, se bem que envolvido, mediatamente, quer pelas valorações expressas no princípio da confiança e da boa fé, quer, em menor grau, pelo juízo de valor implícito no direito à livre e correctamente informada capacidade de disposição patrimonial.
Vem a doutrina a jurisprudência, de forma unânime, segundo cremos, entendendo que são requisitos do tipo:
1. A intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo;
2. Com tal objectivo, astuciosamente, induza em erro ou engano o ofendido sobre os factos;
3. Assim determinando o ofendido à prática de factos que causem a este ou a outra pessoa, prejuízos patrimoniais.
Tratando-se, como se trata, de um tipo complexo, exige-se um triplo nexo causal, sendo, pois, necessário, que da astúcia resulte o erro ou engano; que do erro ou engano resulte a prática de acto(s) pela vítima; que da prática de acto(s) resulte prejuízo patrimonial.[6]
A astúcia é um elemento objectivo do tipo.
Na verdade, não é suficiente que a atitude psicológica do agente seja astuciosa; é ainda necessário que a conduta exterior do agente se mostre astuciosa, por forma a preencher-se o tipo.
Por astúcia entende-se a manha, habilidade para o mal, a sagacidade, a habilidade para enganar, a subtileza para defraudar, o ardil, a intrujice, o estratagema, o embuste, a maquinação.[7]
É, por isso, um fingimento, uma desconformidade entre a aparência e a realidade, entre o que é e o que não é.
Ela há-de revelar-se causa do engano ou do erro, por forma a levar a vítima, restringindo-lhe a liberdade, e as capacidade de auto determinação, à prática de actos que lhe provocarão lesão patrimonial. Daí a participação da própria vítima.
Ora, nem a Assistente alega, sequer, os elementos objectivos do tipo, maxime a astúcia, já que a entrega do cheque, não pode considerar-se, em circunstância alguma, um ardil, uma intrujice, um estratagema, um embuste, ou uma maquinação.
Como não alega o aludido triplo nexo de causalidade.
Por isso, mesmo que não se considerassem os tipos em relação de especialidade – e consideram-se, reafirmando a posição tomada – também não poderia a arguida ser pronunciada pelo crime de burla porque do Requerimento de Abertura de Instrução não constam os elementos do tipo.

A questão suscitada nos autos terá de ser resolvida nos meios cíveis até porque o Direito Penal não tutela incumprimentos de contratos civis porque a tal se opõe o princípio da intervenção mínima consagrado no n.º 2 do art.º 18º da CRP.

DECISÃO:
Termos em que, na improcedência do recurso, se mantém e confirma a douta decisão recorrida.
Fixa-se a tributação em 8 Ucs.

Porto, 20-05-2009
Francisco Marcolino de Jesus
Élia Costa de Mendonça São Pedro

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[1] Neste sentido, MARQUES DA SILVA, Germano, Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus Administradores e Representantes, Editorial Verbo, 2009, pp 196 e segs.
[2] Quanto a este tipo de crime, e sua relação com o crime de cheque sem provisão, ver o Ac Uniformizador 4/2000, publicado na I série A do DR de 19/1/2000.
[3] cfr. Jescheck in “Tratado de Derecho Penal”, vol. II, pg. 1033.
[4] No mesmo sentido, cfr. MARQUES DA SILVA, Germano, Direito Penal Português, Parte Geral, Editorial Verbo 2001, I vol., pp [325-341]
[5] Direito Criminal, II vol.
[6] Cfr. Fernanda Palma e Rui Pereira, “O Crime de Burla no Código Penal de 1982 e 95”, Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, XXXV, V.2, p. 323 e segs.
[7] Cfr. José António Barreiros, “Crime contra o Património”, p. 157.