Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3231/14.2TBVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
SECÇÕES DE COMÉRCIO
ACÇÕES DE ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÕES SOCIAIS
DELIBERAÇÕES DE ASSOCIAÇÕES SEM FINS LUCRATIVOS
TRIBUNAIS COMUNS
Nº do Documento: RP201603073231/14.2TBVFR.P1
Data do Acordão: 03/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 620, FLS.207-214)
Área Temática: .
Sumário: I - As Secções de Comércio não tem competência em razão da matéria para preparar e julgar ações de anulação de deliberações sociais de associações sem fins lucrativos, sendo competente o tribunal comum.
II - A criação das secções de comércio visa concentrar nestes tribunais as matérias relacionadas com questões relativas ao comércio, compreendendo este os atos de interposição na circulação de bens (comércio em sentido económico), a indústria e os serviços, com fins lucrativos, que constituem a especialidade que os justificam, à imagem do que ocorria com os Tribunais de Comércio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: AnulDelib-3231-14.2TBVFR.P1
Comarca de Aveiro-Inst Central Oliveira Azeméis-2ªSç Com-J1
Proc. 3231-14.2TBVFR.P1
Proc. 108/16-TRP
Recorrente: B…
Recorrido: C… e
D…

Juiz Desembargador Relator: Ana Paula Amorim
Juízes Desembargadores Adjuntos: Manuel Fernandes
Rita Romeira
*
*
*
Acordam neste Tribunal da Relação do Porto[1] (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Na presente ação de anulação de deliberações sociais, que segue a forma de processo comum, em que figuram como:
AUTORES: C…, …, residente na Rua … VFR, da freguesia de …; e D…, …, residente na Rua ..., da freguesia …, Vila da Feira;
RÉ: “B…”, com sede na, VFR, da freguesia de …, Vila da Feira.
Pedem os Autores que se declarem anuladas as deliberações tomadas na assembleia geral de sócios da Ré realizada no dia 21/02/2014, invocando, para o efeito, e em síntese, que em 2012 foi deliberada a exclusão dos AA. e que estes, reagindo a tal deliberação, vieram a instaurar ação que correu os seus termos no extinto 3º Juízo Cível do Tribunal de SMF a qual terminou por transação, aceitando a Ré a reinscrição dos autores como sócios. Porém, a 03/02/2014, o presidente da assembleia-geral fez anunciar a realização de uma assembleia-geral ordinária que teve como ordem de trabalhos a de informar os sócios do acordo obtido no referido processo e colocar à votação os pedidos de reintegração, o que veio a suceder, tendo os sócios reprovado tal reinscrição, deliberação que é anulável porque contrária à transação efetuada.

Regularmente citada contestou a Ré que invocou que não se verifica qualquer uma das situações previstas no artigo 177º do Código civil pelo que a ação carece de fundamento, invocou a ilegitimidade dos AA. em propor a presente ação por não serem sócios e impugnou os factos alegados pelos AA., afirmando que como bem sabem os AA., a admissão de sócios cabe à Assembleia-Geral.
Terminou concluindo pela procedência das exceções e improcedência da ação.

Realizou-se audiência prévia em seda da qual os AA. responderam às exceções invocadas pela Ré, pugnando pela sua improcedência, a Ré invocou a incompetência deste Tribunal, em razão da matéria, para conhecer a causa o que mereceu resposta dos AA. pugnando pela improcedência de tal exceção e onde a Ré pôde expor as razões que a levam a defender que os autos devem prosseguir os seus ulteriores termos, não sendo possível conhecer, desde já, do seu mérito.

Em sede de saneador julgaram-se improcedentes as exceções de incompetência em razão da matéria e de ilegitimidade dos autores e proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“Pelo exposto, julgando verificada a exceção de transação com força de caso julgado, abstenho-me de conhecer o mérito da presente causa, consignando e determinando, tão só, que a Ré cumpra a sentença proferida no processo nº 5139/12.7TBVFR e que a condenou a reinscrever os AA. como sócios, sem necessidade de observância de qualquer outra formalidade.
Custas pela Ré”.

A Ré B… veio interpor recurso do despacho saneador e da sentença.

Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
1. Neste caso a matéria da lide é a impugnação de determinada deliberação da Ré/Requerida “B…”, que é um ente coletivo sem escopo lucrativo.
2. Tal matéria não se enquadra na previsão da referida alínea d) do artigo 128.ºda LOSJ, a qual se refere a deliberações sociais, mas de sociedades comerciais.
3. É, pois, materialmente incompetente para a presente ação de anulação de deliberação social a 2.ª Secção de Comércio de Oliveira de Azeméis
4. Sendo competente para tal ação a Secção Local Cível de Santa Maria da Feira, tendo em consideração o valor de €30.000,01 atribuído ao processo.
5. Assim deverá a ora recorrente ser absolvida da instância;
6. Os recorridos não sendo sócios da recorrente não podem impugnar as deliberações tomadas com base na sua não participação nas mesmas;
7. Mais ainda, como está em causa uma deliberação especifica relacionada com os Autores, neste caso a sua aprovação como sócios da Ré, estes nunca poderiam participar na discussão e votação da mesma, pois existiria sempre conflito de interesses, e mesmo que fossem sócios, o que não eram e não são no nosso entendimento, estariam a participar e a votar em causa própria.
8. Pelo que deve a recorrente ser absolvida do pedido de anulação de deliberação social em virtude dos AA não serem sócios da recorrida e de não alegam quaisquer outros factos que lhe permitam ter interesse na causa.
9. A admissão dos recorridos como sócios da recorrente estava dependente da aprovação pelos órgãos sociais da pessoa coletiva.
10. Os órgãos sociais com poderes para a readmissão dos recorridos como sócios pronunciaram-se desfavoravelmente á admissão destes, pelo que estes não poderão ser considerados sócios da recorrente.
Termina por pedir o provimento à apelação, revogando-se a decisão recorrida.

Os Autores vieram responder ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. A sentença recorrida não merece qualquer reparo;
2. O artigo 128º da LOSJ dispõe que compete às secções de comércio preparar e julgar as ações de suspensão e anulação de deliberações sociais;
3. A referida norma não afasta da competência das secções de comércio as ações de suspensão e anulação de deliberações sociais de pessoas coletivas sem fins lucrativos, como pretende a recorrente;
4. A LOSJ veio alargar a competência das secções de comércio relativamente àquela que era atribuída aos tribunais de comércio, sendo agora aquelas secções competentes para prepara e julgar as ações de insolvência de pessoas singulares;
5. O que revela uma tendência do legislador em ampliar as competências das secções de comércio e não o contrário, como defende a recorrente;
6. A secção de comércio que proferiu a sentença é materialmente competente para a ação;
7. A sentença recorrida também não merece qualquer reparo na apreciação que faz da exceção do caso julgado;
8. O recurso deve ser julgado totalmente improcedente.

O recurso foi admitido como recurso de apelação.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- competência em razão da matéria da secção de comércio para julgar as ações de anulação de deliberações tomadas em assembleia de associação cultural, sem fins lucrativos;
- ilegitimidade dos autores;
- exceção inominada de transação, com efeitos de caso julgado.

2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1 – Correu termos no extinto 3º Juízo Cível de SMF a ação de anulação de deliberações sociais com o nº 5139/12.7TBVFR em que figuravam como AA. os aqui AA. e como Ré a aqui Ré;
2 – Nessa ação o pedido que os AA. formularam foi o de ser declarada anulada a decisão da assembleia-geral de sócios da Ré de excluir os AA. de sócios, assembleia essa realizada no dia 27/04/2012;
3 – No dia 09/09/2013, data designada para a realização de audiência de julgamento, AA. e Ré puseram termos ao referido processo através de transação com as seguintes cláusulas:
a) A Ré aceita a reinscrição dos autores como sócios, mantendo-se o número de sócios que tinham, C… (nº1) e D… (nº4), comprometendo-se os Autores em dez dias, a entregar a ficha de inscrição devidamente preenchida ao Presidente da Assembleia-Geral.
b) Autores e Ré declaram que os factos suscitados nos presentes autos não constituíram qualquer dano patrimonial para a Ré Associação, comprometendo-se esta a não mais invocar os concretos factos que serviram de fundamento à presente ação, quer como obstáculo à manutenção dos Autores como sócios, quer como fundamento à sua eventual exclusão.
c) A Ré Associação compromete-se, na próxima Assembleia Geral, a levar ao conhecimento dos sócios presentes, os termos do acordo formalizado nestes autos.
d) As custas serão pagas em partes iguais por Autores e Ré, prescindindo ambas de custas de parte e procuradoria na parte disponível.
4 – Foi proferida sentença homologatória da referida transação;
5 – Com data de 3-02-2014, o Presidente da Assembleia-Geral de sócios da R., fez anunciar uma convocatória para uma “Assembleia-Geral Ordinária” dos sócios da R., a realizar no dia 21-02-2014, fazendo parte da ordem de trabalhos, entre outros, os seguintes pontos:
“2. Informação aos sócios do acordo no Processo nº5139/12.7TBVFR, que correu nos termos do 3º Juízo Cível do Tribunal de Santa Maria da Feira – para conhecimento;
3. Votação dos pedidos de reintegração e inscrição de sócios, nos termos do artigo 15º, alínea f) dos estatutos da associação:
a) Votação de pedidos de Reintegração de sócios;
b) Votação de pedidos de Inscrição de novos sócios.”
5 – No dia indicado em 5, foi votado pelos sócios presentes em Assembleia “o pedido de reintegração dos sócios” aqui AA. tendo resultado que tal reintegração foi recusada por 32 e 33 votos e só votada favoravelmente por 4 e 1 dos sócios.
6 – Os estatutos da Ré preveem que as candidaturas a membros da Ré sejam apreciadas pela Direção, cabendo à assembleia-geral deliberar sobre a admissão dos referidos membros.

Ao abrigo do disposto no art. 662º/1 CPC, face à matéria alegada em sede de audiência prévia e documentos que instruíram a petição, cujo teor não foi impugnado pela ré-apelante considera-se, ainda, provado:
- A Ré B… é uma associação constituída por tempo indeterminado e sem fins lucrativos (art. 1º dos Estatutos).
- A Ré B… tem por objetivo principal promover, apoiar e fomentar ações que desenvolvam a vertente social, lúdica e de lazer, em especial os mais desfavorecidos, um contacto direto com a realidade e o património cultural e histórico e natural do concelho de Santa Maria da Feira ( art. 3º dos Estatutos ).

3. O direito
- Da competência em razão da matéria
A questão que se coloca na apelação consiste em determinar se a Secção de Comércio da Instância Central de Oliveira de Azeméis tem competência em razão da matéria para apreciar, julgar e decidir a presente ação.
O juiz do tribunal “a quo” considerou que o tribunal judicial é competente em razão da matéria, nos termos do art. 128º, nº 1, al. d) da Lei 62/2013 de 26 de agosto, que atribui competência às secções de comércio para preparar e julgar as ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais. Refere em defesa da sua posição que não distinguindo a lei a competência em razão da matéria das secções de comércio para julgar as ações de anulação de deliberações sociais com base no fim lucrativo das sociedades/associações, não se justifica atribuir a competência à instância local cível de Santa Maria da Feira.
A apelante nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 5, insurge-se contra a decisão, por entender que tratando de deliberação de uma associação sem fins lucrativos, competente para preparar e julgar a ação é a instância local cível de Santa Maria da Feira.
Cumpre pois decidir se a secção de comércio tem competência para julgar o presente litigio, em que está em causa a anulação de uma deliberação social de uma associação sem fins lucrativos.

A competência do tribunal em razão da matéria determina-se por referência à data da instauração da ação e afere-se em razão do pedido e da causa de pedir tal como se mostram estruturados na petição[2], pelos factos reveladores da relação jurídica controvertida, tal como é configurada pelo autor da ação na respetiva petição inicial.
A competência fixa-se no momento em que a ação é proposta, de modo a que as modificações do estado de facto ou do estado de direito posteriores são, em princípio, irrelevantes (artigo 38º, 1 e 2, LOFTJ – Lei 62/2013 de 26 de agosto).
A competência do tribunal constitui um pressuposto processual que resulta do facto do poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por numerosos tribunais.
A competência abstrata de um tribunal designa a fração do poder jurisdicional atribuída a esse tribunal.
A competência concreta do tribunal, ou seja, o poder do tribunal julgar determinada ação, significa que a ação cabe dentro da esfera de jurisdição genérica ou abstrata do tribunal.
A competência em razão da matéria distribui-se por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre elas.
Neste domínio funciona o princípio da especialização, de acordo com o qual se reserva para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos setores do direito[3].
A “insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação”, determina a incompetência do tribunal[4] - art. 40º da LOFTJ – Lei 62/2013 de 26 de agosto e art. 64º, 65º, 96º a), 99º CPC).
Nos termos do art. 211º da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Gozam de competência não discriminada.
Daqui decorre que os restantes tribunais, constituindo exceção, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.
A presente ação foi instaurada em julho de 2014, no tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, sob a forma de Processo Comum, constituindo objeto da ação a impugnação de deliberações sociais [Cível] e na espécie: Anulação de Deliberações Sociais. Como decorrência do exposto, a competência do tribunal determina-se pelos critérios em vigor naquela data. Na data da instauração da ação ainda não estava em vigor a Lei 62/2013 de 26 de agosto que foi aplicada na decisão recorrida, a qual apenas entrou em vigor a 01 de setembro de 2014 (art. 118º DL 49/2014 de 27 de março).
Na data da instauração da ação encontrava-se em vigor a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei 3/99, de 13 de janeiro (com as alterações decorrentes, da Lei nº 101/99, de 26 de julho, do Decreto-Lei nº 323/2003, de 17 de dezembro, do DL nº 38/2003, de 8 de março, da Lei nº 105/2003, de 10 de dezembro, do Decreto-Lei 53/2004, de 28 de março, do Decreto-Lei 76-A/2006, de 29 de março, Decreto-Lei 8/2007, de 17 de janeiro e DL 303/2007, de 24 de agosto) sendo pois ao abrigo deste regime que se vai apreciar da competência material do tribunal para preparar e julgar a presente ação.
Como resulta dos factos provados a ré B… é uma associação, sem fins lucrativos e que tem por objeto promover, apoiar e fomentar ações que desenvolvam a vertente social, lúdica e de lazer, em especial os mais desfavorecidos, um contacto direto com a realidade e o património cultural e histórico e natural do concelho de Santa Maria da Feira.
A apelante é uma associação que não tem por fim o lucro económico dos seus associados, mas antes a prossecução dos seus interesses, nas mais variadas vertentes da atividade social, lúdica e de lazer – artº 157º do C.Civil.
Estando em causa a anulação de deliberação social de associação sem fins lucrativos a jurisprudência sempre defendeu, com unanimidade, que o Tribunal de Comércio não tinha competência em razão da matéria para preparar e julgar tais ações, por constituir matéria da competência da jurisdição comum.
A Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei nº 3/99, de 13-1) criou os Tribunais de Comércio, em substituição dos Tribunais de Recuperação de Empresa e Falência - v. artºs 78º e) e 89º -, consignando no art. 78º que os Tribunais de Comércio são Tribunais de competência especializada.
No artº 89º nº1 d) da LOFTJ determinava-se: “[c]ompete aos Tribunais de Comércio preparar e julgar as ações de suspensão e anulação de deliberações sociais” – abrangendo, nos termos do respetivo nº3, os incidentes e apensos. Os Tribunais de Comércio tinham competência material para dirimir pleitos atinentes às relações comerciais, sejam elas da titularidade de sociedades ou de comerciantes e por isso, o preceito aplicava-se apenas às ações de anulação de deliberações sociais que envolvessem sociedades ou entidades com fins lucrativos, excluindo, assim, da competência material destes tribunais as ações de anulação de deliberações sociais de entidades sem fins lucrativos.
Esta interpretação tinha apoio na inserção sistemática do preceito e no pensamento legislativo (art. 9º CC).
Como decorria das várias alíneas daquele artº 89º, os Tribunais de Comércio tinham competência material para dirimir pleitos atinentes às relações comerciais, sejam elas da titularidade de sociedades ou de comerciantes.
O facto de não aludir a lei, restringindo, o âmbito de aplicação da alínea d) do seu nº1 às sociedades comerciais, não significava que aí se devia incluir a competência para a suspensão e anulação de deliberações sociais, estando em causa pessoas coletivas. Na verdade, o objetivo que presidiu à criação dos tribunais de comércio, foi vertido na proposta de lei nº 182/VII, in D.R. 2ª Série-A, de 12-6-98, onde se referia consistir no tratamento das ações relativas ao contencioso das sociedades comerciais e da propriedade industrial, às ações e aos recursos previstos no C.R.Comercial, aos recursos das decisões em processo de contraordenação e promoção da concorrência.
Como se observa no Ac. Rel. Porto 06 de junho de 2002[5]:“[a] disposição legal contida naquele artº 89º nº1 d) da LOFTJ tem de ser interpretada no contexto do pensamento legislativo que foi aquele que esteve na origem da proposta de lei atrás referida, como se determina no artº 9º do C:Civil. – do que resulta ter de se entender que, ao mencionar a competência dos tribunais de comércio para preparar e julgar as ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais, se reporta às tomadas nas sociedades comerciais. Por isso, devem considerar-se afastadas do âmbito de competência dos tribunais de comércio as ações (e respetivos procedimentos cautelares) reportadas às Associações com fim não comercial[…]”.
Observa-se, ainda, no Ac. Rel. Porto 18 de setembro de 2006[6]:”[a] interpretação que o Mmº Juiz a quo faz daquela al. d) cinge-se à letra da lei (a qual referindo-se a “deliberações sociais”, sem restrições quanto ao alcance da expressão, abarcará a deliberação social em causa), quando é certo que a ratio legis é decisiva (art. 9º CC) e impõe, nesta situação, uma interpretação restritiva (que se aplica “…quando se reconhece que o legislador, posto se tenha exprimido em forma genérica e ampla, todavia quis referir-se a uma classe especial de relações.”, F.Ferrara in Interpretação e Aplicação das Leis, trad. por M.Andrade/ 3ª ed., p.149) excluindo da norma (al.d)) as deliberações sociais das pessoas coletivas sem os fins lucrativos que caracterizam o comércio”.
O Ac. Rel. Porto 10 de janeiro de 2005[7] considera: “A proposta de Lei N.º 182/VII, in D. R., I-A, de 12/06/98, é explícita no seu propósito de atribuir competência, na matéria, aos Tribunais de Comércio, apenas para as ações relativas ao contencioso das sociedades comerciais e em nenhuma das fases do processo legislativo aflora o contrário. De resto, em sentido contrário, ou seja, interpretando o art.º 89, n.º 1, al. d) da Lei n.º 3/99, como atribuindo aos Tribunais de Comércio competência para julgar todas as ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais, só poderia fazer-se com apelo ao texto do próprio preceito. Ora, como sabemos, o argumento literal da interpretação é apenas um dos elementos da mesma, tendo o valor que lhe advém do n.º 2 do art.º 9.º, do C. Civil, o qual apenas veda ao intérprete a consideração de uma mens legis “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal”. E esse não é o caso, pois o intérprete se limita a considerar que a mens legis se reporta às deliberações de sociedades comerciais e não a todas as outras sem qualquer conexão com as restantes matérias incluídas na competência desses tribunais. Não vislumbramos argumentos interpretativos que nos levassem a considerar da competência desses tribunais a apreciação da anulabilidade, nulidade ou inexistência de deliberação de uma qualquer associação de melhoramentos, de uma associação sindical, de uma associação de pais ou entes semelhantes. A interpretação da lei, pelos seus próprios termos, não se basta com a sua leitura”.
Os acórdãos citados seguiram a interpretação defendida, entre outros, nos Ac. STJ 07 novembro de 2002, Ac. STJ 05 de dezembro de 2002, ambos em CJ STJ X, III, 125 e 156, respetivamente, podendo, consultar-se no mesmo sentido os Ac. STJ 18 março de 2002, Proc. 02B2491, www.dgsi.pt.; Ac. Rel. Lisboa de 11 de outubro de 2007, Proc. 6137/2007-2, www.dgsi.pt; Ac. Rel. Lisboa de 19 de fevereiro de 2004, Proc. 10508/2003-8; Sumários do seguintes acórdãos: Ac. Rel. Lisboa de 16 de maio de 2001, Proc. 0008136; Ac. Rel. Lisboa 14 de março de 2002, Proc. 0002122; Ac. Rel. Lisboa de 19 de junho de 2001, Proc. 0039101, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
No caso presente, tal como os autores configuram a sua pretensão está em causa a suspensão de uma deliberação social da apelante. A apelante, conforme decorre dos seus Estatutos é uma associação, sem fins lucrativos e que prossegue fins de solidariedade social, lúdicos e de lazer.
Na data em que foi instaurada a ação a circunscrição do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira não dispunha de Tribunal de Comércio, pelo que, a ação sempre seria julgada no tribunal comum, mais propriamente os Juízos Cíveis do Tribunal Judicial de Vila da Feira, onde foi distribuída – 4º Juízo Cível.
Com a entrada em vigor da nova lei orgânica – Lei 62/2013 de 26 de agosto - apesar de suprimido o tribunal ao qual a ação estava afeta, por efeito da nova reorganização judiciária, não foi atribuída competência à secção de comércio, criada na Instância Central de Oliveira de Azeméis, para preparar e julgar estas ações.
Com efeito, o art. 128º d) da Lei 62/2013 de 26 de agosto mantém a mesma redação do art. 89º/d) da anterior lei orgânica e o preceito continua a atribuir apenas competência para preparar e julgar as ações em que estão em causa ações de anulação de deliberações sociais de sociedades comerciais ou entidades com fins lucrativos. Analisando os trabalhos preparatórios, a exposição de motivos – Proposta de Lei 114/XII, disponível em DAR, II série-A, nº 41, XII/2, 30.11.2012 - constata-se que a grande preocupação do legislador recaiu sobre a estrutura judiciária, pouco se alterando em relação ás primitivas competências materiais dos tribunais especializados. Em relação ás secções de comércio, anota-se apenas uma alteração na alínea a) do preceito, que decorre da discussão do diploma, que passou a atribuir competência para preparar e julgar os processos especiais de revitalização.
A criação das secções de comércio visa concentrar nestes tribunais as matérias relacionadas com questões relativas ao comércio, compreendendo este os atos de interposição na circulação de bens (comércio em sentido económico), a indústria e os serviços, com fins lucrativos, que constituem a especialidade que os justificam.
A apelante é uma associação, sem fins lucrativos; não é uma entidade que vise, como as sociedades comerciais, fins lucrativos. Não se pode considerar que tal entidade seja comerciante, pois que não se destina a praticar atos de comércio, fazendo desta atividade, tal como os comerciantes em nome individual, seu escopo principal (artº 13º do C. Comercial).
Desta forma, a Secção de Comércio não tem competência em razão da matéria para preparar e julgar a presente ação, cuja competência sempre esteve e continua atribuída aos tribunais comuns, no caso concreto e por efeito da reorganização judiciária à Comarca de Aveiro, secção de competência especializada de natureza cível da instância central de Santa Maria da Feira.
Aliás, uma vez que o processo já estava distribuído ao 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, seria de aplicar o regime previsto para a transição de processos pendentes do art. 104º do Regulamento à Lei Orgânica – DL 49/2014 de 27 de março -, com a interpretação proposta pela deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 09 de abril de 2014 (acessível em www.csm.org.pt), o que não foi observado, pois a remessa para a Secção de Comércio não foi precedida de qualquer decisão judicial nesse sentido.
Procedem, desta forma, as conclusões de recurso e nessa conformidade deve revogar-se o despacho recorrido e julgar procedente a exceção de incompetência material.
A incompetência absoluta do Tribunal é uma exceção dilatória que determina a absolvição da instância ou, no caso de ter sido decretada depois de findos os articulados, a remessa dos autos ao Tribunal competente, desde que os autores assim requeiram, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado do presente acórdão e a ré não ofereça oposição justificada ( artºs 96ºa), 97º, 99º/1/2, 576º/2 e 577ºa) todos do CPC).
Julga-se, ainda, prejudicada a apreciação das restantes questões (art. 608º/2 CPC).

Nos termos do 527º CPC as custas da apelação e da primeira instância, são suportadas pelos apelados.

III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação, julgar procedente a apelação e conceder provimento ao recurso, revogando-se, consequentemente, a decisão e nessa conformidade julga-se a Secção de Comércio da Instância Central de Oliveira de Azeméis, Comarca de Aveiro incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente ação.

A incompetência absoluta do Tribunal é uma exceção dilatória que determina a absolvição da instância ou, no caso de ter sido decretada depois de findos os articulados, a remessa dos autos ao Tribunal competente, desde que os autores o requeiram, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado do presente acórdão e a ré não ofereça oposição justificada (artºs 96ºa), 97º, 99º/1/2, 576º/2 e 577ºa) todos do CPC).

Custas a cargo dos apelados – na apelação e em 1ª instância.
*
Porto, 7 de Março de 2016
(processei e revi – art. 138º/5 CPC)
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Rita Romeira
______
[1] Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.
[2] Cfr. MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pag. 91.
Na jurisprudência, entre outros, podem consultar-se: Ac. Rel. Porto 31.03.2011 – Proc. 147/09.8TBVPA.P1 endereço eletrónico: www.dgsi.pt; Ac. STJ, CJ/STJ, 1997, I, 125; Ac. Rel Porto 07/11/2000, CJ, Tomo V/2000, pág. 184.
[3] Cfr. ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pag. 195.
JOÃO DE CASTRO MENDES Direito Processual Civil, vol I, Lisboa, AAFDL, 1980, 646.
[4] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, Lisboa, Lex, 1997, 128.
[5] Proc. 0230634, disponível em www.dgsi.pt
[6] Proc. 0651969, disponível em www.dgsi.pt
[7] Proc. 0455711, disponível em www.dgsi.pt