Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
228/08.5TYVNG-L.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MADEIRA PINTO
Descritores: VERIFICAÇÃO ULTERIOR DE CRÉDITOS
CONTRATO PROMESSA COM EFICÁCIA REAL
NEGÓCIO EM CURSO
CUMPRIMENTO DO CONTRATO
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RP20180426228/08.5TYVNG-L.P1
Data do Acordão: 04/26/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 131, FLS 66-77)
Área Temática: .
Sumário: I - O artigo 106.º do CIRE regula especificamente a situação em que o insolvente se encontra vinculado a contrato promessa de compra e venda totalmente incumprido à data da declaração de insolvência: nenhum dos contraentes emitiu a declaração negocial correspondente ao contrato prometido, nem realizou na íntegra a prestação que deste resultaria.
II - No caso de promessa com eficácia real, de acordo com o n.º 1 do artigo 106.º do CIRE, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento da promessa “se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente comprador”.
III - O requisito da tradição da coisa a favor do promitente adquirente constitui a condição essencial para que ao AI não seja reconhecida a faculdade potestativa de escolha do destino final do negócio. Ambas as partes estão vinculadas a celebrar o contrato definitivo. Entendemos que é indiferente ter havido ou não sinal entregue.
IV - In casu, a recusa da AI na celebração do contrato definitivo, ou seja a respectiva escritura pública de compra e venda, é inoponível ao autor marido, promitente comprador. Este direito dos autores a verem celebrado o aludido contrato de compra e venda, exercido a título de pedido principal da acção foi-lhes reconhecido na sentença recorrida. Não se trata de direito de crédito pecuniário, antes de um direito de crédito a uma prestação de facto infungível, não passível, pois, de ser graduado no âmbito deste processo.
V - A doutrina do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 4/2014, publicado no DR Iª Série, de 19/05/2, nos termos do qual, “o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”, é, apenas, aplicável:
- aos contratos promessa de compra e venda de eficácia meramente obrigacional;
- nos quais se tenha verificado o pagamento de sinal por parte do promitente comprador;
- em que tenha existido traditio da coisa objeto do contrato promessa; e
- que o promitente comprador seja um consumidor.
VI - O cumprimento do contrato não é aqui um direito potestativo da AI, antes é um dever vinculado. Nenhuma semelhança com a venda judicial prevista no artº 824º CC existe. A venda a realizar e que foi determinada com a decisão recorrida é uma venda extrajudicial, mediante escritura pública ou documento legal equivalente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 228/08.5TYVNG-L.P1
Relator: Madeira Pinto
Adjuntos: Carlos Portela
José Manuel Araújo de Barros
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Sumário:
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I. RELATÓRIO
Por apenso aos autos de insolvência n.º 228/08.5TYVNG, em que é insolvente a sociedade comercial B..., Ldª, em 15.07.2010, C..., com o NIF ........., e mulher D..., com o NIF ........., com residência na ..., nº..., habitação ..., ..., Vila Nova de Gaia, vieram propor acção de verificação ulterior de créditos contra a respectiva Massa Insolvente, os credores desta e a devedora, nos termos do artigo 146.º do CIRE, pedindo o reconhecimento do seu direito de crédito à celebração do contrato prometido mediante contrato-promessa celebrado em 30.11.2006, relativo à fracção autónoma “Q” do prédio urbano descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº366, devendo a Sra. Administradora da Insolvência ser notificada para diligenciar por essa celebração.
Subsidiariamente, para o caso de se entender que os autores não têm direito à execução específica daquele contrato, pedem que seja reconhecido o crédito no montante global de 101.343,27 €, correspondente ao valor do preço de € 80.000,00, integralmente pago à insolvente e relativo à compra e venda prometida e respectivos juros de mora desde a data da celebração do contrato promessa, 30.11.2006, até à data da sentença declarativa da insolvência, 28.05.2009 e que seja graduado no lugar que lhe competir.
Para tanto alegou, em síntese, que:
A Ré devedora, no exercício da sua actividade imobiliária, mediante contrato-promessa com eficácia real, celebrado em 30.11.2006, prometeu vender ao Autor, pelo preço de 80.000 €, a fracção autónoma “Q” que é parte integrante do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº366; o indicado preço foi pago à ora Insolvente e a mencionada fracção já está na sua posse, porquanto a habitam; o contrato prometido não foi outorgado, por culpa da promitente-vendedora, pois esta, apesar de solicitado pelos promitentes-compradores, nunca lhes disponibilizou a licença de habitabilidade referente ao dito imóvel.
Apenas a Ré Massa Insolvente contestou, alegando desconhecer se o preço foi efectivamente o declarado no invocado contrato-promessa, se os AA. têm a sua habitação própria e permanente na fracção autónoma em causa e se ocorreu efectivamente a tradição da coisa. Mais sustenta que os AA. não alegam quaisquer factos integradores da culpa imputada à promitente-vendedora na falta de cumprimento do contrato prometido, nem no que respeita à não disponibilização da licença de habitabilidade. Acresce que a Sra. Administradora da Insolvência ainda não se pronunciou pela execução ou recusa do cumprimento do referido contrato-promessa, sendo certo que, atendendo ao princípio de tratamento igualitário dos credores e demais princípios a que deve obedecer, a mesma pronunciar-se-á pela recusa de tal cumprimento. A Ré contestante reconhece o direito de crédito dos AA. correspondente ao preço declarado na escritura pública do contrato promessa em apreço, bem como o direito de retenção. Não aceita os juros de mora peticionados, porquanto os mesmos não podem ser contabilizados até à data da sentença declaratória da insolvência, pois não foram alegados factos dos quais resulte ser o dia 30.11.2006 a data do incumprimento, sendo certo que o facto de que dependia a celebração da escritura de compra e venda constitui facto a praticar por terceiro (licença de habitabilidade). Acresce que, de acordo com os termos do contrato-promessa, incumbia aos AA. a marcação da data da escritura de compra e venda, estando os mesmos obrigados a avisar a Insolvente com 5 dias de antecedência, pelo que está por determinar se até existe mora imputável à Insolvente, na medida em que os AA. não referem terem-na interpelado para a outorga do contrato prometido.
Os AA. vieram, em articulado superveniente apresentado em 31.01.2011 (de fls. 61-74), requerer a ampliação do pedido (subsidiário), peticionando que, no caso de a ré Massa Insolvente não ser condenada na celebração do contrato prometido de compra e venda, seja a mesma condenada a pagar-lhes a indemnização consagrada no artigo 442.º, nº2, do Código Civil, ou seja, o montante de 160.000 €, correspondente ao valor do sinal em dobro, porquanto, tendo sido paga a totalidade do preço, presume-se que tal antecipação do preço tem carácter de sinal, como decorre do artigo 441.º do Código Civil.
Foi lavrado o respectivo termo de protesto a fls. 438 dos autos principais.
Foi proferido o despacho saneador, bem como despacho a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova (cf. fls. 105-106).
Por despacho proferido na acta da audiência de julgamento de 19.05.2016 (de fls. 124-125), foi admitida aquela ampliação do pedido subsidiário dos autores e encerrada a audiência, sem alegações dos mandatários das partes, para prolação de sentença.
Em vez da prometida sentença, o senhor juiz a quo proferiu despacho em 08.07.2016 (fls. 126) convidando os litigantes a indicarem se os requerentes são de reconduzir à figura do consumidor referida no AUJ nº 4/2014, do STJ.
Os AA. vieram alegar, a fls. 133-135, que entraram na posse da mencionada fracção autónoma em 17.06.2004, data em que a Insolvente lhes entregou as respectivas chaves e os mesmos passaram a dar-lhe o destino que entenderam, realizando obras, destinadas à residência permanente dos Autores. Os AA. mais alegam que são consumidores, pois utilizam o imóvel em questão para uso próprio e não com o escopo de revenda, sendo que não são comerciantes ou profissionais do ramo imobiliário. Os AA. concluem, assim, que o direito de crédito reclamado, no montante de 160.000 €, goza do direito de retenção sobre a dita fracção autónoma, devendo ser graduado antes dos restantes créditos sobre a insolvência, incluindo os créditos hipotecários.
A ré Massa Insolvente pronunciou-se a fls. 147-148, sustentando que o requerimento dos AA. carece de prova documental, sendo que, sem a mesma, a mera alegação de que são consumidores finais não é suficiente para efeitos de eventual enquadramento da situação nos termos dos artigos 755.º, nº1, al. f), e 759.º do Código Civil.
Foi realizada nova audiência de julgamento em 19.05.2016 e final e em 11.12.2017 foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:
a) condenou a ré Massa Insolvente de B..., Lda., representada pela Sra. Administradora da Insolvência, a celebrar com o Autor o contrato de compra e venda prometido, mediante contrato-promessa celebrado entre aquele e B..., Lda., em 30.11.2006 e tendo por objecto a fracção autónoma “Q” do prédio urbano descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº366, emitindo a declaração negocial correspondente à da promitente-vendedora; e
b) absolveu os RR. do demais pedido.
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Na sentença foram considerados provados os seguintes factos:
1. Por escritura pública de 30.11.2006, denominada «contrato promessa com eficácia real», E..., na qualidade de gerente de B..., Lda., declarou prometer vender e o Autor declarou prometer comprar, pelo preço de 80.000 €, a fracção autónoma designada pela letra “Q” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº366 – cf. doc. de fls. 13-17, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. Na escritura pública indicada em 1), E..., na qualidade de gerente de B..., Lda., e o Autor declararam que “atribuem eficácia real ao presente contrato, com vista a reforçar a expectativa de aquisição da fracção (…)” e “que o segundo outorgante entrou na posse da referida fracção em dezassete de Junho, de dois mil e quatro, e habita na referida fracção desde então, constituindo a sua habitação própria e permanente” – cf. doc. de fls. 13-17, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
3. Na escritura pública indicada em 1), E..., na qualidade de gerente de B..., Lda., e o Autor declararam “que a escritura pública do contrato definitivo de compra e venda deverá realizar-se logo que estejam resolvidas todas as questões inerentes à obtenção de licença de utilização correspondente, mas sempre até trinta e um de Dezembro de dois mil e seis, cabendo a sua marcação ao segundo outorgante, o qual avisará, com cinco dias de antecedência, por carta registada com aviso de recepção, à representada do primeiro outorgante da data, hora e local da realização dessa escritura, sendo que, até à referida data, a sociedade representada do primeiro outorgante se compromete a proceder às diligências necessárias para a obtenção quer daquela licença de utilização, quer do cancelamento da hipoteca acima referida” – cf. doc. de fls. 13-17, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
4. Na escritura pública indicada em 1), E..., na qualidade de gerente de B..., Lda., e o Autor declararam “que o presente contrato está sujeito a execução específica” – cf. doc. de fls. 13-17, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
5. Na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº366/19880928-Q, mediante a ap. 102 de 9.03.2007, encontra-se inscrito sobre a fracção autónoma identificada em 1) o acordo referido em 1) – cf. doc. de fls. 18-20.
6. Na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº366/19880928-Q, mediante a ap. 100 de 5.11.1999, encontra-se inscrita sobre a fracção autónoma identificada em 1) hipoteca voluntária – cf. doc. de fls. 18-20.
7. Na data indicada em 1), os AA. entregaram à ré B..., Lda. a quantia indicada em 1).
8. B..., Lda. entregou aos AA. as chaves da fracção autónoma identificada em 1), em 17.06.2004.
9. A partir da data indicada em 8), os AA. realizaram obras na fracção autónoma identificada em 1), com vista a fixarem nela a sua habitação.
10. B..., Lda. foi declarada insolvente, por sentença de 28.05.2009, transitada em julgado em 21.07.2009 – cf. fls. 63-69 e 319-323 do processo principal.
11. A Sra. Administradora da Insolvência declarou recusar o cumprimento do acordo referido em 1).
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E foram considerados não provados os seguintes factos:
a) Desde a data indicada em 8), os AA. pernoitam e tomam refeições na fracção autónoma identificada em 1).
b) Apesar de solicitado pelos AA., a ré B..., Lda. nunca lhes disponibilizou a licença de habitabilidade relativa à fracção identificada em 1).
c) Os AA. não marcaram a escritura pública referida em 3) porque sabiam que a ré B..., Lda. não tinha obtido os documentos referidos em 3).
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Desta decisão interpuseram recurso os autores, tendo apresentado alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
A - O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo tribunal a quo que julgou a acção intentada pelos Autores, ora Recorrentes, parcialmente procedente, condenando a Ré a celebrar o contrato prometido sem a expurgação da hipoteca que incide sobre o imóvel objeto do referido contrato, não tendo sido reconhecido o direito de retenção dos Autores e tendo a Ré sido absolvida do demais peticionado.
B - Resumidamente, através da presente acção os Recorrentes pretendem o reconhecimento do seu direito de crédito à celebração do contrato promessa celebrado em 30.11.2006, relativo à fracção autónoma “Q” do prédio urbano descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º 366, devendo a propriedade do mesmo ser transmitida, através da celebração do contrato de compra e venda, livre de quaisquer ónus ou encargos.
C - Subsidiariamente, caso não seja a Ré condenada a celebrar o contrato nas supra referidas condições, pretendem os Autores, ora Recorrentes, que a Ré seja condenada a pagar-lhes o valor do sinal em dobro (€ 160.000,00), devendo o seu crédito ser graduado com prevalência sobre os demais, atendendo ao direito de retenção dos Autores.
D - A Ré, no exercício da sua actividade imobiliária, mediante contrato promessa com eficácia real, celebrado em 30.11.2006, prometeu vender a C... e D..., pelo preço de € 80.000,00 (oitenta mil euros) a fracção autónoma “Q” que é parte integrante do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º 366.
E - O indicado preço foi pago, pelos Autores à Ré, na íntegra, e a mencionada fracção está na sua posse desde 17.06.2004, data em que a Insolvente, aqui Recorrida, entregou as chaves do referido imóvel aos Autores.
F - Os Autores, ora Apelantes, desde a data supra indicada, deram à fracção supra aludida o destino que lhes aprouve, tendo realizado obras com vista à residência permanente dos promitentes-compradores.
G – E não podem os Autores deixar de ser considerados consumidores, uma vez que adquiriram o imóvel em questão para uso próprio e não com o escopo de revenda, sendo que não são comerciantes ou profissionais do ramo.
H - Pelo que, perante o incumprimento definitivo do contrato promessa em causa, nos termos contratados, o direito de crédito dos Autores, ora Recorrentes, na indemnização pelo dobro do sinal, reclamado nos presentes autos, goza do direito de retenção sobre a dita fracção autónoma, devendo ser graduado antes dos restantes créditos sobre a insolvência, incluindo os créditos hipotecários.
I - Sendo certo que incide uma hipoteca voluntária sobre todo o prédio pertença da Ré, aqui Recorrida, e não conhecem sequer os Autores, aqui Apelantes, o concreto montante que respeita à sua fracção.
J - E resulta também provado dos presentes Autos que os Autores, ora Recorrentes, cumpriram integralmente a sua prestação.
K - Não obstante ter sido dado como provado que estamos perante um contrato promessa dotado de eficácia real e que, ainda em momento anterior à data da declaração de insolvência da promitente vendedora, ocorreu a tradição da coisa, e que a administradora de insolvência se recusou a celebrar o contrato prometido (cfr. facto provado sob o n.º 11);
L – Entendeu o tribunal a quo condenar a Insolvente a celebrar o contrato definitivo de compra e venda com os Autores sem, no entanto, distratar a hipoteca que incide sobre o imóvel e, bem assim, entendeu-se também que o crédito dos Autores, ora Recorrentes, não está garantido pelo direito de retenção.
M - Os aqui Apelantes exigiram à Exma. Senhora Administradora de Insolvência, nos termos do art. 106.º do CIRE, a celebração do contrato promessa sub judice, pretendendo comprar o imóvel livre de quaisquer ónus ou encargos, conforme contratado.
N - Neste âmbito – cumprimento de contrato promessa de compra e venda com eficácia real – cabe ao Administrador de Insolvência, porque investido de poderes para tanto, proceder pela obtenção do distrate e extinguir os direitos reais de garantia que onerem os bens transmitidos com fundamento no disposto no art. 824.º, n.º 2 do Código Civil.
O - Neste sentido, pronunciou-se, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 16/03/2010, no processo n.º 2384/08.3TBSTS, disponível in www.dgsi.pt, em cujo sumário se lê que:
“IV- Assim sendo, as hipotecas que afectavam os imóveis prometidos vender, caducam com a venda, nos termos do art. 824.°, do C. Civil, como acima se explicou, pelo que não há qualquer necessidade de proceder à sua expurgação, uma vez que elas não acompanham os imóveis sobre que recaíam após a sua venda aos promitentes compradores. (…)”
P - Deveria, portanto, a Exma. Senhora Administradora de Insolvência cumprir o contrato prometido em causa nos precisos termos contratados, ou seja, com o imóvel livre de ónus e encargos.
Q - Tanto mais que, a opção pelo cumprimento, ou não, dos contratos promessa de compra e venda deve, pois, ter em conta o custo/beneficio que cada uma dessas opções traz para a massa insolvente e respectivos credores.
R - Ora, na situação em apreço, a opção pelo cumprimento dos contratos promessa de compra e venda faz operar a redução do passivo da Massa Insolvente com a “eliminação” de um eventual direito de crédito dos aqui Recorrentes;
S - Donde, decidindo, como decidiu, o Tribunal recorrido fez, salvo o devido respeito, inadequada aplicação do Direito, por violação dos artigos 106.º do CIRE e do art. 824.º do CC.
T- Os Recorrentes estão, por isso, convictos que Vossas Excelências, reapreciando a questão “sub judice” e subsumindo-a nos comandos normativos aplicáveis, não deixarão de revogar a decisão recorrida, e ordenar a sua substituição por outra que reconheça que previamente, ou concomitantemente, com o cumprimento do contrato promessa de compra e venda, celebrado pela Insolvente e não concluído à data da declaração de insolvência, deve a Exma. Senhora Administradora da Insolvência expurgar a hipoteca que incide sobre o imóvel objecto do contrato promessa, quer seja nos termos legais, por efeitos de aplicação do art. 824.º do CC, quer seja por força de um qualquer pagamento que possa ser realizado com dinheiro da Massa.
U – Ou, não estando a Exma. Senhora Administradora de Insolvência disposta a fazê-lo, ou não tendo condições para o fazer, deve o Tribunal ad quem declarar verificada a existência de incumprimento definitivo imputável à promitente vendedora e, em conseguinte, deve o crédito dos Autores, aqui Apelantes, ser reconhecido no montante do dobro do sinal prestado, garantido pelo direito de retenção e graduado em conformidade.
V – Sendo certo que houve já nos presentes autos declarações expressas e inequívocas, da Exma. Senhora Administradora de Insolvência, no sentido da impossibilidade de celebrar o contrato prometido entre Insolvente e Autores, aqui Recorrida e Recorrentes, nos termos contratados;
W - Pelo que, não sendo celebrado o contrato nos exactos termos prometidos, dúvidas não restam de que estamos perante um incumprimento definitivo imputável ao promitente vendedor.
X - Pelo que o tribunal a quo fez uma errada apreciação da prova produzida em juízo, não tendo dado como provados factos que, salvo o devido respeito, emergem de forma clara e evidente dos próprios autos, e
Y - Faz igualmente, no modesto entendimento dos ora Recorrentes, uma errada apreciação do direito aplicável in casu.
Z - Assim, não podem os Recorrentes conformar-se com a sentença proferida porquanto a mesma labora sobre um manifesto erro de julgamento.
AA - Atenta a prova produzida nos presentes autos, e com relevância para a causa, deveria ter sido dado como provado que a Insolvente, aqui Apelada, não pode celebrar o contrato prometido aqui em causa, e, portanto, estamos perante uma situação de incumprimento definitivo imputável à promitente vendedora.
BB - Os Apelantes entendem que emerge também da prova produzida ainda outro facto com relevo para a decisão da presente contenda.
CC - Especificamente, e como já alegado nos presentes autos, deveria constar dos factos provados que os Autores, ora Recorrentes, são consumidores na acepção prevista no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2014, de 20.03.2014 (Proc. n.º 92/05.6TYVNG.M.P1.S1);
DD - E, portanto, deverá o seu crédito prevalecer sobre o crédito hipotecário!
EE - E isto porque, ressalta o depoimento da testemunha F..., que não mereceu censuras por parte da Mm.ª Juíza a quo, que os originais Autores celebraram o contrato promessa aqui em causa com o objectivo de aí fixarem a sua residência.
FF - Tal circunstância também se revela clara no depoimento da testemunha G..., nas motivações transcrito.
GG – E importa também atentar no depoimento prestado pela testemunha H..., mais concretamente:
““(…)
H...: O Sr. C..., depois também entrou… entrou numa coisa de divórcio com a esposa. Sei que entrou… que depois aquilo também deu alguns problemas… não contava tudo, não é? Mas sei que havia alguns problemas e depois também entrou em divórcio com a esposa.
Dr. I...: Mas sabe que aquilo era para ele ir habitar…?
H...: Sim, era para ele ir habitar porque era para estar mais perto da mãe e…
Dr. I...: Pois porque a mãe era no rés-do-chão e ele…
H...: Ele era no segundo andar e a mãe depois fazia três vezes hemodiálise por semana, fazia três vezes hemodiálise por semana e era para estar mais perto…
Dr. I...: Para estar mais perto.
H...: …e para ter mais tempo.
(…)”
(do minuto 6 e 43 segundos ao minuto 7 e 26 segundos de gravação áudio) - Sessão de 9/11/2017
HH – Assim, na sequência da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, releva-se imperativo, e da maior importância para o desfecho da lide, dar como provado que os Autores, ora Recorrentes, são consumidores na aceção prevista no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2014, de 20.03.2014 (Proc. n.º 92/05.6TYVNG.M.P1.S1).
II - Sendo-lhes reconhecida tal qualidade, tem de ser reconhecido que gozam do direito de retenção.
JJ – Em suma, os aqui Recorrentes discordam da decisão tomada pelo Tribunal “a quo” no que respeita à graduação do seu crédito, por violação do disposto no artigo 755.º, n.º 1, al. f) do CC, sem qualquer consideração na sentença em crise a propósito da aplicação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014, de 20/03/2014, publicado no D.R. - 1ª Série, nº. 95, de 19/05/2014.
KK - Uma vez que em tal acórdão se fixou que o gozo do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil é assegurado ao promitente-comprador que tenha a qualidade de consumidor entendida esta no sentido de estarmos perante um utilizador final que utiliza o imóvel prometido comprar para uso próprio e não com escopo de revenda.
LL - O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2014 não incluiu o conceito de consumidor no seu segmento uniformizador, sendo entendimento jurisprudencial pacífico de que se deve considerar excluído deste conceito apenas aquele que adquire o bem no exercício da sua actividade profissional de comerciante de imóveis.
MM - Atente-se que o legislador atribuíu preferência aos beneficiários das promessas de venda em face dos direitos decorrentes da hipoteca, prevalecendo o direito de retenção, ainda que perante hipoteca registada em data anterior, nos termos do art. 759.º, n.º 2, do CC, numa lógica da defesa do consumidor.
NN - No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.º nº 1 alínea f) do Código Civil.”
OO - Por conseguinte, face à jurisprudência uniformizada, para que o promitente comprador, em graduação de créditos em sede de processo de insolvência, goze de direito de retenção, terá que ser incluído no conceito de consumidor.
PP - Tal conceito deverá ser aferido na sua definição ampla.
QQ - Neste sentido se pronunciou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.5.2014 (proc. nº 1092/10.0 TBLSD-G.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.), onde se esclareceu que:
“A inclusão do consumidor no texto uniformizante apoiou -se, como da fundamentação consta, no que defende Miguel Pestana de Vasconcelos, em Cadernos de Direito Privado, n.º 33, 3 e seguintes.
Este autor dedica ali a extensa nota de pé de página n.º 25 à noção de consumidor, sustentando que é ponderada e equilibrada, devendo «orientar o intérprete na concretização do consumidor para este efeito», a definição resultante dos artigos 10.º, n.º 1, e 11, n.ºs 1 e 2, do anteprojeto do Código do Consumidor.
É, então, «consumidor a pessoa singular que actue para a prossecução de fins alheios ao âmbito da sua actividade profissional, através do estabelecimento de relações jurídicas com quem, pessoa singular ou colectiva, se apresenta como profissional».
«Deste texto, conjugado com o que vimos referindo em abstracto, cremos poder concluir que [do] conceito de consumidor inserto no texto da uniformização só está excluído aquele que adquire o bem no exercício da sua actividade profissional de comerciante de imóveis.»
RR - Assim, sustenta-se que do conceito de consumidor inserto no texto da uniformização só está excluído aquele que adquire o bem no exercício da sua actividade profissional de comerciante de imóveis, entendimento este que, perante a argumentação que atrás se deixou transcrita, consideramos ser de seguir.
SS - Pois, nenhum dos Autores, ora Apelantes, se dedica a actividade relacionada com o comércio de imóveis, pelo que se subsumem ao conceito de consumidor para os efeitos do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, assim lhe devendo ser reconhecido o direito de retenção previsto no art. 755.º, n.º 1, al. f) do Cód. Civil e a consequente prevalência do seu crédito sobre os créditos garantidos por hipoteca.
TT - Os Autores, ora Recorrentes, vieram aos presentes autos exigir o cumprimento do contrato promessa que haviam celebrado, pretendendo comprar o imóvel livre de quaisquer ónus ou encargos, conforme prometido.
UU - Nesta sequência, a Exma. Senhora Administradora da Insolvência veio informar que não lhe é possível cumprir o contrato nos seus termos, ou seja, com uma transmissão livre de ónus e encargos.
VV - Sendo certo que os recorrentes não aceitam a transmissão com o ónus da hipoteca e pretendem, para o caso de assim não ser entendido, que se reconheça o seu crédito no valor correspondente ao dobro do sinal e seja graduado como garantido, em virtude do direito de retenção que invocou.
WW - O art. 106.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) estabelece que “no caso de insolvência do promitente -vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente comprador.”
XX – Mas, discute-se precisamente se, uma vez recusada a celebração do contrato – qualquer que seja o motivo - o promitente-comprador que tenha a tradição da coisa, como no caso dos presentes Autos, conserva o direito de retenção que a lei civil comum lhe atribui para a defesa do seu crédito.
YY - A resposta brota do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, já supra aludido, do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2014, de 20.3.2014 (proc. 92/05.6TYVNG-M.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.), que fixou jurisprudência nos seguintes termos:
“No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.º n.º 1 alínea f) do Código Civil. ”
ZZ - E, ainda, a fundamentação exaustiva do Acórdão Uniformizador fornece na nota 10 elementos que permitem vislumbrar o que se quis incluir e excluir quando se inseriu o conceito de consumidor na parte da uniformização.
AAA - Assim, pode ler-se: “…não sofre dúvida que o promitente-vendedor é in casu um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para o seu uso próprio e não com escopo de revenda”.
BBB - Aliás, este consumidor, como resulta do art. 2.º, n.º 1 da Lei nº 24/96, de 31/07, alterada e republicada pela Lei nº 47/2014, de 28/07, é “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.
CCC - Ora, no presente caso, parece que não podem existir dúvidas da qualificação dos Autores, aqui Recorrentes, promitentes compradores de uma fracção imobiliária, enquanto consumidores, no sentido de serem utilizadores finais com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda.
DDD - A Uniformização de Jurisprudência veio, então, reforçar a posição jurídica do promitente-comprador nomeadamente no âmbito das transacções de imóveis para habitação, conferindo-lhe em caso de incumprimento da outra parte e em alternativa ao direito ao sinal em dobro, também o valor da coisa desde que a mesma lhe tivesse sido transmitida encontrando-se pois em seu poder, solidificando a sua posição jurídica enquanto titulares do direito de retenção a que se reporta o artigo 755.º do C. Civil, o do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição do direito sobre a coisa a que se reporta o contrato prometido, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte de harmonia com o artigo 442.º.
EEE – E, ainda, sem prescindir, e sem prejuízo de tudo quanto exposto, e na hipótese de assim não se entender, optando o digníssimo tribunal ad quem por não atender ao Acórdão Uniformizador de de Jurisprudência n.º 4/2014, não pode sair prejudicado o direito de retenção dos Autores.
FFF - Como ressalta do Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão datado de 29-07-2016, proferido nos autos de processo n.º 6193/13.0TBBRG, disponível em www.dgsi.pt:
“Se o contrato-promessa tiver sido resolvido ou, de qualquer modo, tiver entrado na fase do incumprimento definitivo não há, pois, que aplicar o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014, devendo aplicar-se, estritamente, os preceitos do Código Civil, mais precisamente os artigos 755.º n.º 1 alínea f) e 442.º do Código Civil. A aplicação do artigo 755.º n.º 1 alínea f) não depende de o promitente-comprador ser ou não um consumidor e a circunstância de o legislador se referir à tutela dos consumidores no preâmbulo do diploma que consagrou o direito de retenção não é decisiva e não justifica a interpretação restritiva proposta por um sector da doutrina: o legislador pode ter tomado a parte pelo todo e ter –se limitado a referir uma das situações socialmente mais relevantes. No entanto qualquer situação de detenção pelo promitente-comprador, mesmo que este não seja consumidor, pode, pela sua frequência e importância ao nível da consciência social, servir de fundamento para o direito de retenção. O legislador terá sido sensível à grande repercussão do contrato-promessa como um passo muito frequente no iter negocial que conduz à transmissão da propriedade – sendo que, de resto, o contrato-promessa pode estar associado a uma execução específica e em certos casos o promitente-comprador é mesmo um possuidor. Este direito de retenção, já existente e sendo garantia de um crédito não subordinado, não é afectado pela declaração de insolvência, como decorre do artigo 97.º do CIRE. “
GGG - Então, perante o verificado incumprimento definitivo da Insolvente, aqui Recorrida, é certa a existência de um crédito, a favor dos Recorrentes, no montante de € 160.000,00 (cento e sessenta mil euros), que goza do direito de retenção sobre o identificado imóvel.
HHH - E isto por força da aplicação do disposto no art. 755.º, n.º 1, al. f) do Código civil, que estipula que “o beneficiário da promessa de transmissão de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido goza do direito de retenção, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º”;
III - Assim, nestes termos, por tudo quanto exposto, deverá este Venerando Tribunal considerar que o crédito de €: 160.000,00, reconhecido aos aqui Recorrentes, beneficia de garantia real e que prevalece sobre a hipoteca constituída a favor do credor hipotecário, com a consequente revogação da douta decisão recorrida.
NESTES TERMOS, DEVERÁ SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO.
Não foram apresentadas contra alegações de recurso.
Recebido o recurso e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II-DO RECURSO:
Os recursos são balizados pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal superior apreciar e conhecer de matérias que naquelas não se encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido e que o tribunal ad quem não aprecia razões ou argumentos, antes questões- artºs 627º, nº1, 635º e 639º, nºs 1 e 2, CPC, na redacção da Lei nº 41/2013, de 26.06.2013, aplicável ao presente processo na fase de julgamento e termos posteriores, por força do disposto nos artº 5º do diploma preambular.
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II.1- Nas conclusões de recurso, embora de forma confusa e prolixa os recorrentes impugnam a decisão recorrida em via de recurso, quer quanto à decisão da matéria de facto, quer quanto à questão de Direito- vide conclusões “X - Pelo que o tribunal a quo fez uma errada apreciação da prova produzida em juízo, não tendo dado como provados factos que, salvo o devido respeito, emergem de forma clara e evidente dos próprios autos, e
Y - Faz igualmente, no modesto entendimento dos ora Recorrentes, uma errada apreciação do direito aplicável in casu.
Z - Assim, não podem os Recorrentes conformar-se com a sentença proferida porquanto a mesma labora sobre um manifesto erro de julgamento.”
Quanto à impugnação da matéria de facto, concluem os apelantes que:
AA - Atenta a prova produzida nos presentes autos, e com relevância para a causa, deveria ter sido dado como provado que a Insolvente, aqui Apelada, não pode celebrar o contrato prometido aqui em causa, e, portanto, estamos perante uma situação de incumprimento definitivo imputável à promitente vendedora.
BB - Os Apelantes entendem que emerge também da prova produzida ainda outro facto com relevo para a decisão da presente contenda.
CC - Especificamente, e como já alegado nos presentes autos, deveria constar dos factos provados que os Autores, ora Recorrentes, são consumidores na aceção prevista no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2014, de 20.03.2014 (Proc. n.º 92/05.6TYVNG.M.P1.S1).”
Ora, segundo o artº 5º, nº 1 do CPC, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.
Nos termos do nº 2 do mesmo preceito, além dos factos alegados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da discussão da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Finalmente, diz o artº 607º, nº 4, 1ª parte, do CPC, que, na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados.
Para os efeitos dos preceitos citados, constituem factos as ocorrências da vida real, isto é, ou os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens[1].
Dizer-se que “a Insolvente, aqui Apelada, não pode celebrar o contrato prometido aqui em causa, e, portanto, estamos perante uma situação de incumprimento definitivo imputável à promitente vendedora” não é um facto no sentido que acima explicámos; considerar tal como provado seria assentar numa conclusão, sem as premissas que à mesma conduzem e a suportam, decidindo-se implicitamente a questão da responsabilidade da promitente vendedora (ora insolvente) pelo alegado incumprimento contratual do contrato promessa de compra e venda celebrado entre aquela, enquanto promitente vendedora e o autor marido, enquanto promitente comprador.
Acresce que, nenhuns meios de prova são indicados para essa prova, pelo que sempre haveria incumprimento, nesta parte, do ónus de impugnação da matéria de facto, previsto no artº640º, nº 1, al. b), NCPC.
Quanto à alegação de que “os Autores, ora Recorrentes, são consumidores na aceção prevista no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2014, de 20.03.2014”, que os apelantes pretendem ver incluída na matéria de facto com interesse para a decisão da causa, obviamente que também não é matéria factual, antes conclusão jurídica, pelo que se rejeita essa impugnação por não respeitar o disposto no artº 640º, nº 1, al. a e c), NCPC.
Quanto a esta matéria, que como adiante se verá, nenhum interesse tem para a decisão do thema decidendum tal como configurado pelos autores na petição inicial e na ampliação do pedido subsidiário que foi admitido, já constam como provados os factos dos números 8 e 9.
Assim, improcede, sem mais, a pretendida alteração da matéria de facto.
Não havendo fundamento também para esta Relação oficiosamente, nos termos do artº 662º, nº1, NCPC, proceder à alteração da matéria de facto considerada provada na sentença recorrida, nem exercer qualquer dos poderes previstos nas alíneas do seu nº 2, fixa-se, em última instância a matéria de facto que vinha provada na sentença recorrida e acima transcrita.
Também, se vão considerar os factos atrás expostos no “Relatório” relativos aos trâmites do processo.
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II.2.1- Revogação da sentença recorrida e questões de direito colocadas em sede de conclusões de recurso:
Os pedidos formulados pelos autores na petição inicial e a respectiva causa de pedir definem o thema decidendum, nos termos dos artºs 3º, nº1, 264º, nºs 1 e2, 467º, nº1, al.d) e e), CPC de 1961, na redacção anterior à Lei nº 41/2013, de 26.06, por ser a aplicável na data da propositura da acção (15.07.2010)[2].
O pedido pode não ser único: pode deduzir mais de um pedido contra o mesmo réu, em cumulação –art- 470º, nº 1, daquele diploma- ou em relação de subsidiariedade-artº 469º, nºs 1 e 2.
Do pedido subsidiário apenas pode o tribunal conhecer se improceder o pedido principal.
Isto posto, não há dúvida que os autores formularam na petição inicial, como pedido principal, o reconhecimento e graduação do seu direito de crédito à celebração do contrato de compra e venda prometido mediante contrato-promessa celebrado em 30.11.2006, relativo à fracção autónoma “Q” do prédio urbano descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº366, devendo a Sra. Administradora da Insolvência ser notificada para diligenciar pela outorga da respectiva escritura pública.
Subsidiariamente, para o caso de se entender que não têm aquele direito, os AA. pedem que seja reconhecido o crédito no montante global de 101.343,27 €, correspondente ao valor do preço de € 80.000,00, integralmente pago à insolvente e relativo à compra e venda prometida e respectivos juros de mora desde a data da celebração do contrato promessa, 30.11.2006, até à data da sentença declarativa da insolvência, 28.05.2009 e que seja graduado no lugar que lhe competir.
Os AA. vieram, em articulado superveniente apresentado em 31.01.2011 (de fls. 61-74), requerer a ampliação do pedido (subsidiário), peticionando que, no caso de a ré Massa Insolvente não ser condenada na celebração do contrato prometido de compra e venda, seja a mesma condenada a pagar-lhes a indemnização consagrada no artigo 442.º, nº2, do Código Civil, ou seja, o montante de 160.000 €, correspondente ao valor do sinal em dobro, porquanto, tendo sido paga a totalidade do preço, presume-se que tal antecipação do preço tem carácter de sinal, como decorre do artigo 441.º do Código Civil.
Ora, a presente acção foi instaurada como acção especial de verificação ulterior de créditos, por apenso ao processo de insolvência e seguindo os termos do processo sumário- artº146 e 148 do CIRE e em 31.01.2011, face ao anterior CPC. Foi lavrado o respectivo termo de protesto a fls. 438 dos autos principais, de acordo com o disposto no artº 146º, nº 3 do CIRE.
Foi proferido o despacho saneador, bem como despacho a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova (cf. fls. 105-106).
Por despacho proferido na acta da audiência de julgamento de 19.05.2016 (de fls. 124-125), foi admitida aquela ampliação do pedido subsidiário dos autores.
O senhor juiz na sentença recorrida conclui o seu raciocínio de interpretação e aplicação da lei aos factos -artº 607º, nº 3, NCPC- julgou parcialmente procedente o pedido principal formulado pelos autores tendo condenado a ré Massa Insolvente de B..., Lda., representada pela Sra. Administradora da Insolvência, a celebrar com o Autor o contrato de compra e venda prometido mediante contrato-promessa celebrado entre aquele e B..., Lda., em 30.11.2006 e tendo por objecto a fracção autónoma “Q” do prédio urbano descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº366, emitindo a declaração negocial correspondente à da promitente-vendedora e absolveu os RR. do pedido subsidiário (na versão ampliada).
Não se trata de sentença que emite a declaração negocial do faltoso em termos de execução específica do contrato- artºs 442º, nº3 e 830º, nº 1 do Código Civil de 1966- tanto mais que não ficou provado nos autos que os autores tenham cumprido previamente as respectivas obrigações fiscais relativas a IMT ou provado a sua eventual isenção e não foram juntos outros documentos obrigatórios prévios à transmissão da propriedade da fracção autónoma em causa por via de sentença de execução específica, vg certificado energético e licença de habitabilidade válidos.
Após tecer diversas considerações que tornaram o discurso da sentença confuso, nomeadamente sobre a aplicabilidade in casu da doutrina do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 4/2014, publicado no DR Iª Série, de 19/05/2, nos termos do qual, “o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”, na fundamentação da decisão recorrida destaca-se e com ela se concorda que:
“(…) importa ter em atenção que estamos perante um contrato-promessa dotado de eficácia real e que, em momento anterior à data da declaração de insolvência da promitente-vendedora, ocorreu a tradição da coisa, porquanto o Autor, promitente-comprador, logrou demonstrar que está na posse da fracção autónoma “Q” desde 17.06.2004, mediante o recebimento das respectivas chaves, que lhes foram entregues pela promitente-vendedora, e executando obras no imóvel (factos provados sob os nºs 2, 8, 9 e 10) – cf., neste sentido, o Ac. da Rel. de Lisboa, de 18.01.2011, proc. nº1760/06.0TBCLD.L1-1, in www.dgsi.pt.
Tal significa que a Sra. Administradora da Insolvência está obrigada a cumprir o contrato-promessa em apreço, como resulta do preceituado no nº1 do artigo 106.º do CIRE, sendo ilegítima a sua recusa.
Os AA. visam, ainda, que a Sra. Administradora da Insolvência celebre o contrato prometido, operando a transmissão, para os mesmos, do direito de propriedade sobre a fracção autónoma “Q”, livre de ónus e encargos, tal como convencionado no contrato-promessa.
Sobre o imóvel em apreço impende uma hipoteca voluntária, a favor de terceiro, anterior ao registo da promessa (cf. factos provados sob os nºs 5 e 6).
Ora, ainda que a promitente-vendedora se tenha obrigado a vender a fracção autónoma desonerada dessa hipoteca (facto provado sob o nº3), tem-se entendido que “no âmbito de um processo de insolvência, o cumprimento de contrato promessa com tradição do imóvel a que se refere o contrato prometido por parte do Administrador de Insolvência, de harmonia com o disposto no artigo 106º do CIRE, não implica, necessariamente, que este deva proceder ao distrate dos ónus e encargos que incidem sobre o imóvel prometido vender”, pois, “doutro modo, seria posta em causa a função basilar da hipoteca de conferir ao credor o direito a ser pago pelo valor da coisa hipotecada, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou prioridade no registo, conforme decorre do art.º 686.º, nº1, do Código Civil” – cf. Ac. da Rel. do Porto, de 11.10.2017, proc. nº8892/13.7TBVNG-B.P1, in www.dgsi.pt.
Com efeito, “o cumprimento, pelo Administrador da Insolvência, de um contrato-promessa celebrado anteriormente à declaração de insolvência (no âmbito do regime previsto nos artºs 102º e seguintes do CIRE), não consubstancia uma venda que se insira na liquidação do activo do devedor, não tendo a virtualidade, em razão da sua realização, de extinguir os direitos reais de garantia que onerem os bens transmitidos com fundamento no disposto no artº. 824º, n.º2 do Código Civil” – cf. Ac. da Rel. de Guimarães, de 25.05.2016, proc. nº472/12.5TBFAF-F.G1, in www.dgsi.pt.
Assim, a venda a realizar implicará que “qualquer ónus ou direito real de garantia que onere o bem objecto do negócio acompanhe esse bem, atento o princípio da “sequela” que norteia os direitos reais, cabendo depois ao adquirente, se o pretender, diligenciar pela extinção do ónus ou da garantia e sub-rogar-se nos direitos do titular da garantia sobre o devedor” – cf. Ac. da Rel. de Guimarães, de 25.05.2016, supra citado.
Por conseguinte, o pedido principal deduzido pelos AA. deve proceder, mas parcialmente, na medida em que não se incumbirá a ré Massa Insolvente de proceder ao distrate da hipoteca que onera a fracção autónoma “Q”.
Por fim, contrariamente ao sustentado pelos AA., o seu reconhecido direito à celebração do contrato prometido não está garantido pelo direito de retenção, na medida em que este encontra-se consagrado, nos termos do artigo 755.º, nº1, al. f), do Código Civil, somente para proteger o crédito (pecuniário) resultante do incumprimento imputável à outra parte – o que não sucede in casu”.
Fique claro que a orientação do referido AUJ é inaplicável ao caso dos autos, quer quanto ao pedido principal, quer quanto ao subsidiário, que não foi apreciado, nem tinha que ser face ao decidido quanto ao principal.
Com efeito, este AUJ é, apenas, aplicável:
- aos contratos promessa de compra e venda de eficácia meramente obrigacional;
- nos quais se tenha verificado o pagamento de sinal por parte do promitente comprador;
- em que tenha existido traditio da coisa objeto do contrato promessa; e
- que o promitente comprador seja um consumidor.
Para que se possa aplicar a posição deste acórdão é necessário que inexista incumprimento definitivo anterior à declaração de insolvência[3].
Convém precisar que o contrato promessa de compra e venda não se confunde com o contrato definitivo, nem em termos de forma nem de conteúdo. Aquele consiste num contrato oneroso de prestação de facto positivo, consistente na obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato definitivo e, este, consiste num contrato real quod effectum, de acordo com os respectivos regimes previstos nos artºs 442 ss , 442º e e 830º e artºs 408º, nº 1 e 874º e 875º, todos do Código Civil de 1961(3).
É oneroso porque existem prestações patrimoniais de ambas as partes e que estas consideram como correspondentes entre si em termos de vínculo da causalidade jurídica, não sendo gratuito por natureza porque não há um acordo das partes no sentido de que haja uma vantagem patrimonial apenas para uma delas, intervindo uma das partes com uma intenção liberal (animus donandi, animus beneficiandi).[4]
O aludido contrato mantinha-se em mora de cumprimento por parte do autor marido, face ao decurso do prazo de 1.12.2006 previsto na escritura pública que titula o contrato promessa- facto provado 3- não se tendo provado a mora da insolvente- factos não provados b) e c), sendo pacífico que não tinha ocorrido antes da declaração de insolvência extinção do contrato por resolução contratual - artºs 432º a 436º do Código Civil- pelo que o negócio oneroso estava em curso e apenas ocorreu recusa de cumprimento pelo AI, que se ignora quando ocorreu- facto provado 11. Estamos perante um negócio oneroso em curso, com eficácia real e não apenas obrigacional, em que os autores tinham obtido a tradição do bem imóvel prometido vender pela insolvente em data anterior à sentença declarativa da insolvência da promitente vendedora.
Dispôe o CIRE o seguinte:
“CAPÍTULO IV
Efeitos sobre os negócios em curso
Artigo 102.º
Princípio geral quanto a negócios ainda não cumpridos
1 - Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento”.
Como refere EPIFÂNIO, Maria do Rosário, da letra da lei parece resultar uma exclusão do seu âmbito de aplicação dos negócios jurídicos unilaterais, dos contratos unilaterais e dos contratos em que haja total cumprimento por ambas as partes.
São três os requisitos cujo preenchimento cumulativo têm que se verificar para que haja aplicação o artigo 102.º:
“a) natureza bilateral do contrato;
b) não cumprimento total de ambas as partes;
c) inexistência de regime diferente para os negócios regulados nos artigos seguintes.
E o artigo 106.º do CIRE regula especificamente a situação em que o insolvente se encontra vinculado a contrato promessa de compra e venda totalmente incumprido à data da declaração de insolvência: nenhum dos contraentes emitiu a declaração negocial correspondente ao contrato prometido, nem realizou na íntegra a prestação que deste resultaria.
No caso de promessa com eficácia real, de acordo com o n.º 1 do artigo 106.º do CIRE, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento da promessa “se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente comprador”.
O requisito da tradição da coisa a favor do promitente adquirente constitui a condição essencial para que ao AI não seja reconhecida a faculdade potestativa de escolha do destino final do negócio. Ambas as partes estão vinculadas a celebrar o contrato definitivo. Entendemos que é indiferente ter havido ou não sinal entregue.
Como é sabido, numa promessa de compra e venda de imóvel, os contraentes vinculam-se a outorgar, no futuro, um contrato de compra e venda, em que um figurará como vendedor e o outro como comprador. Tal significa então que a promessa, em princípio, produz efeitos meramente obrigacionais. O objeto da obrigação assumida é a emissão de um declaração negocial, “podendo por isso ser caracterizada como uma prestação de facto jurídico”–vide LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações..., p. 219.
Nada impede, todavia, que as partes atribuam eficácia real à promessa de compra e venda do imóvel, nos termos do artigo 413.º do Código Civil. Para tanto, são exigidos os seguintes requisitos: tem de haver uma declaração expressa no sentido da atribuição ao contrato de tal eficácia real; a promessa tem de ser inscrita no registo e, por fim, tem de constar de escritura pública ou documento particular autenticado. A partir do momento em que é atribuída eficácia real à promessa de compra e venda, o beneficiário da mesma passa a ser titular de uma posição fortalecida face ao promitente vendedor e a terceiros: para uns, será um verdadeiro direito real de aquisição e, para outros, um direito de crédito com um regime especial de oponibilidade em relação a terceiros, depois de registado (para análise mais detalhada das posições em causa, cfr. LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, p. 249 – 250.
Nesta situação de contrato promessa com eficácia real, que para nós[5] se constitui um direito real de aquisição para o promitente comprador sobre o bem imóvel ou sua fracção prometido vender, há uma impossibilidade legal de o AI recusar a celebração do contrato definitivo ou seja de satisfazer o cumprimento do contrato promessa. Não tem liberdade contratual de recusar a celebração do contrato definitivo se para tal for interpelado pelo promitente comprador, estando esse contrato em condições de ser celebrado.
Prescreve o nº 2 do referido artigo 106.º do CIRE que “À recusa de cumprimento de contrato-promessa de compra e venda pelo administrador da insolvência é aplicável o disposto no n.º 5 do artigo 104.º, com as necessárias adaptações, quer a insolvência respeite ao promitente-comprador quer ao promitente-vendedor”.
Se estivermos perante um contrato promessa de compra e venda em que a coisa não foi entregue ao promitente adquirente, o AI tem a opção de celebrar ou recusar o contrato prometido mesmo com eficácia real, consoante os interesses da massa insolvente e da protecção dos seus credores.
Assentemos, pois, perante os factos provados, que in casu a recusa da AI na celebração do contrato definitivo, ou seja a respectiva escritura pública de compra e venda, é inoponível ao autor marido, promitente comprador.
Este direito dos autores a verem celebrado o aludido contrato de compra e venda, exercido a título de pedido principal da acção foi-lhes reconhecido na sentença recorrida.
Não se trata de direito de crédito pecuniário, antes de um direito de crédito a uma prestação de facto infungível, não passível, pois, de ser graduado no âmbito deste processo[6].
Nunca este direito de crédito nos termos em que foi pedido a título principal na petição inicial e reconhecido na sentença recorrida, goza de direito de retenção, enquanto direito real de garantia de um crédito pecuniário, apenas exercido a título subsidiário pelos autores contra a devedora, a massa insolvente e os credores desta, nos termos dos artºs 754, 755º, nº 1, al. f) e 442º, todos do Código Civil de 1966.
Não há, pois, que aplicar aqui a jurisprudência obrigatória para os tribunais judicias do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 4/2014, publicado no DR Iª Série, de 19/05/2, nos termos do qual, “o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”, tem plena aplicação ao caso em análise.
O STJ, no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014 (supra referido) vem, a fundamentação, indicar que “Começaremos por referir que a norma do artigo 102º do CIRE acima transcrito se aplica, como se vê do próprio texto, “sem prejuízo do estatuído nos artigos seguintes”, conferindo de certa forma autonomia ao estatuído no artigo 106º; e aqui a lei é expressa ao referir que “no caso de insolvência do promitente vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador; a isto acresce que nada apontando, a nosso ver, para o facto de ter havido intuito de modificar com a entrada em vigor do CIRE a orientação legislativa ao nível das consequências de incumprimento da promessa do contrato e suprindo pelo recurso ao regime da compra e venda com reserva de propriedade, a omissão da regulamentação do contrato promessa com efeito obrigacional e tradição do objeto, ficará o nº 2 do artigo 106º aplicável apenas ao contrato promessa com efeito meramente obrigacional e em que não tenha havido aquela tradição ao promitente-comprador. Só aqui, e a menos que uma das partes tenha cumprido integralmente a sua obrigação, poderá o administrador optar por cumprir ou recusar a execução do contrato”.
E prossegue o mesmo acórdão, mais à frente “em suma, concluímos que não sendo afetado o contrato promessa, mantêm-se os efeitos do incumprimento a que se reporta o artº 442º, nº 2, do Código Civil”.
Este promitente comprador a que alude o acórdão de fixação de jurisprudência é apenas o promitente comprador que seja consumidor, como se refere no dispositivo do mesmo acórdão.
Nesse mesmo acórdão de uniformização, considera-se que o legislador, no artº 106º, nº 1, do CIRE, estabeleceu uma previsão para a situação do contrato promessa, com eficácia real, com tradição da coisa. Mas não se referiu nunca à situação concreta do contrato promessa com efeitos meramente obrigacionais, com tradição da coisa, existindo aqui uma lacuna legal.
Existe aqui, segundo o acórdão, uma lacuna legal, recorrendo-se à analogia com o artº 104º, nº 1, do CIRE, que dispõe que “no contrato de compra e venda com reserva de propriedade em que o vendedor seja o insolvente, a outra parte poderá exigir o cumprimento do contrato se a coisa já lhe tiver sido entregue na data da declaração de insolvência”.
Esta mesma disciplina será então de aplicar ao caso do contrato promessa de compra e venda, sem eficácia real mas com tradição da coisa, não tendo, nesse caso, o Administrador de Insolvência o direito de, licitamente, se recusar ao cumprimento do contrato promessa.
E por isso se afirma no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014 que “tal omissão é ultrapassada fazendo apelo ao “lugar paralelo” resultante da conjugação dos artigos 106º nº 2 e 104º nº 1 do CIRE (respeitante à venda com reserva de propriedade) aplicável no caso em análise, já que as razões determinantes do que ali vem exposto quanto ao que lá se regula (compra e venda a prestações) são idênticas às que aqui estão em causa. Subjacente a esta tomada de posição está a forte expectativa que a traditio criou no “promitente-comprador” quanto à solidez do vínculo. Cimentada esta confiança, e “corporizada” destarte a posse, existe, na prática, do lado do adquirente um verdadeiro ânimus de agir como possuidor, não já nomine alieno mas antes em nome próprio”.
A fundamentação do acórdão de fixação de jurisprudência não faz parte do segmento uniformizador.
Todavia,
- assumindo-se como assente a jurisprudência do acórdão uniformizador de que o promitente comprador com traditio “goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil” e
- uma vez que o direito de retenção, previsto no artº 755º, nº 1, al. f), do Cód. Civil, pressupõe, tal como expressamente é afirmado na lei, o “não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º”, não vemos como possível afastar a aplicação do artº 442º do Cód. Civil.
Por isso, por coerência jurídica, aderimos a essa fundamentação presente no acórdão uniformizador de jurisprudência 4/2014.
Parece-nos ser também a posição maioritariamente seguida pelos Venerandos Tribunais da Relação[7].
Acrescentamos que o STJ vem seguindo jurisprudência uniforme no sentido que “Deste modo, embora os tribunais sejam livres de seguirem a jurisprudência que julgam mais adequada, já que o STJ não “faz lei”, parece estultice tomar outro caminho que não o acolhido no Pleno do STJ, a não ser que se invoquem argumentos novos, não considerados na decisão que fixa a jurisprudência, ou que, considerando a legislação no seu todo, a jurisprudência fixada se mostre já ultrapassada”[8].
O não acatamento da jurisprudência fixada em AUJ e dos seus argumentos jurídicos além de poder “representar uma quebra injustificada do valor da segurança jurídica e das legítimas expectativas dos interessados, pode provocar graves danos na celeridade processual e na eficácia (e prestígio acrescentaremos nós) dos tribunais, considerando a previsível derrogação da decisão em caso de interposição de recurso”- Recursos no Novo CPC, Consº Abrantes Geraldes, Almedina, 2013, p. 380 - adiantando o autor que, obviamente, tal não se repercute nas sentenças ou acórdãos que, antes da publicação do AUJ no Diário da República, tenham sido proferidos.
Ora, o caso dos autos é de um contrato-promessa com eficácia real e com tradição da coisa e em que o promitente comprador é inequivocamente um consumidor, não estando abrangido pelo referido AUJ.
Entendemos, como na sentença recorrida, que o artigo 106.º n.º 2 do CIRE apenas se aplica aos contratos promessa com eficácia meramente obrigacional, mas sem tradição da coisa ao promitente comprador.
Na interpretação dos factos e da lei aplicada nos moldes da sentença recorrida, para além dos arestos que nela se referem, pronunciou-se o Acórdão do STJ, de 13.11.2014 (Fernandes do Vale), www.dgsi.pt, cujo sumário (em parte) se transcreve “II - A recusa de cumprimento do contrato em curso, por parte do administrador da insolvência, legitima que se endosse ao próprio insolvente, em termos de imputabilidade reflexa, o incumprimento definitivo daquele contrato; III - O art. 106.º, n.º 2, do CIRE, reclama uma interpretação restritiva, de molde a considerar-se que o mesmo se aplica apenas às promessas não sinalizadas, devendo aplicar-se às demais – promessas sinalizadas – a disciplina civilista do art. 442.º, n.º 2”.
De salientar que o incumprimento é refletido sobre a insolvente e não sobre a massa insolvente.
Chamam os apelantes à colação o Acórdão desta Relação de 16.03.2010, proferido no processo nº 2384/08.3TBSTS, in www.dgsi.pt, cujo sumário transcrevem:
I - No presente caso, perante a celebração de contratos-promessa de compra e venda de diversas fracções prediais pela insolvente, na posição de promitente vendedora, em data anterior à declaração de insolvência, após deliberação da comissão de credores nesse sentido, o Administrador optou pelo seu cumprimento.
II - Com o cumprimento desta prestação o Administrador, agindo como representante da massa insolvente, procede à alienação de bens que já a integravam, uma vez que pertenciam ao património da insolvente à data da declaração de insolvência — art. 46.°, do CIRE.
III- Daí que esta venda não possa deixar de ser encarada como uma venda judicial, feita no âmbito da liquidação da massa insolvente para beneficio de todos os credores — apenas os promitentes compradores vêem satisfeitos os seus créditos sem participarem no concurso falimentar.
IV- Assim sendo, as hipotecas que afectavam os imóveis prometidos vender, caducam com a venda, nos termos do art. 824.°, do C. Civil, como acima se explicou, pelo que não há qualquer necessidade de proceder à sua expurgação, uma vez que elas não acompanham os imóveis sobre que recaíam após a sua venda aos promitentes compradores.”
E, concluem, “deveria, portanto, a Exma. Senhora Administradora de Insolvência cumprir o contrato prometido em causa nos precisos termos contratados, ou seja, com o imóvel livre de ónus e encargos”.
Como já vimos, essa situação de contrato promessa com eficácia meramente obrigacional não é igual à dos autos, de contrato promessa com eficácia real, ambos celebrados e com tradição da coisa anterior à declaração de insolvência. O cumprimento do contrato não é aqui um direito potestativo da AI, antes é um dever vinculado. Nenhuma semelhança com a venda judicial prevista no artº 824º CC existe. A venda a realizar e que foi determinada com a decisão recorrida é uma venda extrajudicial, mediante escritura pública ou documento legal equivalente.
Daí que se concorde plenamente com a fundamentação de direito da sentença recorrida na parte que supra se transcreveu e isto porque, procedendo em parte o pedido principal dos autores, não é de conhecer o pedido subsidiário. Os autores quiseram, em primeiro, a outorga do contrato definitivo de compra e venda e não o direito de crédito pecuniário correspondente ao incumprimento contratual do respectivo contrato promessa. Tal direito foi-lhes reconhecido e bem na sentença recorrida,
Concluindo, improcedem totalmente as conclusões do recurso dos apelantes e deve ser confirmada a sentença recorrida.
*
III-DECISÃO:
Nestes termos, acordam os juízes nesta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.

Porto, 26-04-2018
Madeira Pinto
Carlos Portela
José Manuel Araújo de Barros
______________
[1] Alberto dos Reis, CPC Anotado, III, pág. 209.
[2] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p.110-111 e José Lebre de Freitas, A acção Declarativa Comum, Coimbra Editora, 2000, p.33-34.
[3] Mariana Coimbra Piçarra, “O Direito de Retenção do Promitente Comprador: Algumas Reflexões”, Julgar, nº 34, 2018, Almedina, p. 13 a 34.
(3)Ver Código Civil Anotado, Coimbra Editora 1982, Pires de Lima e Antunes Varela, pág.356 a 358 e 145 a 148.
[4] Ver Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1976, pág278 a 280, Prof. Mota Pinto.
[5] Na senda do ensino do ilustre Profº Orlando de Carvalho, Direito da Coisas, Coimbra 1977, Centelha Promoção do Livro, SARL,
[6] Cremos que, face ao pedido principal, a presente acção não deveria prosseguir enquanto esta acção especial de verificação ulterior de crédito e contra a massa insolvente e os credores desta, por não terem interesse em agir, mas tais questões foram conhecidas no despacho saneador de 21.04.2015, que transitou em julgado e fez caso julgado formal- art- 620º, NCPC- não sendo objecto deste recurso.
[7] Por exemplo, no TRL, vejam-se os acórdãos de 10/10/2013, processo nº 362/11.4TBCDV-F.L1-2 e 14/01/2016, processo nº 3415/14.3TCLRS-C.L1-2; no TRE, o acórdão de 12/01/2017, processo nº 1141/12.7TBBVN-B.E1; no TRP, os acórdãos de 14/03/2016, processo nº 3020/04.2TBVNG.P1 e de 06/04/2017, processo nº 1210/11.0TYVNG-C.P1 todos integralmente disponíveis no sítio www.dgsi.pt.
[8] Sumário do Ac. STJ de 05.11.2009 (Santos Carvalho).
No mesmo sentido Ac. STJ de 12.05.2016 (Abrantes Geraldes) e Ac. TRL, de 31-01-2008 (Ilídio S. Martins).