Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
417/16.9T9MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: HOMICÍDIO INVOLUNTÁRIO
TEORIA DA ADEQUAÇÃO
INCREMENTO DO RISCO
Nº do Documento: RP20200714417/16.9T9MAI.P1
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: MAIORIA COM 1 DECLARAÇÃO DE VOTO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No domínio dos acidentes resultantes da circulação rodoviária levantam-se específicos problemas de imputação, relativamente aos quais a teoria da adequação se revela por vezes insatisfatória sendo, por isso, necessário complementá-la ou corrigi-la, em certa medida, com a denominada por Stratenwerth “conexão ou relação de risco”, podendo assim afirmar-se que “o resultado só deve ser imputável à acção quando esta tenha criado (ou aumentado, ou incrementado) um risco proibido para o bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito e esse risco se tenha materializado no resultado típico”.
II - Aquilo que seria um problema para a teoria da adequação, quando estritamente aplicada no domínio dos acidentes rodoviários, em caso de concorrência de culpa do lesado, deixa de o ser no âmbito da teoria da criação ou potenciação de um risco não permitido, pois à sua luz, o que importa fundamentalmente apurar é se a conduta do agente, por um lado, criou ou potenciou no processo causal um risco que se materializou no resultado típico, e por outro se a intervenção da vítima no processo causal teve ou não o efeito de o interromper, ou fazer cessar esse nexo causal e assim também a imputação daquele resultado ao agente.
III – Se a intervenção da vítima for previsível pelo agente e a conduta deste tiver agravado ou potenciado o risco para o bem jurídico violado, em termos tais que tal agravamento ou potenciação do risco se concretizou no resultado típico, segundo um juízo “ex ante” (ou de prognose póstuma), de molde a poder afirmar-se que aquele resultado, nas circunstâncias em que o agente agiu, era concretamente possível e previsível, ou, usando as palavras de Stratenwerth, “que o agente – comprovadamente! – frustrou as medidas que teriam afastado, com uma certa probabilidade, sob certas circunstâncias mesmo mensurável, o resultado jurídico-penalmente relevante”, o agente deverá ser punido jurídico-criminalmente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 417/16.9T9MAI.P1 - 4.ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO
1.1 Após realização da audiência de julgamento, no Processo nº417/16.9T9MAI, que correu termos no Juízo Local Criminal da Maia, Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por sentença de 19/11/2019, foi decidido o seguinte:
“A) Na parte crime:
Julgar a acusação pública parcialmente procedente e, em consequência:
I - Absolver o arguido B… da prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, agravado pelo resultado morte, p. e p. pelos art.º 291º, nº 1, e 285º [este ex vi art.º 294º, nº 3, al. a)], todos do C. Penal, por que vinha acusado.
II - Condenar o arguido B… pela prática de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art.º 137º, nº 2, do C. Penal, em concurso aparente com o crime de condução perigosa e veículo rodoviário, agravado pelo resultado, p. e p. pelos art.ºs 291º, nº 1, e 285º [este ex vi art.º 294º, nº 3, al. a)], todos do C. Penal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, a ser executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, com autorização para sair para realização da sua atividade profissional, no período compreendido entre as 9,00 horas e as 20,00 horas, de segunda a sexta feira e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 1 (um) ano e 2 (dois) meses, nos termos do art.º 69º, nº 1, al. a), do C. Penal.
Para efeitos de execução fixa-se como habitação a residência da mãe e irmã do arguido, sita na Rua …, … – …, …. - … Maia.
III - Condenar o arguido B… pela prática de uma contraordenação muito grave, p. e p. pelo art.º 81º, nºs. 1, 2 e 6, al. b), do C. Estrada, na sanção de inibição de conduzir pelo período de 2 (dois) meses.
IV - Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.
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B) Na parte cível:
I - Do pedido de indemnização civil formulado por C…, D… e E…:
Julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes C…, D… e E… e, em conformidade, condenar-se a demandada "F…, S.A." no pagamento das seguintes indemnizações:
- €52.000,00 (cinquenta e dois mil euros) pela violação do direito à vida;
- €20.000,00 (vinte mil euros) pelos danos morais causados à demandante C…;
- €32.000,00 (trinta e dois mil euros) pelos danos morais causados aos demandantes E… e D…, sendo €16.000,00 (dezasseis mil euros) para cada um;
tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a citação até efetivo e integral pagamento, absolvendo-se a demandada do mais peticionado.
Condenam-se os demandantes e a demandada no pagamento das custas, na proporção de 64 % (sessenta e quatro por cento) e 36 % (trinta e seis por cento), respetivamente.
II - Do pedido de indemnização civil formulado pelo Instituto da Segurança Social, I.P.
Julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante "Instituto da Segurança Social, I.P." e, em conformidade, condena-se a demandada "F…, S.A." no pagamento de uma indemnização de €11.777,20 (onze mil e setecentos e setenta e sete euros), a título de subsídio por morte e pensões de sobrevivência pagas até Julho de 2019, bem como de 80% (oitenta por cento) do valor das pensões que desde aquela data vier a pagar, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral e efetivo pagamento.
Condena-se a demandante e a demandada no pagamento das custas, na proporção de 20 % (vinte por cento) e de 80 % (oitenta por cento), respetivamente.”
1.2. Não se conformando com tal decisão, dela interpuseram recurso o arguido B…, a demandada cível F…, S.A., e, subordinadamente, os demandantes cíveis D…, E… e C…, apresentando motivações que terminam com as seguintes conclusões (…):
1.3. O Ministério Público respondeu aos recursos interpostos pelo arguido e pela demandada cível, quanto a esta na parte relevante para a decisão de mérito sobre a responsabilidade criminal do primeiro, concluindo pela sua improcedência.
1.4. Respondeu, por seu turno, a demandada cível, ao recurso interposto pelo arguido, concordando no essencial com o ali alegado, e concluindo como nas alegações por si apresentadas enquanto recorrente, assim como ao recurso subordinado interposto pelos demandantes cíveis, concluindo pela sua improcedência.
1.5. O Sr. Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal, emitiu parecer, relativamente ao recurso interposto pelo arguido, concluindo pela sua improcedência.
1.6. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
1.7. Tendo em conta os fundamentos dos recursos interpostos e os poderes de cognição deste Tribunal, importa apreciar e decidir as seguintes questões:
1.7.1. Impugnação da decisão de facto;
1.7.2. Responsabilidade criminal e civil do arguido e a concreta relevância do comportamento da vítima na ocorrência do acidente
1.7.3. Determinação da medida da pena de prisão e da sanção de inibição de conduzir e possibilidade de substituição da pena de prisão pela suspensão da sua execução;
1.7.4. Do valor da indemnização pelos danos causados com o acidente;
1.7.5. Nulidade da sentença, na parte em que nela se condenou para além do pedido.
2.1. Factos a considerar
2.1.1. O Tribunal a quo considerou provada a factualidade:
“1. No dia 23 de dezembro de 2015, pelas 23h34m, o arguido detinha a condução efetiva do veículo ligeiro de passageiros, de marca e modelo Audi …, de cor cinza e de matrícula .. – HB - .. e circulava no sentido Norte/Sul, na Rua …, em …, Maia, transportando, como passageira, no banco da frente do lado direito, a sua companheira;
2. O arguido seguia a uma velocidade entre 42 km/h e 50 Km/h;
3. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o peão G… atravessava a Rua …, fora da passadeira, no sentido Oeste/Este;
4. G… circulava a uma velocidade entre os 3 Km/h e os 9 Km/h e o seu canídeo circulava atrás de si;
5. O arguido, quando se apercebeu que G… estava a efetuar a travessia, juntamente com o seu canídeo, da direita para a esquerda, relativamente ao seu sentido de marcha, reagiu guinando o veículo que conduzia para a sua esquerda;
6. Não obstante, o arguido não conseguiu evitar que o seu veículo embatesse, com a parte frontal, na vítima e no seu canídeo, junto ao prédio nº .., da Rua …;
7. G… foi colhido já na via esquerda e o canídeo, que seguia atrás do peão, foi colhido no eixo da faixa de rodagem;
8. Depois do embate, o arguido imobilizou o seu veículo do lado esquerdo da faixa de rodagem, na via de trânsito destinada aos veículos que circulam em sentido oposto, com a frente voltada para sul;
9. A Rua …, local onde ocorreu o atropelamento, é uma reta em patamar, com uma via de trânsito em cada sentido, sem separador central, ladeada por passeio de ambos os lados;
10. Após o local de acidente existe uma curva acentuada à direita, com desnível descendente, tendo em conta o sentido de circulação do veículo ligeiro, terminando essa artéria numa rotunda;
11. No local existe uma passadeira destinada à travessia de peões, que está colocada antes da rotunda e dista do local de atropelamento cerca 42,30 metros;
12. O pavimento é betuminoso, em bom estado de conservação e manutenção;
13. No sentido Oeste/Este existe uma placa de sinalização vertical que indica passagem de peões (sinal H7);
14. No pavimento existem marcas longitudinais, linha descontínua (M2)
15. A velocidade máxima permitida no local, à data, era de 50 Km/h;
16. A artéria onde ocorreu o atropelamento é de boa visibilidade em toda a sua extensão e largura, sem obstáculos naturais;
17. À data, estava chuva e a superfície molhada;
18. O arguido foi submetido a teste de álcool quantitativo, através do ar expirado, acusando uma TAS de 1,47 g/l, tendo requerido contraprova, que acusou a TAS de 1,24 g/l que corresponde à TAS de 1,14 g/l, deduzido o erro máximo admissível;
19. Devido à influência do álcool o arguido tinha a sua capacidade de condução do veículo limitada, a reação do arguido, ao deparar-se com um peão na via, foi mais lenta do que aquela que teria tido caso não tivesse ingerido bebidas alcoólicas;
20. O arguido desviou o veículo que conduzia para a esquerda, quando a reação correta que devia ter tido, se não tivesse sob a influência do álcool, teria sido primeiro travar e, depois, eventualmente desviar-se para a esquerda;
21. Se o arguido tivesse reagido mais cedo e travado, mesmo que não tivesse evitado o impacto, teria reduzido a sua velocidade, com a correspondente diminuição das lesões do peão e do seu risco de morte;
22. G… foi assistido no local por uma ambulância do INEM e, a seguir, foi transportado para o Hospital H…, no Porto, em estado grave, tendo vindo a falecer no dia 31 de dezembro de 2015, pelas 02h55m;
23. Do acidente ocorrido resultou o falecimento de G…, bem como a morte do seu canídeo, que também foi atropelado pelo veículo conduzido pelo arguido e que estava junto à roda anterior direita;
24. Em virtude do acidente de que foi vítima, G… sofreu as seguintes lesões, que foram causa direta, necessária e adequada da sua morte:
NO HÁBITO EXTERNO:
- Cabeça: equimose arroxeada periorbitária bilateral. Equimose arroxeada na região préauricular esquerda, com 3 por 2,5 cm de maiores dimensões.
Três áreas suturadas: uma na transição frontoparietal esquerda, com 3 pontos de sutura numa área com 3 cm de comprimento; uma na região infrapalpebral direita, com 2 pontos de sutura sobre escoriação apergaminhada e amarelada, adjacente a dois focos milimétricos de escoriação na região ciliar, com 3 por 2 cm de maiores dimensões; e outros 2 pontos de sutura na concha do pavilhão auricular esquerdo.
Quatro áreas escoriadas: uma coberta por penso na região frontal direita, com fundo amarelado e 2,5 por 1,5 cm de maiores dimensões; uma na região supraciliar direita, apergaminhada, com 2 por 1 cm de maiores dimensões; uma na região frontal esquerda, com fina crosta hemática acastanhada, e 4,5 por 3,5 cm de maiores dimensões; uma na raiz da pirâmide nasal, apergaminhada e amarelada, com 1 por 0,5 cm de maiores dimensões.
Uma solução de continuidade linear, de bordos lisos, coaptáveis e infiltrados de sangue, não suturada, na região frontoparietal à direita, de comprimento peri centimétrico. Otorragia à esquerda. Hemorragia subconjuntival bilateral, mais evidente nas regiões dos fundos-desacos palpebrais. Palidez cutânea e da mucosa oral. Crepitação palpável na região zigomática esquerda.
- Tórax: Múltiplos sinais de picada, infiltrados de sangue, na região subclavicular esquerda, compatíveis com procedimentos terapêuticos. Uma área de quatro escoriações com fundo húmido e amarelado na face posterior do terço inferior do hemitórax direito, com 5,5 por 2,5 cm de maiores dimensões.
- Área Ano-Genital: Ligeiro edema escrotal. Penso na região sagrada, cobrindo área ulcerada com fundo de aspeto hemorrágico no sulco internadegueiro, com 2,5 por 1,5 cm de maiores dimensões, e várias equimoses arroxeadas peri centimétricas no quadrante superomedial da nádega direita, numa área com 7 por 3 cm de maiores dimensões. Sem outras lesões traumáticas aparentes.
- Membro superior direito: Três escoriações: uma na região da tabaqueira anatómica com 1,5 cm de diâmetro e halo equimótico, outra sobre a falange média do 2.° dedo com 1 cm de diâmetro e outra sobre a articulação metacarpofalângica do 2.° dedo de diâmetro infra centimétrico. Penso sobre o 1.° dedo, cobrindo área escoriada, sem crosta hemática, na extremidade da polpa do mesmo dedo, com diâmetro peri centimétrico.
Vários sinais de picada, infiltrados de sangue, compatíveis com procedimentos terapêuticos: um na face anterior do cotovelo e vários na face anterior do punho (cobertos por penso). Edema moderado do membro, mais evidente na extremidade distal. Sem mobilidade anormal do membro ou outras lesões aparentes.
- Membro superior esquerdo: Várias equimoses arroxeadas: uma entre as faces superior e posterior do ombro até à face lateral do terço médio do braço, com 30 por 11,5 cm de maiores dimensões; duas na face medial do braço, uma no seu terço proximal com 7 por 4 cm de maiores dimensões e outra no seu terço distai com 1,5 por 1 cm de maiores dimensões.
Equimose esverdeada ténue, difusa, no dorso da mão. Duas escoriações com crosta hemática: uma no dorso da mão entre as 3.a e 4.a articulações metacarpofalângicas, de comprimento peri centimétrico, e outra na metade cubital da falange proximal do 5.° dedo, com 1 por 0,5 cm de maiores dimensões.
Um sinal de picada, infiltrado de sangue, compatível com procedimentos terapêuticos, na face anterior do cotovelo. Edema moderado do membro, mais evidente na extremidade distai. Sem mobilidade anormal do membro ou outras lesões aparentes.
- Membro inferior direito: Várias equimoses arroxeadas: uma na face posterior dos dois terços distais da coxa, com 19 por 12 cm de maiores dimensões; duas no joelho, uma na sua face anterior com 10 por 3 cm de maiores dimensões e outra na sua face medial com 6,5 por 4 cm de maiores dimensões. Cinco escoriações punctiformes, com crosta hemática, na face anterior do terço médio da perna. Edema moderado do membro, mais evidente na extremidade distai. Sem mobilidade anormal do membro ou outras lesões aparentes.
- Membro inferior esquerdo: Várias equimoses arroxeadas ténues, de limites mal definidos, na face lateral da anca e coxa, a menor com 3 cm de diâmetro e a maior com 6 cm de diâmetro. Uma escoriação com fundo apergaminhado amarelado na face lateral do terço proximal da perna, com 1 cm de diâmetro. Penso transparente na face lateral do tornozelo, com os dizeres "30/12 hidrogel", cobrindo úlcera de fundo acastanhado com 1,5 cm de diâmetro sobre o maléolo lateral e equimose arroxeada circundante com 11 por 10 cm de maiores dimensões.
Cobertos por penso, vários sinais de picada, infiltrados de sangue, compatíveis com procedimentos terapêuticos, na região inguinal. Edema moderado do membro, mais evidente na extremidade distai.Sem mobilidade anormal do membro ou outras lesões aparentes.
NO HÁBITO INTERNO
- Cabeça:
- Partes moles: infiltração sanguínea difusa da face interna do couro cabeludo e de ambos os músculos temporais, principalmente à esquerda. Uma solução de continuidade circular na metade anterior da região parietal direita, com diâmetro milimétrico, compatível com sensor de monotorização de pressão intracraniana.
- Ossos da cabeça (abóbada): vários traços de fratura, infiltrados de sangue, entre os ossos frontal e temporal do lado esquerdo, o maior deles com 20 cm de comprimento total, numa área com 9 por 8 cm de maiores dimensões; um outro traço de fratura infiltrado de sangue no temporal direito, com 9 cm de comprimento. Uma solução de continuidade circular na metade anterior do parietal direito, com diâmetro milimétrico, compatível com sensor de monitorização de pressão intracraniana.
- Ossos da cabeça (base): fratura cominutiva do andar anterior em toda a sua extensão, com traços infiltrados de sangue e com orientação sensivelmente coronal; traços de fratura, infiltrados de sangue, bilaterais, no andar médio; traço de fratura infiltrado de sangue adjacente ao buraco magno à esquerda.
- Meninges: hematoma aplanamento dos sulcos e achatamento das circunvoluções cerebrais, de aspeto compatível com edema, discreta impressão semicircunferencial sobre as amígdalas cerebelosas, compatível com hipertensão intracraniana.
Múltiplos focos de contusão bilaterais, mais evidentes nas faces laterias e base de ambos os lobos temporais e na base dos lobos frontais (principalmente à esquerda).
Ao corte, hemorragia intraparenquimatosa no tronco cerebral (hemorragia de Duret), uma área de amolecimento de substância branca no lobo occipital esquerdo, compatível com lesão isquémica recente; restante parênquima congestivo, sem outras lesões aparentes. Liquor límpido, não hemorrágico.
- Tórax:
- Paredes: infiltração sanguínea no tecido celular subcutâneo e músculos intercostais adjacentes às fraturas costais descritas.
- Clavícula, cartilagens e costelas esquerdas: fratura transversal, infiltrada de sangue, do arco anterior da 1a costela, dos arcos laterais das 3as e 4as costelas e dos arcos posteriores da 1a à 5a costelas.
- Coluna vertebral e medula:
- Vértebras e estruturas articulares: infiltração sanguínea dos tecidos moles para vertebrais anteriores no terço médio do segmento cervical, sem fraturas ou outras lesões aparentes.
A morte de G… foi devida a sépsis nosocomial e broncopneumonia bilateral, em contexto de internamento hospitalar motivado por politraumatismo com lesões traumáticas craniomeningoencefálicas graves;
25. Estas, bem como as lesões traumáticas resultaram de traumatismo de natureza contundente, que teve lugar com o atropelamento de que foi vítima;
26. Entre o evento e o óbito decorreram 7 dias, período durante o qual G… permaneceu internado no Hospital H…;
27. O arguido sabia que devia conduzir com toda a atenção, cuidado e perícia, por forma a executar, em condições de segurança, as manobras cuja necessidade fosse de prever, nomeadamente de tentar imobilizar o veículo e desviar-se de peões e de outros obstáculos que aparecessem na via;
28. Mais sabia o arguido que não devia conduzir após ter ingerido bebidas alcoólicas e que a quantidade de álcool que tinha ingerido tinha diminuído a sua destreza na condução, afetando o seu sentido de orientação e de coordenação motora, retardando os seus reflexos, facto que foi determinante para a produção do acidente;
29. O arguido colocou-se voluntariamente naquelas condições e assumiu a condução do referido veículo de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade excessiva e que, em tais condições, não lhe era permitido conduzir veículos na via pública, tendo ainda conhecimento das consequências legais da sua conduta;
30. Com a referida conduta o arguido sabia que criava perigo para a vida e integridade física de outrem, nomeadamente da companheira que seguia ao seu lado e dos peões que seguiam na via àquela hora, conformando-se com a sua ocorrência;
31. Não obstante, o arguido conduzia da forma descrita, motivo pelo qual não reagiu como podia e devia ao deparar-se com G… e com o seu canídeo a atravessar a via, não tendo reagido com a manobra adequada, originando o embate, com velocidade, do veículo em G… e seu animal, bem como a morte destes;
32. Contudo, o arguido não representou a possibilidade de com a sua conduta vir a provocar as referidas lesões no corpo de G… e, consequentemente, a sua morte;
33. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;
34. G… nasceu a 09.10.1953;
35. G… e a demandante C… casaram-se, um com o outro, a 14 de janeiro de 1973;
36. G… e a demandante C… tiveram dois filhos, os demandantes D… e E…, que nasceram, respetivamente, no dia 7 de março de 1974 e no dia 1 de julho de 1980;
37. No momento do acidente era inexistente outro tráfego automóvel e de peões;
38. A cadela, de nome I…, tinha mais de 8 anos de idade e estava habituada a sair à rua;
39. Após o acidente, a cadela ficou entalada na roda direita da frente do HB, tendo sido necessário levantar o veículo com auxílio de macaco mecânico para a retirar de tal sítio;
40. G… era uma pessoa saudável, não tendo doenças ou lesões incapacitantes, sofrendo apenas de algumas dores nos joelhos, sobretudo no direito, ao qual já havia sido operado;
41. G… era uma pessoa feliz, dedicada à família e mantinha uma oficina, sita na Rua …, …, …, sita a cerca de 500 metros da sua residência, ali realizando alguns trabalhos de reparação e pintura de veículos automóveis;
42. Em consequência do traumatismo craneo-encefálico grave que G… sofreu, o mesmo ficou num estado de inconsciência total, do qual não mais despertou;
43. Quando foi admitido no hospital, G… estava inconsciente, avaliando-se o seu estado num grau de inconsciência 3 na Escala de Glasgow, tendo depois sido sujeito a sedação profunda;
44. Durante o seu internamento, após a realização de TAC e de ressonância, suspendeu-se a sedação de G…, tendo o mesmo ficado em estado de coma não reativo;
45. O casamento manteve-se até ao falecimento de G…, tendo este e a demandante C… uma relação de companheirismo e sem discussões violentas;
46. A morte de G… causou à demandante C… sofrimento, tristeza e revolta, que até hoje se mantêm, tornando-a numa pessoa triste e apagada;
47. A demandante C… sente permanentemente ansiedade e angústia com a recordação do dia do acidente;
48. Antes do falecimento de G…, a demandante C… padecia, de vez em quando, de depressões, tendo piorado após a morte de G…, passando a ser necessária a toma diária de medicação;
49. O demandante E… vivia com G…, com quem tomava as refeições, passeando com ele e nele encontrando um apoio e confidente;
50. Os demandantes D… e E… tinham uma forte ligação afetiva, de amparo e de carinho com a vítima G…;
51. Estes demandantes, com o falecimento do seu pai, sentiram e continuam a sentir tristeza e saudade;
52. O "Instituto da Segurança Social, IP.'7Caixa Nacional de Pensões pagou, a título de subsídio por morte de G…, beneficiário n.° ……….., a C… o montante de €1.257,66;
53. Desde janeiro de 2016 que o Instituto da Segurança Social, IP., tem pago a C…, a título de pensão de sobrevivência, mensalmente o valor de €267,07, com inclusão do 13.° e 14.° mês;
54. Entre a demandada "F…, S.A.", como seguradora e J…, como tomadora e segurada, foi celebrado um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice número ..........., em que o objeto seguro é o veículo automóvel .. – HB - .., transferindo a responsabilidade civil em relação a terceiros decorrente da circulação desse veículo;
55. A Rua … tinha uma largura de 5,60 metros;
56. Ao longo do traçado em reta dessa via, existia na sua margem direita, atento o sentido Norte-Sul, uma zona destinada ao parqueamento de veículos, pavimentada com paralelepípedos de granito;
57. Nesse espaço o parqueamento de viaturas era efetuado de forma longitudinal e paralela ao eixo da via;
58. A dita zona de estacionamento terminava, no seu topo Sul, no local onde se iniciava a curva à direita;
59. Essa curva inicia-se sensivelmente junto da habitação com o número de porta 60 dessa via;
60. A dita curva desenhava um ângulo próximo ao de 90°;
61. Nas apontadas circunstâncias de tempo e lugar, esses lugares de estacionamento encontravam-se totalmente preenchidos por veículos automóveis, os quais estavam parados, de forma alinhada e seguida, até à curva já mencionada, existindo mesmo um carro parado já depois do termo da zona de estacionamento, na zona pavimentada com paralelepípedos, alinhado com os demais;
62. Nas apontadas circunstâncias de tempo e lugar era noite escura, encontrando-se o céu encoberto por nuvens;
63. No local existia uma passadeira para peões, situada a cerca de 35 metros para Sul do início da curva à direita já referida;
64. Essa passadeira correspondia à marca Mil do RST do Código da Estrada, consistindo em barras longitudinais paralelas ao eixo da via pintadas no seu pavimento, alternadas por intervalos regulares;
65. Momentos antes, o peão G… encontrava-se no passeio direito da Rua …, considerando o sentido Norte-Sul;
66. G… encontrava-se a passear um animal de raça canina;
67. G… residia na habitação com o número de polícia 60 da Rua …, a qual se situava na margem esquerda daquela via, atento o sentido Norte-Sul;
68. A dado passo, G… e o animal que o acompanhava, iniciaram o atravessamento da Rua …, em direção à sua casa;
69. G… e o animal avançaram rumo à faixa de rodagem da via, ocupando a respetiva metade direita, atento o sentido Norte-Sul e atravessando-a da esquerda para a direita, atento o mesmo sentido de marcha;
70. G… e o animal iniciaram o atravessamento provindos do espaço existente imediatamente à frente do último carro que estava estacionado na margem direita da via, atento o sentido Norte-Sul, já depois do fim da zona de estacionamento devidamente delimitada com pavimento em paralelepípedos de granito;
71. A escadaria e o termo Sul da zona de estacionamento estavam alinhados com a entrada da habitação de G…;
72. A travessia foi iniciada e realizada fora da passadeira destinada ao trânsito de peões, que existia no local;
73. G… iniciou e realizou o atravessamento da via a uma distância de cerca de 40 metros antes dessa passadeira, atento o sentido Norte-Sul;
74. G… sabia que, a menos de 50 metros do local onde iniciou e realizou o atravessamento da estrada, existia uma passadeira destinada à travessia da Rua … por peões;
75. No local onde G… iniciou o atravessamento da via dispunha de visibilidade para a sua esquerda, ou seja, para Norte, numa extensão de, pelo menos, 100 metros;
76. Essa colisão ocorreu junto ao eixo da via, já na metade esquerda da via, atento o sentido de marcha do HB;
77. A colisão com o peão ocorreu na parte dianteira, a meio do capot do HB, tendo o G…, de seguida, embatido no para-brisas dianteiro daquele carro, já numa zona situada mais à esquerda deste;
78. O HB parou logo após o embate;
79. Em consequência do impacto do corpo do G… no para-brisas dianteiro do veículo, este ficou estilhaçado, sobretudo na sua parte situada à frente do lugar do condutor, impedindo a visibilidade deste através desse vidro;
80. Logo depois da colisão e imobilização do HB, o arguido saiu do carro e encaminhou-se rapidamente em direção ao G…, a fim de lhe prestar auxílio;
81. As lesões mergulharam o G…, logo no local do acidente e após a sua verificação, num estado de total e imediata inconsciência, do qual não voltou a despertar;
82. Logo no local do acidente, G… foi entubado e sedado;
83. Submetido a TAC craniana aquando da admissão hospitalar, foram contatadas várias e graves lesões cerebrais em G….
84. Desde o momento em que foi admitido na urgência do hospital até à sua morte, G… manteve-se em estado de coma não reativo;
85. Nem a suspensão da sedação que foi efetuada no decurso do internamento suscitou qualquer reação ou sinal de consciência em G…;
86. Mensalmente, a vítima G… e a demandante C… contavam com a reforma de ambos que totalizava cerca de €700,00, acrescida daquilo que G… recebia pelos trabalhos que realizava na sua oficina, mas cujo montante não se apurou;
87. A data do acidente, os filhos do casal exerciam atividades profissionais, auferindo os correspondentes rendimentos, de valor não concretamente apurado, mas superior ao salário mínimo nacional;
88. Era com aqueles rendimentos que cada um destes demandantes fazia face às suas próprias despesas de sustento, habitação e vestuário, não recebendo qualquer auxílio monetário do seu pai;
89. O arguido tem o 9º ano de escolaridade;
90. Deixou de estudar aos 17 anos, altura em que iniciou o consumo de drogas, tendo realizado um programa de desintoxicação, enquanto cumpriu uma das penas a que foi condenado, tendo logrado sucesso neste programa e se tornado mentor, pelo bom comportamento que demonstrou;
91. 0 arguido não tem problemas aditivos há vários anos;
92. Em 2013, o arguido criou a associação de apoio social «K…», da qual é presidente e que tem como objeto prestar apoio alimentar;
93. Vive com a mãe e a irmã mais nova numa urbanização social da Câmara Municipal L…;
94. A mãe do arguido aufere uma pensão mensal de sobrevivência no valor de €400,00, sendo que o arguido contribui mensalmente com €200,00 para as despesas;
95. O arguido aufere da sua atividade na "K…" cerca de €729 mensais;
96. O arguido tem uma namorada, com quem pensa viver em comunhão de habitação;
97. O arguido já foi condenado:
a) Processo sumário nº 1221/01.4PBMAI, do 4º Juízo do Tribunal Judicial da Maia, por decisão proferida a 18 de Dezembro de 2002, transitada em julgado a 24 de Janeiro de 2002, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 300$00, pela prática de um crime de burla e de um crime de desobediência cometidos a 10 de Dezembro de 2001, já extinta;
b) Processo comum n.° 192/01, do 4.° Juízo do Tribunal Judicial de Póvoa do Varzim, por decisão proferida a 22 de Janeiro de 2002, transitada em julgado a 21 de Dezembro de 2002, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de € 6,48, pela prática de um crime de burla cometido a 15 de Dezembro de 2000;
c) Processo comum n.° 1197/01.8PBAVR, do 3.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Aveiro, por decisão proferida a 3 de Dezembro de 2002, transitada em julgado a 18 de Dezembro de 2002, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de €5, pela prática de um crime de burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços, cometido a 1 de Junho de 2001, já extinta;
d) Processo comum n.° 1395/03.0PBMTS, do 2.° Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Matosinhos, por sentença proferida a 6 de Julho de 2004, transitada em julgado a 20 de Setembro de 2004, na pena de 180 dias de multa à taxa diária de €2, pela prática de um crime de falsificação de documento, cometido a 18 de Setembro de 2003, já extinta;
e) Processo comum n.° 1756/03,4PAVNG, da 2.a Vara Mista da Comarca de Vila Nova de Gaia, por acórdão proferido 22 de Abril de 2004, transitado em julgado a 1 de Junho de 2004, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, pela prática de um crime de furto qualificado, cometido a 22 de Setembro de 2003;
f) Processo comum n.° 138/03.28FRPRT, da 2.a Secção do 1.° Juízo Criminal do Porto, por sentença proferida a 10 de Novembro de 2004, transitada em julgado a 6 de Dezembro de 2004, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, pelo cometimento de um crime de furto qualificado, a 2 de Outubro de 2003;
g) Processo comum n.° 427/04.9PBVLG, do 3.° Juízo do Tribunal Judicial de Valongo, por decisão proferida a 15 de Março de 2005, transitada em julgado a 8 de Abril de 2005, na pena de 14 meses de prisão, pela prática de um crime de furto qualificado, a 3 de Maio de 2004;
h) Processo comum n.° 32/04.0PHPRT, da 1a Vara das Varas Criminais do Porto, por acórdão proferido 23 de Junho de 2005, transitado em julgado a 13 de Julho de 2005, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de violência depois da subtração, cometido a 6 de Fevereiro de 2004;
i) Processo comum n.° 622/03.8PTPRT, do 5.° Juízo do Tribunal Judicial da Maia, por sentença proferida a 30 de Março de 2005, transitada em julgado a 2 de Novembro de 2005, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, a 4 de Setembro de 2003;
j) Processo comum n.° 663/02.28MPRT, da 4.a Vara das Varas Criminais do Porto, por acórdão proferido a 25 de Maio de 2005, transitado em julgado a 9 de Dezembro de 2005, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão, pela prática de: vinte crimes de evasão, praticados a 3 de Junho de 2002; três crimes de roubo, praticados a 3 de Junho de 2002; quarenta e quatro crimes de furto qualificado, praticados a 3 de Junho de 2002;
1) Processo comum n.° 305/03.9PCMTS, do 4.° Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Matosinhos, por acórdão proferido a 23 de Janeiro de 2006, transitado em julgado a 7 de Fevereiro de 2006, na pena de 18 meses de prisão, pela prática de um crime de furto qualificado, a 2 de Maio de 2004, e de um crime de furto simples, a 22 de Maio de 2003;
m) Processo comum n.° 631/03.7PCGDM, do 1.° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Gondomar, por acórdão proferido a 14 de Março de 2006, transitado em julgado a 29 de Março de 2006, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, pela prática de: um crime de roubo, a 29 de Outubro de 2003; um crime de roubo, a 29 de Outubro de 2003; um crime de furto qualificado, a 7 de Março de 2004. No âmbito destes autos, foi realizado o cúmulo das penas aplicadas nos processos indicados em e) a m), tendo o arguido sido condenado, por acórdão proferido a 9 de Outubro de 2006, transitada em julgado a 10 de Abril de 2007, numa pena de 7 anos de prisão;
n) Processo comum n.° 1395/03.0PBMTS, do 2.° Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Matosinhos, por decisão proferida a 6 de Julho de 2004, transitada em julgado a 20 de Setembro de 2004, na pena de 180 dias de multa à taxa diária de €2, pela prática de um crime de falsificação de documento, cometido a 18 de Setembro de 2003, já extinta;
o) Processo comum n.° 198/04.9POPRT, da 2.a Vara das Varas Criminais do Porto, por decisão proferida a 21 de Abril de 2006, transitada em julgado a 8 de Maio de 2006, na pena de 10 meses de prisão, pela prática de um crime de furto simples, cometido a 13 de Abril de 2004;
p) Processo comum n.° 478/04.3T AM AI, do 3.° Juízo do Tribunal Judicial da Maia, por decisão proferida a 11 de Julho de 2006, transitada em julgado a 26 de Julho de 2006, na pena de 15 meses de prisão, pela prática de um crime de furto simples, a 30 de Outubro de 2003;
q) Processo comum n.° 16/04.8PQPRT, da 2.a Vara das Varas Criminais do Porto, por decisão proferida a 14 de Junho de 2007, transitada em julgado a 4 de Julho de 2007, na pena de 9 meses de prisão, pela prática de um crime de furto qualificado, praticado a 22 de Dezembro de 2003, já extinta.”
2.1.2. O mesmo Tribunal considerou não provada a seguinte factualidade:
“a. O embate em G… tenha sido com a parte frontal esquerda do veículo;
b. Atendendo ao sentido de marcha do veículo HB, a vítima G… e a sua cadela eram visíveis a mais de 100 metros de distância;
c. A cadela usava, no momento do acidente, um colete refletor, que fazia com que, com um mínimo de luz, o seu brilho fosse visível a dezenas de metros de distância;
d. G… apercebeu-se sentiu-se pânico e temor de morte ao aperceber-se da iminência do acidente;
e. Entre o momento em que foi colhido e a perda de consciência, sofreu enormes dores, devidas às múltiplas lesões que lhe foram infligidas, bem como medo, angústia e enorme tristeza por ter sentido a iminência da morte;
f. Os sentimentos de medo e angústia mantiveram-se até ao seu falecimento;
g. No dia do acidente, o arguido seguia pela metade direita da via;
h. Da oficina em que realizava trabalhos de pintura e consertos de automóveis, a vítima G… auferia, pelo menos, €1.000 mensais;
i. A vítima iria trabalhar até aos 70 anos;
j. O veículo HB seguia rigorosamente pela respetiva metade direita da via;
l. O arguido seguia a velocidade não superior a 35 Km/h;
m. Nas apontadas circunstâncias de tempo e lugar chovia com intensidade;
n. No local propiciavam-se muito deficientes condições de visibilidade;
o. Quando o arguido circulava pela indicada via, nas acima descritas circunstâncias, foi surpreendido pelo súbito surgimento de um cão e, logo de seguida, de um peão, os quais atravessaram a via, causando o acidente;
p. O animal pertencente a G… seguia à frente deste;
q. G… e o animal iniciaram e realizaram o atravessamento a correr,
r. Os veículos estacionados à direita, atento o sentido do HS, ocultaram o G… e o animal do arguido até ao momento em que aquele peão e animal despontaram dos limites laterais desses carros voltados para a via;
s. O atravessamento foi iniciado cerca de 3 metros depois do termo a Sul da zona de estacionamento existente no limite direito da via, atento o sentido Norte-Sul, e à mesma distância para Sul do local onde existia à direita do passeio direito da via uma escadaria;
t. G… iniciou e realizou o atravessamento da via de forma diagonal em relação ao eixo da Rua …, enviesando à sua esquerda;
u. O atravessamento foi iniciado e realizado imediatamente antes do local onde terminava o troço em reta da Rua … e a via passava a descrever uma curva à direita, atento o sentido Norte-Sul;
v. Antes de iniciar o atravessamento da via, o G… não tomou qualquer precaução;
x. Antes de iniciar o atravessamento da via, o G… não olhou para a sua esquerda, ou seja, para o lado Norte;
z. G… não se tentou aperceber do trânsito que se processava na via no sentido Norte-Sul;
aa. No momento em que o G…, na execução do atravessamento, despontou do limite lateral esquerdo dos veículos estacionados e ocupou a faixa de rodagem da Rua …, o HB encontrava-se já à curta distância de si de cerca de 15 metros;
bb. No momento em que, na execução do atravessamento, o G… despontou do limite lateral esquerdo dos veículos estacionados e ocupou a faixa de rodagem da Rua …, o HB era-lhe perfeitamente visível;
cc. Tal como lhe era visível antes mesmo de iniciar o atravessamento da estrada e enquanto se encontrava, ainda, no passeio direito da via, atento o sentido Norte-Sul;
dd. G…, bem como o seu animal, meteram-se, súbita e inopinadamente, à frente do HB, cuja linha de rumo cortaram;
ee. O arguido foi surpreendido pelo súbito surgimento, vindos da sua direita e a atravessarem a estrada, de um animal em corrida, logo seguido de um peão, também em corrida, ou passo rápido;
ff. Isto em local e circunstâncias nas quais se verificavam más condições de visibilidade;
gg. Vendo a sua linha de marcha subitamente cortada pelo G… e pelo animal, que se atravessaram à sua frente a uma distância de cerca de 15 metros, o condutor do HB travou;
hh. Com essa manobra visava o arguido desviar-se do inesperado obstáculo provindo da sua direita e evitar que o peão e animal fossem colhidos;
ii. Fruto dessa manobra de salvamento e também da escassa largura da via e do facto de tal desvio ter ocorrido praticamente no início da curva à direita que a via aí desenhava, o HB transpôs o eixo da via e ocupou a metade esquerda da estrada, atento o seu rumo;
jj. G… não parou ou interrompeu a sua marcha, antes tendo prosseguido em correria o atravessamento da via, tendo ocupando, também, a metade esquerda da via, atento o sentido do HB;
ll. Não obstante o desvio efetuado pelo condutor do HB, o G… porque não interrompeu o atravessamento da estrada, voltou a colocar-se na linha de marcha deste veículo, ocupando, desta feita, a hemi-faixa esquerda de rodagem, atento o sentido daquele carro, para a qual se desviara o arguido no sentido de evitar que o peão fosse colhido ainda na hem-faixa de rodagem direita;
mm. Por absoluta escassez de tempo e de espaço e também porque o G… prosseguiu, como se disse, em passo de corrida, o atravessamento da estrada, ocupando a metade esquerda da via para a qual se desviara o carro, não foi possível ao condutor do HB evitar que o peão e animal fossem colhidos;
nn. A colisão com o peão ocorreu na parte dianteira direita;
oo. O corpo do G… ficado prostrado na via cerca de 2 metros adiante;
pp. Com a ajuda de uma outra pessoa e porque o G… se encontrava deitado na faixa de rodagem, o arguido colocou o corpo desse peão no passeio esquerdo da via, atento o sentido Norte-Sul;
qq. De seguida, o arguido regressou ao HB e estacionou-o no limite esquerdo da via, atento o seu rumo;
rr. O HB foi estacionado pelo arguido na posição mencionada do "croquis" do auto de participação elaborado pela PSP, de forma praticamente alinhada com o passeio esquerdo, atento o sentido Norte-Sul.
ss. G… foi colhido do lado direito e caiu pelo lado esquerdo junto à berma do passeio, aí embatendo com a cabeça;
tt. Tenha havido, no hospital, uma evolução favorável do estado clínico de G….”
2.1.3. O Tribunal a quo motivou a decisão de facto nos seguintes termos: (,,,)
2.2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos
2.2.1. Da impugnação da decisão de facto (...)
2.2.2 Da responsabilidade criminal e civil do arguido e a concreta relevância do comportamento da vítima na ocorrência do acidente
A improcedência das impugnações da decisão de facto, relativamente à factualidade essencial dada como provada pelo Tribunal a quo, com base nas quais e na alteração da decisão de facto com elas pretendidas, o arguido, a demandada cível e os demandantes cíveis queriam ver alterada a responsabilidade do arguido na ocorrência do acidente dos autos, os primeiros visando a exclusão da sua responsabilidade e esta transferida exclusivamente para o peão e os últimos a quererem ver reconhecida a responsabilidade exclusiva do arguido, implica igualmente a improcedência de tais pretensões.
Em verdade, não se nos afigura possível a alteração da decisão recorrida, quando, no âmbito cível, considerou terem o arguido e o peão concorrido, respetivamente, em 80% e 20%, para a ocorrência do acidente. Assim como se nos afigura incólume a mesma decisão, no tocante à verificação positiva dos pressupostos objetivos e subjetivos do crime em causa, isto é, da autoria pelo arguido de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo art.º 137º, nº 2, do CP, e já que os fundamentos que especificadamente o arguido aduziu, nos termos e para os efeitos do art.º 412º, nºs 1 e 2, al. a) e b), do CPP, tendo em vista a alteração da decisão recorrida, não se lograram confirmar no caso dos autos.
A questão a colocar em termos estritamente penais é a de saber se o arguido deu ou não causa ao resultado morte, tendo em conta a factualidade dada como provada e a circunstância de, tal como o entendeu o Tribunal a quo, ter a própria vítima contribuído para a ocorrência de tal resultado. Tal questão coloca-se mais apropriadamente no âmbito da causalidade adequada, pressuposto da responsabilidade penal expresso no art.º 10º, nº 1, do Código Penal, ao dizer que quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado (no caso dos autos o resultado morte), o facto abrange não só a ação adequada a produzi-lo como a omissão da ação adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei. Preceito esse que traduz a consagração legal da chamada teoria da causalidade adequada, que no âmbito penal significa que uma determinada conduta dá causa a um determinado resultado típico quando, de acordo com um juízo de prognose póstuma, produzido com base nas regras da experiência comum e nos especiais conhecimentos do agente, aquele resultado era previsível ou que “segundo as máximas da experiência e da normalidade do acontecer - e portanto segundo o que é em geral previsível – são idóneas para produzir o resultado”. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3ª Edição, Gestlegal, Coimbra, 2019, p. 383.
Acontece que o caso dos autos se integra ainda no domínio dos acidentes resultantes da circulação rodoviária, no qual se levantam específicos problemas de imputação, relativamente aos quais a teoria da adequação se revela por vezes insatisfatória, sendo por isso necessário complementá-la ou corrigi-la, em certa medida, com a denominada por Stratenwerth “conexão ou relação de risco”, ou seja, tendo-se por medida o facto de as condutas em causa serem portadoras de um risco ou das quais “deriva um perigo idóneo de produção do resultado”, podendo assim afirmar-se que “o resultado só deve ser imputável à ação quando esta tenha criado (ou aumentado, ou incrementado) um risco proibido para o bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito e esse risco se tenha materializado no resultado típico”. Ibidem, p. 387.
Por outro lado, aquilo que seria um problema para a teoria da adequação, quando estritamente aplicada no domínio dos acidentes rodoviários, isto é, a existência de interrupção do nexo causal em consequência da coatuação da vítima ou de terceiro, que interfira com o processo causal na realização do facto típico, e poder desse modo levar a dar como não verificada a imputação do resultado ao agente (embora se procure colmatar uma tal dificuldade com o facto de aquela atuação da vítima ou de terceiro se revelar “previsível e provável”, o que se poderia considerar verificado no caso dos autos, como veremos adiante), deixa de o ser quando tal problemática passar a obter um melhor tratamento no âmbito da referida teoria da criação ou potenciação de um risco não permitido, pois à sua luz, e na sequência do que se acabou de dizer, o que importa fundamentalmente apurar é se a conduta do agente, por um lado, criou ou potenciou no processo causal um risco que se materializou no resultado típico, no caso dos autos a morte do peão, e por outro se a intervenção da vítima no processo causal teve ou não o efeito de o interromper, ou fazer cessar esse nexo causal e assim também a imputação daquele resultado ao agente, o que ostensivamente não acontecerá se essa intervenção da vítima for previsível pelo agente Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção dos Direitos do Homem, 2ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa 2010, p. 79. e a conduta deste tivesse agravado ou potenciado o risco para o bem jurídico violado, em termos tais que tal agravamento ou potenciação do risco se concretizou no resultado típico, segundo um juízo “ex ante” (ou de prognose póstuma), de molde a poder afirmar-se que aquele resultado, nas circunstâncias em que o agente agiu, era concretamente possível e previsível, ou, usando as palavras de Stratenwerth Apud Jorge Figueiredo Dias, idem, p. 395., “que o agente – comprovadamente! – frustrou as medidas que teriam afastado, com uma certa probabilidade, sob certas circunstâncias mesmo mensurável, o resultado jurídico-penalmente relevante”. Sendo certo ainda que importará ter em conta que mesmo demonstrando-se a existência da potenciação do risco e a materialização deste no resultado típico (se houver dúvida quanto a uma tal potenciação, fundada na prova produzida, o juiz terá de “valorá-la a favor do arguido excluindo a imputação”), necessário será ainda, referindo-nos agora ao caso dos autos, que a produção do resultado morte esteja coberto pelo âmbito de proteção da norma, ou seja o perigo ocorrido deverá corresponder àquele que foi visado no âmbito de proteção da norma, à luz da qual a conduta adotada pelo agente foi legalmente proibida. Ibidem, p. 395
Por outro lado, o crime de homicídio por negligência em causa nos autos, previsto no art.º 137º, nº 1, do CP, remete-nos para o art.º 15º do mesmo diploma e para a necessidade de saber se o arguido agiu com negligência, por não ter procedido com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e de que era capaz. Por isso a questão decisiva a resolver passa também, segundo Claus Roxin, necessariamente por saber se uma determinada “violação do dever de cuidado à qual se segue uma morte, fundamenta ou não um homicídio negligente” Claus Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal, 2ª Edição, Veja, Lisboa, 1993, p. 257.. Valendo-se aqui o mesmo autor do princípio do incremento do risco, no sentido de ter de se apurar se da “conduta incorreta” concretamente adotada resultou um aumento da probabilidade de produção do resultado típico em comparação com a conduta que se enquadrasse no risco permitido (aquela que não implicasse uma violação do dever de cuidado de acordo com os princípios do risco permitido), concluindo o mesmo autor que se a resposta for positiva, então tal conduta, porque violadora do dever de cuidado integraria o tipo de ilícito e seria punível a título de crime negligente Idem, p. 257 e 258.. Indo nesse mesmo sentido o Professor Jorge de Figueiredo Dias, ao afirmar que “a violação de um dever de cuidado só pode ser imputada a quem, com ela, criou um risco não permitido que se concretizou no resultado típico” Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 876.. Afirmando ainda Claus Roxin: primeiro “examina-se qual a conduta que não se poderia imputar ao agente como violação do dever de acordo com os princípios do risco permitido; segundo, “faça-se a comparação entre ela e a forma de atuar do arguido”. Se se chegar comprovadamente à conclusão de que a conduta indevida (“incorreta”) do arguido fez aumentar a probabilidade do resultado em comparação com a que estaria de acordo com o risco permitido, então deverá considerar-se que tal conduta deverá ser punível a título de crime negligente. Idem, p. 257 e 258.
Ora, no caso dos autos, agindo nos termos em que agiu, nas circunstâncias de tempo e lugar dadas como provadas, conduzindo veículo automóvel, de marca e modelo Audi …, em zona residencial, numa rua em que o limite de velocidade era de 50 Km/hora, mas cujas características, assim como o facto de o piso se encontrar molhado (estava chuva e a superfície molhada), ser de noite e ser expectável que, por se tratar de zona residencial, pudessem surgir pessoas a circular naquele local, assim como a atravessar a faixa rodagem, exigia-se ao arguido que moderasse a velocidade do veículo por si conduzido, de modo a que, face a tais circunstâncias dadas como provadas, pudesse, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade fossem de prever e, especialmente, poder travar ou imobilizar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, nos termos exigidos pelo art.º 24.º, nº 1, do Código da Estrada, e não que conduzisse à velocidade a que efetivamente conduziu, concretamente não apurada, é certo, mas necessariamente superior àquela que resultou provada ter sido a do embate, após travagem do veículo previamente efetuada, e situada entre 42 e 52 km/h, já em si, ela própria, excessiva, face às circunstâncias referidas.
Sendo certo que, resultando dos autos, nos termos dados como provados, que o peão, vítima mortal do atropelamento registado, foi colhido pelo veículo conduzido pelo arguido já na via esquerda da faixa de rodagem, e o canídeo que seguia atrás daquele no eixo da faixa de rodagem, seguindo o primeiro a uma velocidade de 3 a 9 Km/h, sem ser a correr, portanto, e nessa medida não podendo ter entrado na faixa de rodagem inopinadamente, de um modo súbito, que tornasse inevitável aquele atropelamento, somos levados a concluir que o acidente se deveu essencialmente à conduta ilícita do arguido, ademais porque violadora, não só do disposto no art.º 24º, nº 1, mas ainda do art.º 81º, nº 2, do Código da Estrada, e já que realizava ainda aquela condução sob o efeito do álcool, mesmo considerando a taxa de 1,14, g/l de sangue, como fez o Tribunal a quo, a nosso ver sem legal fundamento como supra deixámos referido, taxa essa que é muito elevada, comportando por isso elevado risco na condução do veículo para a vida e integridade física de outrem, não só para a pessoa que seguia no veículo ao seu lado como para terceiros e designadamente os peões que pudessem circular no local àquela hora.
Podemos assim concluir que o arguido potenciou ostensivamente o risco que se materializou no resultado típico previsto na norma do art.º 137º (a morte do peão atropelado), ou seja, como supra se deixou referido, da conduta por si concretamente adotada resultou um aumento da probabilidade de produção do resultado típico em comparação com a conduta que se enquadrasse no risco permitido, quer na perspetiva da ilicitude de tal conduta quer da culpa com que agiu, ao contrário do que sucederia, caso tivesse realizado a condução do veículo nos termos que lhe eram legalmente exigidos, sem se encontrar sob a influência do álcool ou com excesso de velocidade, e de molde a que do ponto de vista da culpa a sua conduta não implicasse uma violação do dever de cuidado, de acordo com o princípio do risco permitido, como meridianamente resulta do facto dado como provado no ponto 21, isto é, que se o arguido tivesse reagido mais cedo, mesmo que não tivesse evitado o impacto, faria com que as lesões do peão fossem mais reduzidas assim como o seu risco de morte. Sendo certo que os resultados da sua conduta ilícita e culposa estavam cobertos pelo âmbito da proibição das normas de circulação rodoviária por si violadas, podendo assim concluir-se que o arguido deu causa ao acidente ocorrido e com ele à morte do peão registada.
Por outro lado, caindo a conduta do arguido fora daquelas que não constituiriam violação de um dever, porque contidas no âmbito do risco permitido, e sendo nós levados a concluir, como resulta comprovadamente dos autos que a conduta proibida do arguido fez aumentar ostensivamente a probabilidade do acidente e mais concretamente da morte registada, é tal conduta punível a título de negligência grosseira tal como o considerou o Tribunal a quo.
A relevância da conduta da própria vítima para a ocorrência do acidente, está contida nos limites permitidos pela factualidade dada como provada, ou seja, na circunstância de não ter procedido à travessia da faixa de rodagem na passadeira existente perto do local, nos termos exigidos pelo art.º 101º, nº 3, do CE, ao estabelecer que os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem, devendo fazê-lo o mais rapidamente possível, e certificando-se previamente de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente, de harmonia com o estabelecido nos nºs 1 e 2 do mesmo artigo.
Ora, o risco incrementado pela vítima para a ocorrência do acidente, assim como a censurabilidade ético-jurídica do seu comportamento são reduzidos quando comparado com o que foi incrementado pelo arguido, porquanto é reduzida a exigibilidade e a censurabilidade ético-jurídica de quem não atravessa a faixa de rodagem na passadeira que nela exista quando a mesma dista do local onde efetuou tal travessia 42,30 m, ou seja apenas a 7,70 m de distância dos 50 metros exigidos para que uma tal obrigação não existisse, sobretudo quando resultou não provado que aquela mesma vítima soubesse que aquela passadeira se situava a uma distância inferior a 50m, sendo certo também, por outro lado, que vivendo no local há muitos anos, também há muito deveria ter apurado se o local onde a mesma se situa, relativamente ao local da sua residência, onde efetuou o atravessamento da faixa de rodagem, implicava ou não a obrigação de cumprir o disposto no art.º 101º, nº 3, do CP. O mesmo valendo para a possibilidade de erro que possa ter tido na avaliação da aproximação do veículo conduzido pelo arguido, ou seja, tendo em conta a distância a que vinha aquele veículo e a respetiva velocidade, bem como o perigo que isso representava para a ocorrência do acidente, quando ademais o arguido circulava em excesso de velocidade, face às circunstâncias em que realizava a condução automóvel, incluindo a condução sob influência do álcool, circunstância esta que, ao contrário da conduta adotada pelo peão, que era previsível e expectável para o arguido, nas circunstâncias do caso, a do arguido não era por seu turno previsível e expetável para o próprio peão, embora este, ao adotar o comportamento proibido que adotou, tivesse também violado um dever de cuidado, sobretudo a correta avaliação que lhe incumbia fazer da aproximação do veículo automóvel, ainda por cima porque se tratava de uma reta, e aquele seria visível para o efeito, a uma distância de pelo menos 100 metros, sendo certo ainda que a velocidade daquele, embora excessiva, nos termos expostos, não o era ao ponto de um qualquer erro de avaliação lhe poder ser desculpável. Mas mesmo assim, sempre a conduta do arguido, com o excesso de velocidade a que seguia sobretudo associada à elevada taxa de álcool no sangue com que conduzia, não era, por normalmente não o ser ou não ter de ser, expectável ou previsível pelo peão, quer em termos abstratos quer concretos, enquanto que o atravessamento da faixa de rodagem, nas circunstâncias em que o peão o fez já deveria ser previsível e expectável pelo arguido, desde logo em abstrato, por ser essa uma realidade comum da vida, num meio residencial como aquele em que o acidente ocorreu, e que o arguido bem conhecia, ademais por ser do conhecimento comum haver peões a fazer uso da faixa de rodagem, nos termos em que a vítima o fez, e em concreto, face às circunstâncias em que o peão a atravessou, nos termos dados como provados, percorrendo ainda mais de metade da largura da faixa de rodagem, sendo expectável que o arguido o avistasse a tempo de evitar ou de pelo menos reduzir a força do embate.
Razão por que, agora numa análise voltada para determinação da responsabilidade civil, tendo por base o concurso dos riscos criados pelo arguido e pelo peão para a ocorrência do acidente, ou, na perspetiva legalmente imposta pelo art.º 570º do Código Civil, assente que está, neste âmbito, o concurso de ambas as condutas para a ocorrência do acidente, porquanto na formulação negativa do pressuposto da causalidade adequada necessária à determinação da obrigação de indemnizar, contida no art.º 563º do mesmo diploma, os danos registados, e entre eles o dano morte, provavelmente não teriam existido se não fossem as condutas apontadas, importa agora determinar, ao abrigo do art.º 570º do CC, com base nas culpas de ambos, facto culposo da vítima e facto culposo do arguido, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
Ora, no caso dos autos, pelas razões acima aduzidas não encontramos fundamento para que o concurso do facto culposo da vítima para os danos registados, fixado em 20%, deva ser alterado.
Devendo, por isso, ser mantida a decisão recorrida, o que determinará, também nesta parte, a negação de provimento aos recursos.
2.2.3. Da determinação da medida da pena de prisão e da sanção de inibição de conduzir e possibilidade de substituição da pena de prisão pela suspensão da sua execução (…)
2.2.4. Do valor da indemnização pelos danos causados com o acidente (…)
2.2.5. Da nulidade da sentença, na parte em que nela se condenou para além do pedido (…)
2.3. Responsabilidade pelo pagamento de custas (…)
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto em:
a) Julgar parcialmente procedente a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, determinando-se, consequentemente, a alteração da mesma nos termos supra decididos no ponto 2.2.1.;
b) Negar quanto ao mais provimento aos recursos interpostos pelo arguido B… e pelos demandantes cíveis D…, E… e C…;
c) Conceder parcial provimento ao recurso interposto pela demandada cível F…, S.A., condenando-se esta a pagar ao Instituto da Segurança Social, I.P." a indemnização no valor de €11.777,20 (onze mil e setecentos e setenta e sete euros), a título de subsídio por morte e pensões de sobrevivência pagas até Julho de 2019, bem como 80% (oitenta por cento) do valor das pensões que desde aquela data se venceram e foram entretanto pagas por aquele Instituto, na pendência da presente ação, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, relativamente às prestações até aí vencidas e quanto às restantes a partir da data da respetiva sub-rogação, até integral e efetivo pagamento;
d) Manter quanto ao mais a decisão recorrida.
e) Custas a cargo do recorrente arguido, na parte crime, fixando-se a taxa de justiça em 4 ½ UC, e a cargo dos demandantes e da demandada cível, na proporção do respetivo decaimento.
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Porto, 14 de julho de 2020
Francisco Mota Ribeiro
António Gama – Presidente da Secção
João Pedro Nunes Maldonado (vencido, nos termos da seguinte declaração de voto)
A única discordância que manifesto localiza-se na imputação do resultado típico à conduta do arguido de acordo com a teoria da adequação que oferece uma resposta para a questão suscitada (não obstante não desconhecer a designada teoria da conexão do risco criada para colmatar alegadas limitações àquela outra), socorrendo-me neste domínio dos ensinamentos enxutos de Américo Taipa de Carvalho – Direito Penal – Parte Geral, 3ª edição, 2016, Universidade Católica Editora Porto, págs.312 a 325 e A legítima defesa, Coimbra Editora, págs.108 a 144).
Exige-se, como primeiro pressuposto da imputação objectiva o desvalor da conduta, que esta seja valorada negativamente por ser proibida ou, sendo permitida, seja realizada descuidadamente.
O segundo consiste na conexão típica entre o resultado típico e a conduta, que pressupõe um nexo causal efectivo (no caso concreto o resultado terá de ter sido causado pela conduta típica) e uma conexão teleológica (o fim da norma violada pela conduta consiste na evicção da espécie de resultado produzido).
Nas hipóteses, como aquela verificada, de “comportamento alternativo lícito” (na modalidade de participação causal da vítima, fixada para efeitos de responsabilidade civil em 20%), existindo desvalor da acção, ter-se-á que verificar que se com um grau de certeza acrescido o resultado seria o mesmo se o arguido tivesse actuado licitamente.
Havendo uma simples probabilidade ou dúvida razoável sobre se a conduta foi causa do resultado o julgador, por força do princípio in dubio pro reo, terá de considerar como não provada a imputação e absolver o arguido do crime de resultado (mas já não da responsabilidade contra-ordenacional, porque a primeira exclusão não elimina o manifesto desvalor da acção e a ilicitude desta em sim mesmo considerada)
Parece-me, de acordo com o quadro factual apurado (cfr. facto 21- Se o arguido tivesse reagido mais cedo, mesmo que não tivesse evitado o impacto, faria com que as lesões do peão fossem mais reduzidas assim como o risco da sua morte) que por força da reconhecida inevitabilidade do impacto (atropelamento) – na fundamentação do acórdão conclui-se pela imputação do resultado essencialmente à conduta do arguido – não se pode efectuar a imputação objectiva do resultado à acção desvaliosa do arguido.
O princípio de confiança na actuação dos outros que impera na circulação rodoviária é exigível aos condutores e aos peões (as normas contra-ordenacionais a estes aplicáveis, ao contrário das restantes, visam exclusivamente a protecção da sua integridade física e vida sendo, por esse motivo, objecto de prevenção rodoviária e esclarecimento desde o ensino pré-escolar). Quero com tal afirmação, de forma simples, significar que todos os sujeitos intervenientes na circulação rodoviária, pela natureza perigosa da actividade, devem sempre adequar seu comportamento a níveis de atenção e cuidado extraordinários mas, por outro lado, tal comportamento tem natureza recíproca – os peões devem esperar dos condutores o mesmo nível de concentração que estes podem esperar dos peões. Neste sentido, sob o ponto de vista estritamente jurídico, é tão exigível que o condutor cumpra os seus deveres como qualquer peão. O comportamento da vítima (que tal como o arguido conhecia perfeitamente as características da via por aí habitar há dezenas de anos) foi, nos termos factuais, o seguinte: atravessou a faixa de rodagem à noite, quando chovia, com uma cadela que passeava, sem trela, com possibilidade antecipada de percepcionar visualmente qualquer veículo que percorria o sentido daquele dirigido pelo arguido a cerca de 100 metros, fora de uma passadeira que para esse efeito existia a menos de 50 metros de distância (note-se, neste sentido, que entendo a absoluta irrelevância da mesma se localizasse entre 1 a 49 metros uma vez que a vítima a conhecia, à dezenas de anos).
Nestes termos, decidiria a absolvição do arguido e a sua condenação pela contraordenação praticada.

João Pedro Nunes Maldonado
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[1] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3ª Edição, Gestlegal, Coimbra, 2019, p. 383.
[2] Ibidem, p. 387.
[3] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção dos Direitos do Homem, 2ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa 2010, p. 79.
[4] Apud Jorge Figueiredo Dias, idem, p. 395.
[5] Ibidem, p. 395
[6] Claus Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal, 2ª Edição, Veja, Lisboa, 1993, p. 257.
[7] Idem, p. 257 e 258.
[8] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 876.
[9] Idem, p. 257 e 258.