Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
319/16.9GBPNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: CRIME DE DANO
GRAFFITIS
CONTRA-ORDENAÇÃO
Nº do Documento: RP20171011319/16.9GBPNF.P1
Data do Acordão: 10/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 49, FLS.167-173)
Área Temática: .
Sumário: I - A conduta dos arguidos, ao pintarem com sprays as carruagens do comboio, apesar de integrar - por constituir actividade não licenciada nem autorizada - contra-ordenação, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 1.º, 2.º alínea b), 3.º e 6.º alínea b) da Lei 61/2013, tal não impede que coexista com o crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213.º/1 alínea c) C Penal.
II - Revestindo, no entanto, as normas da Lei 61/2013 carácter subsidiário, deve, por isso, a apontada conduta ser subsumível à norma do C Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec nº 319/16.9GBPNF.P1
TRP 1ª Secção Criminal

Acordam em conferência os juízes no Tribunal da Relação do Porto

No Proc. nº 319/16.9GBPNF do Tribunal da Comarca do Porto Este - Juízo de Instrução Criminal do Marco de Canavezes – Juiz 2, em que são arguidos
- B…, e
- C…

Na sequência da acusação pública deduzida pelo MºPº por crime de dano qualificado p.p. pelo artº 213º nº1 al. c) CP e da instrução requerida pelo arguido, C…. foi proferido
despacho de não pronuncia, que decidiu:
“Não pronunciar os arguidos B… e C…, pela prática de um crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213.°/1-c) do Código Penal, como lhes imputa o MP.”

Recorre o MºPº, o qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:
a) O Mm° Juiz a quo decidiu não pronunciar os arguidos B… e C…, por considerar que a conduta dos arguidos que, agindo em conjunto e em comunhão de esforços e de fins, grafitaram o comboio n° …5 numa superfície de cerca de 40 m2, e o comboio n° …4 numa área de 25 m2, causando prejuízos computados em €539,66, não integra a prática do crime de dano qualificado, p. e p. pelos artes 212°, 213°, n°1, c), todos do Código Penal, mas apenas a prática de uma contra ordenação, p. e p. pela Lei n° 61/2013, de 23/08;
b) O Ministério Público entende que os autos reúnem indícios suficientes de que os arguidos procederam da forma descrita na acusação e, ou fazê-lo, incorreram na prática do crime pelo qual vinham acusados;
c) E que, tratando-se de crime público, a C.P. não necessitava de ter apresentado queixa.
d) A pintura de grafitti configura uma intervenção corpórea não totalmente irrelevante, já que vem alterar a composição material da parte visível do bem e que, dessa forma, preenche o elemento objectivo do crime de dano: a desfiguração de coisa alheia;
e) A disciplina punitiva trazida pela Lei n° 61/2012, de 23 de Agosto, como relativa a matéria contra-ordenacional que visa, na sua essência, acautelar desmandos/excessos e a “protecção ambiental”;
f) A exposição de motivos daquela lei n° 61/2013, de 23 de Agosto em nenhum momento revela a vontade do legislador em proceder à descriminalização daquelas condutas; bem pelo contrário, pretende sempre alargar a margem de punição daqueles comportamentos;
g) A lei 61/2013 é uma mera lei de licenciamento administrativo; em rigor, a contra-ordenação não pune o estrago mas a falta de licença; aliás, algumas das condutas tipificadas como contra-ordenação nem sequer preenchem o tipo legal de crime de dano -aquelas que não atingem intrinsecamente a coisa;
Ii) O crime de dano (art° 212° CP), ainda que de forma indirecta, visa a protecção do património;
i) Não houve qualquer descriminalização (mesmo que parcial) do crime, nem a Lei 61/2013 modificou ou introduziu qualquer alteração nos respectivos elementos do tipo;
j) Na norma contida no art°2o° do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro (com as sucessivas alterações), onde expressamente se prevê, sob a epígrafe “Concurso de infracções” que “Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação, será o agente sempre punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contra-ordenação”, em aplicação conjugada com o disposto no art°6°, n°1 da Lei n°61/2013, implica que, mesmo que se entenda que a conduta dos arguidos constituía, simultaneamente, crime de contra-ordenação, a punição pelo crime seria sempre possível;
k) Ao não pronunciar os arguidos como vinham acusados, o MM° JIC violou, entre outros, os art° 308°, do Código de Processo Penal, os art°s 212°, 213°, n°i, c), do Código Penal, os art°s 200, do RGCOC, e o art° 6°, da Lei 61/2013.

O arguido respondeu ao recurso defendendo a sua improcedência;
Nesta Relação o ilustre PGA emitiu parecer no sentido procedência do recurso
Foi cumprido o artº 417º2 CPP

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência.
Cumpre apreciar.
Consta do despacho de não pronúncia (transcrição):
“…
1.3. A abertura da instrução.
Foi aberta a instrução.
Ouvido o arguido requerente, realizou-se o debate instrutório, com observância do legal formalismo, como consta da acta.
2. Saneamento.
O Tribunal é o competente.
2.1. É pois o momento de ser proferida a decisão instrutória, nos termos do disposto no artigo 307.°I1 do Código de Processo Penal, devendo, contudo, nos termos do artigo 308.°13 do Código de Processo Penal, o juiz começar por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.
Tais questões correspondem à ideia de saneamento do processo, respeitam ã instância e são independentes da questão do mérito - Germano Marques da Silva, in Curso de Processo penal, III voL, pág. 172
Na verdade, enquanto as questões prévias são questões de natureza processual:
«São os pressupostos da existência, validade ou regularidade do procedimento e dos actos processuais”, as questões incidentais, são aquelas que são estranhas ao desenvolvimento normal do processo, são questões acidentais.
Como diz Luís Osório, (Se nesta altura do processo existe qualquer motivo suficientemente provado que vá certamente impedir que se conheça do fundo da questão, que se conheça da acusação, é de boa política não continuar o processo sem se arredar esse motivo, se for possível; ou pôr-se aqui o termo ao processo, se não for possível arredá-lo).
2.1.1. Da descriminalização da conduta.
Por concordar integralmente e nada mais ter a acrescentar segue-se a jurisprudência do TRL no acórdão proferido em 18/02/2015, no proc. 1593111.2S6LSB.L1-3, consultável em www.dgsi.pt, com o sumário: “ A Lei 61/2013, de 23 de Agosto, procedeu a uma revogação tácita parcial do artigo 212.° do Código Penal, por incompatibilidade entre esta norma, no segmento relativo á desfiguração da coisa por meio de grafito - e a nova lei que regula em toda a sua extensão a matéria respeitante aos grafitos - neles se incluindo a que ora esta em causa: pintura através da utilização de técnicas de pintura”.
Ora, tanto em apreciação no referido acórdão como neste processo está em causa a modalidade de acção típica desfigurar, sendo que no referido acórdão o objecto da acção foi a parede de um edifício público, no caso do pavilhão de Portugal, sendo que neste processo objecto da acção foram duas carruagens de comboio.
E assim se fundamentou no referido acórdão, relatora, Des. Maria Elisa Marques: “A questão que se coloca é, pois, a de saber se existe sobreposição do art. 213 n° 1 [artº 212 crime matricial] do Código Penal - no segmento desfigurar - com as disposições da Lei n° 61/2013, de 23 de Agosto.
O que vale por questionar, portanto, se estamos em presença de uma contraordenação prevenida na lei n°61/2013, de 23 de Agosto ou antes de um crime de dano previsto no Código Penal.
Vejamos, então, qual o tipo de infracção que está em causa.
Comete o crime de dano previsto no ad. 212 “Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia (...)»
A descrição tipica do dano compreende quatro modalidades de acção: destruir, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia. A respeito destes conceitos veja-se costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, artº 212, 32ss.
Dentro dessas modalidades de acção, não temos dúvidas em enquadrar a conduta descrita na acusação, no conceito de desfiguração.
Efectivamente, na generalidade dos casos, podemos afirmar que a pintura de grafitti altera a imagem exterior da coisa sem afectar a sua substância, ou seja, sem a danificar ou destruir, e também na generalidade dos casos sem a tornar não utilizável, o mesmo é dizer, sem a tornar a coisa inadequada a cumprira função ou fim a que se destina.
Entretanto, entrou em vigor, em 1 de Setembro de 2013, a lei 61/2013, de 23 de Agosto, que estabelece no seu artº. 1 n° 1«o regïme aplicável aos grafitos, afixações, picotagem e outras formas de alteração, ainda que temporária, das carateristicas originais de superficies exteriores de edifícios, pavimentos, passeios, muros e outras infraestruturas» quando ((tais alterações não sejam autorizadas pelos respectivos proprietários e licenciadas pelas entidades competentes conforme nela definido)).
Segundo a definição legal contida no artigo 2°, alínea b), entende-se por “grafitos”» os desenhos, pinturas ou inscrições, designadamente de palavras, frases, símbolos ou códigos, ainda que tenham caráter artístico, decorativo, informativo, ou outro, efetuados através da utilização de técnicas de pintura, perfuração, gravação ou quaisquer outras que permitam, de uma forma duradoura, a sua conservação e visualização por terceiros, apostos nas superfícies a que se refere o n.° 1 do artigo anterior e que defrontem com a via pública, sejam elas de acesso público ou de acesso restrito, ou nela se situem”.
Sendo a violação daquela norma sancionada, nos termos do artigo 6°, n.° 1, nos moldes seguintes: “Fora dos casos permitidos, e quando não for aplicável sanção mais grave por força de outra disposição legal, a realização de afixação, grafito e ou picotagem constitui:
a) Contraordenação muilo grave, quando descaracterize, altere, manche ou conspurque, de forma permanente ou prolongada, a aparência exterior do bem móvel ou imóvel, ou a aparência do exterior ou interior de material circulante de passageiros ou de mercadorias, pondo em grave risco a sua restauração, pelo caráter definitivo ou irreversível do meio utilizado para a sua alteração;
b) Contraordenação grave, quando descaracterize, altere, manche ou conspurque, de forma prolongada, a aparência exterior do bem móvel ou imóvel, ou a aparência do exterior ou interior de material circulante de passageiros ou de mercadorias, mas sendo reversível por via da simples limpeza ou pintura,
c) Contraordenação leve, quando descaracterize, altere, manche ou conspurque a aparência exterior do bem móvel ou imóvel, ou a aparência do exterior ou interior de material circulante de passageiros ou de mercadorias, mas sendo reversível por via da simples remoção, limpeza ou pintura.
«As intervenções a que se referem as alíneas b) e c) do número anterior que descaracterizem, alterem, manchem ou conspurquem a aparência de monumentos, edifícios públicos, religiosos, de interesse público e de valor histórico ou artístico, constituem sempre contraordenação muito grave”» - n°2 do mesmo preceito.
E a que correspondem coimas que variam entre 1000 a 25000; 150 a 7500 e 100 a 2500 euros - como decorre dos n°3, 2 e 1 respectivamente do ad. 9 da mesma Lei.
Por fim dizer que o art. 8.° sob epigrafe ‘Instrução e aplicação de coimas e outras sanções” estatui que:
‘1 - A instrução dos processos de contraordenação compete às câmaras municipais e a aplicação das coimas e demais sanções ao respetivo presidente.
2 - Quando o ordenamento, a gestão ou manutenção do património objeto de alteração não sejam da competência do municipio a instrução do processo cabe à entidade administrativa competente para a gestão e manutenção do património em causa, competindo a aplicação das coimas e demais sanções ao respetivo dirigente màximo.
3 - Tratando -se da alteração de superfície interior e ou exterior de material circulante de passageiros ou de mercadorias, designadamente de comboios, metropolitanos, elétricos, elevadores, autocarros ou barcos, a instrução dos processos contraordenacionais compete ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes, 1. P., e a aplicação das coimas e demais sanções ao respectivo presidente, sem prejuízo das competências dos órgãos e serviços próprios das administrações regionais”.
Da observação dos comandos legais em causa e considerações referidas a propósito do conceito de desfiguração enquadradas no crime de dano verifica-se ((uma facilmente apreensível coincidência entre os factos objecto da acusação nos autos e a descrição constante das modalidades de acção reprimidas pela Lei 61/2013, de 23 de Agosto», como pertinentemente assinala o Ministério Público.
Todavia, diferentemente do que propugna, temos para nós, ressalvando sempre opinião em contrário, que com a citada lei 61/2013, de 23 de Agosto, houve uma revogação tácita parcial do ad. 212, por incompatibilidade entre esta norma, no segmento relativo à desfiguração da coisa por meio de grafito - e a nova lei que regula em toda a sua extensão a matéria respeitante aos grafitos - neles se incluindo a que ora esta em causa: pintura através da utilização de técnicas de pintura.
E esta conclusão não é contrariada, com o texto da exposição de motivos do diploma cuja interpretação o ilustre recorrente convoca.
Na verdade, essa exposição de motivos não encerra qualquer argumento a favor da manutenção do crime de dano para os casos de desfiguração, nomeadamente na parte em que ai se refere «Ao utilizar como suporte paredes de edificações abandonadas, e bem assim, quaisquer outras superfícies disponíveis como [...], tais práticas merecem uma resposta mais completa por parte do legislador, nomeadamente através de uma censura adequada do pondo de vista contra-ordenacional, censura esta que não exclui evidentemente, a eventual aplicação, nos casos susceptiveis de qualificação como crime, das respectivas disposições da legislação penal” (sublinhado nosso).
Como efeito, como acima se aludiu, se na generalidade dos casos os grafitos apenas alteram a imagem exterior da coisa sem afectar a sua substância ou não as tornam “não utilizáveis’ outros casos haverá - não nos custa admitir - em que os grafitos possam danificada a coisa ou torna-la inadequada a cumprir a sua função [por ex. a utilização de pintura corrosiva pode em certo tipo de coisas afectar a sua substáncia e estrutura] e para esses casos subsistirá, como nos parece evidente, o crime de dano.
Por outro lado, em termos, ainda, de regras de interpretação da lei [ad.° 9 do C Civil], não vemos que seja de considerar constituir a contra-ordenação agora criada «na sua génese e escopo, uma contraordenação ambiental - artigos 1°, n°3 da Lei n.° 5072006, de 29 de Agosto, que aprova a lei quadro das contra-ordenações ambientais, e 17°, n°s 1 e 3, alíneas a) e b) da Lei de Bases do Ambiente - tendo assim plena aplicação o art°28° da referida LQCOA, onde se lê que “Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação ambiental, o arguido é responsabilizado por ambas as infracções, instaurando-se, para o efeito, processos distintos a decidir pelas autoridades competentes» que não tem, sem vem vemos, qualquer correspondência na letra da lei.
Assim e acompanhando a Mma juíza «não se pode falar nem de contraordenações ambientais, nem de dupla punição como crime e contraordenação. Pelo contrário, por considerar que o regime penal não era adequado e tais situações, veio o legislador substituir tal punição pelo sancionamento contra ordenacional’,
Operou-se, pois, a despenalização da conduta pela qual o arguido foi acusado nos autos que foi convertida em contraordenação.
O que, como acima dissemos, deve ser declarado em qualquer altura do processo”.
Termos em que, não comportando a acção dos arguidos (requerente e não requerente) uma modalidade típica no quadro do crime de dano, serão ambos não pronunciados.
2.1.2. Do crime de dano simples ou público.
Apenas por uma questão de cautela, na medida em que o supra decidido prejudica a apreciação desta questão, sempre se dirá o seguinte, acompanhando também jurisprudência, no caso a citada pelo arguido:
No referido acórdão do TRP, de 07/07/2010, proc. 112/06.7P6PRT.P1, relatora Des. Maria Leonor esteves, tirado em momento anterior à publicação da lei 61/2013, de 23 de Agosto, refere-se o seguinte:
“A pintura de uma expressão verbal e de um número de telefone em separadores de vias rodoviárias, estruturas de pontes e viadutos, caixas de electricidade, caixas de reciclagem, placas de trânsito, edifícios públicos e numa rotunda, apesar de ser uma situação, em abstracto, subsumível no crime de dano qualificado do art. 213°, do CP, integra, contudo, a prática de um crime de dano (simples) do artº. 212°, do CP, por não ter causado, para além do dano estético, um dano funcional”.
Ora, no caso dos autos, pese embora da acusação não resulte claro, tem de considerar-se que apenas resultou um dano estético, o qual originou o prejuízo afirmado pelo MP, o qual se admite ter resultado do custo com a limpeza dos dois comboios, na medida em que o MP diz que os arguidos munidos de latas de sprays grafitaram concretas áreas dos dois comboios.
Ou seja, nos termos da própria acusação apenas aos arguidos poderia ser imputada a prática de um crime de dano simples, p. e p. pelo artigo 212.°l1 do Código Penal (entendendo-se não se estar conhecer esta questão em momento processualmente antecipado: Ac. fix. jur. do STJ 11/2013).
2.1.3. Da falta de queixa.
Dispõe o artigo 212.°/3 do Código Penal que “o procedimento criminal depende queixa”.
Nos termos do disposto no artigo 113.°/1 do Código Penal quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.
No caso dos autos, o ofendido (Comboios de Portugal) não apresentou queixa, tendo-se limitado a indicar os prejuízos sofridos (fis. 12), na sequência do solicitado pelo MP a fls. 10.
Assim sendo, presentemente, carece o Ministério Público de legitimidade para promover o procedimento criminal (artigo 49.°/1 do CPP).
3. Decisão.
3.1.De não pronúncia.
Assim, tendo em conta o acima exposto e atento o disposto no artigo 308.° do
Código de Processo Penal, decido:
Não pronunciar os arguidos B… e C…, pela prática de um crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213.°/1-c) do Código Penal, como lhes imputa o MP.
*
Sem custas.
Notifique.
Oportunamente arquive.
*
Registe em livro próprio, nos termos da divulgação n.° 2112013 do CSM.
Naturalmente sem prejuízo do recurso, em face do disposto nos artigos 2.°I-c), 6°I1- a) e 8.°13 da lei 61/2013, de 23 de Agosto, comunique ao MP, para os fins tidos por convenientes, designadamente para efeitos de eventual remessa de certidão ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes, 1.P.”
*
São as seguintes as questões a apreciar:
Qualificação dos factos (crime e contra ordenação)
Legitimidade do MºPº
*
O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP, Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335).

Como flui do despacho de não pronuncia recorrido, o diferendo, ocorre não quanto aos factos praticados mas quanto à sua qualificação jurídica, defendendo-se naquele a sua descriminalização ou no mínimo constituir apenas crime de dano simples a necessitar de queixa do ofendido que não existiu, carecendo por isso o MºPº de legitimidade para acusar.
Vejamos.
Dispõe o artº 213º 1 al.c) CP que: 1 - Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável: …..
c) Coisa … destinados ao uso e utilidade públicos ou a organismos ou serviços públicos;
…é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.” sendo que o artº 212º CP dispõe que :”1 - Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa …, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. (…)
3 - O procedimento criminal depende de queixa”, configurando-se assim o crime de dano simples e o qualificado.

O tribunal recorrido por um lado considerou que o crime de dano seria simples, por não ter posto em causa a função da coisa (carruagens do comboio) e por isso o procedimento dependia de queixa.
Não nos parece que assim deva ser, no caso concreto, em face da diversidade dos objectos desfigurados (a situação em causa configura a acção de desfigurar as carruagens de comboio, pois através da pintura com sprays foi afectada a imagem exterior das mesmas, sem afectar a sua substancia podendo continuar a sua função de transporte), e por outro lado tais bens desfigurados são de uso e utilidade publicas, e centrando-se a circunstância qualificativa no uso e utilidade publica do bem e não em qualquer outro item (mormente na maior ou menor afectação da sua funcionalidade), mostra-se preenchida a circunstância ali prevista pelo que o facto preenche a previsão do artº 213º 1 c) CP, sem esquecer que o valor do prejuízo causado (valor necessário com a sua remoção do grafitti e reposição na situação anterior à acção danosa), não é despiciendo (539,66€), indo para além da danosidade material e social tipica mínima que a norma contém.
Por outro lado entende o tribunal recorrido que a conduta está descriminalizada pela lei 61/2013 de 23/8 e avança em seu apoio o ac. R Lx 18/2/2015 www.dgsi.pt, em cujo sumário se lê: “II- A Lei 61/2013, de 23 de Agosto, procedeu a uma revogação tácita parcial do art. 212 do Código Penal, por incompatibilidade entre esta norma, no segmento relativo à desfiguração da coisa por meio de grafito – e a nova lei que regula em toda a sua extensão a matéria respeitante aos grafitos - neles se incluindo a que ora esta em causa: pintura através da utilização de técnicas de pintura”

A lei 61/2013, dispõe no seu artº 1 que “1 - A presente lei estabelece o regime aplicável aos grafitos, afixações, picotagem e outras formas de alteração, ainda que temporária, das caraterísticas originais de superfícies(…)interiores e ou exteriores de material circulante de passageiros ou de mercadorias, quando tais alterações não sejam autorizadas pelos respetivos proprietários e licenciadas pelas entidades competentes conforme nela definido.” Donde abrange os grafitos não autorizados nem licenciados nas carruagens dos comboios, como foi o caso, pois grafitos são “os desenhos, pinturas ou inscrições, designadamente de palavras, frases, símbolos ou códigos, ainda que tenham caráter artístico, decorativo, informativo, ou outro, efetuados através da utilização de técnicas de pintura, perfuração, gravação ou quaisquer outras que permitam, de uma forma duradoura, a sua conservação e visualização por terceiros, apostos nas superfícies a que se refere o n.º 1 do artigo anterior e que defrontem com a via pública, sejam elas de acesso público ou de acesso restrito, ou nela se situem” - artº 2º al.b).
Apesar de nem todas as acções de grafitos possam ser autorizadas e licenciadas (artº3) a sua realização não autorizada e licenciada constitui contraordenação graduada na sua gravidade em função da durabilidade ou facilidade de remoção do grafito, sendo que no caso em causa, através de pintura das carruagens de comboio com tinta de spray, em face da sua removibilidade, parece configurar a contra ordenação grave do artº 6º al. b) da mesmas lei que considerar “b) Contraordenação grave, quando … altere, … de forma prolongada, … a aparência do exterior ou interior de material circulante de passageiros ou de mercadorias, mas sendo reversível por via da simples limpeza ou pintura;”

A acção de grafitar porque através de pintura por regra altera apenas a imagem exterior da coisa sem afectar a sua substância, sem a danificar ou destruir e sem a tornar não utilizável, em face do fim ou da sua função, assim sendo e em vista dos factos imputados, e porque não licenciado nem autorizado os arguidos incorreram na contra-ordenação imputada, mas como esta regulamentação visa apenas o licenciamento e autorização do acto, tal não impede que coexista com o crime de dano.
Na verdade, o bem jurídico protegido é diverso. Com o crime protege-se o património e da sua violação resulta um prejuízo, um dano patrimonial, e na contra ordenação visa-se apenas regular/legalizar a actividade em causa independentemente do dano causado.
Tais regras da Lei 61/2013 revestem caracter subsidiário só sendo aplicáveis na falta de norma mais grave, estabelecendo o artº 6º 1 tal regra ao prever expressamente “1 - Fora dos casos permitidos, e quando não for aplicável sanção mais grave por força de outra disposição legal, a realização de afixação, grafito e ou picotagem constitui: (…)”, donde em caso de grafitagem não autorizada comete uma contra ordenação, e sem prejuízo de ser-lhe aplicável outra sanção se outra lei a prever e for mais grave (ou seja constituir crime, caso de ocorrência de dano).
Ora no caso a conduta dos arguidos preenche também os elementos típicos objectivos e subjectivos do crime de dano qualificado imputado, pelo que como norma mais grave é a ele subsumível a conduta em causa.
Devem assim a nosso ver ser pronunciados os arguidos.
Em consequência do que fica prejudicada a apreciação das demais questões.
*
Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto, decide:
Julgar procedente o recurso interposto pelo Mº Pº e em consequência revoga o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que pronuncie os arguidos pelo crime de dano qualificado de que foram acusados.
Sem custas.
Notifique.
Dn
*
Porto, 11/10/2017
José Carreto
Paula Guerreiro