Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
388/21.0T8VCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONCLUSÕES
ÓNUS RECURSÓRIOS
REJEIÇÃO DO RECURSO
Nº do Documento: RP20211108388/21.0T8VCD.P1
Data do Acordão: 11/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O recorrente que impugna a decisão de facto tem que fazer constar das conclusões do recurso os exactos pontos da matéria de facto de cujo julgamento discorda e por referência aos pontos constantes da decisão recorrida (factos provados e não provados), em conformidade com o disposto no artigo 640º, n.º 1, alínea a), do CPC.
II - Por outro lado, ainda, o mesmo recorrente tem, nos termos da alínea c) do n.º 1 do citado artigo 640º, que indicar, relativamente às respostas que, na sua perspectiva, deveriam ser restritivas ou explicativas, a resposta alternativa por si proposta.
III - O incumprimento destes ónus primários, atinentes à delimitação do objecto do recurso e do âmbito da actividade jurisdicional que é reclamada do Tribunal ad quem, conduzem à imediata rejeição do recurso na vertente de impugnação da decisão de facto, sem possibilidade de convite ao seu aperfeiçoamento, nos termos do n.º 1 do artigo 640º.
IV - A alteração da decisão de facto provinda do Tribunal de 1ª instância só se justifica quando seja possível constatar uma violação ou desvio na formação crítica da convicção do julgador e não quando essa convicção, analisada de forma independente e autónoma pela Relação, colhe pleno apoio na prova produzida e a mesma se mostra justificada segundo as regras da experiência, da lógica e da ciência aplicáveis ao caso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 388/21.0TVCD.P1 - Apelação
Origem: Juízo Local Cível de Vila do Conde - Juiz 2
Relator: Jorge Seabra
1º Adjunto: Juiz Desembargador Pedro Damião e Cunha
2º Adjunto: Juíza Desembargadora Maria de Fátima Andrade
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Sumário:
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO:
1. B…, residente na Rua …, n.º ., … – Vila do Conde e C…, residente na Avenida …, n.º … – Vila do Conde, intentaram o presente procedimento cautelar de arrolamento, contra D…, residente na Rua …, n.º …, 1.º direito, … – Vila do Conde.
Alegaram os requerentes, para tanto e em síntese, que são netos da falecida E…, que a mãe lhes cedeu o seu quinhão hereditário no inventário da avó, que corre termos no Cartório Notarial.
Mais alegaram que o requerido foi nomeado como cabeça de casal no aludido inventário, que não obstante tenha apresentado a relação de bens e a mesma tenha sido objecto de várias reclamações, continua a padecer de inúmeros lapsos, demonstrando a intenção do mesmo em fazer seu o que faz parte do acervo hereditário.
Invocam também que o requerido administra os bens como se fosse o único proprietário, tendo levantado cem mil euros de várias contas diminuindo o património a partilhar, tem movimentado contas bancárias e dissipado bens monetários, escondido alguns com a ajuda do descendente F…, dando-os de seguida como furtados.
Pedem os requerentes que o procedimento cautelar ser julgado procedente e, em consequência, seja decretado o arrolamento dos seguintes bens:
a. Todo o recheio que se encontra na casa de morada de família sita na Rua …, n.º …, 1.º Dto, freguesia …, Vila do Conde, bem como o recheio que se encontra no prédio pertencente ao Requerido e Inventariada, contíguo à referida habitação, que é um Armazém;
b. Todo o recheio que se encontra no prédio urbano sito na Rua …, n.º … e …, freguesia …, Vila do Conde;
c. Contas bancárias tituladas pelo ora Requerido e/ou pela Inventariada;
d. Todos os documentos em nome da Inventariada e/ou Requerido que se relacionem com a composição do acervo hereditário;
e. Todos os imóveis em nome do Requerido e/ou da Inventariada e respectivos recheios.
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2. Foi indeferida a dispensa de audição do requerido e determinada, após trânsito, a citação do mesmo.
O requerido apresentou oposição ao procedimento cautelar.
Alegou, em suma, que foi ele que construiu o património familiar, constituído uma sociedade para o efeito. Confirmou a pendência do inventário por óbito da mulher e a cedência do quinhão hereditário para os requerentes, que o processo já tem conferência marcada, foi apresentada relação de bens, reclamações, foram decididas sem que houvesse impugnações, estando o inventário estabilizado.
Mais invocou que vendeu todos os imóveis pois que estava mandatado para tal pela falecida mulher, que os herdeiros o sabiam e nunca o puseram em causa, que dissolveu a sociedade, liquidou-a e fez a partilha, beneficiando uma vez mais o património do casal pelos valores que recebeu. Negou ter desviado, delapidado ou ocultado património, que sempre administrou, tendo sido oficiado no inventário a todos os bancos para apurar as contas bancárias e tendo o requerido autorizado o Banco de Portugal a indicar as suas próprias contas.
Pediu, assim, a improcedência da providência e a condenação dos requerentes como litigantes de má-fé.
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3. Realizou-se a produção de prova, com inquirição das testemunhas arroladas pelas partes, vindo a ser proferida decisão final que julgou improcedente a providência deduzida.
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4. Inconformados, vieram os Requerentes interpor recurso de apelação, que foi admitido, em cujo âmbito oferecem alegações e deduzem, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
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5. O Recorrido deduziu contra-alegações, nas quais pugnou pela manutenção da decisão recorrida.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não sendo consentido a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil [doravante designado apenas por CPC].
Por conseguinte, em face das conclusões do recurso e a despeito da sua extensão, as questões a decidir são as seguintes:
i. Nulidade da decisão (artigo 615º, n.º 1 alíneas c) e d), do CPC);
ii. Impugnação da decisão de facto;
iii. Da verificação dos pressupostos para o decretamento da providência.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
O tribunal de 1ª instância julgou provada a seguinte factualidade:
1. Os Requerentes são netos de E…, falecida em 08.03.2019, no estado de casada com o Requerido.
2. Em virtude do falecimento de E…, deu entrada de um processo de inventário sob o n.º …./191, que corre termos no Cartório Notarial de Vila do Conde – a cargo do Exmo. Dr. G….
3. A descendente H… cedeu, em 25.11.2020, o seu quinhão hereditário aos seus filhos, ora Requerentes.
4. No âmbito do processo supra, e ainda antes de qualquer cedência de quinhão hereditário, o Requerido/Cabeça de Casal foi notificado para apresentar a devida relação de bens, por forma a aferir quais os bens que, efectivamente, compõem o acervo hereditário a partilhar.
5. Nessa sequência, em 09.05.2019, o Requerido, através do seu mandatário, submeteu a relação de bens.
6. As interessadas H… e I… reclamaram da relação de bens apresentada.
7. Após a apresentação das diversas reclamações, o Requerido veio ao processo de inventário alegar o que tinha por conveniente, para além de especificar diversos negócios jurídicos através dos quais terá alienado património pertencente a ele e à inventariada.
8. O Requerido iniciou a sua vida e constituiu grande património, com a participação da sua falecida mulher, criando três filhos, com a única participação do seu filho F….
9. Ajudando os filhos, e mais tarde os netos.
10. O requerido foi desenvolvendo autonomamente a exploração de areia, compra e venda de terrenos e prédios urbanos e revenda dos mesmos, e foi comprando e construindo para o casal vários prédios.
11. Em 22 de Setembro de 1982 a sua mulher E… outorgou-lhe procuração com poderes necessários para vender quaisquer bens sitos nos concelhos de Matosinhos, Maia e Vila do Conde, com excepção da freguesia ….
12. Em 22 de Outubro de 2019, o Sr. Notário solicitou ao Banco de Portugal e aos CTT para informarem as contas bancárias existentes, os saldos existentes à data do óbito da falecida mulher, os certificados de aforro ou outros títulos.
13. Vieram os bancos J…, K…, L…, BANCO M…, N…, BANCO O…, P…, Q…, S…, T…, U…, V…, BANCO W…, X… e BANCO Y…, dar resposta negativa à pretensão dos interessados.
14. Em 28 de Abril de 2020 foi apresentado o relatório de avaliação dos imóveis, requerido pelo cabeça-de-casal e interessadas, sem reclamação dos interessados e tão só o pedido de rectificação de áreas dos estabelecimentos.
15. Em 1 de Setembro de 2020, na sequência da notificação do Sr. Notário, o Requerido, cabeça de casal, apresentou nova relação de bens e esclarecimentos.
16. Em 29 de Setembro de 2020 as interessadas apresentaram requerimentos, a que o cabeça-de-casal respondeu em 2 de Outubro de 2020 apresentando a relação de bens definitiva, que não sofreu reclamação ou qualquer observação.
17. Em 8 de Outubro de 2020 o cabeça-de casal apresentou a relação de despesas.
18. Em 12 de Outubro de 2020 o cabeça-de-casal apresentou requerimento no inventário a autorizar o BANCO DE PORTUGAL a fornecer os elementos que as interessadas pretendessem.
19. Em 28 de Outubro de 2020 o Sr. Notário proferiu despacho agendando a conferência preparatória para 13 de Novembro de 2020.
20. Após notificação do Dr. Notário, o cabeça-de-casal apresentou a relação das rendas e despesas até aí recebidas e feitas.
21. Em 6 de Novembro de 2020 a interessada H… constituiu mandatária a Sr. Dr.ª Z…, com poderes especiais para a conferência de interessados.
22. No dia 27 de Novembro de 2020, ocorreu a conferência preparatória, com a presença de todos os interessados, e seus advogados, sendo que H… esteve representada pela ainda sua advogada, com poderes especiais, sendo que nesta conferência ficou por acordo de todos os interessados, designado o dia 22 de Janeiro de 2021, para a conferência de interessados.
23. Tudo isto decorreu sem que houvesse um despacho que fosse impugnado e que transitou em julgado, assim se estabilizando o inventário.
24. Até ao dia 19 de Junho de 2017, o Requerido foi sócio-gerente da sociedade AB…, LDA, sendo ele titular de uma quota de 12.990,00 euros e o outro sócio, F…, titular de uma quota de 12.000,00 euros, ou seja, o primeiro com 51% e o segundo com 49% do capital social.
25. Na referida data dissolveu-se a sociedade, liquidou-se e fez-se a partilha, sendo que a sociedade teve início e foi registada em 24 de Setembro de 1980, sendo o requerido o único sócio-gerente com poderes para obrigar a sociedade.
26. Da partilha constante da escritura verifica-se que ao sócio-gerente D…, foram adjudicados oito prédios no valor global de 146.831,11 euros, enquanto ao sócio F… foram adjudicados cinco prédios no valor de 64.803,92 euros, do que resultou uma torna para este de 36.865,50 euros, que declarou receber.
27. O Requerido enriqueceu o património do casal, ficando beneficiado em relação ao seu sócio, que detinha 49% na sociedade.
28. Em 27 de Fevereiro de 2015, por si e como procurador de sua mulher, e a intervenção dos três filhos, celebrou os contratos de compra e venda lavrada no Cartório da Dra. AC…, a favor do neto e mulher, F… e mulher AD…, o prédio urbano (lote 3) composto de casa de rés-do-chão, primeiro andar, com garagem e anexo, sito na Rua …, nº …, na freguesia …, pelo preço de 186.000,00 euros.
29. Em 13 de Fevereiro de 2016, o requerido entregou a cada um dos filhos, H…, I… e F…, um cheque de 100.000,00 euros, que levantaram e fizeram seus.
30. O Requerido nas seguintes datas, celebrou as seguintes vendas de prédios que integraram o património do casal: em 16 de Outubro de 2017, 24 de Janeiro de 2018, 16 de Junho de 2018, 30 de Novembro de 2017, 13 de Julho de 2018, 21 de Agosto de 2018, 29 de Maio de 2018, 14 de Dezembro de 2017, 3 de Outubro de 2018, 7 de Março de 2018, 16 de Março de 2018 e 28 de Março de 2018.
31. Foi o Requerido quem sempre administrou o património do casal, quem durante anos cuidou da mulher, mantendo permanentemente cuidadoras a tratar da mulher de dia e de noite, em que despendeu milhares de euros, quem sempre pagou os avultados impostos devidos ao estado (IMI), conservou e procurou tratar de todo o património.
32. O requerido consentiu que a filha H… explorasse um estabelecimento e habitasse um andar gratuitamente, situação a que o Requerido cabeça de casal acaba de pôr termo.
33. Em 22 de Maio de 2020 foi proferido despacho de “saneamento das questões suscitadas nas reclamações apresentadas pelos interessados e resposta do cabeça-de-casal”, que não sofreu recurso ou reclamação.
34. Por sentença transitada em julgado em 01-03-2019, foi declarada a interdição, por anomalia psíquica, de E…, fixando-se o começo da incapacidade em 08-11-2013.
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Por outro lado, ainda, o Tribunal de 1ª instância julgou como não provados os seguintes factos:
a) A requerente do inventário foi H….
b) O requerido oculta contas que eram da titularidade da inventariada, oculta contas que são da sua única titularidade mas que por força do regime de casamento e da proveniência dos saldos bancários, também devem fazer parte do acervo hereditário.
c) Chegou ao conhecimento dos ora Requerentes que o ora Requerido levantou cerca de € 100.000,00 de várias contas (€ 100.000,00 em cada conta) diminuindo assim o património a partilhar.
d) O requerido não relaciona valores monetários advindos de contratos de arrendamentos de bens imóveis pertencentes ao acervo hereditário, encontrando-se a extraviar valores que fazem parte integrante do acervo.
e) O requerido tem movimentado contas bancárias e, assim, dissipado bens monetários que são igualmente parte integrante do acervo hereditário, havendo sério risco do seu extravio e assim empobrecer o acervo, bem como que o Requerido, com a ajuda do seu descendente F…, escondeu valores monetários, dando, de seguida, os mesmos como furtados, com o nítido intuito de diminuir o acervo hereditário.
f) As alienações referidas em 7 e 30 foram com valores que são bastante abaixo do mercado.
g) À data dos negócios referidos em 7 e 30 estava em juízo um processo de maior acompanhado, pelo que o ora Requerido não teria poderes para celebrar tais negócios de alienação.
h) A relação de bens continua a padecer de inúmeros “lapsos”, demonstrando a nítida intenção do ora Requerido fazer seu aquilo que ainda faz parte do acervo hereditário, ocultando deste acervo bens que dele devem fazer parte.
i) O Sr. Notário notificou todos os interessados para pagar, cada um, 18.379,89 euros, com vista a travar o andamento do inventário as interessadas recusaram-se a pagar, o que levou o cabeça-de-casal a adiantar o valor devido por cada uma, que será considerado a final.
j) A interessada I… em 6 de Novembro de 2020 constituiu mandatária a Sr. Dr.ª Z…, com poderes especiais para a conferência de interessados.
k) O valor da torna referida em 26 nunca foi recebido.
l) Quanto aos negócios referidos em 30 nenhum dos interessados os pôs em causa quer em relação aos mesmos quer aos preços, no próprio inventário.
m) A apresentação referida em 20 ocorreu em 4 de Novembro de 2020.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
IV.I. Nulidade da decisão – artigo 615º, n.º 1, alíneas c) e d), do CPC.
Definidas as questões a dirimir no presente recurso – e ultrapassando a questão já habitual de as conclusões do recurso se revelarem como uma mera (e inútil) repetição das alegações com algumas e pontuais alterações «cosméticas» (o que vem sendo admitido à luz de uma certa jurisprudência que, no fundo, faz letra morta do ónus a cargo do recorrente de apresentar, de forma sintética, os fundamentos da impugnação da decisão recorrida) -, a primeira questão que importa enfrentar refere-se à alegada nulidade da decisão recorrida, à luz do preceituado no artigo 615º, n.º 1, alínea c) e d), do CPC.
Neste conspecto, é patente a improcedência da arguição das nulidades em causa.
Segundo o artigo 615º, n.º 1, alínea c) é nula a sentença quando ocorra alguma obscuridade ou ambiguidade que torne a decisão ininteligível.
Digamos, pois, que a nulidade em causa supõe que a decisão proferida não seja inteligível, no sentido de não ser possível perceber ou alcançar o sentido decisório acolhido pelo Tribunal ou de manter-se o intérprete/destinatário do acto decisório em dúvida insanável quanto ao sentido acolhido pelo Tribunal na decisão proferida.
Ora, no caso, a decisão proferida é absolutamente clara e linear quanto ao seu sentido, qual seja o não decretamento da providência por, na perspectiva do Tribunal de 1ª instância, não se mostrarem demonstrados os pressupostos previstos no artigo 403º, n.º 1, do CPC para o seu decretamento.
Sendo assim, não se vislumbra onde podem os Recorrentes estribar a nulidade da decisão proferida.
É certo que, à luz das conclusões do recurso, os Recorrentes defendem, em sede de impugnação da decisão de facto quanto aos factos não provados, que o Tribunal apreciou ou valorou de forma “ambígua”, “obscura” ou “contraditória” os vários meios de prova produzidos nos autos, o que conduziu, na sua perspectiva, a um erro de julgamento quanto a tal matéria de facto julgada como não provada.
Sucede, no entanto, que nada disso tem a ver com a nulidade da decisão nos termos expostos e para efeitos do preceituado no artigo 615º, n.º 1, alínea c), do CPC, mas com um eventual erro de julgamento da matéria de facto e a impugnar nos termos do artigo 640º do CPC e com os efeitos previstos no artigo 662º, do CPC.
Digamos, de outra forma, que se existir o vício de julgamento ao nível de facto nos termos expostos/defendidos pelos Recorrentes, a consequência nunca será o decretamento da nulidade do acto decisório nos termos do artigo 615º, n.º 1, do CPC, mas a alteração do decidido ao nível de facto ou, em última instância, a anulação da decisão e a remessa dos autos ao Tribunal de 1ª instância para fundamentação daqueles pontos da matéria de facto e apenas no caso de não constarem dos autos todos os elementos que permitam ao próprio Tribunal da Relação, em substituição, suprir aquela falha ou vício ao nível da motivação da decisão de facto.
Vale, pois, por dizer que os vícios ao nível da motivação/fundamentação da decisão de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância não conduzem à nulidade da decisão proferida, mas apenas e só, em alternativa, à sua alteração pelo próprio Tribunal da Relação ao abrigo dos poderes do artigo 662º, n.º 1, do CPC ou, à anulação da decisão para suprimento desses vícios e se o próprio Tribunal da Relação não tiver acesso a todos os elementos de prova produzidos, nos termos do artigo 662º, n.º 2, alínea c), do CPC.
Destarte, não ocorrendo, face ao alegado pelos Recorrentes, a hipótese da alínea c), do n.º 1, do artigo 615º, do CPC, improcede esta arguição de nulidade.
Relativamente à nulidade da alínea d) do n.º 1 do mesmo normativo, ali se prevê que é nula a sentença que deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
Ora, no caso dos autos, é evidente, com o devido respeito, que o Tribunal de 1ª instância se pronunciou sobre todas as questões de que tinha que conhecer, quais sejam os pressupostos para o decretamento da providência cautelar de arrolamento e, em especial, se, à luz dos factos provados, esses pressupostos se encontravam demonstrados.
Nesta perspectiva, não se vislumbra também qual o fundamento legal para a arguição de tal nulidade…
É certo, diga-se, que os Recorrentes invocam, em sede de impugnação da decisão de facto, que o Tribunal de 1ª instância não ponderou, não considerou, não deu relevo, em termos probatórios, a determinados meios de prova, que, na sua perspectiva, deveriam ter conduzido a uma decisão de facto distinta quanto aos factos não provados.
Sucede que, tal como já antes se expôs, este eventual erro ao nível da decisão de facto por desconsideração ou não apreciação de algum meio de prova, não consubstancia uma nulidade da decisão para efeitos do disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea d), do CPC, pois que esta supõe a omissão de decisão quanto a alguma questão suscitada no processo (pedido, pretensão, excepção) e essa, ostensivamente, no caso do autos, não existe.
Com efeito, repetindo o antes exposto, a eventual desconsideração de algum meio de prova apenas pode conduzir, por princípio, em sede de impugnação da decisão de facto, a uma eventual alteração do decidido a nível factual ou, em última instância, à anulação da decisão e sua remessa à 1ª instância para os efeitos previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 662º, do CPC e desde que o próprio Tribunal da Relação não esteja em condições de suprir esse erro de julgamento.
Por conseguinte, improcede também esta outra nulidade de omissão de pronúncia assacada à decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância.
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IV.II. Impugnação da decisão de facto:
Dirimidas as questões anteriores, cumpre conhecer da impugnação da decisão de facto empreendida pelos Recorrentes.
Antes, porém, não pode deixar de se salientar a forma confusa, prolixa e até displicente como amiúde se mostra impugnada a decisão de facto provinda do Tribunal de 1ª instância, partindo-se, quiçá, do pressuposto de que o Tribunal de 2ª instância deve efectuar um novo e latitudinário julgamento da causa, bastando, pois, nesta perspectiva, ao Recorrente impugnar genericamente a decisão de facto, sem concretizar os exactos/precisos pontos da matéria de facto de cujo julgamento discorda e sem fazer qualquer análise crítica da prova, em particular sem cuidar de confrontar em termos críticos a convicção evidenciada pelo Tribunal de 1ª instância, demonstrando, pois, neste contexto, em termos inequívocos, claros e concretos qual o exacto erro de julgamento cometido ou, dito de outra forma, em que termos a ponderação da prova efectuada pelo Tribunal e a sua livre (mas não arbitrária) convicção viola as regras da experiência da lógica, sendo certo que só assim logrará o Recorrente demonstrar o alegado erro de julgamento. [1]
De facto, com o devido respeito, não basta o Recorrente evidenciar a sua discordância perante o decidido e, nesse contexto, inserir um conjunto de declarações e depoimentos ou documentos, antes lhe incumbe fazer ele próprio a sua análise crítica de toda a prova produzida e, através da mesma, evidenciar que a análise crítica da prova efectuada pelo Tribunal de 1ª instância está errada e porquê, ou seja, onde existe, em concreto, o erro de julgamento, enquanto violação, no iter subjectivo de formação da convicção do julgador, das referidas regras da lógica e da experiência.
Neste sentido, analisadas as extensas conclusões, em lado nenhum das mesmas, para além da genérica manifestação de discordância face ao decidido, se mostra evidenciado um qualquer erro de julgamento ao nível da avaliação crítica da prova, ou seja, da sua ponderação e valoração à luz das regras da experiência e da lógica levada a cabo pelo julgador em 1ª instância, antes se limitando os Recorrentes a esgrimir que a sua própria convicção subjectiva face à prova produzida é distinta da convicção do Tribunal.
Mas, neste contexto, pergunta-se: onde está evidenciado, à luz das regras da experiência e da lógica, que a convicção do Tribunal de 1ª instância é indevida ou, melhor dito, onde está evidenciado o erro de julgamento do Tribunal na formação daquela sua convicção, sendo certo que, naturalmente, a convicção da parte vencida/Recorrente é, regra geral, distinta do Tribunal e enviesada pelo interesse que defende no recurso?
Feitas estas considerações, considerações que nos colocam, à partida, as mais sérias dúvidas sobre o mérito substantivo da impugnação da decisão de facto deduzida pelos Recorrentes, as particularidades do presente recurso quanto à impugnação da decisão não se ficam por aqui.
Como já antes se referiu, a impugnação da decisão de facto não visa, até pela natureza das coisas, a repetição integral do julgamento realizado em 1ª instância, mas apenas a reanálise da convicção formada pelo Tribunal de 1ª instância por parte do Tribunal de 2ª instância, reanálise esta que é feita pelo confronto entre aquela convicção e a convicção a que o Tribunal de 2ª instância chega de forma autónoma e independente à luz dos meios de prova produzidos no processo e segundo as mesmas regras de direito probatório material que são aplicáveis pelo Tribunal de 1ª instância.
Neste contexto e sendo que é a parte vencida quem está em melhores condições de impugnar a prova produzida e a convicção evidenciada pelo juiz, mostra-se facilmente compreensível que se reclame da mesma a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorrectamente julgados, ónus que não se compadece com a mera alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências de apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que foi declarado pelo Tribunal de 1ª instância.
Por conseguinte, a esta luz, não basta ao recorrente descrever apenas um conjunto de meios de prova e, no que respeita à prova pessoal, discriminar ou transcrever segmentos desses meios de prova e sustentar, a partir apenas desta invocação, que o resultado final deveria ser diverso do que foi acolhido pelo Tribunal; Torna-se essencial demonstrar que os ditos meios de prova, apreciados criticamente, segundo as regras da lógica e da experiência, impunham uma decisão diversa, não sendo suficiente a mera possibilidade de ser alcançado um resultado distinto daquele que foi expresso pelo Tribunal.
Digamos que, a partir deste confronto e desta análise crítica efectuada pelo Recorrente será, então, possível discernir se existiu algum erro de avaliação da prova por parte do Tribunal da 1ª instância, ou seja, se nessa avaliação pelo Tribunal de 1ª instância ocorreu, em algum segmento, uma violação ou um desvio às regras da experiência, da lógica e/ou das regras das ciências eventualmente aplicáveis ao caso concreto.
Como assim, por forma a evitar impugnações meramente genéricas ou meras discordâncias subjectivas, o artigo 640º, do CPC, estabelece a cargo do recorrente que impugna a decisão de facto um conjunto de ónus que devem ser estritamente cumpridos sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte.
Neste sentido, como refere A. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 130, através das regras estabelecidas no artigo 640º “… foram recusadas soluções que pudessem reconduzir-nos a uma repetição do julgamento, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão de facto, tendo o legislador optado por abrir apenas a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente.”
Nesta perspectiva e em face do teor do artigo 640º, do CPC, a lei é clara ao assinalar ao recorrente a obrigatoriedade de especificar (a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; (b) em caso de, na sua perspectiva, a resposta a tais factos dever ser diversa da proferida pelo Tribunal, a decisão alternativa por si proposta por contraponto à decisão proferida; (c) os concretos meios probatórios, constantes do processo, do registo ou da gravação, que imponham decisão diversa da recorrida e (d) caso a impugnação da decisão de facto se baseie em prova pessoal gravada, a indicação das passagens ou segmentos da respectiva gravação que demonstrem o erro em que incorreu o Tribunal.
Trata-se, através do estabelecimento de tais ónus a cargo do recorrente, em primeiro lugar, de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso indicando os concretos segmentos da decisão que considera viciados por erro e a resposta alternativa eventualmente proposta. Em segundo lugar, de fundamentar ou motivar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação e que, no seu entender, impunham uma decisão diversa.
Este ónus decorre não apenas dos princípios estruturantes da cooperação, lealdade e boa-fé processuais, mas visa garantir, ainda e em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado, evitando o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão que porventura esteja inquestionavelmente correcta.
Por outro lado, as apontadas divergências sobre o julgamento da matéria de facto têm de constar em termos especificados das conclusões do recurso, assim como nelas deve ser, em nosso ver, inserida a indicação, ainda que sintética, dos meios de prova em que o recorrente se funda, como corolário das anteriores alegações, sendo certo, por um lado, que são as conclusões que delimitam o âmbito da actividade jurisdicional do Tribunal de 2ª instância e, por outro, é com estes precisos elementos que, desde logo, o Tribunal de recurso deve ser confrontado por forma a saber, com o rigor e precisão exigíveis, a matéria de facto que se encontra impugnada e em que termos e, depois, a própria parte contrária, a fim de lhe permitir exercer um pleno exercício do contraditório, através, nomeadamente, da indicação dos mesmos meios de prova ou de outros produzidos nos autos e que, em seu entender, refutem as conclusões do recorrente.
Dito isto, no caso dos autos, resulta de forma insofismável das conclusões do recurso que os Recorrentes discordam do julgamento quanto aos factos não provados (vide, por todos, as conclusões 5., 6., 7. e 31. do recurso).
Pergunta-se, no entanto, quais os concretos factos julgados não provados com cujo julgamento discordam os Recorrentes??
Não se sabe…
Com efeito, os Recorrentes, ao longo das suas extensas conclusões (100), em parte nenhuma indicam, em termos precisos, uma única alínea das alíneas a) a m) do elenco dos factos não provados constantes da sentença, de cujo julgamento discordam!
Dir-se-ia que os Recorrentes não leram a sentença ou se a leram, com o devido respeito, fizeram-no de forma manifestamente incompleta, pois que nas suas alegações e conclusões não existe, insiste-se, uma única referência à factualidade julgada não provada e que o julgador fez constar (como devia) expressamente das já referidas alíneas a) a m) do elenco dos factos não provados…
Digamos, pois, que, em nosso julgamento, ainda que sejam indiscutido que os Recorrentes discordam genericamente do julgamento dos factos não provados, certo é que as conclusões do recurso são totalmente falhas quanto à indicação, ponto por ponto, dos factos que na sentença foram julgados não provados, revelando-se, pois, um ostensivo incumprimento do ónus de especificação previsto no n.º 1, alínea a), do artigo 640º, do CPC.
Esta falha seria, em nosso ver, o bastante para rejeitar a impugnação da decisão de facto, à luz da alínea a), do n.º 1, do artigo 640º.
Mas mais: - Os Recorrentes discordam do julgamento quanto aos factos não provados e sustentam, nessa sede, o seguinte (conclusão 30):
O presente recurso sobre a douta decisão proferida quanto à matéria de facto funda-se na convicção dos Recorrentes de que o Douto Tribunal “a quo” terá efectuado uma incorrecta apreciação da prova e, concretamente, na instrução da matéria factual dada como não provada, os quais, pelos motivos que infra se demonstrarão, deveriam ter sido considerados provados ou parcialmente provados.” (sic) [sublinhado nosso]
Perante tal asserção dos Recorrentes questiona-se: - do elenco dos factos não provados (admitindo que o Tribunal sabe quais são, pois que, como se referiu, não há qualquer referência a qualquer uma das alíneas onde o Tribunal de 1ª instância fixou a factualidade que julgou não provada…) quais deveriam ser julgados como provados e, ainda, quais os que deveriam ser apenas “parcialmente provados” ??
Também não se sabe…
Com efeito, tal como já se referiu no âmbito da alínea a), do n.º 1, do artigo 640º, também neste segmento os Recorrentes, em parte nenhuma do seu recurso e das respectivas conclusões, dizem, por referência aos factos julgados não provados, quais daqueles deveriam ter sido integralmente provados e quais dos mesmos deveriam ter sido julgados como “ parcialmente provados “…
Note-se, neste conspecto, que o ónus de indicação dos factos concretos julgados, segundo a perspectiva do recorrente, erroneamente como não provados não incumbe, naturalmente, ao próprio Tribunal ad quem, pois que a este não cabe interferir, de forma parcial e em substituição do recorrente, na definição, no discernimento ou interpretação da peça processual da parte por forma a saber, adentro da factualidade julgada como não provada, qual a factualidade não provada que deveria ser julgada como provada e qual a factualidade não provada que deveria ser julgada apenas como parcialmente provada.
Essa opção (e ónus) cabe estritamente ao recorrente, sendo certo que, como é consabido, a este nível vigora o princípio do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes, não sendo lícito ao Tribunal definir ou deduzir aquilo que só a própria parte está em condições de exprimir em termos claros e expressos através do processo.
Mas, admitindo apenas por dever de raciocínio que, por via interpretativa, poderia o Tribunal ultrapassar aquela dúvida quanto aos factos julgados não provados que deveriam ser julgados provados e os factos julgados não provados que deveriam ser julgados como parcialmente provados, pergunta-se, ainda, neste contexto, que resposta alternativa a dar pelo Tribunal ad quem quanto aos factos parcialmente provados?
Também não se sabe…, pois que, também aqui, em lado nenhum do amontoado das conclusões (e das próprias alegações que, no final, se mostram reproduzidas nas conclusões…) os Recorrentes especificam, em termos concretos e perceptíveis qual a resposta que, na sua perspectiva, se impunha quanto aos factos que deveriam ser julgados parcialmente provados.
Ora, como já antes se cuidou de expor e em função do expressamente previsto no artigo 640º, n.º 1, alínea c), do CPC, é ao recorrente que incumbe, sob pena de imediata rejeição de recurso, indicar em termos precisos a decisão alternativa que, na sua perspectiva, deveria ter sido proferida pelo Tribunal de 1ª instância, não incumbindo, também aqui, ao Tribunal fazer deduções ou interpretações dos termos do recurso, mais que não seja porque não sabe, nem lhe cabe adivinhar qual a resposta alternativa tida em vista pelo recorrente…
Neste sentido, como refere A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 135, “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
(…)
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
(…)
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.”
Ora, tendo tudo presente, com o devido respeito por opinião em contrário, no caso, a consequência jurídica a extrair não pode deixar de ser a que resulta do n.º 1 do artigo 640º, do CPC, ou seja, a rejeição do recurso interposto quanto à impugnação da decisão de facto.
Neste sentido, como se expôs, é ostensivo o incumprimento por parte dos Recorrentes dos ónus de impugnação da decisão de facto constantes do artigo 640º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPC e, nestas hipóteses, como tem sido recorrentemente dito pela doutrina e pela jurisprudência, não há lugar a despacho de convite ao aperfeiçoamento no segmento da impugnação da decisão de facto, despacho este que se mostra previsto apenas para as hipóteses do n.º 3 do artigo 639º, do CPC.
Aliás, que assim é di-lo, de forma peremptória, o legislador no n.º 1 do citado artigo 640º, quando, na parte final do mesmo normativo, usa a expressão “… sob pena de rejeição”, o que inculca em termos manifestos, até por comparação com a previsão do antecedente artigo 639º, n.º 3, que, de facto, não há lugar ao aperfeiçoamento das falhas no cumprimento dos ónus de impugnação da decisão de facto. [2]
Trata-se, também aqui, de salvaguardar a seriedade do recurso em sede de impugnação da decisão de facto e a própria dignidade do julgamento efectuado pelo Tribunal de 1ª instância, em que, por força da oralidade e da imediação proporcionadas, existem, à partida, melhores condições para um correcto julgamento da matéria de facto, sem prejuízo da correcção dos eventuais e pontuais erros de julgamento que se mostrem devidamente apontados e justificados.
Realce-se, ainda, neste particular que não está em causa o denominado ónus secundário em termos de impugnação da decisão de facto – ao nível da apreciação crítica da prova ou da indicação dos segmentos da gravação dos meios de prova pessoal invocados pelo Recorrente e em que o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a fazer uma leitura menos rigorista dos ónus prescritos no artigo 640º, do CPC -, mas, pelo contrário, em termos essenciais, o denominado ónus primário de impugnação da decisão de facto, qual seja a precisa delimitação do seu objecto e, reflexamente, do âmbito da actividade jurisdicional reclamada perante o Tribunal de 2ª instância, seja por via da indicação pelo Recorrente dos concretos pontos da matéria de facto julgada como não provada que deveria ter sido julgada como provada, seja, ainda, por via da indicação das respostas alternativas sugeridas ou propostas pelo Recorrente em confronto com as respostas dadas pelo Tribunal de 1ª instância e em caso de respostas restritivas ou explicativas.
De facto, se é certo que na verificação do cumprimento dos ónus previstos no artigo 640º, os aspectos de ordem formal devem obedecer aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, estes princípios não podem, sob pena de redundarem numa pura interpretação ab-rogante dos ónus primários e essenciais previstos nas citadas alíneas do artigo 640º, servir para suprir a falta de definição, precisa e rigorosa, do objecto do recurso no segmento da impugnação da decisão de facto, sendo certo que, em nosso ver, esse é o ónus mínimo exigível à parte que discorda, de forma fundada, da decisão de facto, seja, por um lado, pela indicação dos pontos concretos da matéria de facto de cujo julgamento discorda e, por outro, pela indicação das respostas alternativas que, na sua perspectiva, deveriam ter sido acolhidas pelo Tribunal de 1ª instância. [3]
Destarte, sendo de recusar a impugnação da decisão de facto empreendida pelos Recorrentes, a factualidade provada e não provada (constante das alíneas a) a m) da sentença recorrida) deve manter-se tal como definida pelo Tribunal de 1ª instância.
De todo o modo, mesmo a acolher-se na esteira de alguma jurisprudência que, sob o manto da razoabilidade e da proporcionalidade, praticamente tudo admite em sede de impugnação da decisão de facto, defendendo, como se disse, uma interpretação que, em contas rectas, elimina praticamente quaisquer dos ónus previstos no artigo 640º e faz desparecer qualquer distinção relevante entre o que são as alegações e as conclusões do recurso, sempre se dirá que, em nosso julgamento, não se vislumbram razões para divergir do sentenciado pelo Tribunal de 1º instância.
Vejamos, começando por definir, em substituição dos Recorrentes e por via interpretativa, o que verdadeiramente está em causa na impugnação da decisão de facto contida na sentença recorrida.
Das conclusões 1 a 16 poder-se-á interpretar que está em causa a matéria de facto constante das alíneas b) e e) (em parte) do elenco dos factos não provados, a qual, segundo os Recorrentes, deveria ser julgada como provada.
Das conclusões 17 a 20 poder-se-á interpretar que está em causa a matéria de facto constante da alínea f) do elenco dos factos não provados, a qual também, segundo a perspectiva dos Recorrentes, deveria ter sido julgada como provada.
Das conclusões 21 a 25 poder-se-á interpretar que está em causa a matéria de facto constante da alínea g) do elenco dos factos não provados, a qual deveria também ter sido julgada como provada.
Das conclusões 26 a 100 poder-se-á interpretar que está em causa, além da matéria de facto constante das alíneas b) e e) (em parte) do elenco dos factos não provados, ainda a matéria constante da alínea h) do mesmo elenco, matéria de facto que, assim, na perspectiva, dos Recorrentes deveria ter sido julgada como provada.
Ao invés, nas conclusões do recurso não existe a mais ínfima referência expressa à matéria de facto constante das alíneas a), c), d), i), j), k), l) e m) do elenco dos factos não provados, que, assim, se mostra, mesmo por via interpretativa, excluída do objecto da impugnação da decisão de facto.
Tendo isto presente, a matéria de facto que é possível ter-se como em crise é apenas a seguinte:
b) O Requerido oculta contas que eram da titularidade da inventariada E…, oculta contas que são da sua única titularidade mas que por força do regime de casamento e da proveniência dos saldos bancários, também devem fazer parte do acervo hereditário.
e) O Requerido tem movimentado contas bancárias e, assim, dissipado bens monetários que são igualmente parte integrante do acervo hereditário, havendo o sério risco do seu extravio e assim empobrecer o acervo.
f) As alienações referidas em 7 e 30 foram com valores que são bastante abaixo do (valor de) mercado.
g) À data dos negócios referidos em 7 e 30 estava (pendente) em juízo um processo de maior acompanhado, pelo que ora Requerido não teria poderes para celebrar tais negócios de alienação.
h) A relação de bens continua a padecer de inúmeros “ lapsos “, demonstrando a nítida intenção do Requerido em fazer seu aquilo que ainda faz parte do acervo hereditário, ocultando deste acervo bens que dele fazem parte.
Aqui chegados, cumpre, pois, decidir de cada um dos pontos, tendo por referência não apenas os meios de prova pessoal e documental invocados pelos Recorrentes, mas, ainda, todos os demais meios de prova disponíveis, sendo certo que o Tribunal ad quem, na formação da sua própria e autónoma livre convicção, não está adstrito a considerar apenas os meios de prova indicados pelos Recorrentes, podendo, nesse contexto, socorrer-se de todos os meios de prova produzidos sob a égide do princípio do contraditório e não está, naturalmente, adstrito apenas aos segmentos dos depoimentos e/ou declarações invocados pelo Recorrente, antes podendo (e devendo) fazer uma análise conjunta e crítica de toda a prova produzida, independentemente de quem a indicou.
Nesta sede, como assinala Ana Luísa Geraldes, op. cit., pág. 6, “a prova de um facto não resulta, regra geral, de um só depoimento ou parte dele, mas da conjugação de todos os meios de prova carreados para os autos.
E ainda que não existam obstáculos formais a que um determinado facto seja julgado como provado pelo Tribunal mediante o recurso a um único depoimento a que seja atribuída suficiente credibilidade, não deve perder-se de vista a falibilidade da prova testemunhal quotidianamente comprovada pela existência de depoimentos testemunhais imprecisos, contraditórios ou, mais grave ainda, afectados por perjúrio. “ [4]

Tendo isto presente, cumpre decidir.
Na alínea f) consta a seguinte matéria julgada como não provada:
“As alienações referidas em 7 e 30 foram (efectuadas) por valores que são bastante abaixo do (valor) de mercado. “
Quanto a esta matéria, dos documentos ali em referência constam os valores das alienações em causa; A questão não é, portanto, os valores em causa e que foram pagos (facto que não está posto em crise), mas saber se esses valores são muito inferiores aos que os ditos imóveis valem em termos de mercado.
Ora, nesta sede, só podemos concordar com o julgamento da 1ª instância.
Nesta matéria, as testemunhas AE… e AF… (adquirentes dos imóveis em causa) referiram apenas, em termos concretos e relevantes quanto a esta matéria, que fizeram um “bom negócio “.
Pergunta-se, assim, como é possível, tendo por base tal singela afirmação, partir-se, por presunção natural/judicial, como sustentam os Recorrentes, que os imóveis foram vendidos abaixo do valor de mercado?
Desde logo, não se sabe (nem os Recorrentes o afirmam…) qual o valor de mercado de tais imóveis, sendo certo que, para tanto, não basta, como é consabido, um anúncio publicitário, pois que tal anúncio baseia-se, naturalmente, naquilo que é a expectativa do vendedor quanto ao preço a obter, o que, como nos diz a experiência comum e a lógica, não é necessariamente o mesmo que o mercado (potenciais compradores) está disponível para pagar pelo bem em causa.
Por outro lado, ainda, não existe nos autos qualquer perícia ou parecer, tecnicamente fundado, quanto ao valor de mercado de tais imóveis e, logicamente, se, por confronto, os valores pelos quais foram vendidos os imóveis em causa se apresentam abaixo daquele valor.

Por conseguinte, quanto a esta matéria de facto, nenhuma prova séria e fundada existe que permita um juízo positivo quanto à mesma, sendo de manter a decisão acolhida pelo Tribunal de 1ª instância, decisão que não confronta minimamente as regras da experiência comum e da lógica.
Improcede, assim, nesta parte a impugnação.
Prosseguindo, na alínea g) consta a seguinte factualidade não provada:
“À data dos negócios referidos em 7 e 30 estava (pendente) em juízo um processo de maior acompanhado, pelo que ora Requerido não teria poderes para celebrar tais negócios de alienação. “
No que diz respeito à pendência dos referidos autos à data das alienações, cumpre dizer aquilo que é óbvio à luz da certidão junta aos autos e referida sob o ponto 34.
A dita certidão refere-se à sentença que ali foi proferida e que transitou em julgado a 1.03.2019. Todavia, resulta ainda da dita certidão que o processo em referência se encontra pendente desde o ano de 2018 (pois que o processo tem o n.º 657/18.6T8PVZ), ainda que não seja possível afirmar desde quando nesse ano de 2018.
Ora, sendo assim, basta que o dito processo tenha sido instaurado em Novembro ou Dezembro de 2018 (o que tem de se admitir na ausência de qualquer prova…) para que todos e cada um dos negócios referidos em 30 sejam de considerar como prévios ao dito processo, ou seja, para considerar que os mesmos não foram celebrados na pendência do dito processo.
De facto, nesta matéria basta ler com a devida atenção o conteúdo da dita certidão para se perceber, ao contrário do que defendem, inexplicavelmente, os Recorrentes, que não existe prova bastante (que lhes incumbia fazer…) para a demonstração dos factos em causa…
Sendo assim, quanto à alegada pendência da acção de interdição à data das alienações referidas em 30, facto que, repete-se, só com a certidão judicial em que constasse a data exacta da instauração do dito processo seria possível ter como demonstrado, nada é possível extrair em termos de certeza quanto a tal matéria de facto, pois que da dita certidão judicial junta aos autos pelos Recorrentes tal elemento temporal exacto não consta.
Como assim, nada existe a alterar quanto a tal matéria.
Mas, independentemente disso, certo é também que nada nos autos demonstra, em termos conclusivos, que o Requerido não tinha poderes para efectuar as ditas vendas, antes pelo contrário.
Com efeito, na sentença proferida no processo de interdição a que se fez referência fixou-se como início da incapacidade da inventariada E… a data de 8.11.2013 – vide facto n.º 34, não impugnado.
Ora, como resulta do facto provado em 11 (não impugnado), em Setembro de 1982, a inventariada outorgou procuração com poderes para que o seu marido, o ora Requerido, procedesse à venda de quaisquer bens sitos nos concelhos de Matosinhos, Maia e Vila do Conde, com excepção de….
Significa isto que, não existindo prova de que os bens que foram alienados são situados em … (prova que incumbia aos Requerentes…), ao contrário do que os mesmos defendem em termos manifestamente conclusivos, à partida é de afirmar que o Requerido tinha poderes para efectuar as ditas vendas em função da aludida procuração outorgada pela sua esposa em data (1982).
Na realidade, não existe a mais ínfima prova de que a mesma sofresse de qualquer incapacidade naquele ano de 1982, ou seja, de incapacidade para perceber e outorgar em tal procuração em favor do seu marido.
Improcede, assim, sem mais considerações, a impugnação do ponto g) do elenco dos factos não provados, sem prejuízo do seu parcial caracter manifestamente conclusivo.
Prosseguindo, relativamente ao ponto h) da factualidade não provada, cumpre dizer, em primeiro lugar, que a dita asserção é manifestamente conclusiva, pois que, a partir de alegados “lapsos” existentes na relação de bens apresentada no inventário por óbito da inventariada E…, parte-se, sem mais, para a conclusão de que tais “ lapsos “ (não concretizados) demonstram a “nítida intenção do ora Requerido fazer seu aquilo que ainda faz parte do acervo hereditário, ocultando deste acervo bens (também não concretizados) que dele devem fazer parte.” (sic)
Ora, nesta matéria, cabe dizer que os alegados (mas não concretizados) “lapsos” (não relacionação de bens ou relacionação incorrecta de outros) existentes na dita relação de bens apresentada no inventário podem ser corrigidos através dos meios ao dispor dos interessados nesse inventário e através das tempestivas reclamações a tal relação, com a produção de prova tida por conveniente e oferecida pelas partes interessadas.
Por outro lado, ainda, os apontados “lapsos” podem ter uma miríade de razões a eles subjacentes, seja um mero lapso (esquecimento ou confusão do cabeça-de-casal), seja até a séria e fundada convicção do cabeça-de-casal de que tais bens não fazem parte do acervo hereditário a partilhar.
Serve isto para dizer que, em nosso ver, não basta afirmar-se genericamente que existem “lapsos” na relação de bens (sem os especificar em concreto – coisa que nenhuma testemunha o fez com o rigor e consistência exigíveis no decurso dos respectivos depoimentos, nomeadamente as testemunhas AG… e as próprias partes, B…, C…, nas respectivas declarações de parte – todos em aceso litígio com o Requerido) e que as partes dissentem da relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal (estando, no entanto, em condições de discutir e fazer prova – tempestivamente – das suas pretensões no inventário em curso), para que se possa presumir, sem mais, que o Requerido actua com a intenção de ocultar ou dissipar bens que fazem parte do dito acervo hereditário.
Uma tal intenção subjectiva, ainda que se admita a dificuldade da sua prova por meios directos, tem que colher, ao menos, em termos indirectos, suficiente lastro probatório, através da demonstração de actos concretos de dissipação ou ocultação, os quais, a despeito das suspeitas genéricas invocadas pela testemunha AG… (que está envolvida em litígio quanto à alegada filiação do Requerido em relação à sua pessoa) e estritamente secundadas pelos declarantes B… e C… com base no antecedente depoimento (netos do Requerido, mas com quem estão de relações cortadas), não se nos mostram suficientemente demonstrados.
Na verdade, para além de afirmações genéricas de dissenso quanto ao conteúdo do acervo hereditário deixado por óbito da inventariada E…, o que ressalta do depoimento da testemunha AG… e das próprias declarações de parte dos Requerentes é a existência de um claro e ostensivo litígio entre os mesmos e o Requerido, litígio esse que, associado ao interesse directo dos Requerentes quanto à sorte da presente lide (pois que os mesmos têm interesse directo - por força da cessão da quota hereditária de sua mãe na herança de sua avó (vide facto provado em 3) - em que o acervo hereditário da sua avó/inventariada seja o maior possível), nos coloca sérias e fundadas dúvidas quanto à objectividade, imparcialidade e equidistância dos seus depoimentos e declarações de parte, ou seja, em síntese, quanto à sua credibilidade.
Note-se que, não está aqui em causa, como afirmam os Recorrentes, desconsiderar aqueles meios de prova; O que está em causa, com o devido respeito, é, para valorizar e considerar os mesmos, por um lado, ter a noção exacta dos interesses dos depoentes/declarantes na lide em causa e, nesse contexto, avaliar, à luz das regras da experiência e da lógica, ou seja, de um ponto de vista crítico, tais meios probatórios e a credibilidade que os mesmos inspiram ao julgador, sem deixar de ter presente também que é precisamente sobre os declarantes que recai o ónus de prova da factualidade necessária ao decretamento da presente providência e, portanto, que, na dúvida, a decisão há-de ser-lhes desfavorável, como resulta da regra do artigo 414º, do CPC.
Trata-se, ao fim e ao caso, de fazer análise crítica da prova, de forma equidistante e objectiva, como é exigido ao julgador.,
Vale assim por dizer que, apesar da distância desta Relação face aos meios de prova pessoal produzidos, a nossa convicção, autónoma e independente, é coincidente com a que foi formada pelo Tribunal de 1ª instância, correspondendo a mesma a uma apreciação crítica (e não acrítica) dos meios de prova que perante o mesmo foram produzidos, segundo as regras da experiência e da lógica.
Improcede, assim, a impugnação do ponto h) do elenco dos factos não provados.
Vejamos agora e por último a matéria de facto dos pontos b) e e) do elenco dos factos não provados.
Relativamente a esta matéria, os Recorrentes invocam, em seu fundamento, em primeiro lugar, os depoimentos das testemunhas AH… (que mantém actualmente uma relação com o Requerido), AG… e as declarações de parte dos Requerentes C… e B….
Relativamente aos meios de prova pessoal atinentes ao depoimento de AG… e às declarações de parte, escusamo-nos aqui a reproduzir as considerações que já fizemos sobre a valoração de tais meios de prova, reiterando apenas que, em nosso ver, as mesmas não se nos afiguram bastantes para a demonstração da factualidade ora em causa.
Relativamente ao depoimento da testemunha AH…, que por nós foi escutado também na íntegra, nada resulta em abono da demonstração da versão dos Requerentes; Ao invés, a mesma, por força da sua relação com o Requerido, fez um depoimento manifestamente eivado do propósito de defender a posição contrária à dos ora Requerentes (netos do Requerido). Não se percebe, assim, como a partir de tal depoimento se pode obter a demonstração da factualidade em causa, a menos que se leia e interprete, como sugerem os Recorrentes, o dito depoimento em sentido contrário ao que dele consta…
Portanto, também este meio de prova pessoal não é fundamento bastante para a alteração do decidido nos pontos b) e e) do elenco dos factos provados.
Sustentam, no entanto, ainda neste contexto, os Recorrentes que, como resulta dos documentos juntos aos autos de inventário pelo Banco de Portugal (na sequência de autorização concedida para o efeito pelo Requerido e após as reclamações ali deduzidas), existem “ contas encerradas “ (no Banco Y… e no Banco AI…) durante o processo de interdição e de inventário e existe uma outra conta (no Banco AJ…) que não foi apresentada/relacionada.
Com o devido respeito, estas asserções, descontextualizadas e no molde em que se mostram efectuadas por parte dos Recorrentes, não são, manifestamente, bastantes para dar como assente o alegado propósito do Requerido em dissipar ou ocultar bens que fazem parte do acervo hereditário a partilhar.
De facto, o encerramento de contas não significa, por si só, nada de relevante nesta matéria.
Recorde-se que não se sabe sequer se existiam valores depositados nas aludidas contas à data do seu encerramento; Ora, sem se saber sequer este elemento, é perfeitamente admissível, à luz das regras da experiência e da lógica, que as mesmas contas possam ter sido encerradas precisamente por esse motivo, qual seja não existirem nelas, nessa data, valores que justificassem a sua manutenção e o pagamento das respectivas despesas.
Portanto, este facto, tal como alegado pelos Recorrentes é, com o devido respeito, inconsequente no sentido de demonstrar, sem mais, que o Requerido agiu com o propósito de ocultar, dissipar ou movimentar valores a que não tinha direito.
E o mesmo se diga, ainda, da singela circunstância de existir uma conta no “Banco AJ…“ que não foi apresentada na relação de bens do inventário.
De facto, para além de não se saber sequer qual o valor que poderia existir em tal conta (valor que os Requerentes também não indicam…), importa recordar que já após a obtenção oficiosa de informações bancárias nos autos de inventário (vide facto provado em 12), o cabeça-de-casal apresentou, na sequência de reclamações e subsequentes respostas, uma relação definitiva da relação de bens, relação esta que não sofreu reclamação ou observação de qualquer um dos interessados.
Por outro lado, ainda, neste contexto, é também de recordar que no dito inventário a 12.10.2020, o próprio Requerido deu expressa autorização ao Banco de Portugal para fornecer naqueles autos todos os elementos que os ali interessados pretendessem (vide facto provado em 18 e não impugnado).
Ora, neste contexto, não se nos afigura, de todo, bastante para prova do alegado propósito do Requerido em dissimular, ocultar ou dissipar bens ou valores que pertencem ao acervo hereditário a circunstância de existir uma conta bancária que não foi relacionada quando, por um lado, não se sabe sequer que valor ali poderia existir, quem a movimentou e de que a forma e, ademais, o próprio Requerido deu, expressa, autorização ao Banco de Portugal para fornecer no inventário todas as informações bancárias tidas por relevantes.
Na verdade, esta última conduta do Requerido (e que não é posta em causa) coloca em causa o seu alegado propósito de ocultação, dissipação e apoderamento de bens do acervo hereditário, uma vez que, segundo as regras da experiência e da lógica, quem se apodera, movimenta ou oculta operações bancárias sabe, perfeitamente, que a informação a prestar pelo Banco de Portugal (que é colhida junto de todas as instituições bancárias a operar em Portugal) revelará todas as operações efectuadas, nomeadamente, se tal for pedido, encerramento de contas, saldos bancários, movimentos bancários, etc.
Digamos, pois, que os elementos constantes dos autos, devida e criticamente ponderados no seu conjunto, em nosso julgamento, desmentem ou, no mínimo, colocam em causa de forma adequada e fundada a versão alegada pelos Requerentes, razão porque nenhuma divergência nos merece, em termos de autónoma e independente convicção, a resposta negativa dada pelo Tribunal de 1ª instância à matéria das alíneas b) e e), do elenco dos factos provados.
O que vem a significar que, mesmo a entender-se, por cautela, que, quanto à matéria das alíneas b), e), f), g) e h) do elenco dos factos não provados, os Recorrentes deram cumprimento mínimo aos ónus de impugnação da decisão de facto consignados no artigo 640º, do CPC, ainda assim, secundando a posição evidenciada pelo Tribunal de 1ª instância, é de manter a dita factualidade como não provada, o que se julga.
**
IV.III. Dos requisitos da providência de arrolamento:
Como se torna evidente dos termos do recurso de apelação interposto pelos Recorrentes, improcedendo a impugnação da decisão de facto quanto aos factos não provados, como ora sucede, inexiste qualquer outro fundamento legal para reverter ou alterar a decisão do Tribunal de 1ª instância.
Com efeito, segundo o disposto nos artigos 403º, n.º 1 e 405º, n.º 1, ambos do CPC, o deferimento da providência cautelar ora em apreço depende da demonstração sumária (a efectuar pelo Requerente, em função da regra do n.º 1, do artigo 342º, do Cód. Civil) de dois pressupostos cumulativos:
a) Justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens;
b) Direito do requerente aos bens em causa.
Ora, se quanto ao direito dos Requerentes aos bens que integram o acervo hereditário por óbito da inventariada não há qualquer dúvida ou discussão, o certo é que, à luz da factualidade provada, não existe qualquer facto concreto que indicie, ainda que perfunctoriamente, um risco ou justo receio actual de extravio, ocultação ou dissipação de bens integrantes daquele acervo.
Note-se que isso não exclui, de todo, que os Recorrentes possam discutir em acção autónoma a validade ou eficácia das alienações efectuadas no período entre 2017 e 2018 (ponto 30 dos factos provados) e à luz da procuração outorgada pela inventariada em favor do ora Requerido em 1982. Todavia, essa questão não se confunde com a existência actual – tendo por referência a data da decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância - de um fundado ou justo receio de dissipação, ocultação ou extravio dos bens que hoje fazem parte de tal acervo.
E assim sendo, como se julga, nenhuma censura nos merece a decisão final proferida pelo Tribunal de 1ª instância, que é de manter, com a consequente improcedência da apelação.
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V. DECISÃO:
Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão final proferida pelo Tribunal de 1ª instância.
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Custas pelos Recorrentes, que ficaram vencidos – artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Porto, 8.11.2021
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade

(O presente acórdão não segue na sua elaboração as regras do novo acordo ortográfico.)
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[1] Sobre os sistemas de prova livre e prova legal e sua distinção, vide, por todos, com maiores desenvolvimentos, MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “As partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, Lex, 1995, pág. 236-241 e JOSÉ LEBRE de FREITAS, “Introdução ao Processo Civil”, 4ª edição, pág. 198-202.
[2] Vide, neste sentido, por todos, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 134, FRANCISCO FERREIRA de ALMEIDA, Direito Processual Civil, II volume, 2015 e, ainda, por todos, na jurisprudência, AC STJ de 19.12.2018, relator Sr.ª Juíza Conselheira Maria Graça Trigo e AC STJ de 24.05.2018, relator Sr.ª Juíza Conselheira Fernanda Isabel Pereira, ambos disponíveis in www.dgsi.pt
[3] Vide sobre a matéria, ainda que em termos não inteiramente coincidentes com a posição que defendemos, A. ABRANTES GERALDES, P. PIMENTA, L. PIRES de SOUSA, “CPC Anotado”, I volume, 2ª edição, pág. 796-797 ou, ainda, na jurisprudência, com interesse, AC STJ de 13.11.2019, relator Sr. Juiz Conselheiro António Leones Dantas, AC STJ de 8.10.2019, relator Sr.ª Juíza Conselheira Maria João Vaz Tomé, AC STJ de 19.05.2015, relator Sr.ª Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[4] ANA LUÍSA GERALDES, “Impugnação e Reapreciação da Decisão sobre a Matéria de Facto”, in www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf