Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
294/22.0T9VCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: PROCESSO CONTRAORDENACIONAL
QUESTÕES NOVAS EM SEDE DE RECURSO
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
ESTADO DE EMERGÊNCIA
NÃO RETROATIVIDADE DA LEI PENAL E CONTRAORDENACIONAL
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS
Nº do Documento: RP20220907294/22.0T9VCD.P1
Data do Acordão: 09/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Em processo contraordenacional, no recurso da decisão proferida em primeira instância, o recorrente pode suscitar questões que não tenha alegado na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa.
II - As normas de prescrição reportam-se ao regime substantivo do facto criminoso ou contraordenacional, não podendo, por força do princípio da legalidade, ser aplicadas de forma retroativa aos crimes/contraordenações, salvo se tal regime se mostrar concretamente mais favorável ao arguido.
III - A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, ainda que estabeleçam medidas excecionais na situação de estado de emergência, não podem forçar a suspensão dos prazos prescricionais nos processos que têm por objeto factos praticados em momento anterior a cada um desses diplomas.
IV - No domínio da sucessão de leis penais no tempo, quer a lei nova se trate de lei temporária ou não, a sua aplicação não pode afastar-se do princípio da não retroatividade da lei penal e contraordenacional, corolário do princípio da legalidade, nem sobrepor-se à aplicação do regime penal mais favorável ao arguido.
V - A aplicação da causa de suspensão da contagem do prazo de prescrição por força da situação de emergência sanitária a processos em curso colide com o princípio da legalidade criminal - na vertente da proibição de aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido, princípio consagrado do artigo 29.º, n.º 4, da Constituição -, não se vendo razão para o afastar no domínio contraordenacional.
VI - Contudo, a verificada suspensão dos atos e prazos nos processos criminais e contraordenacionais, imposta pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e posteriormente, pela Lei nº 4-B/2021, configura uma causa suspensiva da prescrição, por falta de autorização legal para o processo continuar, nos termos dos art. 27º A, al. a), do RGCO, e art.120º, nº1, al. a), do C. Penal.
VII - A introdução na sentença, ex novo, do facto (não constante da decisão administrativa) relativo ao elemento subjetivo de uma contraordenação constitui uma inadmissível alteração substancial (não consentida nos termos e para efeitos do art.359º, do Código de Processo Penal), que torna nula tal sentença.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 294/22.0T9VCD.P1

Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1. RELATÓRIO
No Processo (contraordenação) nº294/22.0T9VCD do Juízo Local Criminal ... - Juiz 3, foi em 14.04.2022 proferida sentença, e na mesma data depositada, na qual – ao que aqui interessa - se decidiu julgar totalmente improcedente o recurso de impugnação judicial interposto pela arguida “R..., Lda.” e, em conformidade, manter a decisão administrativa que a condenou no pagamento de uma coima no valor de €1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros), bem como no pagamento de custas no valor de €52,50 (cinquenta e dois euros e cinquenta cêntimos), pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelo artigo 28º nº 2 do Decreto-Lei nº 257/2007, de 16 de Julho.
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Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a arguida, para este Tribunal da Relação do Porto, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:
CONCLUSÕES
1. Nos factos dados como provados nenhuma menção é feita à realização das diligências probatórias, designadamente a pesquisa de veículos e respectiva data.
2. Pelo que esta o Tribunal impedido de concluir que a prazo de prescrição foi interrompido 6/04/2020.
3. Dispõe o nº 2 do artigo 374º do CPP que a Sentença tem que mencionar os factos dados como provados, pelo que o Tribunal a quo violou esse requisito não incluir tal factualidade nos factos provados.
4. Tal violação acarreta a nulidade da sentença conforme prescreve a alínea a) do nº 1 do artigo 379º do CPP.
5. A decisão administrativa não faz qualquer referência à data supostas diligências probatórias, pelo que em momento algum poderia o Tribunal concluir que as mesmas foram realizadas a 06/04/2020 ou mesmo sequer em qualquer outra data.
6. Não poderia o Tribunal a quo ter-se socorrido de uma presunção judicial para apurar a data da realização das supostas diligências probatórias.
7. A ser feita, essa presunção teria de ser sólida, bem fundamentada, não dando margem para que ocorra qualquer erro judiciário, o que não acontece no caso concreto.
8. Ou seja, tinha de existir uma prova bem fundamentada de determinado facto para podermos concluir pela existência do outro, devendo existir uma conexão racional forte entre os dois, o que não acontece no caso concreto.
9. A pesquisa de uma listagem de veículos, por iniciativa da autoridade administrativa, que se limita a confirmar o conteúdo do auto de notícia (e até já vimos que isso nem aconteceu) quando este não foi sequer questionado pela defesa, constitui um expediente abusivo da autoridade administrativa com vista a obstar ao decurso do prazo de prescrição do procedimento e por isso, não pode ser tida como apta a interromper o prazo de prescrição.
10. A referência a “exames e buscas” referida no artigo 28º do RGCO transmite a ideia de necessidade de realização de diligências de prova que sejam estritamente necessárias e que revelem alguma complexidade e morosidade ou que, requeridas pela defesa, atrasem relevantemente o decurso do processo.
11. A simples inserção de folhas com datas resultantes de meras pesquisas de bases de dados (e não buscas) não pode ser usada como uma medida de “gestão” das interrupções dos prazos prescricionais.
12. Esse é um uso abusivo que a alínea b) do nº 1 do artigo 28º do RGCO não permite.
13. Pelo exposto ando mal o Tribunal a quo ao considerar que a inclusão das folhas com pesquisas de bases dados constitui uma diligência de prova.
14. Compulsada a douta sentença do Tribunal a quo, não se pode senão concluir que a mesma é omissa aos elementos subjectivos do tipo contra-ordenacional imputado à sociedade arguida, na parte da respectiva fundamentação de facto, isto é, nos factos que foram dados como provados em tal decisão.
15. E mesmo na decisão administrativa a alusão ao elemento subjectivo é feita de forma escassa e com base em generalidades e raciocínios meramente teóricos.
16. Assim, face ao supra exposto, conclui-se que nos factos dados como provados na decisão administrativa recorrida e também na douta sentença do Tribunal a quo, não consta nenhuma factualidade relativa, v.g., à consciência e vontade por parte da Arguida/Recorrente ou que não actuou com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz – em caso de negligência.
17. Pelo que os factos dados como provados omitem a imputação subjectiva da conduta à sociedade arguida, não se mostrando possível, com base em tal omissão de factos provados na decisão, imputar à sociedade arguida nem uma conduta dolosa nem negligente.
18. Implicando tal nulidade a anulação da decisão administrativa recorrida, e a remessa dos presentes autos novamente à entidade administrativa recorrida, de modo a que profira nova decisão administrativa expurgada dos vícios ora constatados (cfr. art. 122.º, n.º 1 e 2 do CPP, aplicável ex vi n.º 1 do art. 41.º do RGCO) (vide, neste sentido, o acórdão da Relação de Évora, de 22/4/2010, processo n.º 2826/08.8TBSTR.E1, in www.dgsi.pt), o que se requer!
19. Além da prescrição objecto do presente recurso, pode, na pendência deste recurso, ocorrer o prazo máximo de prescrição, incluindo suspensões e interrupções que no caso concreto é de 4 anos e meio.
20. Caso tal se verifique, desde já invoca a prescrição para todos os efeitos legais.
21. Deve ser declarada a prescrição do processo de contraordenação.
22. Deve a arguida ser absolvida da contraordenação, anulando-se, desta forma a decisão administrativa que a condenou, tudo com as legais consequências.
23. O Tribunal a quo violou o nº 2 do artigo 374º, 379º nº 1 alínea a), 374º e 122º nº1, todos do Código do Processo Penal.
24. O Tribunal a quo violou o artigo 28º, 62º nº1, 27º b), 28º nº1 b), 58º nº1 c), 8º e 41º nº1, todos do Decreto-Lei nº 433/82 de 27 de outubro (RGCO)
25. Caso não o tivesse feito o Tribunal a quo teria considerado prescrito o procedimento contraordenacional e assim Absolvido a Arguida.
26. Ou teria julgada nula a decisão administrativa por falta de menção suficiente ao elemento subjetivo.
Nesses termos e nos demais de Direito:
Deve o Recurso ser admitido e julgado totalmente procedente e, em consequência:
Deve ser declarada a Prescrição do procedimento contraordenacional
Ser a arguida ser absolvida da contraordenação, anulando-se a decisão administrativa que a condenou;
Ser ainda a arguida absolvida do pagamento das custas, tudo com as legais consequências.
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O recurso foi regularmente admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com o legal efeito.
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Respondeu o Ministério Público junto do tribunal a quo às motivações de recurso vindas de aludir, entendendo que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.
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Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Na sequência da notificação a que se refere o art.417º, nº 2, do Código de Processo Penal, foi efetuado exame preliminar e, uma vez colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO
Nos termos do art.75º, nº 1, do Dec. Lei nº 433/82, de 27/10 (RGCO), com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº 244/95, de 14/09, em processo de contraordenação, se o contrário não resultar do referido diploma, o Tribunal da Relação apenas conhece da matéria de direito, sem prejuízo, como resulta do Ac. de Fixação de Jurisprudência do STJ, nº 7/95, de 19/10, in DR 298/95, 1ª Série, de 28/12/1995, do conhecimento oficioso dos vícios indicados no art.410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Não tem deste modo aplicação no processo de contraordenação a reapreciação da matéria de facto nos termos amplos da impugnação prevista no art.412º, nº3, do Código Processo Penal.
Diferente é saber se o Tribunal da Relação pode ou não pronunciar-se sobre questões não tratadas na decisão de 1.ª instância (e por isso designadas de "questões novas"), porque não alegadas aquando da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa.
Sobre este problema a jurisprudência dominante tem entendido que: "O objeto do recurso jurisdicional não está limitado pelo conteúdo da decisão recorrida, podendo ser conhecidas questões que não foram apreciadas na decisão impugnada, com o limite previsto no art. 72.º-A do RGCO." - cfr. ac RG 04.04.2016 (processo n.º 141/15.0T8VFL.G1) www.dgsi.pt.
Assim, nos termos do art. 410.º, n.º 1, do CPP, "o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida", com a limitação inerente ao pedido - isto é, desde que alegadas aquando da interposição do recurso, uma vez que a "motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões (...) em que o recorrente resume as razões do pedido" (cf. art. 412.º, n.º 1, do CPP).
Neste sentido o ac STJ (AUJ) n.º 3/2019, de 2 de julho, Diário da República n.º 124/2019, Série I de 2019-07-02, fixou a propósito a seguinte jurisprudência: " «Em processo contraordenacional, no recurso da decisão proferida em 1.ª instância o recorrente pode suscitar questões que não tenha alegado na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa.».
Em suma, no processo de contraordenação, o recurso jurisdicional pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida, desde que alegadas e desde que constituam questão de direito, não se devendo entender que não possam em sede de recurso existir "questões novas" [1].
O tribunal da Relação poderá conhecer de quaisquer questões (sejam ou não "questões novas") em matéria de direito, e ainda quaisquer questões integrantes da chamada revista alargada (cf. art. 410.º, n.º 2, do CPP), bem como quaisquer nulidades que não se considerem sanadas, desde que arguidas ou desde que de conhecimento oficioso (cf. art. 410.º, n.º 3, do CPP).
Com efeito, o disposto no art. 75.º, n.º 2, al. a), do RGCO, ao delimitar os poderes de cognição do Tribunal da Relação, atribui a este tribunal amplos poderes de substituição em matéria de direito, sem qualquer impedimento a que possa conhecer de qualquer questão de direito conexionada com o julgado, ainda que esta não tenha sido debatida em 1.ª instância [2].
Donde, ressalvados os vícios previstos no art.410º, nº2, do Código Processo Penal, e as nulidade de conhecimento oficioso, atentando nas conclusões apresentadas na motivação do recurso que, conforme jurisprudência constante e assente, delimitam o seu objeto (cfr. art. 412º, nº 1, do Código de Processo Penal):
as questões submetidas ao conhecimento deste tribunal são:
a) Prescrição do processo contraordenacional
b) Falta do elemento subjetivo da contraordenação na decisão administrativa e na decisão judicial recorrida
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Com relevo para a resolução das questões objeto do recurso importa recordar
a decisão recorrida, que é a seguinte (transcrição, na parte relevante):
A. Factos provados:
Com relevo para a decisão final, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 8 de Maio de 2018, pelas 16h15m., na autoestrada ..., junto à área de serviço ..., no sentido sul/norte, a arguida realizava um transporte de mercadorias por conta de outrem, com base na guia de transporte nº ..., através do veículo de mercadorias com 3500 kg de peso bruto, de matricula ..-..-JD, ostentando placas/dísticos de identificação daquele tipo de transporte (placas “TP”), à frente e à retaguarda, com o nº de alvará ..., sem que se encontrasse licenciado para esse efeito;
2. Ao ostentar num veículo seu distintivos de identificação exclusivos de veículos devidamente licenciados para o transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem sem que o mesmo estivesse licenciado, a arguida representou como consequência da sua conduta a violação de um comando legal e não se absteve de a empreender, conformando-se com esse mesmo resultado.
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B. Factos não provados:
Não ficaram por provar quaisquer factos com relevância para a decisão da causa.
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IV. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A convicção do Tribunal, no tocante aos factos provados, fundou-se na análise crítica e conjunta dos elementos constantes dos autos – designadamente o auto de fls. 5 (que faz fé pública), as fotografias de fls. 6 e 7, a guia de transporte de fls. 8 e 9, e os resultados das pesquisas efectuadas, a fls. 12 a 15 – sendo certo que a matéria descrita em 2. decorreu da aplicação das regras da experiência comum, tendo em conta, por um lado, a actividade desenvolvida pela recorrente e, por outro lado, a antiguidade da legislação em apreço, como o salientou a autoridade administrativa. Note-se ainda que a recorrente não colocou em causa tal factualidade, sendo que também não tinha vindo exercer o seu direito de audição, nos termos previstos no artigo 50º do R.G.C.O.
V. ENQUADRAMENTO JURÍDICO E CONTRA-ORDENACIONAL DOS FACTOS
Nada obstando ao conhecimento do mérito, importa aferir da responsabilidade contra-ordenacional da recorrente.
Preceitua o artigo 1º n.º 1 do R.G.C.O. que “constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima”.
No âmbito dos presentes autos, a recorrente impugna a decisão administrativa que lhe imputa responsabilidade pela prática da contra-ordenação p. e p. pelo artigo 28º nº 2 do Decreto-Lei nº 257/2007, de 16 de Julho.
O Decreto-Lei nº 257/2007, de 16 de Julho, visou levar a que o transporte de mercadorias por conta de outrem efectuado exclusivamente por meio de veículos ligeiros com peso bruto igual ou superior a 2500 kg ficasse submetido a regras idênticas às aplicáveis ao transporte realizado com veículos pesados, quanto às condições de acesso à actividade e ao mercado.
O artigo 3º nº 1 deste Decreto-Lei estabelece o seguinte:
“A actividade de transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem, nacional ou internacional, por meio de veículos de peso bruto igual ou superior a 2500 kg pode ser exercida por sociedades comerciais ou cooperativas, licenciadas pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I. P. (IMTT)”.
Por seu turno, o artigo 28º nº 2 do mesmo diploma prescreve que “A ostentação dos distintivos do transporte por conta de outrem em veículos não licenciados para o efeito é punível com coima de (euro) 1250 a (euro) 3740”.
Tendo em conta o preceituado nestas disposições legais, bem como o preceituado no artigo 2º do mesmo Decreto-Lei, verifica-se que, no caso concreto, a actuação da recorrente consistiu na prática dos factos objectivos previstos no artigo 28º nº 2 do citado diploma, mostrando-se igualmente preenchido o tipo subjectivo deste ilícito-contraordenacional, tendo a arguida agido com dolo eventual.
Deste modo, bem andou a autoridade administrativa ao condenar a sociedade arguida.
De acordo com o estatuído no artigo 18º nº 1 do R.G.C.O., a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação.
In casu, a autoridade administrativa nada apurou quanto à situação económica da arguida ou quanto ao benefício económico retirado (não tendo esta contribuído para tal apuramento, uma vez que nada disse/juntou na sequência da notificação para o exercício do direito de audição), mas não deixou de aplicar uma coima situada no limite mínimo legalmente previsto, ou seja, uma coima no valor de €1.250,00.
Nestes moldes, apenas cumpre julgar improcedente o presente recurso, sendo de manter a decisão recorrida.
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VI. DECISÃO

Em face do exposto, julga-se totalmente improcedente o presente recurso de impugnação judicial interposto pela arguida “R..., Lda.” e, em conformidade, decide-se manter a decisão administrativa que a condenou no pagamento de uma coima no valor de €1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros), bem como no pagamento de custas no valor de €52,50 (cinquenta e dois euros e cinquenta cêntimos), pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelo artigo 28º nº 2 do Decreto-Lei nº 257/2007, de 16 de Julho”.
***
Conhecendo as questões suscitadas, cumpre decidir.
1ª Da prescrição do procedimento contraordenacional
Invoca a recorrente a prescrição do procedimento contraordenacional:
- por decurso do prazo normal de prescrição (três anos), sem que tivesse ocorrido qualquer causa interruptiva do mesmo; e
- por decurso do prazo máximo de prescrição (quatro anos e seis meses).
Vejamos.
A recorrente foi condenada por decisão administrativa, posteriormente confirmada por decisão judicial, na coima no valor de €1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros), pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelo artigo 28º nº 2 do Decreto-Lei nº 257/2007, de 16 de Julho.
O Ministério Público e a recorrente não se opuseram a que o presente recurso fosse decidido por despacho, após o que o tribunal decidiu, nos termos do artigo 64º n.º 1 e 2 do R.G.C.O., julgar não prescrito o processo de contraordenação.
Nesta conformidade, considerou-se o seguinte:
“À arguida é imputada a prática da contra-ordenação p. e p. pelo artigo 28º nº 2 do Decreto-Lei nº 257/2007, de 16 de Julho, a qual é punível com coima de €1.250,00 a €3.740,00.
Nada estando previsto em tal diploma sobre a prescrição do procedimento contraordenacional e da coima, cumpre recorrer ao estabelecido a este respeito no R.G.C.O.
Assim, de acordo com o disposto no artigo 27º al. b) deste regime geral, o prazo de prescrição do presente procedimento contraordenacional é de três anos.
(…)
Analisando o processo, verifica-se que os factos imputados à arguida remontam ao dia 8 de Maio de 2018 e que a decisão administrativa foi proferida em 30 de Novembro de 2021. A decisão foi notificada à arguida através de carta registada com aviso de recepção, a qual foi remetida para a sede da aludida sociedade, sendo certo que, apesar de não constar do aviso de recepção a data em que o mesmo foi assinado, retira-se de fls. 24 que a notificação ocorreu sempre em data prévia a 7 de Janeiro de 2022.
Todavia, entre a data a que remontam os factos e a data em que a decisão administrativa foi proferida, foram sendo efectuadas diligências de prova, designadamente realizadas e juntas pesquisas, como a pesquisa de veículos cujo resultado consta de fls. 14, datada de 6 de Abril de 2020, circunstância que teve a virtualidade de interromper o sobredito prazo de prescrição.
Note-se que o legislador não fez depender o efeito interruptivo do tipo de diligência de prova ou da relevância da diligência de prova na ponderação efectuada na decisão administrativa. É que, como se explicitou no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17 de Janeiro de 2018, no processo nº 292/17.6T9MGR.C1, disponível em www.dgsi.pt, “(…) a referida al. b) do artº 28º, 1, do RGCO confere esse poder interruptivo à «realização de quaisquer diligências de prova» não arredando, de forma alguma, a produção de prova pessoal, nem fazendo depender essa eficácia interruptiva da valoração ou não da prova produzida; basta que a produção de prova haja efectivamente tido lugar. A referência a «exames ou buscas», segmento que a recorrente releva é meramente indicativa o que resulta de forma imediata do uso do advérbio que o antecede, v.g. «designadamente». Aliás, mesmo que assim fosse, nunca seria possível a formulação de um juízo interpretativo nos termos em que faz a recorrente, pois que também relativamente a estas diligências de prova o legislador não faz depender a sua eficácia interruptiva de eventuais resultados positivos que elas tragam para o processo, na perspectiva da acusação. Basta que elas tenham lugar. Independentemente do seu resultado”.
A partir de cada interrupção, começa a correr novo prazo de prescrição.
Posto isto, não tendo decorrido três anos desde a última interrupção do citado prazo (nem o prazo normal de prescrição, acrescido de metade, nos termos previstos no artigo 28º nº3 do R.G.C.O.), observa-se que o procedimento contraordenacional não se mostra prescrito, o que se declara”.
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Retomando a situação dos autos, constata-se que não vem questionado pela recorrente e Ministério Público que o prazo normal de prescrição é aqui de três anos.
Vejamos então as causas de interrupção e suspensão do processo contraordenacional previstas no RGCO :
Artigo 27.º-A
Suspensão da prescrição
1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento:
a) Não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal;
b) Estiver pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa, nos termos do artigo 40.º;
c) Estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso.
2 - Nos casos previstos nas alíneas b) e c) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar seis meses.
Artigo 28º ((Interrupção da prescrição):
“1. A prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se:
a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;
b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;
c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;
d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.
2 - Nos casos de concurso de infracções, a interrupção da prescrição do procedimento criminal determina a interrupção da prescrição do procedimento por contra-ordenação.
3 - A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.
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Vejamos agora as incidências processuais relevantes para o conhecimento da questão suscitada:
- a infração ocorreu em 8 de Maio de 2018;
- em 3.09.2018 foi expedida notificação à arguida para exercício do direito de audição, a qual foi notificada em 12.09.2018, com a qual se interrompeu o prazo de prescrição (art.28º, nº1, al.c))
- a decisão administrativa foi proferida em 30 de Novembro de 2021, com a qual se interrompeu o prazo de prescrição (art.28º, nº1, al.d)) e novamente com a notificação em 21.12.2021 à arguida desta decisão contra si tomada (art.28º, nº1, al.a));
- a impugnação judicial dessa decisão foi examinada em 16.03.2022 (referência: 434348277) e notificada à arguida em 21.03.2022 (ref.31793846), ficando o prazo de prescrição suspenso desde esta data até à respetiva decisão final, pelo período máximo de seis meses (art.27º, nº1, al.c) e nº2).
Posto isto, temos que entre 12.09.2018 e 30 de Novembro de 2021 decorreram três anos, dois meses e dezoito dias.
Assim, interrompida a prescrição em 12.09.2018, o respetivo procedimento contraordenacional prescreveria no dia 12.09.2021, se outra causa suspensiva ou interruptiva não se verificasse.
Ora, independentemente das diligências probatórias que possam ter sido realizadas nesse período, ocorreu nesse período uma causa de suspensão do procedimento contraordenacional.
Da suspensão da prescrição: COVID
A questão central que aqui se coloca consiste em saber se a suspensão da prescrição estabelecida pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março [3], e pela Lei n.º 4-B/2021, de 01 de fevereiro, é aplicável a factos pretéritos, como aqueles reportados ao dia 8 de Maio de 2018.
O disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que aqui nos ocupa, com respeito à suspensão dos prazos de prescrição e caducidade, não foi objeto de modificação pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril.
Subsequentemente, pela Lei n.º 16/2020, de 6 de maio, veio a ser alterada, pela quarta vez, a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que, por efeito dos seus artigos 2.º e 8.º, revogou o artigo 7.º deste último diploma.
As alterações introduzidas pela Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, entraram em vigor no dia 3 de junho de 2020, pelo que, para o que releva para a presente decisão, da conjugação dos diplomas acima escrutinados resulta que o período da suspensão dos prazos de prescrição e caducidade originariamente estatuída na Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, vigorou entre 9 de março de 2020 e 3 de junho de 2020, ou seja, 86 dias. ý
Por força do artigo 6º-B, nº3, da Lei nº 4-B/2021, de 01/02, ocorreu nova suspensão relativa no período temporal de 22/01/2021 a 05/04/2021 [4], num total de 73 dias.
Não obstante não ter havido encurtamento ou ampliação do prazo de prescrição previsto no regime geral em vigor à data da prática da infração, a modificação legal dos factos interruptivos ou suspensivos que resultaram daquelas alterações influi na contagem concreta do prazo de prescrição do procedimento, visto que as concretas causas de interrupção e de suspensão constituem fatores imprescindíveis a ter em conta na determinação do prazo máximo de prescrição do procedimento.
Ora, as normas de prescrição reportam-se ao regime substantivo do facto criminoso ou contraordenacional, não podendo, por força do princípio da legalidade, ser aplicadas de forma retroativa aos crimes/contraordenações aqui julgados (salvo se tal regime se mostrar concretamente mais favorável à arguida – art. 2.º, n.º 1 e 4 do Código Penal e art.2º do RGCO e art.29º, nº1 e 4, da CRP.
Os novos prazos de prescrição e causas de interrupção e suspensão da prescrição do procedimento criminal e das penas e medidas de segurança, bem assim do procedimento contraordenacional e das coimas, sendo prejudiciais ao arguido, pois alargará necessariamente tais prazos de prescrição, apenas poderá ser aplicada para os factos praticados na sua vigência, o que não é o caso dos autos, sob pena de conferir-lhe um efeito retroativo proibido, em violação do disposto no artigo 29.º, n.º 4, da CRP.
Na doutrina prevalece largamente o entendimento de que às regras referentes ao regime da prescrição do procedimento criminal são aplicáveis as garantias previstas no artigo 29.º da CRP, no tocante à retroatividade da lei penal. Ou seja, às normas relativas a prazos de prescrição, causas de interrupção ou de suspensão, e efeitos da prescrição são aplicáveis as regras vigentes à data da prática da conduta (tempus delicti), proibindo-se a aplicação retroativa das que sejam menos favoráveis ao agente e impondo-se a aplicação retroativa dos regimes mais favoráveis.
O artigo 19.º, nº6, da CRP, expressamente estabelece que «[a] declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar […] a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos […]», tendo o mesmo ficado consagrado no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 44/86 [5].
Semelhante entendimento resulta da declaração de voto exarada no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 660/2021, onde se refere: «O princípio da proibição de aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido é valorado de uma forma especial pelo nosso legislador constituinte, sendo tão importante que nem em situação de estado de sítio ou de emergência pode ser suspendido no que respeita a matéria criminal, como decorre do artigo 19.º, n.º 6, da Constituição – que refere que «A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar (…) a não retroatividade da lei criminal» Esta proibição inclui todas as dimensões de retroatividade, abrangendo também, naturalmente, a aplicação a processos já pendentes de uma nova causa de suspensão do prazo de prescrição cujo termo não se mostre ainda atingido (a designada retrospetividade ou retroatividade inautêntica)”.
Daqui resulta que o estado de emergência não pode ser usado para afastar a proibição da aplicação retroativa da lei penal e contraordenacional, através do alargamento de prazos de prescrição quanto a factos praticados antes do estado de emergência.
A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, ainda que estabeleçam medidas excecionais na situação de estado de emergência, não podem forçar a suspensão dos prazos prescricionais aos processos que têm por objeto factos praticados em momento anterior a cada um daqueles diplomas.
No domínio da sucessão de leis penais no tempo, quer a lei nova se trate de lei temporária ou não, a sua aplicação não pode afastar-se do princípio da não retroatividade da lei penal, corolário do princípio da legalidade, nem se sobrepor à aplicação do regime penal mais favorável ao arguido.
Neste sentido concluiu a jurisprudência do Ac RC 07-12-2021 (Maria José Nogueira), AC RG 25-01-2021 (Cândida Martinho), RL 9.03.2021 (Vieira Lamim), RE 23.02.2021 (António Condesso), RL 24.07.2020 (Jorge Gonçalves) e RL 21.07.2020 (Ana Sebastião), todos in www.dgsi.pt.
Também assim a doutrina seguida por José Joaquim Fernandes Oliveira Martins, Juiz de Direito, em “A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março - uma primeira leitura e notas práticas” e em “Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e a terceira vaga da pandemia COVID-19”, in Julgar online, março de 2020 e fevereiro de 2021, respetivamente, página 7 e página 8.
Do mesmo modo defenderam Rui Cardoso e Valter Baptista, in «Estado de Emergência — COVID-19 — Implicações na Justiça - Jurisdição Penal e Processual Penal», Centro de Estudos Judiciários, abril de 2020, páginas 533 a 536.
Também assim Germano Marques da Silva («Ética e estética do processo penal em tempo de crise pandémica», in Revista do Ministério Público, número especial COVID-19: 2020, páginas 109 a 127) e Adriano Squilacce e Raquel Cardoso Nunes, in “A suspensão dos prazos de prescrição em processo penal e contraordenacional por efeito da legislação covid-19” [6], disponível em https://www.uria.com/documentos/publicaciones/7446/documento/foro-port04.pdf?id=12274.
Em sentido contrário encontramos o Ac RL 4.12.2020 (processo 164/19.0YUSTR.L1) e o Ac RL 11-02-2021 (Almeida Cabral) www.dgsi.pt, concluindo que “não se está, aqui, perante uma sucessão de leis penais, mas, antes, perante um “regime temporário de excepção”, o qual, decorrido o tempo, ou deixadas de verificar as circunstâncias que o haviam determinado, cessará todos os seus efeitos, conforme o previsto no n.° 2 do citado art.° 7.°, fazendo com que o anterior “regime” retome a sua vigência e normalidade. Finalmente, também não se poderá dizer que a suspensão do prazo de prescrição previsto no art.º 7.º, n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020 se traduz numa decisão mais gravosa para o arguido. É que o prazo de prescrição da pena mantém-se rigorosamente o mesmo, antes e depois da vigência da citada lei. A única diferença é que, esta, por razões de superior interesse público, suspendeu-o temporariamente, para voltar, depois, a correr”.
Também o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se sobre a (in)constitucionalidade da norma extraível da conjugação do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e do artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, segundo a qual a causa de suspensão dos prazos de prescrição do procedimento contraordenacional estabelecida no sobredito artigo 7.º, n.º 3, é aplicável aos prazos (de prescrição) que, à data da entrada em vigor da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, se encontravam já em curso.
Considerou que a suspensão do prazo prescricional prevista no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, configura uma medida, entre várias, tomadas no âmbito da legislação de emergência para fazer face à situação pandémica, que originou o estado de exceção constitucional. O período que mediou entre 9 de março (Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março) e 3 de junho de 2020 (Lei n.º 16/2020, de 29 de maio) foi tido como causa de suspensão do prazo prescricional de procedimentos criminais (e contraordenacionais), em grande medida como decorrência da paralisação da atividade judiciária lato sensu durante esse período.
Numa lógica de diferenciação entre tipos de retroatividade no domínio penal, distinguindo os conceitos de retroatividade direta ou de primeiro grau e “retrospetividade”, também conhecida por “retroatividade inautêntica”, (nesta última a norma não se aplica retractivamente – aplica-se para o futuro a processos crimes ainda pendentes, embora resultantes de crimes cometidos no passado), o Acórdão TC n.º500/2021, de 9 de Junho de 2021, acompanhado pelos Ac.s TC nº660/2021, de 29 de julho, e Acórdão n.º 798/2021, de 21 de outubro, decidiu: “Não julgar inconstitucional o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretado no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência”, cuja interpretação tem inteira aplicação, também, à prescrição do procedimento criminal, conforme referido no texto desse acórdão no seu ponto 31.
Baseado na razão de ser desta causa de suspensão, derivada, única e exclusivamente, da situação imprevisível de emergência sanitária que originou o estancamento da atividade judiciária, por um determinado período, o Tribunal Constitucional entendeu que a intenção do legislador foi “a aplicação desta causa de suspensão da prescrição a processos em curso, aquando da sua entrada em vigor, isto é, a factos cometidos antes dessa data, por serem esses mesmos procedimentos que sofreram uma “torção” na sua tramitação com a sustação da respetiva tramitação (ac TC nº660/2021).
Mais concluiu o TC que “a aplicação imediata desta causa de suspensão a processos em curso não colide com as garantias asseguradas pelo princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal, quando, como é o caso, no momento da sua entrada em vigor, o prazo de prescrição já se tinha iniciado e, apesar de se encontrar em curso, não se havia ainda extinto” (ac TC nº660/2021), juízo de não inconstitucionalidade cujos argumentos são replicáveis para os procedimentos de natureza contraordenacional” (ac TC 500/2021 e ac TC nº660/2021) [7].
Ora, salvo melhor opinião, a jurisprudência que vemos defendida pelos acórdãos do TC nº500/2021, TC nº660/2021 e TC nº n.º 798/2021 afronta claramente a proteção do princípio da proibição da aplicação retroativa da lei criminal in pejus, ao considerar que está fora do âmbito de proteção daquele princípio a aplicação imediata de uma nova causa de suspensão a processos em curso quando no momento da sua entrada em vigor, o prazo de prescrição já se tenha iniciado, mas ainda não se mostre extinto.
De resto, o Plenário do TC nos Acórdãos n.ºs 231/2021, 232/2021 e 319/2021, proferidos em matéria contraordenacional, estando também em causa a introdução de novas causas, bem como a eliminação de outras, de suspensão do prazo de prescrição do procedimento que ainda não atingira o seu termo, considerou que «as normas sobre prescrição do procedimento, para além da indiscutível vertente processual, têm natureza substantiva [o que] determina, no domínio da aplicação da lei no tempo, a sujeição das respetivas normas ao princípio da aplicação retroativa do regime concretamente mais favorável ao agente da infração [significando] que não pode ser aplicada lei sobre prescrição que se revele, em concreto, mais gravosa do que a vigente à data da prática dos factos, bem como deve ser aplicado retroativamente o regime prescricional que eventualmente se mostre, em concreto, mais favorável» (ponto 5).
Independentemente das razões de emergência sanitária que estiveram na base da criação de uma nova causa de suspensão, aquele entendimento afronta a jurisprudência consolidada, inclusivamente do Tribunal Constitucional, segundo a qual as normas relativas à prescrição, seus prazos e causas de suspensão ou interrupção do procedimento criminal se inserem nas designadas “normas processuais materiais” [8] e, por isso, também elas vinculadas ao princípio da legalidade (por comportarem elementos relativos à punibilidade do agente), impondo o art.19º, nº6, da C.R.P. limites claros à suspensão do exercício de direitos, especialmente à retroatividade da lei criminal, ainda que em estado de emergência.
De resto, a referência expressa neste art.19º, nº6, à retroatividade da lei criminal não pode deixar de abranger, atenta a sua conexão com o direito penal substantivo, os ilícitos de mera ordenação social, como não os excluem, na interpretação uniforme da doutrina e jurisprudência, os art.s 29º e 32º.
Basta atentar na sua epigrafe para perceber que o legislador constituinte faz uma referência genérica à lei e processo criminal, neles incluído, a passos, o direito das contraordenações, domínio onde são indiscutivelmente aplicáveis, segundo a doutrina e jurisprudência, a generalidade dos princípios estruturantes e garantias processuais neles consagrados, inclusivamente o da proibição da aplicação retroativa da lei criminal in pejus, apesar de nenhuma referência expressa ali existir ao direito das contraordenações, com ressalva do art.32º, nº10.
De outro jeito, em estado de emergência, estaria também aberta a possibilidade de aplicação de normas de conteúdo sancionatório contraordenacional com efeitos retroativos, em clara violação do art.29º, nº4, e mesmo do art.18º, nº3, da C.R.P. [9], e do art.7º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
A aplicação da causa de suspensão da contagem do prazo de prescrição por força da situação de emergência sanitária a processos em curso colide com o princípio da legalidade criminal - na vertente da proibição de aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido, princípio consagrado do artigo 29.º, n.º 4, da Constituição [10], não se vendo razão para o afastar no domínio contraordenacional.
Mas, sendo assim, não operando esta causa suspensiva determinada por razões de emergência sanitária, ao tempo do despacho de admissão da impugnação judicial da decisão administrativa, cumpriria declarar verificado o prazo máximo de prescrição de três anos, com as consequências legais em matéria de extinção do procedimento contraordenacional.
Contudo, diferente desta, outra causa suspensiva se verifica, relacionada com a paralisação legal da generalidade dos atos e prazos processuais e procedimentais, no domínio criminal e contraordenacional, primeiramente, por força dos nºs 1 e 6, do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, entre 9 de março de 2020 e 3 de junho de 2020 [11], ou seja, 86 dias, e posteriormente, por força do artigo 6º-B, nº1, e artigo 6º-C, nº1, al.b), da Lei nº 4-B/2021, de 01/02, que determinou nova suspensão no período temporal de 22/01/2021 a 05/04/2021 [12], num total de 73 dias.
Durante estes dois períodos o procedimento contraordenacional não podia continuar por falta de autorização legal, ante a paralisação imposta por lei para os atos e prazos a decorrer na administração, no Ministério Público e nos tribunais.
O prazo de prescrição suspendeu-se durante o período em que não foi autorizado legalmente o andamento do processo, ou seja, levantado legalmente o obstáculo legal da suspensão dos atos e prazos no procedimento contraordenacional.
A razão de ser desta suspensão baseia-se, como foi o caso, na existência de um obstáculo previsto na lei, de carácter geral, ao inicio ou continuação do procedimento contraordenacional, “o qual suspende o respetivo prazo de prescrição do procedimento mal o obstáculo legal produza os seus efeitos” [13].
Ora, aplicando ao caso o regime da suspensão previsto no art. 27º A, al.a) do RGCO, correspondente ao art.120º, nº1, al.a),do C. Penal [14], já que os procedimentos criminal e contraordenacional não podiam legalmente continuar por falta de autorização legal, essa suspensão limitou-se ao período de 86 + 73 dias, sendo aquela uma causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal expressamente contemplada na lei ao tempo dos factos e, por isso, a coberto do princípio da legalidade e não retroatividade da lei penal e contraordenacional.
Como sobredito o prazo máximo de prescrição (art.28º, nº3, do RGCO) terminaria em 12.09.2021.
Contudo, ressalvados aqueles 159 (86 dias + 73) dias de suspensão, esse prazo prorrogou-se para além da data da decisão administrativa em 30 de Novembro de 2021.
Assim, ressalvada esta suspensão, não se verificou o prazo normal de prescrição de três anos, ficando totalmente prejudicada a questão de saber em que data e se tem força interruptiva da prescrição a apontada pesquisa de licenciamento datada de 6.04.2020 e consequentemente o conhecimento da nulidade arguida, por referência ao nº 2 do artigo 374º do Código Processo Penal, ex vi art.379º, nº, al.a), ambos do Código Processo Penal.
Contudo, como adiante se verá, outra causa de suspensão ocorreu, entretanto.
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Da suspensão da prescrição: admissão da impugnação judicial
Nos termos do art.27º-A, alínea c), do R.G.C.O., a suspensão do procedimento ocorre com a notificação do despacho que admitiu a impugnação judicial da decisão administrativa até à decisão final do recurso, pelo tempo máximo de seis meses (cfr. artigo 27º-A, nº2, do R.G.C.O.).
Recorda-se aqui a jurisprudência fixada pelo AUJ do STJ nº4/2011, de 13 de janeiro, in Diário da República n.º 30/2011, Série I de 2011-02-11, páginas 769 - 780: A suspensão do procedimento por contra-ordenação cuja causa está prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º-A do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, inicia-se com a notificação do despacho que procede ao exame preliminar da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa e cessa, sem prejuízo da duração máxima imposta pelo n.º 2 do mesmo artigo, com a última decisão judicial que vier a ser proferida na fase prevista no capítulo IV da parte II do Regime Geral das Contra-Ordenações”.
No caso, a impugnação judicial da decisão administrativa foi examinada em 16.03.2022 (referência: 434348277) e notificada à arguida em 21.03.2022 (ref.31793846), ficando o prazo de prescrição suspenso desde esta data até à respetiva decisão final, pelo período máximo de seis meses (art.27º, nº1, al.c) e nº2).
Vale isto dizer que em ý21.03.2022 se verificou nova causa suspensiva do prazo de prescrição, suspensão essa pelo tempo decorrente até um máximo de 6 meses.
De referir que as causas de suspensão são de funcionamento autónomo e não materialmente cumulativo, não sendo atendível o computo total dos períodos de suspensão quando temporalmente coincidentes.
Neste caso, correndo várias causas de suspensão em simultâneo, para efeitos da ressalva do período de suspensão, prevista no art.28º, nº3, do RGCO, deverá considerar-se o tempo decorrido entre a que primeiro e por último se verificou.
O n.º3 do artigo 28.º do RGCO fixa esse prazo através de dois elementos indissociáveis: (i) o prazo normal de prescrição acrescido de metade; (ii) e o tempo de suspensão.
Daí que o prazo máximo de prescrição seja determinado pela soma daquele tempo de suspensão ao prazo normal de prescrição acrescido de metade, independentemente de todas as interrupções que possam ter tido lugar.
Em conclusão, ressalvado o tempo de suspensão da prescrição (159 dias + 6 meses), situação que persiste neste momento, não se encontra prescrito o procedimento contraordenacional, inclusivamente por não se verificar o decurso do prazo máximo estabelecido no citado nº3, do art.28º (quatro anos e seis meses).
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Assim, improcede a pretensão da recorrente quanto à questão da prescrição.
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2ª Falta do elemento subjetivo da contraordenação na decisão administrativa e na decisão judicial recorrida
A recorrente invoca a insuficiência da matéria de facto quanto ao elemento subjetivo da contraordenação, quer na decisão administrativa, quer na decisão judicial recorrida.
Em causa está o transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem, por parte da arguida, com guia de transporte nº ..., em veículo de mercadorias ostentando placas/dísticos de identificação daquele tipo de transporte, à frente e à retaguarda, com o nº de alvará ..., sem se encontrar licenciado para esse efeito, contra-ordenação esta prevista pelo artigo 28º, nº2, do Decreto-Lei nº 257/2007, de 16 de Julho.
Vejamos a matéria de facto fixada numa e noutra decisão.
Decisão administrativaDecisão judicial
No dia 8.05.2018, pelas 16.15 hoaras, a GNR, no âmbito da competência que lhe é conceidida pelo nº1, do art. 21º, do DL 257/2007, de 16/07, ao fiscalizar o veiculo ligeiro de mercadorias com a matrivula ..-..-JD, quando este circulava na ...,, junto à área de serviço ..., no sentido sul/norte, verificou que o referido veiculo se encontrava a efectuar um transporte de mercadorias por conta de outrem, ao abrigo da guia de transporte nº ..., ostentando placas/dísticos de identificação daquele tipo de transporte, à frente e à retaguarda, com o nº de alvará ..., sem que se encontrasse licenciado para esse efeito1. No dia 8 de Maio de 2018, pelas 16h15m., na autoestrada ..., junto à área de serviço ..., no sentido sul/norte, a arguida realizava um transporte de mercadorias por conta de outrem, com base na guia de transporte nº ..., através do veículo de mercadorias com 3500 kg de peso bruto, de matricula ..-..-JD, ostentando placas/dísticos de identificação daquele tipo de transporte (placas “TP”), à frente e à retaguarda, com o nº de alvará ..., sem que se encontrasse licenciado para esse efeito.
--2. Ao ostentar num veículo seu distintivos de identificação exclusivos de veículos devidamente licenciados para o transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem sem que o mesmo estivesse licenciado, a arguida representou como consequência da sua conduta a violação de um comando legal e não se absteve de a empreender, conformando-se com esse mesmo resultado.

Só estes factos relevam e não as considerações constantes da motivação da decisão administrativa. Factos provados e não provados são aqueles especificados como tal e não também os referidos na motivação da decisão ou mesmo, como defendeu o ac RL 2.02.2016 (Luís Gominho) www.dgsi.pt, “afirmações, ainda que com ressonância factual, contidas na decisão administrativa em sede de enquadramento jurídico ou a propósito da medida das coimas a aplicar”.
Ora, contrariamente ao defendido pela recorrente, no ponto 2 dos factos provados da decisão judicial recorrida, o tribunal a quo deu inequivocamente como provados os factos atinentes ao dolo eventual da arguida.
Em sede de direito contraordenacional, os conceitos de dolo e de negligência são os previstos, respetivamente, nos artigos 14.º, e 15.º, do Código Penal, ex vi o artigo 32.º, do RGCOC.
Diferente a decisão administrativa, a qual nenhuma referência contém nos factos provados quanto ao dolo ou negligência da arguida.
Vista a decisão administrativa, falta indubitavelmente no elenco dos factos provados a concretização desse elemento subjetivo (elemento cognitivo e volitivo da arguida sobre o dolo).
Constatando-se, assim, que tal insuficiência vinha da decisão administrativa, pelo que a introdução na sentença desse elemento factual era proibida, já que não comunicada nem autorizada pelos sujeitos processuais.
Com efeito, a introdução na sentença desse facto, ex novo, relativo ao preenchimento do tipo subjetivo da arguida constitui uma inadmissível alteração substancial, não consentida nos termos e para efeitos do art.359º, do C. Proc. Penal.
Consabidamente, o Acórdão Uniformizador (STJ) nº 1/2015 veio impedir o recurso ao mecanismo do art.358º, nº 1 do C. Processo Penal para integrar a deficiente descrição, por omissão narrativa, do tipo subjetivo do crime imputado[15], doutrina que naturalmente vale para o processo de contraordenação.
O aditamento na decisão recorrida dos elementos subjetivos do tipo de ilícito não se traduz numa alteração inócua, antes deu aqui plena satisfação à necessidade ‘prática’ de remediar uma deficiente descrição (por omissão de elemento essencial) do tipo subjetivo de ilícito levado à decisão administrativa/acusação.
Na verdade, o Ministério Público recebe da autoridade administrativa os autos, e remete-os ao juiz "valendo este ato como acusação" (art. 62.º, n.º 1, do RGCO) [16]. Ou seja, a decisão da autoridade administrativa, havendo impugnação judicial, vale como acusação pelo Ministério Público [17].
Aquela decisão administrativa passa a constituir uma "decisão-acusação", e aquela fase administrativa "transforma-se" em fase instrutória.
A impugnação judicial não constitui "um recurso em sentido próprio, mas de uma fase judicial do processo de contra-ordenação em que o tribunal julga do objecto de uma acusação consistente na decisão administrativa de aplicação da sanção na fase administrativa, com ampla discussão e julgamento da matéria de facto e de direito e de decisão final" [18].
Como quer que seja, no processo de contra-ordenação, a decisão administrativa impugnada constitui “um marco de definição do objecto do processo. Ainda que, uma vez impugnada, se convole em acusação não se transmuta no seu conteúdo e objecto. Não há que fechar os olhos à decisão administrativa, tal e qual existe (quer dizer,com o nível de determinação que real efectivamente tem), para lhe substituira ficção de uma decisão apenas determinada em termos abstractos.
Há que a assumir como acusação, mas tal como ela é, e, portanto, com o nível de determinação que realmente a caracteriza. E, sendo assim que ela é, é mesmo assim que ela limita, nos termos do acusatório, os poderes de cognição do tribunal” [19].
Posto isto, a decisão judicial recorrida é nula, nos termos do art.379º, nº1, al.b), Código Processo Penal, nulidade do conhecimento oficioso, ex vi art.41º do RGCO, por alteração substancial dos factos descritos na decisão administrativa que aplicou a coima, sem qualquer comunicação à arguida.
É certo que a doutrina e a jurisprudência não são unívocas quanto à aplicação nas contraordenações do regime do processo penal respeitante à alteração dos factos da acusação, havendo quem sustente que a especificidade do processo contraordenacional não permite aplicar, diretamente e em toda a sua extensão, o disposto nos artigos 379.º e 358.º do Código de Processo Penal.
Contudo, é consensual o entendimento “que não pode haver condenação (decisão judicial) por factos diversos do que a arguida havia sido acusada (decisão administrativa), sem que à mesma tenha sido dada a oportunidade de sobre eles se pronunciar”[20], de modo a ser assegurado o princípio do contraditório e do direito a uma defesa efetiva [21].
Nem o reenvio do processo com fundamento na insuficiência da matéria de facto provada para a decisão (art.410º, nº2, do Código Processo Penal) pode significar uma alteração substancial da decisão administrativa/acusação imposta pelo tribunal de recurso. Os factos a que se amplia a investigação, em sede de reenvio por força daquele vício da matéria de facto, não podem conduzir à subversão das regras prevista no art.359º, do Código Processo Penal, atinentes à vinculação temática do objeto do processo [22].
É pacífico que “a proibição da “reformatio in pejus” (artigo 72º-A, 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações) não permite uma alteração de factos que implique a aplicação de uma coima maior – e, no limite, que uma situação de facto descrita na decisão administrativa que não integre, verdadeiramente, qualquer contraordenação, possa sofrer uma alteração factual que a faça constituir responsabilidade contraordenacional” - cfr. RP 24.02.2021 (Jorge Langweg) www.dgsi.pt.
Na fase de impugnação judicial, o Tribunal decidirá ex novo, mas com respeito pelo princípio da proibição da reformatio in pejus [23], consagrado no art. 72.º-A, do RGCO, ressalvados alguns regimes específicos em matéria contraordenacional, nos quais não vigora esta proibição (como acontece em matéria de contraordenações ambientais, atento o disposto no art. 75.º, da Lei n.º 50/2006, de 29.08 (LQCA), art.416.º-8 do CVM, art. 222.º1, f), do RGICSF).
A garantia constitucional da tutela jurisdicional efectiva (art.s 20º, nº1, e 32º, nº10, da C.R.P.) só pode considerar-se realmente acautelada quando o acesso ao tribunal não seja na prática desincentivado ou inibido através da derrogação do princípio geral da proibição da reformatio in pejus constante do art. do 72.º-A do RGCO [24].
Ora, como se afirma no citado douto aresto da RP 24.02.2021 (Jorge Langweg), também no caso dos autos, foi a introdução deste facto novo (o dolo) que permitiu, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 8.º, n.º 1, do RGCOC, que a situação de facto descrita na decisão administrativa (que não integrava, verdadeiramente, qualquer contraordenação), por força desta alteração factual, passasse a constituir responsabilidade contraordenacional.
A possibilidade desta reformatio em desfavor da arguida resultou exclusivamente do perverso exercício do seu direito de defesa, pois não seria sequer concebível a integração do dolo e consequente plenitude do tipo de ilícito, no caso concreto, sem que houvesse sido impugnada judicialmente a decisão administrativa.
Todavia, trata-se de um elemento típico relativo à imputação da responsabilidade da pessoa coletiva cuja falta se quis sanar (sem qualquer comunicação), passando só então a preencher o tipo da contraordenação na sua completude, o que nos reconduz a uma alteração substancial que não foi consentida pelo Ministério Público e pela arguida e, por isso, fere de nulidade a decisão [25].
Ademais, são irrelevantes quaisquer considerações gerais, conclusões ou generalidades atinentes a este elemento subjetivo (dolo), ainda que dotadas de qualquer ressonância factual, quando omissas na descrição fáctica da decisão administrativa.
Acusando esse vício da decisão administrativa, a sentença recorrida acautelou o dolo nos factos provados.
Fê-lo, todavia, sem qualquer comunicação nos termos do art.358º ou 359º, do Código Processo Penal, ainda que de uma alteração substancial se tratasse.
Faltando na decisão administrativa qualquer referência factual ao elemento cognitivo e volitivo da arguida sobre o dolo atinente ao tipo que lhe vem imputado, sendo tal omissão substancial, impõe-se a revogação da decisão recorrida, por nula.
Em consequência, deverá ordenar-se a baixa do processo para cumprimento do disposto no art.359º, do Código Processo Penal, e subsequente prosseguimento do processado em conformidade com o que resultar dessa comunicação legal.
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3. DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e em consequência revogar, por nula, a decisão recorrida e ordenar a baixa do processo para cumprimento do disposto no art.359º, do Código Processo Penal, e subsequente prosseguimento do processado em conformidade com o que resultar dessa comunicação legal.
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Sem custas.
Notifique.

Acórdão elaborado pelo primeiro signatário em processador de texto que o reviu integralmente (art.94º nº 2 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelos Excelentíssimos Juízes Adjuntos.

Porto, 7.09.2022
João Pedro Pereira Cardoso
Raúl Cordeiro
Carla Oliveira
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[1] Cfr. Oliveira Mendes/Santos Cabral, Notas ao Regimes Geral das Contra-Ordenações e coimas, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 270 e 273, e Augusto Silva Dias, Direito das Contra-Ordenações, Coimbra: Almedina, 2018, p. 256.
No mesmo sentido Simas Santos e Lopes de Sousa, "Contra-ordenações, anotações ao regime geral", 6.ª ed., Lisboa: Áreas Editora, 2011, págs. 580-581, que, no entanto, alertam para o facto de "esta possibilidade de intervenção do tribunal superior (...) reporta-se apenas à alteração da decisão recorrida e não à apreciação da sua validade. Sendo assim, não poderá o tribunal de recurso tomar conhecimento de nulidades que não sejam de conhecimento oficioso, se não for feita a necessária arguição. (...). "Assim o objeto do recurso jurisdicional não está limitado pelo conteúdo da decisão recorrida, podendo ser conhecidas questões que não foram apreciadas na decisão recorrida, com o limite óbvio e já referido do art.72.º-A do RGCO."
[2] Cfr. Simas Santos/Lopes de Sousa, ob. cit., p. 580.
[3] Cfr. art. 7.º, n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua versão original, que declarou suspensos os prazos de prescrição do procedimento criminal, aplicável com as necessárias adaptações a “procedimentos contraordenacionais”, por força da remissão do nº6, do art.7º, o mesmo se passando com o art. 6.º-B, n.º 3 da referida lei, na redação conferida pela Lei n.º 4-B/2021, de 01 de fevereiro.
[4] No que ao caso interessa a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, no seu artigo 6.º-B, n.º 1, veio suspender todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais e Ministério Público.
E o artigo 6.º-C, no seu nº1, alínea b), veio suspender os prazos para a prática de atos em procedimentos contraordenacionais.
Apesar da entrada em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (artigo 5.º), a produção dos seus efeitos retroagiu à data de 22 de janeiro de 2021 (artigo 4.º).
Tais prazos apenas deixaram de estar suspensos até 5 de abril de 2021, uma vez que os referidos artigos 6.º-B e 6º-C, foram revogados pelo artigo 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05 de abril, e cuja entrada em vigor se deu a 06 de abril de 2021 (artigo 7.º).
[5] Neste sentido são também claros os Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, que declarou o estado de emergência (artigo 5.º, n.º 1), 17-A/2020, de 2 de abril (artigo 7.º, n.º 1), e 20-A/2020, de 17 de abril (artigo 6.º, n.º 1), que o renovaram.
[6] Concluindo que “o facto de a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e de a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, corresponderem a leis temporárias não altera a circunstância de o alargamento de prazos prescricionais, que foi ditado por uma lei nova, não poder ser aplicado retroativamente. Isto porque o problema de fundo continua a ser um problema de sucessão de leis no tempo. Ora, estando em causa um problema de sucessão de leis no tempo, vigora o princípio da não aplicação retroativa da lei penal, em especial na vertente da não aplicação ao agente de um regime legal mais desfavorável do que aquele que vigorava ao tempo da prática do facto. A circunstância de a Lei n.º 1-A/2020 (incluindo as suas sucessivas alterações, nomeadamente pela Lei n.º 4-B/2021) ser uma lei temporária significa apenas que, aos factos praticados durante a sua vigência, aplicar-se-ão as regras prescricionais aí definidas (cfr. artigo 2.º, n.º 3, do Código Penal e artigo 3.º, n.º 3, do Regime Geral das Contraordenações).Ou seja, quando estão em causa questões substantivas, mesmo a lei temporária vale, única e exclusivamente, para o futuro e não para o passado”.
[7] No mesmo sentido, o aresto vindo de referir, cita GIAN LUIGI GATTA, segundo o qual “quando o prazo de prescrição não tenha ainda atingido o seu fim, ao determinar o prolongamento – como no caos da suspensão motivada pela pandemia –, a lei superveniente não torna punível um facto não punível: ela limita-se a conceder ao Estado, por qualquer motivo, neste caso por força de uma emergência sanitária, mais tempo para apurar os factos e a responsabilidade criminal. O direito de defesa não resulta, de modo algum, comprometido e o Estado não abusa do poder punitivo, nem frustra aquela exigência de previsibilidade das consequências da violação da norma penal: como mostra a própria disciplina da prescrição do crime (…) o momento em que se cumpre a prescrição é, na verdade, variável e em boa medida imprevisível antes da prática do facto, quando o agente nem sequer sabe se alguma vez será alvo de um procedimento criminal (cfr. “Lockdown da justiça penal, suspensão da prescrição do crime e princípio da irretroatividade: um curto-circuito”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Separata, Ano 30, n.º 20, maio-agosto 2020, Gestlegal, pág. 312 e 313).
[8] Também assim o AUJ do STJ nº4/2011, de 13 de janeiro, in Diário da República n.º 30/2011, Série I de 2011-02-11, páginas 769 - 780: “Na discussão sobre a natureza jurídica da prescrição, centrada na prescrição do procedimento criminal, domina, actualmente, uma concepção mista que vê na prescrição um instituto jurídico tanto substantiva como processualmente relevante e fundado
[9] Com o entendimento que o princípio da proibição da retroatividade de normas contraordenacionais não decorre do art.29º, nº4, mas sim do art.18º, nº3, da C.R.P. veja-se o ac TC 608/2013 (Cons. Maria de Fátima Mata-Mouros).
[10] Neste sentido, a declaração de voto constante do ac TC nº660/2021 (Cons. Maria de Fátima Mata-Mouros), embora restrita aos processos de natureza criminal, por aceitar que a norma em causa não é inconstitucional em matéria contraordenacional.
[11] Por foça das alterações introduzidas pela Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, veio a ser modificada, pela quarta vez, a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que, por efeito dos seus artigos 2.º e 8.º, revogou o artigo 7.º deste último diploma e aditou um regime transitório dirigido à realização de audiências de discussão e julgamentos e outras diligências processuais (cfr. artigo 6.º-A, n.ºs 1 a 5), mantendo, ainda assim, um conjunto de prazos processuais suspensos (cfr. artigo 6.º-A, n.º 6).
As alterações introduzidas pela Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, entraram em vigor no dia 3 de junho de 2020 (art.10º), pelo que, para o que releva para a presente decisão, da conjugação dos diplomas acima escrutinados resulta que o período da suspensão dos atos e prazos processuais e procedimentais estatuída na Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, vigorou – como sobredito - entre 9 de março de 2020 e 3 de junho de 2020, ou seja, 86 dias. ý
[12] No que ao caso interessa a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, no seu artigo 6.º-B, n.º 1, veio suspender todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais e Ministério Público.
E o artigo 6.º-C, no seu nº1, alínea b), veio suspender os prazos para a prática de atos em procedimentos contraordenacionais.
Apesar da entrada em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (artigo 5.º), a produção dos seus efeitos retroagiu à data de 22 de janeiro de 2021 (artigo 4.º).
Tais prazos apenas deixaram de estar suspensos até 5 de abril de 2021, uma vez que os referidos artigos 6.º-B e 6º-C, foram revogados pelo artigo 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05 de abril, e cuja entrada em vigor se deu a 06 de abril de 2021 (artigo 7.º).
[13] Tiago Lopes de Azevedo, in Lições de direito das contraordenações, Almedina, 2020, pg.223
[14] No direito comparado encontramos paralelo deste segmento normativo no código penal alemão (§ 78b num.2) e no código penal italiano (art.159º).
[15] Com efeito, segundo a jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador nº 1/2015 de 27 de Janeiro (in DR, 1ª Série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015, “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.»
[16] Augusto Silva Dias, Direito das Contra-Ordenações, Coimbra: Almedina, 2018, p. 240 - "A lei não diz que o MP acusa, mas tão-só que aquele acto de envio vale como acusação"; também assim, Alexandra Vilela, O Direito de Mera Ordenação Social, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 469. Como afirma José Lobo Moutinho, in A reformatio in pejus no processo de contraordenações, pg.446, “o poder que a lei dá ao Ministério Público não é o de formular uma acusação autónoma, mas o de apresentar ou não os autos ao Juiz. Este é que é o acto que vale como acusação”.
[17] Neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, Lisboa: UCP, 2011, art. 62.º/nm. 6, p. 258.
[18] Germano Marques da Silva, Direito Penal Português I (introdução e teoria da lei penal), 3.ª ed., Lisboa: Verbo, 2010, p. 179.
[19] José Lobo Moutinho, ob. cit., pg.446.
[20] cfr. RP 24.02.2021 (Jorge Langweg) www.dgsi.pt., assim sumariado: “O regime da alteração dos factos na audiência de julgamento no processo contraordenacional rege-se por critérios distintos do processo penal, pois o Tribunal procede a uma renovação da instância baseada na remessa dos autos e não a uma mera reforma da decisão administrativa recorrida, devendo, por isso, ter em conta toda a prova já produzida nos autos e a que vier a ser produzida na audiência de julgamento, bem como todos os factos que dela resultem, mesmo que não tenham sido incluídos na decisão administrativa recorrida ou não tenham sido invocados pela defesa diante da autoridade administrativa”.
[21] Dispõe o artigo 32.º, da C.R.P., no seu n.º 10, que «Nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.». Trata-se de uma manifestação do princípio da presunção de inocência (plasmado no n.º 2 do mesmo normativo constitucional), o qual é um dos baluartes do Estado de Direito democrático (artigo 2.º, da CRP).
No mesmo sentido, dispõe o artigo 50.º, do RGCOC, que «não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre.».
Não obstante, tem sido entendido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional que «a variação do grau de vinculação aos princípios do direito criminal, e a autonomia do tipo de sanção previsto para as contraordenações, repercute-se a nível adjetivo, não se justificando que sejam aplicáveis ao processo contraordenacional duma forma global e cega todos os princípios que orientam o direito processual penal. No plano jurídico-constitucional, a invocação das garantias de processo criminal em sede de procedimento contraordenacional deve ser precedida de especiais cautelas.» (in acórdão do Tribunal Constitucional n.º 487/2009, de 28 de setembro de 2009, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, negrito e sublinhado nossos).
A punição das condutas contraordenacionais terá de respeitar todas as garantias de defesa do arguido, que se manifestam, desde logo, na comunicação dos factos que lhe são imputados e da sua audição acerca dos mesmos antes da aplicação da sanção, ainda que essas garantias de defesa não correspondam inteiramente, mutatis mutandis, às inerentes ao direito penal e processual penal.
[22] Albuquerque, Paulo Pinto de. 2011. Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Universidade Católica Editora.
Dias, Figueiredo. 1993. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime. Aequitas- Editorial Notícias.
—. 2004. Direito Penal, Parte Geral. Coimbra Editora.
[23] Sobre a relevância e extensão desta proibição aquando da impugnação judicial da decisão administrativa - cfr. Augusto Silva Dias, Direito das Contra-Ordenações, Coimbra: Almedina, 2018, p. 248-9.
No sentido da aplicação desta proibição quer aquando da impugnação judicial, quer aquando do recurso para a 2.ª instância, cfr. José Lobo Moutinho, ob. cit., pg.437 ss, Oliveira Mendes/Santos Cabral, Notas ao Regimes Geral das Contra-Ordenações e coimas, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 254; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, Lisboa: UCP, 2011, art. 72.º-A, pg.295.
[24] Nuno Brandão, in Crimes e contra-ordenações: da cisão à convergência material, 2013, pg. 782, nota 2951, em https://eg.uc.pt/bitstream/10316/23886/1/Crimes%20e%20Contra-Ordena%c3%a7%c3%b5es.pdf).
Como afirma Augusto Silva Dias, in ob. cit., pg.248, a proibição da reformatio in pejus “funda-se no direito ao recurso consagrado no art.32º, nº1, da C.R.P., no qual o direito de impugnação judicial entronca, e, de forma indireta, nas garantias do processo equitativo e da tutela jurisdicional efectiva”.
[25 Cfr. Ac RC 06-05-2015 (Maria José Nogueira) www.dgsi.pt, concluindo “no sentido de que, em sede de impugnação judicial, a alteração possível dos factos constantes da decisão da autoridade administrativa, esbarra com o limite intransponível da alteração substancial. Melhor dito, tal limite só poderá ser transposto por intermédio da comunicação a que se reporta o artigo 359º do CPP, aplicável ex vi da remissão operada pelo artigo 41º do RGCO, o qual, a par do seu artigo 32º, constitui a tradução inequívoca da intenção, ab initio estabelecida pelo legislador, de, nos casos omissos, o intérprete e aplicador do direito se socorrer das norma penais e processuais penais com respeito, é certo, pelas especificidades do direito das contraordenações”.