Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1924/17.1T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NELSON FERNANDES
Descritores: NULIDADES PROCESSUAIS
NULIDADES DE SENTENÇA
PROVA DE FACTOS NEGATIVOS
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
DIREITOS INDISPONÍVEIS
CONDENAÇÃO EXTRA VEL ULTRA PETITUM
ACIDENTE DE TRABALHO
FACTOS CONSTITUTIVOS DO DIREITO À REPARAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
FACTOS ESSENCIAIS
ATO DA VIDA PRIVADA E CORRENTE DO TRABALHADOR
Nº do Documento: RP202110181924/17.1T8PNF.P1
Data do Acordão: 10/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE, CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4.ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Importa distinguir os vícios da nulidade – e dentro desses entre nulidades processuais e nulidades da sentença – da eventual inadequada apreciação da prova, por parte do tribunal, esta sindicável em recurso a interpor sobre a matéria de facto, sujeito a regras próprias, incluindo o cumprimento de determinados ónus legais.
II - Diversamente do que ocorre com as principais (ou, de 1.º grau, típicas ou nominadas), previstas na lei e das quais pode o tribunal conhecer oficiosamente, conforme estabelecido no artigo 196.º do CPC, [23] – , no que se refere às nulidades processuais secundárias (ou, de 2.º grau, atípicas ou inominadas), caindo na fórmula genérica do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, o seu conhecimento depende de arguição pelo interessado, regulando a lei a legitimidade de quem pode invocá-las (artigo 197.º) e ainda o momento/prazo em que pode fazê-lo (artigo 199.º, n.º 1), sob pena de se terem por sanadas.
III - O n.º 2 do artigo 342.º do CC não prevê uma inversão do ónus da prova quando esteja em causa a prova de factos negativos.
IV - O disposto no artigo 411.º do CPC (princípio do inquisitório) não descaracteriza, nem invalida, o princípio base do processo civil que é o do impulso processual, que compete às partes em toda a sua extensão, nomeadamente no tocante à indicação e realização oportuna das diligências probatórias.
V - Porém, prevalecendo no âmbito do direito processual civil o princípio da autonomia da vontade, compatibilizado com o princípio dispositivo, estando vedado que a sentença condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido sob pena de incorrer no vício da nulidade – artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC –, já no processo laboral, em face da especial natureza de algumas normas jus-laborais, por se reportarem a direitos tutelados como de interesse e ordem pública e tuteladoras da paz social, tornando-as imperativas e indisponíveis, estas não podem ser afastadas pela vontade das partes – nessas se incluindo o direito às prestações reparatórias e outras garantias previstas na Lei 98/2009, de 4 de setembro, enquadram-se assim no campo dos direitos indisponíveis, ou seja, respeitam a matéria subtraída à disponibilidade das partes – artigo 12.º da Lei 98/2009.
VI - Encontra o regime referido em V apoio expresso, no âmbito processual, no artigo 74.º do CPT, em que se permite que possa haver condenação extra vel ultra petitum, desde que verificadas, como do mesmo resulta expressamente, duas condições, por um lado que estejam em causa preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e, por outro, que os factos em que se funda tal condenação sejam os factos provados no processo ou de que o juiz se possa servir nos termos do artigo 412.º do CPC, ou seja, que se trate de factos notórios (que não carecem de prova nem de alegação, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral) ou daqueles, que também não carecem de prova, de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções (sendo que, quando o tribunal se socorra destes factos, deve fazer juntar ao processo documento que os comprove).
VII - Por se tratar de factos constitutivos do direito invocado (art.º 342.º, n.º 1 do CC), os requisitos ou pressupostos de um acidente de trabalho hão de ser alegados e provados por quem reclama a respetiva reparação (sendo esta a regra) – sem prejuízo dos casos em que se estabeleça na lei presunção nesse sentido –, do que decorre que, admitindo-se que o tribunal possa determinar oficiosamente quaisquer diligências probatórias se o tivesse por oportuno e conveniente, não lhe é imposto, porém, que o tenha obrigatoriamente de fazer.
VIII - Factos essenciais são aqueles integram a causa de pedir ou fundamentam as exceções – os factos que concretizam a norma jurídica em que se fundamenta o direito invocado pelo autor ou em que se baseia a defesa do réu, ou seja, são os factos que, se vierem a ser provados, são decisivos para que a ação ou a exceção possa ser julgada procedente.
IX - Em face do regime que resulta do artigo 72.º do CPT [redação introduzida pela Lei 107/2009], estando em causa um facto essencial que não foi alegado, não pode o tribunal da Relação, substituindo-se à 1.ª instância, fazer observar o disposto no citado n.º 2, do artigo 72.º, do CPT, não poderia a impugnação do Recorrente conduzir aqui à sua pretensão de ver considerado tal facto.
X - Assume-se como facto essencial e não como meramente complementar ou esclarecedor um facto que se traduza num indício / elemento com real relevância para efeitos de integração do evento ocorrido no âmbito do conceito de acidente de trabalho.
XI - Não sendo em princípio qualificável como acidente de trabalho o evento verificado durante a execução de um serviço determinado pelo empregador mas emergente de ato da vida privada e corrente do trabalhador, em que este tenha recuperado a sua independência em relação à missão profissional, aí se insere um caso de queda do sinistrado ao sair da banheira do quarto em que estava hospedado – sem que se prove que ocorreu no local e tempo do trabalho, revelando-se antes como um acontecimento pertinente à vida privada do sinistrado de higiene pessoal e assim estranho à execução da missão profissional, verificado quando atuava com total independência relativamente à empregadora, sem sujeição pois ao seu controlo, direto ou indireto, e sem que sequer as concretas condições de alojamento tivessem agravado o risco genérico que impende sobre a generalidade das pessoas quando procedem à sua higiene pessoal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1924/17.1T8PNF.P1

Autor: B…
Ré: C… Companhia … de Seguros, S.A.

Relator: Nélson Fernandes
1ª Adjunta: Des. Rita Romeira
2ª Adjunta: Des. Teresa Sá Lopes


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
1. Por participação entrada em tribunal foi dado conhecimento da ocorrência de um acidente de trabalho, indicando-se como vítima B..., quando exercia funções sob as ordens e direção de D…, S.A., sendo entidade seguradora C… - Companhia … de Seguros, S.A..

Decorrida a fase conciliatória, as partes não chegaram a acordo, não aceitando a Seguradora qualquer responsabilidade, por não reconhecer a existência de acidente de trabalho, em virtude de não ter ocorrido no local e em tempo de trabalho, e por não ter nexo causal com a atividade garantida pelo contrato de seguro.

Requereu o Autor, B…, a abertura da fase contenciosa do processo contra a Seguradora.
Alegou, para o efeito, em síntese: é administrador único da D…, S.A., auferindo em 2016 a remuneração mensal de €2.000,00, acrescido de outras retribuições como subsídio de alimentação, falhas de caixa, ajudas de custo, tendo a entidade empregadora transferido para a Ré a responsabilidade decorrente de sinistros ocorridos durante e por conta da execução da prestação laboral; no dia 16/09/2016, no exercício da sua atividade profissional, ao serviço e por conta da sua entidade patronal, deslocou-se ao Emirado do Dubai para representar a entidade patronal numa feira/exposição entre 17 e 19/09/2016 e que, no dia 17, pelas 7 horas, deslocou-se ao stand da empresa para os últimos preparativos, incluindo a finalização da montagem, arrumação e preparação do stand, tendo regressado ao quarto de hotel para tomar um duche, vestir roupa não transpirada e adequada às suas funções e preparar-se para os contactos comerciais, sendo que, diz, o hotel onde estava instalado foi decisão da entidade patronal, que suportou os custos; ao sair da banheira do hotel, escorregou e caiu, fraturando o membro superior direito, mais precisamente o 5º metacarpo da mão direita; foi submetido a intervenção cirúrgica ao pulso direito e permaneceu internado até 20/09/2016; por força do acidente, despendeu em deslocação, tratamentos e internamento nesse hospital a quantia de €37.698,53; regressado a Portugal, teve de continuar com tratamentos médicos e medicamentosos, nos quais despendeu €805,29; o acidente ocorreu quando estava a trabalhar sob ordens e instruções da entidade patronal, nos locais de trabalho onde cumpriria estar por determinação desta, dentro do horário normal de trabalho e executando tarefas relacionadas com a sua atividade profissional de administrador; ficou impedido de trabalhar entre 17/09/2016 e 02/11/2017; não recebeu qualquer quantia a título de vencimento, baixa médica ou prestação social, pelo que pelo período de ITA tem direito a €22.246,58; ficou a padecer de uma IPP de 2%, pelo que tem direito a uma pensão de €392,00; suportou €32,00 com despesas de deslocações obrigatórias ao Gabinete Médico-Legal e ao Tribunal.
Conclui pela condenação da Ré no pagamento da quantia global de €67.116,33, acrescido de juros de mora.

A Ré deduziu contestação, na qual, mais uma vez em síntese: para além de aceitar a existência de um contrato de seguro e apólice indicada, deslocação do Autor ao Emirado Árabe, a sua queda e salário mensal transferido de €2.000,00, alega no entanto que o evento ocorreu fora do local e tempo de trabalho, tendo ocorrido dentro do quarto de hotel, nas instalações do hotel, em domínio privado, na execução de tarefas de higiene pessoal; o âmbito contratual das garantias da apólice circunscreve-se apenas ao todo nacional, com exceção das deslocações de âmbito profissional à União Europeia, até 15 dias, pelo que a apólice celebrada é ineficaz para a reparação do evento relatado; impugna o demais alegado pelo Autor. Requereu ainda a citação da entidade empregadora, para deduzir oposição ao peticionado quanto à remuneração alegadamente excedente, para concluir no sentido da ação dever ser julgada em conformidade com o alegado e o que resultar da produção de prova.

O Autor exerceu o direito ao contraditório: mantendo o alegado na petição inicial e impugnando a proposta de seguro junta pela Ré, por não estar assinada; alegando ter sido comunicado à Ré, aquando da outorga do contrato de seguro, que a entidade patronal e seus trabalhadores se deslocavam para outros locais que não dentro da União Europeia, nomeadamente ao médio oriente, que não consta da proposta de seguro qualquer exclusão do sinistro em causa, mais dizendo que o clausulado não lhe foi lido nem explicado, pelo que estão excluídas as cláusulas contratuais gerais; alega que o tomador de seguro não foi alertado para qualquer obrigação de esclarecer o âmbito das deslocações dos seus trabalhadores e que a Ré, ao arguir a exclusão, age em abuso de direito.

Ordenada a citação da entidade empregadora D…, S.A. para contestar, a mesma não apresentou contestação.

Proferido despacho de saneamento do processo, aí se afirmando a validade e regularidade da instância, foi fixada a matéria de facto assente e indicados o objeto do litígio e temas de prova.

Entretanto, no respetivo apenso, foi decidido que o Autor é portador de uma incapacidade parcial permanente (IPP) de 2%.

Posteriormente, por requerimento, veio o Autor, por força da decisão proferida no aludido apenso, requerer a alteração do pedido, em consonância com os períodos de incapacidade temporária aí fixados e correspondente redução do pedido de indemnização por tais períodos para €11.844,15.

Após resposta da Ré, em que sustentou que tal requerimento não deveria ser acolhido em virtude de a causa de pedir não se enquadrar nas garantias da apólice de seguro, o Tribunal a quo proferiu despacho em que deferiu a requerida ampliação/redução do pedido.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento, na qual o Autor requereu a retificação do alegado no artigo 3º da petição inicial, no sentido de passar a constar do mesmo que a retribuição mensal era de €2.000,00 acrescido de subsídio de alimentação, o que foi deferido.

Foi por fim proferida sentença, de cujo dispositivo consta:
“Pelo exposto, julga-se a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolve-se a R. C…, Companhia … de Seguros, S.A., bem como a Interveniente D…, S.A., do peticionado pelo A./sinistrado B….
Custas a cargo do A., nos termos do disposto no artigo 527º nºs. 1 e 2 do CPC.
Valor da acção – €55.960,71 (cfr. artigo 120º nº 2 do CPT).
Registe e notifique.”

2. Inconformado, interpôs o Autor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões[1]:
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2.1. Não constam dos autos contra-alegações.

2.2. No Tribunal a quo foi proferido despacho com o teor seguinte:
“A fls. 367 vem o sinistrado arguir a nulidade da sentença ao abrigo do disposto no artigo 77º do CPT, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 295/2009, de 13/10.
No entanto, o CPT foi alterado e republicado pela Lei nº 107/2019, de 09/09, sendo que do artigo 5º da citada Lei resulta que as suas disposições são imediatamente aplicáveis às acções pendentes na data da sua entrada em vigor, o que ocorreu a 09/10/2019.
Assim sendo, a norma aplicável à arguição de nulidades da sentença não é o indicado pelo Recorrente mas antes o disposto no artigo 77º do actual CPT, que remete para os artigos 615º e 617º do CPC, que o Recorrente enquadra no artigo 615º nº 1 alínea d) do CPC.
Considera o Recorrente que a sentença padece de nulidade em virtude de ter violado o poder-dever de indagação oficiosa junto do ISS e/ou da R. entidade empregadora quanto ao não recebimento de vencimento, baixa médica ou prestação social (ponto 6 dos factos não provados na sentença), em violação do disposto nos artigos 5º, 441º e 662º nº 2 do CPC.
No que se refere desde logo ao disposto no artigo 441º do CPC, o mesmo diz respeito a cópia de documentos de leitura difícil, pelo que não é aplicável à questão em apreço.
Quanto ao artigo 662º nº 2, é o mesmo dirigido aos Venerandos Desembargadores, pelo que não deve ser apreciado em sede de invocação de nulidade junto do Tribunal de Primeira Instância.
Já quanto ao artigo 5º do CPC, refere-se o mesmo ao ónus de alegação das partes e poderes de cognição do Tribunal, que em nada se relaciona com a junção oficiosa de documentos, que é o pretendido pelo Recorrente.
Deve, no entanto, salientar-se que é às partes que cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e apresentar os documentos destinados a fazer prova da acção ou da defesa, com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes, o que assume especial acuidade nos casos, como o presente, em que a parte se encontra representada por I. Mandatário, profissional forense, sendo que ao Juiz cabe o cumprimento dos deveres de isenção e imparcialidade que sobre o mesmo recaem (cfr. artigos 5º nº 1, 423º e 115º e ss. do CPC e artigos 4º e 6º-C do EMJ).
Sendo que, no caso concreto, o Tribunal nem sequer se pronunciou sobre o meio de prova adequado para demonstrar o facto em causa, para que o Recorrente possa inferir que os por si indicados seriam aptos a tal prova.
Por outro lado, concluída a produção de prova em sede de audiência de julgamento, na qual o A. esteve sempre representado pelo seu I. Mandatário, teve este imediato conhecimento, naquele momento, da conclusão da produção de prova e, consequentemente, da ausência de despacho a ordenar a notificação de qualquer entidade para junção de documentos comprovativos do alegado no que a esta nulidade diz respeito, pelo que esta alegada nulidade deveria ter sido invocado naquele momento, por força do disposto no artigo 199º nº 1 do CPC.
No que diz respeito à violação de uma igualdade de armas pela inquirição oficiosa da testemunha E…, estranha o Tribunal que o Recorrente assim tenha interpretado tal acto, já que em causa nos autos estava a validade do contrato de seguro e foram as próprias testemunhas do Recorrente que referiram ter sido aquela a explicar o conteúdo do contrato no momento da sua celebração e a quem a entidade empregadora comunicou previamente a deslocação ao Dubai e que, como bem sabe o Recorrente, tal inquirição oficiosa se deveu a incongruências entre os depoimentos das testemunhas F… e G… quanto ao âmbito do contrato de seguro.
Por último, refira-se ainda que o Douto Acórdão do TRPorto de 09/12/2020, invocado pelo Recorrente, se baseia, para os pontos do sumário transcritos no ponto 7. de fls. 367 verso e conclusão de uma nulidade, no disposto no artigo 360º nº 4 do CPC, dizendo o mesmo respeito a um incidente de liquidação (como resulta dos pontos I e II do respectivo sumário, que o Recorrente optou por não transcrever), incidente este que tem na sua génese uma sentença de condenação em pedido genérico transitada em julgado e no âmbito do qual se discute somente o respectivo quantum.
Concluir que, num processo normal, a ausência de diligência oficiosa de obtenção de um meio de prova constitui uma nulidade seria equivalente a afirmar que as partes não têm qualquer ónus de prova, já que tal ónus teria sempre de ser colmatado pelo Juiz, o que é contrário às regras do ónus de prova previstas no CCivil, o que não se pode admitir.
Face ao supra exposto, considera o Tribunal que não existe a invocada nulidade e que, caso existisse, se encontrava já precludido o direito de ser invocada, julgando-se a mesma improcedente.
Notifique.
*
Por a decisão ser recorrível (cfr. artigo 79º alínea b) do CPT), ter sido interposto em tempo (cfr. artigo 80º nº 1 do CPT) e por quem para tal tem legitimidade, admito o recurso interposto a fls. 367 e ss., o qual é de apelação (cfr. artigo 79º-A nº 1 alínea a) do CPT), a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cfr. artigos 83º nº 1 e 83º-A nº 1 do CPT).
Devem os autos ir acompanhados do processo principal e respectivo apenso.
Subam os autos ao Venerando Tribunal da Relação do Porto.
Notifique.”

3. Subidos os autos a esta Relação, o Ministério Público junto deste Tribunal teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido da improcedência da apelação.
***
Cumpridas as formalidades legais, cumpre decidir

II – Questões a resolver
Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (artigos 635., n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (CPC) – aplicável ex vi artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir: (1) nulidades invocadas; (2) recurso sobre a matéria de facto; (3) o direito do caso / saber se a sentença recorrida errou na aplicação do direito sobre a questão da qualificação ou não do evento como acidente de trabalho.

III - Fundamentação
A) Fundamentação de facto
A.1 Da sentença, no que se refere à factualidade provada, consta:
Factos assentes por acordo:
A) O A. nasceu em 30/08/1981;
B) O A. exerce funções na sociedade D…, S.A.;
C) No ano de 2016 a sociedade D…, S.A. tinha transferido para a R. a responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho, mediante a apólice nº ………., encontrando-se transferida a retribuição anual de €2.000,00 x 14 quanto ao A.;
D) No dia 16/09/2016 o A. deslocou-se ao Emirado do Dubai;
E) Ao sair da banheira do hotel onde se encontrava, escorregou e caiu desamparado;

Factos demonstrados por produção de prova:
F) O A. foi gerente da interveniente D…, S.A. desde a sua constituição até 01/05/2015, data em que esta foi transformada em sociedade anónima e o A. designado administrador único, nos termos constantes de fls. 154 a 158 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas;
G) A sociedade D…, S.A., ora interveniente, prossegue, com fins lucrativos, o comércio por grosso de vários produtos, nomeadamente, móveis, materiais de construção e decoração;
H) No âmbito das suas funções, e entre outras tarefas, competia e compete ao A. representar a sociedade em feiras e exposições nacionais e internacionais em que a mesma seja participante e/ou interveniente na qualidade de fornecedor e/ou cliente, bem como representar a sociedade em todos os actos em que é necessária a presença do seu legal representante;
I) Em 2016, pelo exercício dessas funções, o A. auferia a retribuição mensal de €2.000,00, acrescido de subsídio de alimentação no valor diário de €4,27;
J) Na data indicada em D), o A. deslocou-se à cidade do Dubai, no Emirado do Dubai, para, em nome da sua entidade patronal, ora interveniente, e em representação dela, permanecer e participar no Stand que a empresa possuía na feira/exposição designada H… – DUBAI …., que se iria realizar na cidade de DUBAI entre os dias 17 e 19 de Setembro;
K) Na referida feira, competia ao A. efectuar a sua gestão, manutenção, conservação, efectuar contactos com clientes e fornecedores, tentar obter negócios, tentar angariar clientes e promover a marca … pertencente à sua entidade patronal;
L) No dia 17/09/2016 o trabalho do A. iria ser desenvolvido no espaço onde se desenrolava a feira;
M) Após a realização da feira indicada em J), o trabalho de promoção da marca da empresa e contacto com potenciais clientes desenvolvido pelo A. iria também ser desenvolvido no hotel onde o mesmo se encontrava instalado e noutro posterior, uma vez que nem todos os potenciais clientes visitariam a feira/exposição;
N) No dia 17/09/2016, entre as 7 horas e as 7h30m, o A. deslocou-se ao Stand da empresa na feira identificada em D) para levar e colocar no stand catálogos, panfletos e brindes, tendo em vista a abertura da feira às 10 horas desse dia;
O) As características do clima seco (desértico), com a ausência de precipitação e temperaturas médias entre os 38ºC e os 40ºC do Emirado do Dubai, fazem com que qualquer pequeno exercício ou movimento do dia a dia, como pegar em pesos, abaixar-se, montar ou arrumar o que quer que seja acarrete transpiração e, por via disso, desconforto e falta de higiene;
P) A execução das suas tarefas pressupõe que o A. se apresente com boa imagem, uma imagem limpa, cuidada e com boa apresentação;
Q) O A. regressou ao quarto de hotel cerca de 30 minutos depois de se deslocar ao stand, para aí tomar um duche, vestir roupa adequada às suas funções e preparar-se para os contactos comerciais, tendo ocorrido o indicado em E) em hora não concretamente apurada mas ocorrida entre esse momento e a hora de abertura da feira;
R) O hotel onde o A. se encontrava instalado emerge de uma decisão da entidade patronal que suportou todos os custos inerentes à viagem, estadia e alojamento do A.;
S) Em consequência do indicado em E), o A. sofreu fractura do osso unciforme e subluxação do 5º metacarpiano, ambos na mão direita, que lhe determinaram como sequela a ligeira rigidez do punho direito na dorsi-flexão, da qual resultou uma IPP de 2%;
T) Por causa do indicado em E) e S), o A. foi transportado de urgência para o hospital “… … Hospital”, onde foi submetido a uma intervenção cirúrgica ao pulso direito e permaneceu internado até dia 20/09/2016;
U) Por força do descrito em E) e T), o A. despendeu em deslocação na ambulância, tratamentos e internamento nesse hospital a quantia global de USD 44.267,48, correspondente a €39.425,31;
V) Regressado a Portugal, o A. teve que continuar com os tratamentos médicos, tendo despendido a quantia global de €805,29 nos tratamentos médicos e medicamentosos que se discriminam: €42,09, referente a tratamentos realizados no Hospital I…, S.A.; €106,20 relativo a tratamentos no J…, Hospital … e …, S.A.; €630,00 referente a tratamentos na Cínica K…; e €27,00 relativo a consultas no Centro de Saúde de …, nos termos constantes de fls. 17 a 42 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas;
W) Como consequência directa e necessária do acidente, o A. sofreu ITA de 18/09/2016 a 18/02/2017, ITP de 40% de 19/02/2017 a 18/06/2017, ITP de 20% de 19/06/2017 a 17/09/2017 e ITP de 5% de 18/09/2017 a 04/06/2018, data de alta médica e consolidação médico-legal das lesões;
X) No dia 17/03/2015, os então gerentes da ora interveniente, o ora A. e F…, assinaram e submeteram à aceitação da R., em nome da interveniente, a proposta de seguro junta a fls. 270 verso a 272 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas, que a R. aceitou e que originou a emissão da apólice identificada em C);
Y) Na sequência da proposta de seguro indicada em X), a R. emitiu a respectiva apólice de seguro, identificada em C) e constante de fls. 272 verso a 285 dos autos, que se dão por integralmente reproduzidas, actualizada pela acta adicional junta a fls. 267 e 268 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas;
Z) A interveniente comunicou à R., aquando da assinatura da proposta de seguro indicada em C), que realizava viagens em trabalho para locais fora do território da União Europeia, nomeadamente para territórios sitos no Médio Oriente;
AA) Ficou bem claro entre a interveniente e a R. que as deslocações em trabalho dos funcionários da entidade patronal ficariam abrangidos pela apólice do contrato de seguro;
BB) O contrato de seguro foi celebrado através de um mediador de seguros representante da R., que tinha perfeito conhecimento da actividade internacional do tomador do seguro, nomeadamente das deslocações a várias partes do mundo, que não na União Europeia;
CC) A interveniente respondeu a tudo o que lhe foi perguntado pelo mediador de seguros da R.;
DD) Em 05/09/2016 a interveniente remeteu à R. e-mail do qual consta a comunicação de deslocações ao estrangeiro de dois trabalhadores, sendo ao Dubai, de 16/09 a 22/09, dos trabalhadores ora A. e L…, nos termos constantes de fls. 288 dos autos e que se dá por integralmente reproduzida.”

A.2 Da mesma sentença consta, ainda, não se ter provado que:
“1) No dia 17/09/2016 o A. iria trabalhar das 7 horas da manhã até ao encerramento da feira/exposição nesse dia;
2) O trabalho indicado em N) dos factos provados incluiu a finalização da montagem e arrumação do Stand e pressupôs uma elevada carga física;
3) As temperaturas médias no Emirado do Dubai são entre 35ºC e 45ºC;
4) O transporte do A. para o hospital “… … Hospital” ocorreu imediatamente após o acidente;
5) Como consequência directa e necessária do acidente, o A. sofreu ITA até 02/11/2017;
6) O A. não recebeu qualquer quantia a título de vencimento, baixa médica ou prestação social;
7) Por causa do acidente, o A. sofreu lesões e, uma vez efetuados os tratamentos médicos possíveis, “membro superior direito: cicatriz dorsal do punho; dor no bordo cubital da mão e 5.º dedo; diminuição da força de preensão da mão direita; sem rigidez ao nível dos dedos; discreta rigidez na dorsificação do punho (70º)”;
8) O A. suportou €32,00 com despesas de deslocações obrigatórias ao Gabinete médico-legal de … e ao Tribunal;
9) Os então gerentes da ora interveniente, o ora A. e F…, preencheram a proposta de seguro indicada em X) dos factos provados;
10) Foi exclusivamente por confiar na boa-fé e na veracidade do enunciado na proposta de seguro identificada em X) dos factos provados que a R. emitiu a apólice identificada em C) dos fatos provados;
11) A validade das garantias da apólice identificada em C) dos factos provados circunscreve-se ao território nacional e, como única excepção, às deslocações de âmbito profissional à União Europeia até 15 dias;
12) O seguro identificado em C) foi apresentado à interveniente de forma genérica e oralmente;
13) A proposta de seguro foi preenchida pela própria R.;
14) Não foi lido nem explicado o clausulado do contrato de seguro no momento da sua celebração ou posteriormente;
15) Em momento algum a interveniente foi alertada para qualquer obrigação de esclarecer o âmbito das deslocações dos seus trabalhadores, isto é, para que zona do globo se deslocavam.
(…)
Não se responde ao demais alegado pelas partes por se tratar de matéria conclusiva ou de direito.”
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B) - Discussão
1. Nulidades invocadas
Invoca o Apelante que a sentença incorre na nulidade prevista na alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC.
Para tanto, refere nas conclusões XXXVII a XXXIX o seguinte:
“XXXVI. Sem prescindir, sempre se dirá se o Tribunal tinha dúvidas quanto à falta de prova e à indagação desse facto teria o poder-dever de indagação oficiosa, isto é, de por sua iniciativa, oficiosamente, notificar a SEGURANÇA SOCIAL e a Ré D… para informar os presentes autos se, efetivamente, havia ou não sido pago qualquer salário ou prestação social ao Recorrente nos termos do art. 5.2 e 662 Q n.2 2 do CPC (cfr. entre outros, AC. do Tribunal da Relação do Porto de 09 de Dezembro de 2020, processo n.2 4585/11.8TBSTS.P2 em www.dgsi.pt).
XXXVII. O que o Tribunal não fez, o que enferma o processo de nulidade da sentença que expressamente se invoca para os devidos e legais efeitos através de recurso, acrescentando-se, ainda, que tal como Tribunal pretendeu ouvir, oficiosamente, a testemunha E…, conforme despacho que proferiu 22.02.2021 e que determinou a sua inquirição oficiosa em 08.03.2021 para que o Tribunal indagasse de quem celebrou o contrato de seguro e de quem fez a explicação do seu clausulado pergunta-se porque razão, em ordem à igualdade de armas não foi produzida prova, oficiosa, sobre o facto em crise? - cfr. actas de 22.02.2021 e 08.03.2021
XXXVIII. Não se compreende, de forma alguma, a decisão do Tribunal que decidiu ao arrepio dos arts. 5.º, 441º e 662.º n 2 do CPC, normas que foram violadas pela decisão recorrida, devendo, por via disso, este Colendo Tribunal determinar a revogação da decisão recorrida para que o Tribunal a quo proceda à indagação oficiosa do facto provado em 3 notificando a Ré D… e SEGURANÇA SOCIAL para virem aos presentes autos informar se foi paga qualquer salário e/ou prestação social ao Recorrente e em caso afirmativo que montante foi pago.
XXXIX. Atente-se que o Recorrente só foi confrontado com a omissão do poder-dever de indagação oficiosa previsto no art. 411.º com a sentença proferida, pelo que a arguição da nulidade fez-se, expressa e separadamente ao abrigo do art. 77.º do CPC na redação aplicável perante o Tribunal a quo no requerimento de interposição de recurso, e que novamente se argui nos termos do art. 615º n 1 d) do CPC.”
Em face do invocado, cumprindo-nos pronúncia, começaremos por esclarecer que se é essa a intenção do Recorrente ao invocar a ocorrência de nulidade e remeter para a alínea d) do n.º 1 do indicado artigo 615.º, descrevendo-se neste preceito os casos de nulidade da sentença, a verdade é que o que se invoca não tem a ver com a sentença propriamente dita e, assim, com os vícios que a podem infirmar.
Melhor dizendo, os avançados argumentos não são dirigidos à sentença e sim, noutros termos, a atividade processual que, na ótica do Recorrente, teria sido omitida, mais propriamente ao dizer que essa atividade não teria sido a adequada, no sentido de tentar evidenciar que determinado facto deveria através dessa atividade obter a sua prova.
Porque assim é, parece esquecer o Recorrente, em primeiro lugar, que uma coisa é o vício da nulidade – e dentro desse a distinção entre nulidades processuais e nulidades da sentença – e outra, diversa, qualquer eventual inadequada apreciação da prova, por parte do Tribunal, incluindo atividade a desenvolver com esse objetivo, sindicável em recurso a interpor sobre a matéria de facto, sujeito a regras próprias, incluindo o cumprimento de determinados ónus legais.
Esclareçamos, pois:
Resulta do aludido artigo 615.º do CPC: “É nula a sentença quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Efetivamente, sabendo-se que o conhecimento das pretensões das partes – pedido e causa de pedir –, é realizado na sentença, essa em que o juiz dita o direito para o caso concreto, sendo pois esse o objetivo perseguido pela sentença, pode no entanto estar essa viciada em termos que obstem à eficácia ou validade do pretendido dizer do direito, assim por um lado nos casos em que ocorra erro no julgamento, dos factos e/ou do direito, do que decorrerá como consequência a sua revogação, e, por outro, enquanto ato jurisdicional que é, se atentar contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou ainda contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada, caso este em que se torna, então sim, passível do vício da nulidade nos termos do artigo 615.º do CPC. No fundo, trata-se do sancionamento das normas prescritivas que disciplinam no mesmo Código o ato de elaboração da sentença, assim nos artigos 131.º, n.º 3, 2.ª parte, 154.º, n.º 1, e 607.º, n.º 3 e 4, do CPC, respeitantes à clareza, especificação e coerência da fundamentação e, ainda, no caso do n.º 2 do artigo 608.º, em contraponto, o dever e a proibição de pronúncia, atentos o objeto do litígio e o princípio do dispositivo.
Já diversamente, quanto às nulidades processuais, enquanto desvios entre o formalismo prescrito na lei e o formalismo efetivamente seguido no processo – vício formal que pode consistir: a) na prática de um ato proibido; b) na omissão de um ato prescrito na lei; c) na realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem as formalidades requeridas[2] –, dessas, em princípio, como é consabido, cabe reclamação e não recurso, reclamação essa também por regra dirigida ao tribunal em que foi cometida a nulidade, sendo que só assim não ocorrerá quando essa estiver a coberto de uma decisão judicial, pois que nesta situação o meio de impugnação será o recurso e não aquela reclamação.
Assim o afirmava já o saudoso Professor Alberto dos Reis[3], com a autoridade que reconhecidamente por todos lhe é reconhecida, cujos ensinamentos neste âmbito se têm por atuais, ao referir o seguinte: “A reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos (art. 677º) e não por meio de arguição de nulidade do processo.”[4]
Distinguindo a lei entre duas modalidades distintas de nulidades processuais, na terminologia da doutrina as principais (ou, de 1.º grau, típicas ou nominadas) e as secundárias (ou, de 2.º grau, atípicas ou inominadas), as primeiras configuram-se como as mais graves pelas suas consequências, constando especificamente previstas na lei e podendo o Tribunal delas conhecer oficiosamente, conforme estabelecido no artigo 196.º do CPC[5], enquanto as segundas, por sua vez, serão todas aquelas que caiam na fórmula genérica do n.º 1.º do artigo 195.º do mesmo Código: “Fora dos casos previstos nos artigos, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.[6] Importa ainda ter presente que, neste último caso, tratando-se pois de nulidade secundária, o seu conhecimento depende de arguição, posto que o tribunal só pode conhecer oficiosamente das nulidades principais[7], regulando a lei a legitimidade de quem pode invoca-las (artigo 197.º), o prazo em que pode fazê-lo (artigo 199.º) e as consequências/modo do seu suprimento (artigo 195.º, n.ºs 2 e 3, e 200.º, n.º 3).
Ora, por decorrência do regime que sinteticamente se expôs, tentando perceber-se o que se invoca no caso, como se viu, já estaremos, a ocorrer o que refere o Recorrente, perante eventuais nulidades processuais, nos termos antes enunciados, ocorridas não na decisão recorrida e sim, diversamente, ao longo do processo, tidas como desvios entre o formalismo prescrito na lei e o formalismo que teria sido efetivamente nesse seguido.
Porque assim é, chamando à aplicação o que se referiu anteriormente sobre nulidades processuais, o que se invoca, não assumindo a natureza de nulidade principal (ou, de 1.º grau, típicas ou nominadas) – as quais constam especificamente previstas na lei e podendo o Tribunal delas conhecer oficiosamente, conforme estabelecido no artigo 196.º do CPC[8] –, assumiria eventualmente a natureza, a ocorrer, de nulidades secundárias (ou, de 2.º grau, atípicas ou inominadas), caindo pois na fórmula genérica do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, razão pela qual, como desse resulta, ainda que porventura se pudesse dizer que tivessem ocorrido e que tais irregularidades pudessem influir no exame ou na decisão da causa, a verdade é que, pela sua afirmada natureza, o seu conhecimento dependeria de arguição, sendo que, regulando a lei a legitimidade de quem pode invocá-las (artigo 197.º) e o momento/prazo em que pode fazê-lo (artigo 199.º, n.º 1: “se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência”), o prazo de arguição já decorreu, pois que, estando o Recorrente devidamente representado na audiência de julgamento, aquelas nulidades não invocou antes do seu encerramento, sendo intempestiva a respetiva arguição, como o faz, apenas em sede de recurso da sentença.
Assim o afirmamos sem prejuízo do que diremos mais tarde, aquando da apreciação do recurso sobre a matéria de facto, já pois nesse âmbito, na parte em que com essa apreciação possa eventualmente contender – dado que a verificar-se quaisquer dos vícios a que se alude no artigo 662.º do CPC, que contendem com a decisão sobre a matéria de facto, incluindo por insuficiência, esses caem na previsão de tal normativo e não do artigo 615.º do CPC.

2. Reapreciação da matéria de facto
Não se colocando questões que o impeçam, assim por insuficiente cumprimento dos ónus legais, de seguida passaremos à apreciação.
2.1. Pontos 1.º, 2.º e 4.º do que se considerou não provado
Tais pontos têm a redação seguinte:
- “1) No dia 17/09/2016 o A. iria trabalhar das 7 horas da manhã até ao encerramento da feira/exposição nesse dia”
- “2) O trabalho indicado em N) dos factos provados incluiu a finalização da montagem e arrumação do Stand e pressupôs uma elevada carga física”;
- “4) O transporte do A. para o hospital “… … Hospital” ocorreu imediatamente após o acidente;”
Defende o Recorrente que devem ser alteradas: a resposta ao citado ponto 1.º, passando a constar dos factos provados, dando-se como provado que "No dia 17/09/2016 0 A. iniciou a sua atividade entre as 7h/7h30m. funções que previsivelmente, não fosse o acidente sofrido, terminariam com o encerramento da feira/exposição nesse dia.”; a resposta ao citado ponto 2.º, passando a constar dos factos provados, dando-se como provado que "O trabalho indicado em N) dos factos provados incluiu a finalização da montagem e arrumação do Stand e pressupôs alguma carga física:"; a resposta ao ponto 4, passando a constar dos factos provados, dando-se como provado que "O transporte do A. para o hospital "…Hospital" ocorreu imediatamente após o acidente;"
Para o efeito, fazendo ainda apelo ao que se deu como provado nas alíneas F) a R) – que diz demonstrarem que se deslocou no dia 17.09.2017 para o DUBAI para participar na feira/exposição designada H… - DUBAI …, que iria ocorrer entre os dias 17 a 19 de setembro de 2016 –, indica como meios de prova para sustentar a alteração as suas declarações e os depoimentos das testemunhas M… e L1…, cujas passagens transcreve no corpo das alegações.
Pronunciando-se o Ministério Públio junto desta Relação pela adequação do julgado, constata-se que o Tribunal recorrido fez constar da motivação, no que aqui importa, designadamente o seguinte:
Deram-se como provados os pontos H) e J) a L) com base nas declarações de parte do A., corroboradas pelos depoimentos das testemunhas M…, representante da interveniente no Médio Oriente à data dos factos, L…, trabalhadora da interveniente e namorada do A. à data dos factos, actual companheira, e F…, director financeiro da interveniente à data dos factos, que os confirmaram, sendo que, quanto ao horário, o que ficou demonstrado foi que o A. se dirigiria à feira antes do horário de abertura para finalizar a preparação do stand respectivo e, depois, regressaria ao hotel para fazer a sua higiene pessoal e preparar-se para a feira, motivo pelo qual não se provou o ponto 1) quanto à continuidade de trabalho desde as 7 horas. (…)
O ponto N) foi dado por provado com base nas declarações do A. e das testemunhas M… e L…, que o confirmaram, sendo que M… referiu expressamente que foi com o A. ao stand ver se estava tudo bem, levar panfletos e organizar últimos detalhes, não se tendo demonstrado que foi levada a cabo alguma das actividades indicadas no ponto 2), que assim se deu como não provado.
(…)
Não se provou o ponto 4) quanto ao imediato transporte porque nem o A. nem as testemunhas inquiridas o souberam precisar, sendo que L… apenas referiu que poderia ter demorado 30 minutos ou 1 hora, mas de modo pouco convincente. Por outro lado, nos documentos supra referidos a hora de admissão é indicada como tendo sido pelas 18h24m06s (cfr. fls. 165). No entanto, na factura junta a fls. 186, na qual é facturado o valor do transporte em ambulância, consta o dia 17/09/2016 e a hora 17h36m, o que evidencia que a admissão ocorreu em momento anterior. Da análise dos documentos em questão também se verifica que a cirurgia apenas foi realizada no dia seguinte (18/09), como declarado por L…, e que no dia 17 foram realizados vários exames e radiografias, administrada medicação e realizadas análises sanguíneas nessa noite (21h02m) que, como declarado por esta testemunha, foram realizados ainda no serviço de urgência, antes da transferência para o serviço hospitalar onde o A. foi depois intervencionado. Considerando que L… declarou que o hospital exigia o pagamento de cada serviço realizado e só avançava nos tratamentos após o pagamento do antecedente e que, das facturas juntas, a que apresenta a primeira hora indicada do dia 17/09/2016 é a de fls. 186, com a hora de 17h36m, e facturação do transporte em ambulância, conclui-se que esta foi a primeira factura e que, portanto, o A. só foi transportado para o hospital mais tarde, embora não se possa determinar a hora concreta. Não obstante tal facto, certo é que o demonstrado no ponto Q) foi a queda do A. da parte da manhã. (…)”
No âmbito da reapreciação que faremos seguidamente, deixa-se desde já consignado que procedemos à reanálise da prova produzida, assim a que se faz referência na sentença, bem como em particular a que é indicada pelo Recorrente – incluindo com audição dos registos da gravação.
Com base na referida reanálise, adiante-se desde já que não encontramos fundamentos para afastarmos a convicção afirmada pelo Tribunal recorrido, como melhor esclareceremos de seguida.
Assim, quanto ao que se deu como não provado em 1.º, não poderemos deixar de ter presente outra factualidade considerada provada e que não foi impugnada em sede de recurso, factualidade essa que está afinal também relacionada com o que consta daquele ponto, assim nomeadamente:
“L) No dia 17/09/2016 o trabalho do A. iria ser desenvolvido no espaço onde se desenrolava a feira;
M) Após a realização da feira indicada em J), o trabalho de promoção da marca da empresa e contacto com potenciais clientes desenvolvido pelo A. iria também ser desenvolvido no hotel onde o mesmo se encontrava instalado e noutro posterior, uma vez que nem todos os potenciais clientes visitariam a feira/exposição;
N) No dia 17/09/2016, entre as 7 horas e as 7h30m, o A. deslocou-se ao Stand da empresa na feira identificada em D) para levar e colocar no stand catálogos, panfletos e brindes, tendo em vista a abertura da feira às 10 horas desse dia;
(…)
Q) O A. regressou ao quarto de hotel cerca de 30 minutos depois de se deslocar ao stand, para aí tomar um duche, vestir roupa adequada às suas funções e preparar-se para os contactos comerciais, tendo ocorrido o indicado em E) em hora não concretamente apurada mas ocorrida entre esse momento e a hora de abertura da feira;”
Na verdade, sem esquecermos que o que está em causa no ponto 1.º não provado é no essencial uma conclusão sobre o horário em que o Autor iria trabalhar nesse dia, assim entre as 7 horas da manhã até ao encerramento da feira/exposição, na consideração, que teremos de ter em conta, de que afinal o que está em causa é um evento ocorrido no quarto do hotel onde se encontrava o Autor, importa ter presente que resultou provado, sem que tenha sido impugnado no presente recurso, que nesse dia o trabalho iria ser “desenvolvido no espaço onde se desenrolava a feira” (alínea L), provada) e que só após a realização dessa feira “o trabalho de promoção da marca da empresa e contacto com potenciais clientes desenvolvido pelo A. iria também ser desenvolvido no hotel onde o mesmo se encontrava instalado e noutro posterior, uma vez que nem todos os potenciais clientes visitariam a feira/exposição” (alínea M), provada), sendo que, do mesmo modo, e com relevância, está provado, também, que, precisamente no mesmo dia, entre as 7 horas e as 7h30m, se deslocou “ao Stand da empresa na feira identificada em D) para levar e colocar no stand catálogos, panfletos e brindes, tendo em vista a abertura da feira às 10 horas desse dia” (alínea N), provada), e que, “regressou ao quarto de hotel cerca de 30 minutos depois de se deslocar ao stand, para aí tomar um duche, vestir roupa adequada às suas funções e preparar-se para os contactos comerciais, tendo ocorrido o indicado em E) em hora não concretamente apurada mas ocorrida entre esse momento e a hora de abertura da feira” (alínea Q), provada). Ou seja, em face precisamente da referida factualidade, a intenção do Recorrente, no sentido de que se considere como facto provado que nesse dia iria trabalhar entre as 7 horas da manhã até ao encerramento da feira/exposição, traduz-se, bem vistas as coisas, em qualificar como incluídos no seu horário de trabalho os referidos factos, sendo que, salvo o devido respeito, tal pressupõe já um juízo valorativo, envolvendo aliás também a aplicação do direito, sobre se podem/devem considerar-se incluídas nesse âmbito tais atividades. Deste modo, mesmo admitindo-se que lhe fosse lícito, assim no presente recurso, impugnar também, no todo ou em parte, o que se deu como provado como factos nas referidas alíneas, o que não o fez, o que já não consideramos de fácil concretização, assim o entendemos, ao não ter assim atuado, é pretender-se que se dê como provado, atribuindo-lhe a natureza de facto, uma afirmação que em si mesma inclui já uma qualificação desses referidos factos provados como estando incluídos no âmbito do trabalho que iria ser desenvolvido nesse dia – em particular, o que consta da alínea Q). De facto, a questão de saber se tais factos devem ou não ser tidos como incluídos no trabalho a desenvolver, extravasando já o âmbito do facto, obterá resposta no momento da aplicação da lei e do direito. Aliás, tal âmbito, assim referente à aplicação do direito, é bem evidenciado no que é afirmado nas conclusões do recurso dirigidas à alteração destes pontos, em particular as conclusões XIV a XVI, em que se avançam argumentos meramente de direito.
De resto, diga-se também, ainda que não se coloquem as referidas dificuldades, afirmação esta que faremos como aplicável a todos pontos não provados que agora se reanalisam (1.º, 2.º e 4.º), o que se constata, tendo por base a prova produzida, incluindo a que é indicada pelo Recorrente, é que essa dá adequada sustentação à convicção firmada em 1.ª instância que justificou, como aliás consta da motivação antes transcrita, a resposta que foi dada e concretizada nas alíneas já antes mencionadas da factualidade provada, como também entre outras ao que consta da alínea T) – “Por causa do indicado em E) e S), o A. foi transportado de urgência para o hospital “… … Hospital”, onde foi submetido a uma intervenção cirúrgica ao pulso direito e permaneceu internado até dia 20/09/2016” –, mas já não, salvo o devido respeito, ao mais que o Recorrente pretende, assim, explicitando, “que iria trabalhar das 7 horas da manhã até ao encerramento da feira/exposição nesse dia”, que o “trabalho indicado em N) dos factos provados incluiu a finalização da montagem e arrumação do Stand e pressupôs uma elevada carga física” (como relativa facilidade se extrai dos depoimentos que sequer tal foi referido – mesmo o Auto nas suas declarações não o diz, afirmando antes que estaria cansado por força das deslocações / viagens que tinha feito e do pouco tempo de descanso), ou que o transporte do Autor para o hospital “… … Hospital” ocorreu imediatamente após o acidente” (não é isso que resulta das declarações, falando-se mesmo que se esperou para ver como evoluiria a situação, para além, diga-se, dos demais elementos considerados pelo Tribunal a quo, incluindo documentais, devidamente explicitados na motivação).
Sendo assim, importa então ter presente, citando-se Lebre de Freitas[9], que “o princípio da livre apreciação da prova significa que o julgador deve decidir sobre a matéria de facto da causa segundo a sua íntima convicção, formada no confronto com os vários meios de prova” – “Compreende-se como este princípio se situa na linha lógica dos anteriores: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém colhidas e com a convicção que através delas se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas da experiência que forem aplicáveis” –, sendo que, na aplicação ao caso do aludido princípio, não há razões para não considerarmos que a decisão recorrida motivou e analisou, de forma ponderada, a globalidade da prova produzida, não padecendo de desconformidade com os elementos probatórios disponíveis, que como o dissemos reanalisámos, sendo que, por outro lado, como já o dissemos também, a convicção aí firmada não resulta a nosso ver infirmada na alegação da recorrente.
Neste contexto, tendo por base o regime legal aplicável, teremos também de ter presente que a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação, tendo de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância – pois que só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição[10] –, muito embora não se trate de um segundo julgamento e sim de uma reponderação, não se basta com a mera alegação de que não se concorda com a decisão proferida em 1.ª instância, exigindo antes da parte processual que pretende usar dessa faculdade, a demonstração da existência de incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efetivamente, no caso, foram produzidos – sem limitar, porém, o segundo grau, ou seja o tribunal de recurso, de sobre tais desconformidades, previamente apontadas pelas partes, se pronunciar, enunciando a sua própria convicção (não estando, assim, limitada por aquela primeira abordagem pois que no processo civil impera o princípio da livre apreciação da prova, artigo 607.º, nº 5 do CPC[11]).
Por decorrência do antes exposto, improcede o recurso nesta parte.

2.2. Ponto 3.º do que se considerou não provado
“3) As temperaturas médias no Emirado do Dubai são entre 35ºC e 45ºC;”
Defende o Recorrente que o conteúdo deste ponto deve considerar-se provado, fazendo desde logo apelo ao que se deu como provado na alínea O) – “As características do clima seco (desértico), com a ausência de precipitação e temperaturas médias entre os 38ºC e os 40ºC do Emirado do Dubai, fazem com que qualquer pequeno exercício ou movimento do dia a dia, como pegar em pesos, abaixar-se, montar ou arrumar o que quer que seja acarrete transpiração e, por via disso, desconforto e falta de higiene” –, mais acrescenta ser do conhecimento geral e facto notório, enquanto tal sem necessidade de fazer a sua prova, “que ao longo do ano, em geral a temperatura varia de 14º C a 45º C e raramente é inferior a 11º C ou superior a 45º C”, sendo que, diz, “o Tribunal tem o poder-dever de indagação e de considerar factos que sejam notórios e públicos nos termos do art. 5.º n.º 2 c)”, para finalizar referindo que “em qualquer website da internet encontram-se as temperaturas médias no DUBAI durante o mês de Setembro, e, numa qualquer pesquisa rápida encontra-se a temperatura que no dia 17.09.2016 se encontrava no DUBAI, isto é, no momento dos factos controvertidos, conforme printscreen sob alegação n.º 52 em que se verifica que as temperaturas no dia 17.09.2016 foram de 38 graus Celcius, o que se enquadra na alegação do Recorrente que as "temperaturas no Emirado do Dubai são entre os 35ºC e os 45ºC", facto notório cuja prova ao abrigo do art. 5.º n.º 2 c) o Tribunal recorrido deveria ter considerado PROVADO”.
Apreciando, constando apenas da motivação avançada em 1.ª instância que “não se provou o ponto 3) por ausência de prova nesse sentido”, constata-se, porém, que consta da factualidade dada como provada, assim da alínea O), pronúncia expressa sobre as características do clima e no que aqui importa sobre as temperaturas médias (“… seco (desértico), com a ausência de precipitação e temperaturas médias entre os 38ºC e os 40ºC do Emirado do Dubai …”), sendo que, caso pretendesse ver como provado que essas temperaturas variassem entre valores diferentes dos aí afirmados, impunha-se que o Recorrente tivesse dirigido o presente recurso também a essa alínea, o que não fez, impossibilitando assim, sob pena de dai poder derivar contradição entre factos, que esta Relação se possa pronunciar em contrário.
Sempre se dirá que, ainda que não fosse esse o caso (mas é, como o afirmámos), não obteriam sustentação os argumentos que avança no sentido de que se tratasse de facto notório e enquanto tal sujeito ao dever de indagação oficiosa, pois que, salvo o devido respeito, assim não o consideramos, estando antes sujeito às regras da prova, prova essa que, como o refere o Tribunal recorrido, não foi feita.
Em face do exposto, sem necessidade de outras considerações, improcede o recurso também quanto a este ponto.

2.3. Ponto 6.º do que se considerou não provado
“6) O A. não recebeu qualquer quantia a título de vencimento, baixa médica ou prestação social;”
Defende o Recorrente que também este ponto deve considerar-se provado.
Começa por referir, para o efeito, que, integrando-se no por si alegado no artigo 34.º da petição inicial, apesar de o ter sido pela Ré seguradora, não foi, porém, impugnado pela Segurança Social e pela Ré D…, sendo que, para além de se tratar de prova que não lhe competia por ser facto negativo, enquanto facto extintivo compete ao devedor, nos termos do art. 342.º n.º 2 do Código Civil, a sua prova – tanto mais que o pagamento não se presume, a não ser nos casos expressamente previstos na lei (cfr. art. 786.º do CC).
Por outro lado, ainda, diz que “na audiência de julgamento foi produzida prova do não recebimento de qualquer prestação social/subsídio e ou salário durante o período de incapacidade”, indicando as suas próprias declarações e o depoimento da testemunha L…, cujas passagens transcreve.
Por último, sem prescindir, sustenta que, caso o Tribunal tivesse dúvidas quanto à falta de prova e à indagação desse facto, “teria o poder-dever de indagação oficiosa, isto é, de por sua iniciativa, oficiosamente, notificar a SEGURANÇA SOCIAL e a Ré D… para informar os presentes autos se, efetivamente, havia ou não sido pago qualquer salário ou prestação social ao Recorrente nos termos do art. 5.2 e 662 Q n.2 2 do CPC”, o que o Tribunal não fez, o que, diz, “enferma o processo de nulidade da sentença que expressamente se invoca para os devidos e legais efeitos através de recurso, acrescentando-se, ainda, que tal como Tribunal pretendeu ouvir, oficiosamente, a testemunha E…, conforme despacho que proferiu 22.02.2021 e que determinou a sua inquirição oficiosa em 08.03.2021 para que o Tribunal indagasse de quem celebrou o contrato de seguro e de quem fez a explicação do seu clausulado pergunta-se porque razão, em ordem à igualdade de armas não foi produzida prova, oficiosa, sobre o facto em crise? - cfr. actas de 22.02.2021 e 08.03.2021”. Conclui que, por via disso, deve ser determinada “a revogação da decisão recorrida para que o Tribunal a quo proceda à indagação oficiosa do facto provado em 3 notificando a Ré D… e SEGURANÇA SOCIAL para virem aos presentes autos informar se foi paga qualquer salário e/ou prestação social ao Recorrente e em caso afirmativo que montante foi pago”.
A respeito deste ponto fez-se constar da motivação que o mesmo “não foi demonstrado por qualquer meio de prova, sendo que o A. apenas declarou não ter recebido subsídio de desemprego. No entanto, não foi feita qualquer prova de ter ou não o A. recebido qualquer valor da interveniente.”
Cumprindo apreciar, e como primeira nota, sendo verdade que o pagamento, enquanto facto extintivo do direito, compete ao devedor, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil (CC), tal como o refere o Recorrente, da aplicação do referido regime ao caso resulta afinal que sequer estamos então perante facto cuja alegação e prova impenda sobre o Autor / aqui recorrente, e sim, noutros termos, sobre as entidades responsáveis por esse pagamento, ou seja, provados que sejam os factos de onde resulta o direito a esse pagamento, assim neste caso a ocorrência das incapacidades para o trabalho invocadas e ainda que essas sejam decorrência de acidente de trabalho (nesta parte sim, enquanto factos constitutivos do direito, cuja prova impende sobre quem invoca esse direito), caso aquelas (entidades responsáveis) não invoquem e provem o devido pagamento, terão então de ser por esse responsabilizadas, mas no momento da aplicação do direito.
Deste modo, salvo o devido respeito, a questão é colocada no caso de um modo que temos por deslocado, assim em sede de reapreciação da matéria de facto.
Sempre se acrescentará, não obstante o que se disse anteriormente, que, ainda que estivéssemos perante um facto negativo cujo ónus impendesse sobre o Autor / aqui recorrente, a verdade é que, diversamente do que também refere, em face do disposto no referido n.º 2 do artigo 342.º, como ainda do demais regime sobre regras de repartição do ónus da prova, nos casos em que estejamos perante um facto constitutivo do direito, não é a circunstância de se tratar de um facto negativo (como se traduziria a alegação e prova do aludido não pagamento), que alteraria a aplicação da regra estabelecida no n.º 1 do mesmo normativo, assim de que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado” – sendo que, como estabelecido no seu n.º 3, em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.
O regime antes mencionado tem sido, com apoio na doutrina, afirmado pela nossa jurisprudência, como ocorre com o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de março de 2021[12], nos termos seguintes:
“(…) Desta disposição legal resulta que desde que se trate de factos constitutivos do direito invocado pelo A, quer esses factos sejam positivos, quer sejam negativos, é ao requerente que compete fazer a sua prova (artigo 342.º, n.º1, do Código Civil). Tratando-se de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do Autor, quer sejam positivos, quer sejam negativos é ao R que cabe fazer a prova da sua verificação (n.º2 do artigo 342.º do Código Civil)
- Antunes Varela, RLJ, Ano 116.º, pág. 341 –
Ou, como refere Pereira Coelho, este artigo não dá relevância à distinção entre factos positivos ou negativos na distribuição do ónus da prova, só podendo admitir-se que a natural dificuldade da prova de factos negativos torne aconselháveis menores exigências quanto à prova dos mesmos factos.
- RLJ, Ano 117.º, pág. 95 -
Assim, e ao contrário do que refere a Recorrente o n.º2 do artigo 342.º do Código Civil não prevê uma inversão do ónus da prova quando esteja em causa a prova de factos negativos, pelo que a sua pretensão não pode proceder (…).”[13]
Esclarecida a questão sobre o regime aplicável quanto aos factos negativos, importa ainda fazer uma outra precisão, esta já a respeito do argumento do Recorrente de que, caso o Tribunal tivesse dúvidas quanto à falta de prova e à indagação desse facto, “teria o poder-dever de indagação oficiosa, isto é, de por sua iniciativa, oficiosamente, notificar a SEGURANÇA SOCIAL e a Ré D… para informar os presentes autos se, efetivamente, havia ou não sido pago qualquer salário ou prestação social ao Recorrente nos termos do art. 5.2 e 662 Q n.2 2 do CPC”, o que o Tribunal não fez.
Melhor esclarecendo:
A propósito da concretização do princípio do inquisitório, previsto no artigo 411.º do CPC, importa dizer que, sendo o processo constituído por uma série de atos dirigidos a um fim, sujeitos para além do mais a exigências técnicas, designadamente sujeitando as partes a um tecido de ónus necessários à boa administração da justiça, um dos princípios basilares do nosso processo civil é precisamente o do dispositivo e da autorresponsabilização das partes, segundo o qual resultam para estas as consequências jurídicas que eventualmente as prejudiquem em caso de negligência ou inépcia sua na condução do processo, sendo que, apesar do princípio do inquisitório exercer atualmente um importante papel, este, salvo nos casos em que a lei imponha expressamente uma atividade oficiosa de investigação e averiguação dos factos – como ocorre, diga-se, na fase de liquidação de sentença, situação sobre a qual incidiu o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 9 de Dezembro de 2020, a que alude o Recorrente nas suas alegações[14] – , não comporta, importa reconhecê-lo, uma amplitude tal que autorize que possa sem mais colidir, para além de outros, com outros princípios fundamentais do nosso processo, de entre os quais o do dispositivo e da autorresponsabilização das partes – “o disposto no artigo 411º do CPC não descaracteriza, nem invalida, o princípio base do processo civil que é o do impulso processual, competindo às partes em toda a sua extensão, nomeadamente no tocante à indicação e realização oportuna das diligências probatórias”[15].
Porém, prevalecendo no âmbito do direito processual civil o princípio da autonomia da vontade, compatibilizado com o princípio dispositivo, estando vedado que a sentença condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido sob pena de incorrer no vício da nulidade – artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC –, já no processo laboral, em face da especial natureza de algumas normas jus-laborais, por se reportarem a direitos tutelados como de interesse e ordem pública e tuteladoras da paz social, tornando-as imperativas e indisponíveis, estas não podem ser afastadas pela vontade das partes.
Dentro desses se inclui o direito às prestações reparatórias e outras garantias previstas na Lei 98/2009, de 4 de setembro (enquadram-se assim no campo dos direitos indisponíveis, ou seja, respeitam a matéria subtraída à disponibilidades das partes – artigo 12.º da Lei 98/2009). Percebe-se aliás que assim seja, pois estão aqui “em causa interesses de ordem pública, de cuja realização o tribunal não se pode alhear e que inspiram a oficiosidade inerente à reparação das consequências dos acidentes de trabalho, que mais não são do que formas de afirmação do direito à reparação das consequências dos acidentes constitucionalmente consagrado na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição da República”[16].
Esse regime encontra apoio expresso no âmbito processual no artigo 74.º do CPT.
Assim, fugindo à regra geral estabelecida no n.º 2 do artigo 608.º do CPC – de que resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e que não pode ocupar-se de outras, salvo se a lei lhe possibilitar ou impor o seu conhecimento oficioso, permite o artigo 74.º do CPT que possa haver condenação, desde que reunidos os pressupostos aí previstos.
Então a propósito do pretérito CPT, mas que corresponde ao artigo 74.º vigente, Castro Mendes[17] afirmava já que essa disposição só se justificava “concebendo a condenação ultra ou extra petita como o suprimento, pelo Juiz, de um direito de exercício necessário imperfeitamente exercido pelo seu titular (ou seu representante)”. Do mesmo modo, Raul Ventura[18] referida que “a autorização da sentença ultra petita [é] consequência necessária da imperatividade e indisponibilidade das normas que simultaneamente protegem o trabalhador e constroem a paz social” – tratando-se de “um dos reflexos processuais da irrenunciabilidade dos direitos substantivos do trabalhador e esta, por sua vez, é, apenas uma das características do direito do trabalho”. Por sua vez, refere Leite Ferreira[19] que a condenação extra vel ultra petitu, na medida em que constitui um desvio ao princípio dispositivo e tem de apresentar-se como resultado da aplicação de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho aos factos provados, ainda que essa aplicação venha a traduzir-se numa condenação em quantidade superior ou em objeto diferente do pedido formulado.
Porém, são preceitos inderrogáveis apenas aqueles que o são absolutamente, isto é, que reconhecem um direito a cujo exercício o seu titular não pode renunciar, como será o caso do direito a indemnização por acidente de trabalho ou doença profissional ou do direito ao salário na vigência do contrato. Diversamente, se os preceitos são inderrogáveis apenas no plano jurídico, porque o exercício do direito que reconhecem está confinado à livre determinação da vontade das partes, a possibilidade de condenação em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido formulado tem de considerar-se excluída, devendo nestes casos a decisão condenatória ter por limite o pedido formulado nos aspetos quantitativo e qualificativo.
Por último, importa ainda ter presente que a aplicabilidade da norma do artigo 74º do CPT, como do mesmo resulta aliás expressamente, depende da verificação de duas condições, por um lado que estejam em causa preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e, por outro, que os factos em que se funda tal condenação sejam os factos provados no processo ou de que o juiz se possa servir nos termos do artigo 412.º do CPC, ou seja, que se trate de factos notórios (que não carecem de prova nem de alegação, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral) ou daqueles, que também não carecem de prova, de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções (sendo que, quando o tribunal se socorra destes factos, deve fazer juntar ao processo documento que os comprove).
Depois das considerações anteriores, delimitado o âmbito e condições em que deve assentar a intervenção do tribunal, regime que deve assim ser concretizada no caso que se aprecia, há que salientar, desde já, que só neste momento, ou seja no presente recurso, a questão da realização de diligências suplementares que agora se pretendem foi colocada pelo Autor / aqui recorrente, ou seja, estando devidamente representado, sequer até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento formulou pretensão nesse sentido.
Não obstante, o que assume aqui relevância decisiva, importa ter presente que, por se tratar de factos constitutivos do direito invocado (art.º 342.º, n.º 1 do CC), os requisitos ou pressupostos de um acidente de trabalho hão de ser alegados e provados por quem reclama a respetiva reparação (sendo esta a regra), assim no caso pelo Autor / recorrente – pois que não se verifica situação em que se estabeleça na lei presunção nesse sentido, como seria o caso da previsão do n.º 1 do artigo 10.º da LAT, em que se dispõe que (a) lesão constatada no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo anterior presume-se consequência de acidente de trabalho”, sendo que, porém, como resulta do seu n.º 2, (s) e a lesão não tiver manifestação imediatamente a seguir ao acidente, compete ao sinistrado ou aos beneficiários legais provar que foi consequência dele.”
O que se referiu anteriormente visa salientar que sobre o Autor / recorrente impendia o ónus da prova, razão pela qual, admitindo-se que o tribunal pudesse determinar oficiosamente quaisquer diligências probatórias se o tivesse por oportuno e conveniente, não tinha porém, diversamente do que defende o Recorrente, uma qualquer imposição legal nesse sentido. De facto, como antes o dissemos, o ónus da prova impendia no caso sobre o mesmo Recorrente e não, pois, salvo o devido respeito, sobre o tribunal, sendo que, como o Tribunal a quo o refere no despacho em que se pronunciou sobre as nulidades invocadas, o artigo 5.º do CPC refere-se ao ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal, neste caso quanto aos factos complementares ou instrumentais, que em nada se relaciona com a junção oficiosa de documentos, que é pretendida pelo Recorrente. De resto, no que diz respeito à pretensa violação de uma igualdade de armas pela inquirição oficiosa da testemunha E… é o próprio tribunal que, no mesmo despacho, explicita o ocorrido e sua justificação, sem que tenhamos razões, até porque não foram invocadas, para colocar em causa tal pronúncia.
Nos termos expostos, claudicam no presente recurso os argumentos do Recorrente que analisamos anteriormente.
Cumprindo-nos, então, prosseguir na apreciação, assim sobre saber se, como o refere também, da circunstância de o alegado no artigo 34.º da petição inicial, apesar de o ter sido pela Ré seguradora, não ter sido impugnado nos autos pela Segurança Social e pela Ré D… resultará a prova desse facto, a resposta terá de ser mais uma vez negativa, pois que, como aliás o refere, o facto em causa foi impugnado pela Ré seguradora, única que tomou posição na ação, razão pela qual, assumindo-se como tal como controvertido e assim sujeito à necessidade da sua prova, por parte de quem tinha esse ónus, ou seja, precisamente o Autor. Sendo assim, tanto mais que o Autor pretende que seja atribuída à referida Ré (e não pois à entidade patronal ou à Segurança social) a responsabilidade pelo pagamento de eventuais quantias em falta, não será da circunstância de estas últimas não terem apresentado qualquer articulado na ação que derivará demonstrado o não recebimento que se invoca e que agora se analisa.
Por último, ficando por saber se a prova produzida e em particular a indicada no recurso permite a este tribunal da Relação alterar a resposta dada ao facto que se analisa pelo tribunal recorrido, reanalisada aquela prova, o que resulta aliás das passagens transcritas nas alegações, apenas se encontra referência, quanto às declarações prestadas pelo Autor, que o mesmo referiu que não recebeu qualquer subsídio de doença, como ainda que não continuou a receber o salário (minutos 34/35 do registo de gravação). Por sua vez, a testemunha L…, no seguimento de pergunta “ele também aqui já referenciou – se sabe ou não – ele referenciou aqui que enquanto esteve de baixa médica, não recebia… da segurança social”, referiu “não…nós… não ele… não recebemos nada… nós ele não recebeu”, acrescentando depois, a pergunta sobre se sabia que pediu, se tentaram receber, que achava que sim, pelo menos não ia estar sem receber sem nenhum motivo…(minutos 25 do registo de gravação).
Neste contexto, sendo verdade que não se pode propriamente dizer que não tenha existido qualquer prova – o Tribunal Recorrido refere na motivação que “não foi demonstrado por qualquer meio de prova, sendo que o A. apenas declarou não ter recebido subsídio de desemprego. No entanto, não foi feita qualquer prova de ter ou não o A. recebido qualquer valor da interveniente.” –, a questão que se nos coloca é a de saber se, em face apenas das referências feitas pelo Autor e pela testemunha L…, a que antes aludimos – pois que não foi produzida qualquer outra prova, seja testemunhal, seja ainda documental e, quanto a esta última, designadamente, qualquer documento oriundo da entidade patronal e em particular da segurança social, neste caso que confirmasse o que foi referido em audiência pelo Autor –, existe fundamento para afastarmos a convicção firmada em 1.ª instância, substituindo-a por aquela que é defendida pelo Recorrente.
Ora, não obstante estarmos perante a prova de um facto negativo, prova essa que por essa razão temos por menos exigente, ainda assim, em particular porque não acompanhada por qualquer outra prova, nomeadamente documental, que dê real suporte ao que foi referido pelo Autor e mencionada testemunha – prova esta que consideramos que o Autor, precisamente com o objetivo de satisfazer o ónus de prova que sobre ele impendia, estava em condições de obter, assim, designadamente, para além da sua entidade patronal, que fosse oriunda da Segurança Social, sendo que, sobre esta última, caso tivesse dificuldades nesse sentido sempre poderia informar o processo desse facto, incluindo solicitando a intervenção do tribunal –, consideramos não existir fundamento bastante, por falta de adequado suporte na prova, para afastarmos a convicção firmada pelo Tribunal a quo, formada no âmbito da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, que aqui vigora como o referimos anteriormente – para onde remetemos, pois –, pois que, nessa consideração, pelas razões que já referimos, não podemos afirmar que esse Tribunal não tenha analisado, de forma ponderada, a globalidade da prova produzida, em termos de poder dizer-se, o que se imporia para se afastar a sua convicção, que a decisão padecesse de desconformidade com os elementos probatórios disponíveis.
Em face do exposto, improcede o recurso também quanto a estre ponto.

2.4. Alínea E) da factualidade provada
Esta alínea tem a redação seguinte:
“E) Ao sair da banheira do hotel onde se encontrava, escorregou e caiu desamparado;”
Defende o Recorrente que este facto, apesar de ser verdadeiro, está incompleto, face à prova produzida, avançando como nova redação: “ao ir da banheira do hotel onde se encontrava, para atender uma chamada telefónica de um cliente da Ré D… que lhe havia ligado, o Autor escorregou e caiu desamparado”. XLV.
Indicando o Recorrente como prova, para suportar a referida alteração, passagem das suas próprias declarações, que transcreve, sustenta depois que, diversamente do que foi entendido pelo Tribunal recorrido, tais declarações assumem real relevância, pelo que, diz, ao ter referido que “explicou que um cliente da empresa o havia contacto no momento em que estava no chuveiro”, não obstante tal não ter sido alegado na petição inicial, tratando-se de facto instrumental, não impede o Tribunal de o considerar, nos termos do disposto no artigoº 5.º n.º 2, a), do CPC.
Apreciando, desde já avançamos que não lhe assiste razão.
E não lhe assiste, em primeiro lugar, entrando na análise da questão da natureza do facto, que, não tendo esse sido alegado e pretendendo-se que seja agora aditado, tal não pode obter procedência, pois que, salvo o devido respeito, o acrescento que propõe em sede de recurso não se assume como um mero complemento ou esclarecimento do que foi por si alegado na ação, tratando-se antes de um facto que temos por essencial, na medida em se traduziria num indício / elemento com real relevância para efeitos de integração do evento ocorrido no âmbito do conceito de acidente de trabalho, pois que, afinal se traduziria em afirmar que o Autor escorregou e caiu desamparado ao ir da ir da banheira do hotel onde se encontrava, para atender uma chamada telefónica de um cliente da Ré D… que lhe havia ligado, ou seja, afinal, ligando tal queda diretamente a um ato que estava a ser realizado no exercício das suas funções para a empresa.
A propósito de saber o que são factos essenciais, observa Jorge Augusto Pais do Amaral[20] que são os “que integram a causa de pedir ou fundamentam as excepções. Por outras palavras, são os factos que concretizam a norma jurídica em que se fundamenta o direito invocado pelo autor ou em que se baseia a defesa do réu. São, em suma, os factos que, se virem a ser provados, são decisivos para que a acção ou a exceção possa ser julgada procedente. Podemos dizer, em síntese, que os factos essenciais ou fundamentais são os que integram a previsão da norma em que se funda a pretensão do autor (ou reconvinte) ou a exceção deduzida pelo réu (ou reconvinte). São, portanto, os factos cuja prova é indispensável para que seja julgada procedente a acção ou a exceção.”
Neste contexto, importa, pois, ter presente o regime que resulta do artigo 72.º do CPT [redação introduzida pela Lei 107/2009], no qual se dispõe, no que aqui interessa, o seguinte:
“1. Sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 5º do Código de Processo Civil, se no decurso da produção da prova surgirem factos essenciais que, embora não articulados, o tribunal considere relevantes para a boa decisão da causa, deve o juiz, na medida do necessário para o apuramento da verdade material, ampliar os temas da prova enunciados no despacho mencionado no artigo 596º do Código de Processo Civil ou, não o havendo, tomá-los em consideração na decisão, desde que sobe eles tenha incidido discussão.
2. Se os temas da prova forem ampliados nos termos do número anterior, podem as partes indicar as respetivas provas, respeitando os limites estabelecidos para a prova testemunhal; as provas são requeridas imediatamente ou, em caso de reconhecida impossibilidade, no prazo de cinco dias. (…)”[21]
Sendo assim, estando em causa, como se disse, um facto essencial que não foi articulado, não podendo esta Relação fazer observar o disposto no citado n.º 2, do artigo 72.º, do CPT, não poderia a impugnação do Recorrente conduzir aqui à sua pretensão de ver considerado tal facto.
Sempre acrescentaremos, não obstante o que referimos anteriormente, ou seja ainda que não fosse esse o caso, que sequer a prova produzida permitiria dar suficiente sustentação à alteração proposta, sendo que acompanhamos aqui a pronúncia do Tribunal recorrido quando fez constar, o que obtém a nossa concordância, que “quanto ao declarado pelo A. no sentido de o cliente ter telefonado quando estava no chuveiro e que, ao tentar atender a chamada, escorregou e caiu, não foi esta versão considerada credível ou tida em consideração em virtude de não ser coincidente com a factualidade alegada pelo próprio em sede de petição inicial e na própria participação e que havia já sido dada como assente sob o ponto E), no sentido de ter escorregado e caído ao sair da banheira”. Na verdade, tanto mais que outra prova foi indicada, dúvidas sérias nos são colocadas sobre a real credibilidade da afirmação apenas feita em audiência quando o não o foi antes, assim no processo em termos de alegação.
Improcede, nos termos expostos, o recurso também nesta parte.

2.2. Por decorrência do decidido anteriormente, e não se vislumbrando razões objetivas para a intervenção deste Tribunal superior nesse âmbito, a base factual a atender, para dizermos o direito, é aquela que o Tribunal recorrido considerou como tal na sentença recorrida.

3. Direito do caso
Tendo por referência as conclusões apresentadas pelo Apelante, no âmbito da aplicação do direito, no sentido de demonstrar que a sentença recorrida errou nessa aplicação, o mesmo avança com os argumentos seguintes: - mesmo só com a matéria de facto dada por provada em B), D), E), H), J), K), L), M), N), O), P), Q), R), S) e AA), ficou provado que a sua deslocação ao DUBAI teve, única e exclusivamente, fins profissionais - participar em representação da empresa na feita designada de H… - DUBAI …. e contactar com potenciais clientes, bem como que, no dia do acidente, e previamente ao mesmo (alínea N) dos factos provados) entre as 7 horas e as 7h30m, se deslocou ao Stand da empresa na feira identificada em D) para levar e colocar no stand catálogos, panfletos e brindes, tendo em vista a abertura da feira às 10 horas desse dia, e que,

após regressar ao hotel, vindo do stand, onde esteve a trabalhar, continuou a desenvolver o seu trabalho – “nomeadamente, esteve a efetuar chamadas telefónicas - Fiz, por exemplo, para Portugal, para a empresa, perceber se está toda a gente a trabalhar – enviar/receber emails, etc.,

trabalho esse que foi desenvolvido no quarto do hotel onde estava instalado”, “conforme declarações do Autor que foram, no essencial, corroboradas pelo depoimento prestado pela testemunha M… prestado perante o Tribunal a quo e que acima se transcreveram na alegação 117.º pela testemunha L… cujo depoimento acima se transcreveu na alegação 118.º e pela testemunha F… conforme alegação 119.º, cujo conteúdo se considera integralmente reproduzido, o que se faz por economia processual para os devidos e legais efeitos”; c

conforme ficou provado, um dos seus deveres/obrigações laborais era o de “(....) representar a sociedade em feiras e exposições nacionais e internacionais em que a mesma seja participante e/ou interveniente na qualidade de fornecedor e/ou cliente, bem como representar a sociedade em todos os actos em que é necessária a presença do seu legal representante”, sendo ainda uma das suas funções “a de proceder à preparação, manutenção e gestão do stand da empresa, bem como estar presente na mesma em representação da empresa (vide, nesse sentido, pontos H), J), K da matéria de facto dada por provada)”, não se cingindo assim o trabalho por si desenvolvido “apenas a marcar presença na feira, mas implicava continuar a administrar a empresa em toda a sua plenitude”; “

conforme resultou de depoimento do recorrente, e foi corroborado por toda a prova testemunhal apresentada, a entidade patronal não possuía instalações (escritório) próprios no DUBAI” – “pelo que, para além da feira, o trabalho do recorrente também se desenvolvia no hotel onde o mesmo estava instalado, nomeadamente, nas áreas comuns do mesmo, local onde recebia os clientes da sua entidade patronal e no próprio quarto do hotel, local onde guardava as coisas da feira, preparava reuniões, efetuava chamadas de trabalho, elaborava, enviava e recebia emails, etc.”, “facto esse, reitere-se, corroborado pelo depoimento do recorrente, e demais testemunhas questionadas sobre esse facto, e, salvo melhor opinião, corroborado pelas regras da experiência comum”; ao contrário do sustentado pelo Tribunal a quo, no dia do acidente, “não interrompeu a sua atividade laboral, continuando antes a trabalhar – “fazendo chamadas, enviando/recebendo emails, etc.)”; conforme ficou provado –, sendo que, porque no exercício das suas funções laborais e por instruções, ordens e imposição da sua entidade patronal estava adstrito ao cumprimento do dever de apresentação com boa imagem (“dever de apresentação imagem limpa e dever de apresentação com boa apresentação (vide, nesse sentido, ponto P) da matéria de facto dada por provada)”, do facto de, como se provou, ter regressado ao quarto do hotel cerca de 30 minutos depois de se deslocar ao stand, para aí tomar um duche, vestir roupa adequada às suas funções e preparar-se para os contactos comerciais, resulta que queda ocorreu “por causa do cumprimento das suas obrigações laborais, mais concretamente, atender uma chamada telefónica feita por um cliente da empresa, conforme declarações do Recorrente acima transcritas”, tratando-se assim de um acidente de trabalho e devendo enquanto tal ser considerado – “o Tribunal a quo errou ao considerar que o banho em causa se tratou de um mero acto próprio da vida privada, bem como errou ao entender que, não estando a trabalhar, o mesmo não se tratou de um acto anterior à sua actividade e relacionado com esta”; “o acto de tomar banho emerge de uma decisão da empresa e insere-se nas suas obrigações diárias decorrentes nos deveres principais e acessórios de trabalhador por conta, ordens e direção da Ré D…”, “até porque o acidente ocorreu por força do cumprimento da sua obrigação laboral — atender uma chamada telefónica feita por um cliente da empresa, higiene imposto pela empresa Ré D… consubstancia um acto preparatório da sua atividade prévia à ida para a feira onde o Recorrente representaria a sua entidade empregadora no âmbito dos contactos comerciais que iria realizar”; - ficou demonstrado que “só se encontrava nas circunstâncias de tempo, modo e lugar do acidente porque estava ao serviço da sua entidade empregadora” e, “também, encontrava-se naquele Hotel por decisão da empresa (facto Provado R), consubstanciando o Hotel não só o local onde pernoita mas, também, o local onde exerce as suas funções, onde recebe clientes e onde guarda os instrumentos de trabalho e demais objetos necessários ao exercício das suas funções por conta, ordens e direção da Ré”; - é “facto notório (art. 5 n.º 2 c) do CPC e 412.º do CPC), segundo as mais elementares regras da experiência comum que, na presente era em que vivemos, os hotéis constituem locais onde a prestação de trabalho é executada à distância por terem condições como wi-fi, secretárias e demais elementos que permitem a execução de trabalho” / o raciocínio que resulta da sentença “é, marcadamente, antiquado e negligenciador das formas de trabalho contemporâneas de milhares e milhares de trabalhadores”; em face do disposto no artigo 197.º, n.º 2, o acidente ocorreu no tempo de trabalho, bem como, diz ainda, no local de trabalho (como tal se entendendo o quarto do hotel nestes casos – cfr. AC. do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.10.2007, processo n.º 5523/2007-4 em www.dgsi.pt);

- deve ser considerado acidente de trabalho o sinistro que sofreu pois que, “nos termos do ar.t 8.º n 1 da Lei dos Acidentes de Trabalho é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte – “Nos termos do n.º 2 do mesmo normativo entende-se por: a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador; b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho. Para além disso, por força do art. 9º da LAT considera-se também acidente de trabalho o ocorrido: a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte; b) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador; c) No local de trabalho e fora deste, quando no exercício do direito de reunião ou de actividade de representante dos trabalhadores, nos termos previstos no Código do Trabalho”; - os atos da vida profissional distinguem-se dos atos da vida corrente, desde que decorram diretamente da execução da missão laborativa pela qual o trabalhador esteja incumbido, pelo que, resultando evidente que não só o sinistro ocorreu em pleno tempo da jornada de trabalho (após deslocação à feira e previamente ao retorno para a inauguração) como, também, ocorreu em cumprimento de ordens dadas pela entidade empregadora para cumprimento das regras de apresentação e higiene, manifestamente, o acidente de trabalho sofrido pelo Autor/Recorrente não pode deixar de ser qualificado como acidente de trabalho, constituindo a decisão recorrida uma decisão desapropriada face ao direito aplicável e, bem assim, profundamente injusta; - “ao julgar como julgou o Tribunal recorrido violou, entre outras, as disposições dos arts. 8.º n.º 1 e n.º 2 da LAT, art. 5.º n.º 2 c) e art. 412.º do CPC, art. 197.º n.º 1 e n.ºs 2 a) e b) do Cód. do Trabalho, pelo que deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outro que julgue procedente a ação intentada pelo Recorrente e, por via disso, ser a Recorrida C… condenada nos termos melhor elencados na P.I. e requerimento de fls 296.
Em síntese conclusiva, em face dos referidos argumentos, a questão a decidir prende-se com saber se, em face do regime legal aplicável, deve ou não ser qualificado como acidente de trabalho o evento ocorrido e que a factualidade provada carateriza.
Pronunciando-se o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no sentido a improcedência do recurso, ou seja, também no âmbito da aplicação do direito, cumprindo-nos decidir, desde já avançamos que, diversamente do defendido pelo Recorrente, não lhe assiste razão.
Assim o afirmamos pois que, e desde logo, sequer a base factual provada, única que pode suportar a decisão de aplicação da lei e do direito, dá adequado suporte a várias das afirmações feitas pelo Recorrente, assim, designadamente, estando neste âmbito excluídas as considerações que faz a respeito de meios de prova para evidenciar eventual prova de factos que não resultaram efetivamente provados (incluindo em sede recursiva, como resulta da apreciação que realizamos anteriormente, quando afirma: que

após regressar ao hotel, vindo do stand, onde esteve a trabalhar, o Autor / continuou a desenvolver o seu trabalho, “nomeadamente, esteve a efetuar chamadas telefónicas - Fiz, por exemplo, para Portugal, para a empresa, perceber se está toda a gente a trabalhar – enviar/receber emails, etc.,

trabalho esse que foi desenvolvido no quarto do hotel onde estava instalado”, “conforme declarações do Autor que foram, no essencial, corroboradas pelo depoimento prestado pela testemunha M… prestado perante o Tribunal a quo e que acima se transcreveram na alegação 117.º pela testemunha L… cujo depoimento acima se transcreveu na alegação 118.º e pela testemunha F… conforme alegação 119.º, cujo conteúdo se considera integralmente reproduzido, o que se faz por economia processual para os devidos e legais efeitos” (efetivamente, diversamente, a invocada factualidade, mesmo após a apreciação do recurso em sede de matéria de facto, não resulta da matéria de facto considerada provada); para além da feira, o trabalho do recorrente também se desenvolvia no hotel onde o mesmo estava instalado, nomeadamente, nas áreas comuns do mesmo, local onde recebia os clientes da sua entidade patronal e no próprio quarto do hotel, local onde guardava as coisas da feira, preparava reuniões, efetuava chamadas de trabalho, elaborava, enviava e recebia emails, etc.”, “facto esse, reitere-se, corroborado pelo depoimento do recorrente, e demais testemunhas questionadas sobre esse facto, e, salvo melhor opinião, corroborado pelas regras da experiência comum” – diversamente, o que resultou apenas provado, nesse âmbito, é que, competindo ao Autor, na referida feira, efetuar a sua gestão, manutenção, conservação, efetuar contactos com clientes e fornecedores, tentar obter negócios, tentar angariar clientes e promover a marca … pertencente à sua entidade patronal (alínea K), da factualidade), no dia 17/09/2016 (data em que ocorreu o evento) o trabalho “iria ser desenvolvido no espaço onde se desenrolava a feira” (alínea L), da factualidade), e que apenas pós a realização da feira “o trabalho de promoção da marca da empresa e contacto com potenciais clientes desenvolvido pelo A. iria também ser desenvolvido no hotel onde o mesmo se encontrava instalado e noutro posterior, uma vez que nem todos os potenciais clientes visitariam a feira/exposição” (alínea M), da factualidade); que depois de se ter dirigido ao espaço da feira pelas 7.00 horas, ao voltar ao hotel e foi tomar banho tenha continuado a trabalhar, “fazendo chamadas, enviando/recebendo emails, etc.)”; que a queda tenha ocorrido “por causa do cumprimento das suas obrigações laborais, mais concretamente, atender uma chamada telefónica feita por um cliente da empresa” (tal não resultou, diversamente do que o diz, como provado, incluindo em sede do presente recurso).
Feito o referido esclarecimento, consta da sentença recorrida, nomeadamente, o seguinte (transcrição):
“(…) Para efeitos de noção de local de trabalho, o critério geográfico encontra-se assim intimamente ligado com o critério de autoridade que implica um controlo do empregador quanto à actividade desenvolvida pelo trabalhador. Trata-se do local onde o trabalhador esteja na dependência jurídica do empregador; de qualquer sítio a que o trabalhador tenha de se deslocar em virtude da sua actividade, desde que sujeito a este critério de autoridade (neste sentido, cfr. Caderno de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, do CEJ, de Julho de 2013, pág. 30, disp. in www.cej.pt).
Cada caso concreto terá de ser verificado se, à luz da teoria da autoridade, o trabalhador se mantinha ou não directa ou indirectamente sujeito ao controlo da entidade empregadora.
Pode-se estar também uma situação enquadrável na extensão do conceito de acidente de trabalho operada pelo artigo 9º do RJAT. A este propósito, estabelece a citada norma, na parte que interessa no caso concreto, que “1 - Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido: (…) h) Fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos”.
Nesta alínea h) englobam-se as situações em que o trabalhador exerce as suas tarefas ordenadas ou consentidas pela entidade empregadora fora das instalações da empresa.
Sendo que, quanto a esta norma, mas por referência ao anterior artigo 6º nº 2 da Lei nº 100/97, de 13/09, transcreve-se o explanado no identificado Acórdão do TRPorto de 25/06/2018, proc. 1130/15.0T8VFR.P1, disp. in www.dgsi.pt: “Discorrendo sobre os casos referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 6.º da LAT, que correspondem a extensões do conceito de acidente de trabalho, CARLOS ALEGRE (Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 45-47) afirma que, genericamente, são três os elementos a considerar para que o acidente seja qualificável como de trabalho: (a) a execução de serviços fora do local e/ou tempo de trabalho; (b) a missão ou função profissional, que pode ter carácter duradouro ou meramente ocasional ou esporádico; (c) a posição subordinada do trabalhador durante o cumprimento da missão. Quanto ao elemento missão ou função profissional refere aquele AUTOR: «Em regra, o cumprimento da missão impõe ao trabalhador não só a deslocação a determinados locais, como a sua permanência, mais curta ou mais longa, nesses locais, muitas vezes sem que o objecto específico da missão esteja a ser directamente trabalhado. Por outras palavras, o trabalhador que se desloca, fora do tempo e do local de trabalho, está sujeito a acidentes ocasionados directamente pelo cumprimento da sua missão profissional, como a acidentes ocasionados por actos de vida corrente, cujos riscos normalmente não correria. É na diferenciação entre actos da vida corrente, impostos pelas necessidades pessoais quotidianas (higiene, repouso, refeições, lazer, etc.) e os actos decorrentes da execução da missão ou função profissional que, com frequência, se colocam as dificuldades práticas. O critério de distinção só pode ser exactamente este: os actos da vida profissional distinguem-se dos actos da vida corrente, desde que decorram directamente da execução da missão. Por isso mesmo, afigura-se-nos pouco rigoroso e susceptível de, em geral, inultrapassáveis confusões falar-se de nexo de causalidade entre o acidente e o trabalho do sinistrado, devendo, antes, averiguar-se da existência ou não do vínculo de autoridade da entidade patronal, a qual, obviamente, só se exerce sobre os actos da vida profissional e não sobre os da vida corrente.» Especificamente sobre as situações da vida privada que podem ocorrer durante a execução da missão fora da empresa, ROMANO MARTINEZ (Direito do Trabalho, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 825-826), salienta que se pode considerar que esses actos, «sendo da vida privada e corrente do trabalhador, não se deveriam, por princípio, enquadrar na noção de acidente de trabalho, que se relaciona com os actos de execução da profissão, mas atendendo ao risco empresarial e, principalmente à socialização do risco nos acidentes de trabalho, algumas destas situações podem consubstanciar hipóteses de responsabilidade do empregador. Compreende-se que tal suceda quando as condições de realização da prestação debitória possam incrementar os riscos inerentes à normal vida em sociedade […]». (…) Tudo para concluir que, em princípio, o acidente ocorrido durante a execução de um serviço determinado pelo empregador, mas emergente de acto da vida privada e corrente do trabalhador, em que este tenha recuperado a sua independência em relação à missão profissional, não é qualificável como acidente de trabalho”.
Ora, no caso em apreço, resulta da factualidade provada que:
- À data do acidente, em 17/09/2016, o A. era administrador único da interveniente, sendo que, no âmbito das suas funções, competia e compete ao A. representar a sociedade em feiras e exposições nacionais e internacionais em que a mesma seja participante e/ou interveniente na qualidade de fornecedor e/ou cliente, bem como representar a sociedade em todos os actos em que é necessária a presença do seu legal representante, sendo que para o exercício de tais funções auferia uma retribuição mensal de €2.000,00, acrescido de subsídio de alimentação (pontos F, H e I);
- No dia 16/09/2016 o A. deslocou-se à cidade do Dubai, no Emirado do Dubai, para, em nome da sua entidade patronal, ora interveniente, e em representação dela, permanecer e participar no Stand que a empresa possuía na feira/exposição designada H… – DUBAI …., que se iria realizar na cidade de DUBAI entre os dias 17 e 19 de Setembro (pontos D e J);
- Na referida feira, competia ao A. efectuar a sua gestão, manutenção, conservação, efectuar contactos com clientes e fornecedores, tentar obter negócios, tentar angariar clientes e promover a marca … pertencente à sua entidade patronal;
- No dia 17/09/2016 o trabalho do A. iria ser desenvolvido no espaço onde se desenrolava a feira;
- Após a realização da feira indicada em J), o trabalho de promoção da marca da empresa e contacto com potenciais clientes desenvolvido pelo A. iria também ser desenvolvido no hotel onde o mesmo se encontrava instalado e noutro posterior, uma vez que nem todos os potenciais clientes visitariam a feira/exposição;
- No dia 17/09/2016, entre as 7 horas e as 7h30m, o A. deslocou-se ao Stand da empresa na feira identificada em D) para levar e colocar no stand catálogos, panfletos e brindes, tendo em vista a abertura da feira às 10 horas desse dia;
- As características do clima seco (desértico), com a ausência de precipitação e temperaturas médias entre os 38ºC e os 40ºC do Emirado do Dubai, fazem com que qualquer pequeno exercício ou movimento do dia a dia, como pegar em pesos, abaixar-se, montar ou arrumar o que quer que seja acarrete transpiração e, por via disso, desconforto e falta de higiene;
- A execução das suas tarefas de forma correcta pressupõe que o A. se apresente com boa imagem, uma imagem limpa, cuidada e com boa apresentação;
- O A. regressou ao quarto de hotel cerca de 30 minutos depois de se deslocar ao stand, para aí tomar um duche, vestir roupa adequada às suas funções e preparar-se para os contactos comerciais, tendo ocorrido o indicado em E) em hora não concretamente apurada mas ocorrida entre esse momento e a hora de abertura da feira;
- O hotel onde o A. se encontrava instalado emerge de uma decisão da entidade patronal que suportou todos os custos inerentes à viagem, estadia e alojamento do A. (pontos K a R);
- Ao sair da banheira do hotel onde se encontrava, escorregou e caiu desamparado (ponto E).
Por outro lado, não se provou que no dia do acidente o A. iria trabalhar das 7 horas da manhã até ao encerramento da feira nesse dia.
Do supra exposto, resulta que, à data e momento do acidente, o hotel onde o A. se encontrava instalado não constituía o local onde deveria prestar o trabalho para o qual, de acordo com o alegado, se deslocou àquele país: a representação da interveniente na feira designada H… – DUBAI …, já que esta tinha instalações próprias, onde a interveniente possuía um stand. Como resultou provado, apenas após a realização desta feira é que o trabalho de promoção da marca da empresa e contacto com potenciais clientes desenvolvido pelo A. iria também ser desenvolvido no hotel onde o mesmo se encontrava instalado e noutro posterior, uma vez que nem todos os potenciais clientes visitariam a feira/exposição, sendo que mesmo tal não ocorreria no quarto no qual se encontrava hospedado, mas sim em instalações próprias do hotel, como resultou evidente das declarações de parte do A. O hotel e respectivo quarto onde o A. se encontrava alojado, bem como o WC deste onde ocorreu o acidente, não pode ser considerado como local de trabalho.
Não logrou o A. provar que iniciaria a prestação do trabalho nesse dia, de modo ininterrupto, desde as 7 horas da manhã até ao encerramento da feira nesse dia, tendo antes ficado demonstrado que o A. iniciou a prestação da sua actividade no stand da interveniente na feira em causa a hora não concretamente apurada, mas ocorrida entre as 7 horas e as 7h30m, tendo regressado ao quarto do hotel cerca de 30 minutos mais tarde (ou seja, entre as 8 horas e as 8h30m), momento em que cessou assim as suas funções. Este período de tempo, estava assim na disponibilidade do A. e em acto da sua actividade privada, não se encontrando o mesmo, de acordo com os factos alegados e provados, em horário de trabalho.
Não obstante se tenha demonstrado que o regresso ao hotel teve por fim o A. tomar um duche, vestir roupa adequada às suas funções e preparar-se para os contactos comerciais, e que a execução das tarefas do A. pressupõe que este se apresente com boa imagem, uma imagem limpa, cuidada e com boa apresentação, certo é que resulta do demonstrado no ponto O) dos factos provados que as características do país onde ocorreu o acidente exigem, para a manutenção de uma higiene mínima, a concretização de banhos, que consubstanciam assim um acto próprio da vida privada de qualquer pessoa naquele país. Por outro lado, o acidente em causa nos autos ocorreu em hora não concretamente apurada mas no lapso de tempo decorrido entre as 8h – 8h30m e as 10h (hora de início da feira), sendo que, por força do clima seco e temperaturas médias sentidas, e como foi referido pelo próprio A., qualquer movimento causa transpiração e desconforto, pelo que, face a este lapso de tempo demasiado longo e tais características, não se demonstrou que o banho concreto aqui em causa e que determinou a queda do A. se tratou de um acto anterior à sua actividade e relacionado com esta, sendo que cabia a este o ónus de prova da hora a que ocorreu o acidente (referentes a casos semelhantes, cfr. Acórdão do TRPorto de 25/06/2018, proc. 1130/15.0T8VFR.P1; Acórdão do STJ de 02/04/2008, proc. 08S529, ambos disp. in www.dgsi.pt), concluindo-se tratar-se de um acto da vida corrente do A., básico de higiene pessoal na vida quotidiana de qualquer pessoa. Aliás, de acordo com as funções do A. alegadas e provadas sob os pontos J) e K), os actos anteriores à prestação da sua actividade profissional consistiam na preparação para os contactos comerciais, o que é distinto dos actos de higiene pessoal.
Por outro lado, a factualidade demonstrada também não se enquadra no artigo 9º do RJAT. Com efeito, para além de demonstrar que o quarto de hotel onde o A. se encontrava alojado emergiu de uma decisão da entidade patronal que suportou todos os custos inerentes à viagem, estadia e alojamento do A., era necessário comprovar que o local onde ocorreu o acidente (WC do quarto de hotel) estava controlado pela interveniente ou sob as ordens e direcção desta, o que não ocorreu. O acidente deu-se quando o A., ao sair da banheira, no hotel onde se encontrava alojado pela interveniente, escorregou e caiu desamparado.
Acresce que não ficou demonstrado que as condições de alojamento do A. tenham agravado o risco genérico que impende sobre a generalidade das pessoas quando tomam banho ou terminam o mesmo.
Conclui-se, face ao exposto, que não se mostram verificados os pressupostos exigidos para a qualificação do acidente em causa nos autos como acidente de trabalho.
Face a tal conclusão, resulta prejudicada a apreciação das excepções invocadas pela R. em sede de contestação.
Consequentemente, deve a presente acção ser julgada improcedente e a R. absolvida do pedido. Também não resultou demonstrada a responsabilidade da interveniente pelo acidente e suas consequências.”
Vista a citada fundamentação, bem como a decisão a que conduziu na sentença recorrida, como o avançámos já anteriormente, não consideramos que assista razão ao Recorrente nas críticas que lhe traz no presente recurso, pois que, excluídos os argumentos que avança mas que como o dissemos não encontram suficiente apoio na factualidade provada, no mais a sentença, precisamente por ter apenas por base o que se provou, nos termos que aliás explicitou de um modo que temos por bastante, aplicou adequadamente o regime legal vigente, em termos de concluir, como concluiu, por não se mostrarem verificados os pressupostos exigidos para a qualificação do evento objeto dos autos como acidente de trabalho, pela improcedência da ação.
Não obstante a suficiência da citada fundamentação, sempre acrescentaremos, para melhor explicitarmos a nossa posição, citando-se o afirmado no Acórdão desta Secção de 25 de junho de 2018[21] , por ter incidido sobre situação com alguma similitude com a que aqui apreciamos – tratou-se no referido Acórdão de acidente ocorrido no interior da casa de banho do quarto de hotel onde o trabalhador se encontrava hospedado –, o seguinte:
«Desde já se dirá que se concorda, no essencial, com a sentença recorrida, ressalvando-se ou acrescentando-se todavia que entendemos que o acidente não ocorreu nem no local, nem no tempo de trabalho, nem, como decorre da sentença, está coberto pela teoria do risco de autoridade que impusesse a sua qualificação como acidente de trabalho.
Não obstante, tecer-se-ão algumas considerações adicionais.
Dispõe a Lei 98/2009, de 04.09 [a aplicável ao caso], no seu art. 8º, sob a epígrafe “Conceito” que: (…).
O conceito de acidente de trabalho, no essencial e no que poderá relevar ao caso, não sofreu alteração face ao que constava da legislação pretérita (Lei 100/97, de 13.09).
Para que o acidente seja caracterizado como de trabalho tem sido considerado como necessário que: (a) ocorra um acidente; (b) que tal se verifique no local e tempo de trabalho ou em algumas das demais circunstâncias referidas no art. 9º (c) que o acidente determine, direta ou indiretamente, uma lesão corporal, perturbação funcional ou doença ou a morte; (d) que das lesões provocadas pelo acidente resulte a perda ou diminuição da capacidade de ganho.
No caso, ainda que o A. se encontrasse no hotel, com autorização da empregadora que também suportou os respectivos custos, porque se havia deslocado da área da sua residência para reunião com a empregadora no dia anterior e, no dia da sua ocorrência, fosse exercer a sua actividade profissional e, por isso, nele tendo pernoitado, tal não basta para a caracterização do acidente como sendo de trabalho.
O local onde o mesmo ocorreu – quarto do hotel, concretamente no WC do mesmo onde o A. (…) saiu da banheira, tendo escorregado no piso do mesmo, batendo com as costas no chão) – não constituía local onde o trabalho fosse prestado e/ou local para onde o A. Se deveria dirigir para prestar o seu trabalho, não sendo considerado como local de trabalho. Nem o acidente ocorreu no tempo de trabalho, tal como definido este na al. b) do nº 1 do art. 8º, não tendo ocorrido durante o tempo de prestação da sua actividade, nem em atos anteriores ou posteriores a essa actividade com esta relacionados; ocorreu durante período inserido na disponibilidade do seu tempo e da sua vida privada e em ato, unicamente, próprio da sua vida privada.
E, por outro lado, não se insere em nenhuma das demais situações previstas na extensão operada pelo art. 9º.
Nem a teoria do risco de autoridade justifica, por si só, o alargamento dos conceitos de local e/ou de tempo de trabalho.
É certo que é, hoje, adquirido que o conceito de acidente de trabalho e a responsabilidade objectiva do empregador assenta na teoria do risco de autoridade uma vez que a antecessora corrente, assente na teoria do risco profissional - esta exigindo uma relação de causa e efeito entre o acidente e o trabalho - não dava cobertura a acidentes que seriam dignos de proteção.
A teoria do risco de autoridade assenta, em síntese, na responsabilidade do empregador decorrente da possibilidade do exercício da autoridade por parte deste sobre os seus trabalhadores, dispensando o referido nexo de causalidade entre o trabalho e o acidente, bastando-se com a existência de uma relação entre o trabalho e o acidente. Mas não se basta com uma qualquer relação, por remota ou indirecta que seja, relação essa cuja causa próxima assenta na ligação conferida pelo local e tempo de trabalho ou por alguma das demais circunstâncias previstas no art. 9.º ou, até, em circunstâncias que, embora aí não se enquadrando, sejam todavia determinantes de um risco acrescido de tal modo que, ainda assim, se pudesse considerar, ao abrigo da teoria do risco de autoridade, como podendo ser imputável à autoridade do empregador. Assim é que, no âmbito da proteção infortunística, não estão, apenas, incluídos os acidentes diretamente ocasionados por facto próprio, inerente ou típico do exercício das tarefas que se enquadram nas funções que constituem a actividade do trabalhador ou a este cometidas expressamente pelo empregador, sendo a conexão ou causalidade entre o trabalho e o acidente decorrente da circunstância de o acidente ter ocorrido no local e no tempo de trabalho (ou em alguma das demais previstas no alargamento operado pelo art. 9º), não tendo o sinistrado que demonstrar, relativamente a acidente ocorrido em tais circunstâncias, que o mesmo decorreu por virtude do concreto trabalho. Mas tem o sinistrado que demonstrar essas circunstâncias para que se possa concluir no sentido da caracterização do acidente, ainda que não relacionado com a concreta execução do trabalho, como acidente de trabalho.
Ora, tal não ocorre no caso em apreço, para tanto não bastando a circunstância do A. ter tido que pernoitar no hotel porque teve uma reunião no dia anterior e porque no dia seguinte teria que, no âmbito da sua actividade profissional, efectuar visitas a clientes, não sendo demais salientar que o acidente ocorreu durante período cujo tempo estava na disponibilidade do A. (no seu tempo livre) e em ato inteiramente da sua vida privada, sufragando-se o entendimento preconizado no douto Acórdão do STJ de 02.04.2008, in www.dgsi.pt, Proc. 08S529, citado na sentença recorrida e que se passa a transcrever:
“2. A recorrente sustenta, no essencial, que o acidente sofrido pela sinistrada não pode ser caracterizado como um acidente de trabalho, uma vez que o poder de autoridade e de direcção da entidade empregadora não se estende a todos aos actos da vida privada do trabalhador, mesmo que, por razões profissionais, esteja deslocado da sua residência habitual, havendo limites entre a vida pessoal e a vida profissional.
É que, prossegue, «[o]s trabalhadores, em sua casa, quando tomam banho ou cuidam da sua higiene, não estão a realizar actos preparatórios para o seu dia de trabalho, o que acontecia também com a recorrida», e «[c]onsiderar que tomar banho é um acto preparatório da profissão de secretária é algo […] inconcebível de aceitar», e mesmo considerando que o quarto é uma extensão do seu local de trabalho, «a casa de banho, local onde a Recorrida recolhe à sua intimidade e onde ocorreu a queda, não está controlada, nem sob as ordens e direcção da entidade empregadora». (…)
2.1. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º da LAT, acidente de trabalho é «aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte».
Mas logo o n.º 2 do mesmo normativo estabelece a extensão do conceito de acidente de trabalho a outras situações, entre as quais figuram os acidentes ocorridos «[n]o trajecto de ida e regresso para e do local de trabalho, nos termos em que vier a ser definido em regulamentação posterior» [alínea a)], «[n]a execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para a entidade empregadora» [alínea b)], «[n]o local de trabalho, quando no exercício do direito de reunião ou de actividade de representante dos trabalhadores, nos termos da lei» [alínea c)], «[n]o local de trabalho, quando em frequência de curso de formação profissional ou, fora do local de trabalho, quando exista autorização expressa da entidade empregadora para tal frequência» [alínea d)], «[e]m actividade de procura de emprego durante o crédito de horas para tal concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação de contrato de trabalho em curso» [alínea e)] e, «[f]ora do local e do tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pela entidade empregadora ou por esta consentidos» [alínea f)]. Também segundo aquele artigo 6.º, entende-se por local de trabalho, «todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador» (n.º 3) e por tempo de trabalho, «além do período normal de laboração, o que preceder o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe seguir, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho» (n.º 4).
Ainda sobre o conceito de local de trabalho, o n.º 4 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 143/99 estipula que «[e]stão compreendidos no artigo 6.º da lei os acidentes que se verifiquem nas seguintes circunstâncias: a) no local do pagamento de retribuição, enquanto o trabalhador aí permanecer para tal efeito; b) no local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente e enquanto aí permanecer para esses fins.»
2.2. Discorrendo sobre os casos referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 6.º da LAT, que correspondem a extensões do conceito de acidente de trabalho, CARLOS ALEGRE (Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 45-47) afirma que, genericamente, são três os elementos a considerar para que o acidente seja qualificável como de trabalho: (a) a execução de serviços fora do local e/ou tempo de trabalho; (b) a missão ou função profissional, que pode ter carácter duradouro ou meramente ocasional ou esporádico; (c) a posição subordinada do trabalhador durante o cumprimento da missão.
Quanto ao elemento missão ou função profissional refere aquele AUTOR: «Em regra, o cumprimento da missão impõe ao trabalhador não só a deslocação a determinados locais, como a sua permanência, mais curta ou mais longa, nesses locais, muitas vezes sem que o objecto específico da missão esteja a ser directamente trabalhado. Por outras palavras, o trabalhador que se desloca, fora do tempo e do local de trabalho, está sujeito a acidentes ocasionados directamente pelo cumprimento da sua missão profissional, como a acidentes ocasionados por actos de vida corrente, cujos riscos normalmente não correria.
É na diferenciação entre actos da vida corrente, impostos pelas necessidades pessoais quotidianas (higiene, repouso, refeições, lazer, etc.) e os actos decorrentes da execução da missão ou função profissional que, com frequência, se colocam as dificuldades práticas. O critério de distinção só pode ser exactamente este: os actos da vida profissional distinguem-se dos actos da vida corrente, desde que decorram directamente da execução da missão. Por isso mesmo, afigura-se-nos pouco rigoroso e susceptível de, em geral, inultrapassáveis confusões falar-se de nexo de causalidade entre o acidente e o trabalho do sinistrado, devendo, antes, averiguar-se da existência ou não do vínculo de autoridade da entidade patronal, a qual, obviamente, só se exerce sobre os actos da vida profissional e não sobre os da vida corrente.»
Especificamente sobre as situações da vida privada que podem ocorrer durante a execução da missão fora da empresa, ROMANO MARTINEZ (Direito do Trabalho, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 825-826), salienta que se pode considerar que esses actos, «sendo da vida privada e corrente do trabalhador, não se deveriam, por princípio, enquadrar na noção de acidente de trabalho, que se relaciona com os actos de execução da profissão, mas atendendo ao risco empresarial e, principalmente à socialização do risco nos acidentes de trabalho, algumas destas situações podem consubstanciar hipóteses de responsabilidade do empregador. Compreende-se que tal suceda quando as condições de realização da prestação debitória possam incrementar os riscos inerentes à normal vida em sociedade […]».
Justifica-se, ainda, uma brevíssima nota de direito comparado.
Em França, François Gaudu (Droit du Travail, 2.ª edição, Dalloz, Paris, 2007, p. 151), professor na Universidade Paris I (Panthéon-Sorbonne), pronunciando-se sobre o conceito de acidente de trabalho, refere que «[l]es accidents de mission sont également considérés comme des accidents du travail, sauf s’ils surviennent à un moment où le salarié a recouvré son indépendance».
Tudo para concluir que, em princípio, o acidente ocorrido durante a execução de um serviço determinado pelo empregador, mas emergente de acto da vida privada e corrente do trabalhador, em que este tenha recuperado a sua independência em relação à missão profissional, não é qualificável como acidente de trabalho. (…)
Perante o acervo factual dado como provado, impõe-se concluir que não estão reunidos os pressupostos para que se possa qualificar o sinistro dos autos como um acidente de trabalho, uma vez que o mesmo não ocorreu no local do trabalho, nem no tempo de trabalho, revelando-se antes como um acontecimento pertinente à vida privada da sinistrada (higiene pessoal), estranho à execução da missão profissional e ocorrido quando actuava com total independência relativamente à empregadora.
Na verdade, o acidente ocorreu no interior da casa de banho do quarto da estalagem onde a sinistrada se encontrava hospedada, momentos após ter tomado banho, portanto, em local que não se pode considerar como de trabalho - elemento espacial -, já que, naquelas circunstâncias, a autora estava subtraída ao controlo, directo ou indirecto, da empregadora, e em momento estranho ao tempo de trabalho - elemento temporal -, porque situado fora do período normal de laboração e dos períodos que o precedem (actos de preparação) ou seguem (actos de ultimação), não se configurando o sobredito banho como um acto de preparação relacionado com a reunião que iria secretariar, no mesmo dia, nas instalações da Quinta da ....
E, por outro lado, não releva a circunstância de ter sido guardado material de apoio logístico do secretariado da direcção, no quarto atribuído à autora, porquanto o acidente não resultou da execução da missão ou função profissional determinada pela empregadora, nem ocorreu em tempo em que se manifestasse a autoridade patronal.
Apenas se acrescentará que, no caso vertente, não se provou que as concretas condições de alojamento atribuídas à autora tenham agravado o risco genérico que impende sobre a generalidade das pessoas quando procedem à sua higiene pessoal.
Termos em que procedem as conclusões da alegação do recurso de revista.”
As considerações tecidas no mencionado aresto são transponíveis para o caso em apreço, sendo que, embora proferido no âmbito da Lei 100/97, mantêm inteira actualidade, pois que a nova LAT (Lei 98/2009) não introduziu alterações de onde decorra diferente solução. Acrescente-se que, também no caso em apreço, não decorre da matéria de facto provada qualquer facto que impusesse concluir no sentido de que as condições de alojamento atribuídas ao A. tenham agravado o risco genérico que impende sobre a generalidade das pessoas quando procedem à sua higiene pessoal, sendo manifestamente insuficiente o argumento do Recorrente de que, porque não se encontrava na sua residência, não estava na sua “zona de conforto”, mas sim em local com diferente luminosidade, localização de “cómodos”, pavimento e que isso seria potenciador de um risco acrescido. Desde logo, não se nos afigura que tal consubstancie, em abstracto, um risco acrescido e, muito menos, que no caso concreto consubstancie tal risco (nada se provou quanto ao alegado) e que isso tenha sido causa do acidente. (…)
Finalmente, quanto à invocação pelo Recorrente de jurisprudência mais recente, cumpre reafirmar que a jurisprudência citada na sentença recorrida mantêm actualidade, a qual sufragamos, para além de que a que é invocada pelo Recorrente (Acórdãos da Relação de Lisboa de 14.06.2017 e da Relação de Coimbra de 16.12.2015) tem por objecto situação de facto diferente da dos presentes autos e na qual este não se subsume. E o acórdão da Relação de Lisboa de 24.10.2007 mencionado no douto Parecer da Exmª Srª Procuradora Geral Adjunta foi revogado pelo já mencionado Acórdão do STJ de 02.04.2008.»

Concordamos com o entendimento sufragado no Acórdão antes citado, sendo que, aplicado ao caso, a solução a que chegamos no presente recurso coincide com aquela a que se chegou na sentença recorrida.
Na verdade, com recurso ao entendimento antes enunciado afirmado no referido Acórdão, diremos também, acompanhando o mesmo Aresto, que, não sendo em princípio qualificável como acidente de trabalho o evento verificado durante a execução de um serviço determinado pelo empregador mas emergente de ato da vida privada e corrente do trabalhador, em que este tenha recuperado a sua independência em relação à missão profissional, no caso que se decide, em face do acervo factual dado como provado, impõe-se concluir que não estão reunidos os pressupostos para que se possa qualificar o sinistro dos autos como um acidente de trabalho, uma vez que o mesmo não ocorreu no local do trabalho, nem no tempo de trabalho, revelando-se antes como um acontecimento pertinente à vida privada do Sinistrado / aqui recorrente (higiene pessoal), estranho à execução da missão profissional e ocorrido quando atuava com total independência relativamente à empregadora. Melhor concretizando, o evento ocorreu no interior da casa de banho do quarto do hotel onde aquele se encontrava hospedado – “ao sair da banheira do hotel onde se encontrava, escorregou e caiu desamparado” – e, portanto, em local que não se pode considerar como de trabalho – elemento espacial –, sendo que, naquelas circunstâncias, não se provou que que estivesse sujeito ao controlo, direto ou indireto, da empregadora, ou que estivesse ocorrido em momento inserido no tempo de trabalho – elemento temporal e, por último, sequer se provou que as concretas condições de alojamento tivessem agravado o risco genérico que impende sobre a generalidade das pessoas quando procedem à sua higiene pessoal.
Termos em que, claudicando os argumentos invocados nas conclusões, improcede também o recurso na vertente da aplicação do direito.

Decaindo, o Apelante é responsável pelas custas (artigo 527.º do CPC).
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Sumário – a que alude o artigo 663º, nº 7, do CPC:
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IV. Decisão:
Pelo exposto, acorda-se em julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelo Recorrente.

Porto, 18 de outubro de 2021
(acórdão assinado digitalmente).
Nelson Fernandes
Rita Romeira
Teresa Sá Lopes
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[1] Com exclusão de notas de rodapé.
[2] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 1985, pág. 387
[3] In Comentário ao Código de Processo Civil, II, pág. 507
[4] No mesmo sentido, com idêntica relevância, Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 183) quando escreveu: “Mas se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho) que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão, em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”.
Ainda:
- Antunes Varela (in Manual de Processo Civil, 1985, pág. 393), referindo que “Se, entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”;
- Anselmo de Castro (in Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, pág. 134): “Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora, o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (art.º 677.º, n.º 1), por força do princípio legal de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional (art.º 666.º)”. Porém, depois de algumas reticências relativamente à aplicação do disposto no art.º 666.º a todas as decisões, acrescentou que aquela construção “não tem sequer sentido quanto àquelas nulidades de que o juiz não pode conhecer oficiosamente (todas as nulidades secundárias e as principais a partir do saneador”. Veja-se, o Ac. desta Relação e Secção de 10 de Outubro de 2016, Relator Desembargador Jerónimo Freitas, in www.dgsi.pt.
[5] Que igualmente procede à remissão para as respectivas disposições legais: a ineptidão da petição inicial (art.º 186.º e 187º); a falta de citação, seja do réu seja do Ministério Público, quando deva intervir como parte principal (art.º 188.º); a preterição de formalidades essenciais à citação (art.º 191.º); o erro na forma de processo (art.º 193.º); e, a falta de vista ou exame do Ministério Público, quando a lei exija a sua intervenção como parte acessória (art.º 194º).
[6] Nas palavras de Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (in Manual de Processo Civil, 1985, pág. 391), “Serão relevantes, segundo o critério estabelecido, quando a lei especialmente o declare ou quando possam influir no exame ou na decisão da causa”
[7] art.ºs 196.º e 197.º n.º1, do CPC
[8] Que igualmente procede à remissão para as respectivas disposições legais: a ineptidão da petição inicial (art.º 186.º e 187º); a falta de citação, seja do réu seja do Ministério Público, quando deva intervir como parte principal (art.º 188.º); a preterição de formalidades essenciais à citação (art.º 191.º); o erro na forma de processo (art.º 193.º); e, a falta de vista ou exame do Ministério Público, quando a lei exija a sua intervenção como parte acessória (art.º 194º)
[9] em “Introdução ao Processo Civil, 3.ª edição, p. 196
[10] cf. neste sentido o Ac. STJ de 24/09/2013, in www.dgsi.pt
[11] cf. Ac. STJ de 28 de Maio de 2009, in www.dgsi.pt
[12] Relator Conselheiro Pedro de Lima Gonçalves, in www.dgsi.pt.
[13] Ainda, entre outros, Ac. STJ de 7 de fevereiro de 2008, Relator Conselheiro Urbano Dias, também em , nos termos seguintes:
“(…) Há que não confundir factos constitutivos do direito, sejam eles positivos ou negativos, cuja prova incumbe à parte que invoca o direito, seja por acção ou reconvenção, com as regras próprias do ónus probatório relativas às acções de simples apreciação negativa (cfr. arts. 342º e 343º do CPC).
Não é pelo facto de estarmos perante um “facto negativo” que se inverte o ónus da prova nem tão-pouco pela dificuldade que isso naturalmente representa. (…)”.
[14] Esclarecendo-se que esta Secção, assim sobre essa fase de liquidação, se pronunciou, de entre outros, no Acórdão de 23 de novembro de 2020, relatado pelo aqui também relator e com intervenção da aqui 2.ª Adjunta – processo 437/11.0TTOAZ.1.P3 –, constando do respetivo sumário: “Destinando-se o incidente de liquidação de sentença a obter a concretização do objecto de condenação da decisão proferida na acção declarativa, dentro dos limites daquela condenação, quando a prova produzida pelos litigantes se mostre insuficiente para fixar a quantia devida, a lei impõe ao juiz, no n.º 4 do art.º 360.º CPC, um especial dever de a procurar completar, “mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial”.”
[15] Cf. Acórdão da Relação de Guimarães de 23 de maio de 2019, Relatora Desembargadora Conceição Sampaio, in www.dgsi.pt.
[16] Cfr. Ac. STRJ de 31 de outubro de 2018, Relator Conselheiro António Leones Dantas, in www.dgsi.pt.
[17] cfr. Pedido e Causa de Pedir no Processo de Trabalho, in Curso de Direito Processual do Trabalho, suplemento da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1964, p. 132
[18] Princípios Gerais de Direito Processual do Trabalho, in Curso de Direito Processual do Trabalho, suplemento da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1964, p. 48
[19] Código e Processo Anotado, 4ª ed., 1996, a pág. 353
[20] Direito Processual Civil, 13ª edição, Almedina, p. 305
[21] Ainda, atenta a remissão feita pelo citado n.º 1, importará atender ao disposto no artigo 5.º, do CPC, onde se dispõe, no que aqui releva, o seguinte:
“1. Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocada.
2. Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções. (…)”.
[22] Relatora Desembargadora Paula Leal de Carvalho, in www.dgsi.pt.
[23] Que igualmente procede à remissão para as respectivas disposições legais: a ineptidão da petição inicial (art.º 186.º e 187º); a falta de citação, seja do réu seja do Ministério Público, quando deva intervir como parte principal (art.º 188.º); a preterição de formalidades essenciais à citação (art.º 191.º); o erro na forma de processo (art.º 193.º); e, a falta de vista ou exame do Ministério Público, quando a lei exija a sua intervenção como parte acessória (art.º 194º).