Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1362/20.9T9VFR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AMÉLIA CATARINO
Descritores: CRIMES DE ABUSO SEXUAL DE CRIANÇA
VÍTIMA
ESPECIALMENTE VULNERABILIDADE
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
PODERES
LIMITES
Nº do Documento: RP202110281362/20.9T9VFR-A.P1
Data do Acordão: 10/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I - A vítima de crimes de abuso sexual de criança, previstos e punidos pelo artigo 171º, nº1, e nº 2, do CP, é considerada especialmente vulnerável, e tem o direito, enquanto medida especial de protecção, à prestação de declarações para memória futura (artigo 21º, alínea d) do Estatuto da Vitima), podendo, nos termos do artigo 24º, nº1, ser ouvida, no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal, a requerimento da própria vitima ou do Ministério Público.
II - O direito à prestação de declarações para memória futura da vítima especialmente vulnerável, enquanto medida especial de protecção, prevalece sobre a regra geral da imediação e oralidade em audiência de julgamento, e com o intuito de prevenir a vitimização secundária e evitar que sofra pressões (artº 17º, nº1, do Estatuto).
III - Requerida a prestação de declarações para memória futura de vitima a quem a Lei confere o estatuto de vítima especialmente vulnerável o juiz não pode indeferir o exercício desse direito, não cabendo nos poderes do juiz de instrução, por a lei não lho permitir, aferir se é adequado ou inadequado requerer a tomada de declarações para memória futura nestas situações, nem aferir dos requisitos que o legislador exige para as testemunhas.
IV - A actividade do juiz de instrução, tal como o preceito se encontra desenhado, é uma actividade vinculada de controlo formal dos pressupostos e não da verificação de qualquer outro elemento formal ou substantivo.
(da exclusiva responsabilidade da relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 1362/20.9T9VFR-A.P1
Relatora: Amélia Catarino


Acordam, em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
1. No âmbito do processo comum singular n.º 1362/20.9T9VFR-A.P1, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira, Juiz 1, veio o Ministério Público, recorrer da decisão, datada de 6 de Abril de 2021, que indeferiu o pedido de tomada de declarações para memória futura, à ofendida.

Apresenta os fundamentos de recurso que constam da respectiva motivação, com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1.- O Ministério Público não se conforma com o teor do douto despacho proferido a 06.04.2021 (refª 115491445), que indeferiu a tomada de declarações para memória futura da ofendida B….
2.- Para fundamentar tal rejeição, a Mma. Juiz a quo invocou, em síntese que nos termos dos artigos 271°, n°. 1 do Código de Processo Penal 33°, n°. 1 da Lei n°. 112/2009, de 16/09, decorre a expressão «pode», pelo que a audição da vítima em declarações para memória futura, no âmbito de processos em que se investigam crimes de natureza sexual, não é uma diligência legalmente obrigatória — é uma diligência que pode ser realizada, sendo ainda que o requerimento da diligência apresentada pelo Ministério Público mostra-se infundamentado, o instituto das declarações para memória futura reveste carater excecional impondo-o em casos muito limitados (artigo 271°, no. 2 do CPP) ou admitindo-o em circunstâncias muito especificas (artigos 271°, no. 1 do CPP e 23°, n°.1 da Lei no. 112/ 2009, de 16/09), não podendo ser considerada uma regra a cumprir, sendo que no vertente caso não se especificou os problemas de saúde de que padece a ofendida, a sua audição em julgamento poderá sempre ocorrer sem a presença física do arguido, e assim, sem comprometer o princípio da imediação, a ofendida é maior de idade, é estudante universitária, encontra-se já a ser acompanhada psicologicamente, foi já inquirida na fase de Inquérito, pelo que a sua reinquirição, nesta fase ou futuramente no julgamento, terá sempre que ocorrer, não se vislumbrando, pelas declarações já prestadas, a necessidade de salvaguardar a prova, como alude o Ministério Público, sendo que a sua nova audição neste momento na fase de Inquérito poderá sim importar uma revitimização, fazendo-a confrontar novamente com a necessidade de descrição do sucedido, nada garantindo que não venha a considerar-se necessário voltar a ser inquirida em julgamento.
3.- Porém, s.m.o, entendemos que não assiste razão à Mma. Juiz de Instrução.
4.- Não há fundamento para indeferir a tomada de declarações para memória futura da ofendida e vítima B….
5.- Não obstante dever serem observados os princípios da imediação e da oralidade em sede de audiência de discussão e julgamento, princípios inescapáveis, na relação de proximidade comunicante que deve ser estabelecida entre o tribunal e os sujeitos participantes processuais, por não ser apenas relevante o que se diz, mas também a forma como se diz, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do julgador, e se a prova deve ser produzida em audiência, não deve ser ignorada a exceção a tal regra, nomeadamente o instituto das declarações para memória futura, expressamente consagrado nos artigos 271° e 294°, do Cód. de Processo Penal.
6.- As declarações para memória futura não são mais do que inquirições levadas a cabo pelo juiz de instrução em sede de inquérito, podendo também estas ter lugar em sede de instrução (vide artigo 294.° Cód. de Processo Penal), devendo ter lugar nos casos previstos na lei, máxime nos termos do disposto no artigo 271°, do Cód. de Processo Penal.
7.- Segundo a Lei n° 130/2015, de 4 de setembro (procedeu à alteração ao Cód. de Processo Penal e aprovou o Estatuto da Vítima), prevê o direito das vítimas especialmente vulneráveis, como uma das medidas especiais de proteção, concedendo a prestação de declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo 24°, n.º 1, do citado diploma legal, no qual prevê que o juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público (sublinhado nosso), pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstas no artigo 271° do Código de Processo Penal.
8.- Nos termos previstos no n° 3 do artigo0 do 67-A do Cód. de Processo Penal “As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do 1”, pelo que estando em causa, com suficiência indiciária, um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 171°, n.°2, do Cód. Penal, e nove crimes de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 171°, n.°1, do Cód. Penal (cfr. a factualidade descrita a fis. 141 a 146, ref. 115453621), bem se vê que integra a noção de criminalidade violenta, definida no artigo 1°, ai. j), do Cód. de Processo Penal.
9.- Por força da lei, a ofendida B… é vítima especialmente vulnerável, pelo que não há necessidade de averiguar se a mesma preenche algum dos critérios indicados na citada alínea b) do n° 1 do artigo 67.°-A do Cod. de Processo Penal, ou outros que igualmente evidenciem tal especial vulnerabilidade.
10.- O direito de audição antecipada da ofendida, que se materializa nas declarações para memória futura, visa evitar a repetição de audição da vítima, protegê-la do perigo de revitimização e acautelar a genuinidade do seu depoimento em tempo útil, evitando, assim, que a ofendida possa olvidar-se dos factos, na sua plenitude.
11.- No caso concreto, e não obstante a alegada maioridade da ofendida, a verdade é que a fragilidade da ofendida, a proximidade que a mesma tem com o arguido (seu vizinho), com quem conviveu desde tenra idade — a ofendida frequentava a residência do arguido e da sua mulher desde que esta era bebé, havia estreita proximidade entre ambos, a ofendida tratava o arguido como avô -, e o facto de ambos serem vizinhos, residirem “porta com porta”, aconselham a que se proceda à tomada de declarações para memória futura, conforme promovido.
12.- O indeferimento do pedido formulado pelo Ministério Público impede que a ofendida exerça o seu direito a prestar antecipadamente declarações e de evitar a sua revitimização e, tratando-se de factos, em si mesmas, traumáticos, importa necessariamente minimizar o trauma associado.
13.- A Mma. Juiz a quo desconsiderou o facto de tal diligência decorrer, normalmente, em ambiente de maior recato e informalidade que uma audiência de julgamento, e de se destinar, também, a prevenir futuras deslocações da ofendida ao tribunal e a assegurar a genuinidade do seu depoimento, que o decurso do tempo e a proximidade física com o agressor é consabidamente suscetível de diminuir; tal diligência requerida acautelaria ainda os direitos de defesa do arguido, sendo este representado por Defensor, que também assistiria à tomada de declarações de memória futura.
14.- Nos termos do disposto nos artigos 53.°, n.° 2, alínea b), e 263°, n° 1, ambos do Código de Processo Penal, cabe ao Ministério Público a direção da ação penal, pelo que cabe a este decidir da tempestividade e oportunidade das diligências probatórias a realizar em sede de inquérito e bem assim decidir e promover da obtenção e conservação das provas indiciarias, pelo que, em situações com os contornos descritos, a prestação de declarações para memória futura afigura-se-nos essencial para a realização da justiça.
15.- Destarte, encontram-se reunidos todos os pressupostos de facto e de direito para a audição de B… em declarações para memória futura.
16.- S.m.o., não podia a Mma. Juiz a que julgar, como o fez, ao decidir que a pretensão do Ministério Público não estava fundamentada de forma adequada, situação que não se verifica, pois, como se refere no Douto Acórdão da Relação de Lisboa, de 17.12.20214, Relator Exmo. Sr. Desembargador Antero Luís (pesquisável em www.dgs.pt) “Não cabe pois nos poderes do juiz de instrução, por a lei não lho permitir, se é adequado ou inadequado requerer a tomada de declarações para memória futura nestas situações, nem aferir dos requisitos que o legislador exige para as testemunhas na primeira parte do preceito (...), não podia o Meritíssimo Juiz de Instrução julgar “inconsequente” a alegação do Ministério Público, nem considerar que a tomada de declarações para memória futura no caso dos autos “tem de ser fundamentada de forma adequada, o que não se verifica neste caso”.
17.- Assim, tal ponderação manifestada pela Mma. Juiz a quo vai para além daquilo que o legislador lhe permite, já que apenas a pode fazer em relação aos requisitos formais previstos na segunda parte do número 2 do artigo 271° do Código de Processo Penal”.
18.- Entendemos que a Mma. Juiz a quo deveria ter acolhido a promoção do Ministério Público no sentido de se designar data e hora para a tomada de declarações para memória futura à predita vítima de crime sexual e que, ao não o ter feito, violou o disposto nos artigos 67.°-A, n. 1, alínea b), e n.° 3, por referência ao disposto no artigo 10, alínea 5), 53°, n.° 2, alínea b), 263º, n.° 1, e 271°, todos do Código de Processo Penal, artigo 24,° nº1, da Lei n.° 130/2015, de 04 de Setembro.
19.- Impõe-se, salvo o devido respeito, a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por despacho que determine a realização de diligência de declarações para memória futura da ofendida B…, o que se pretende com o presente recurso.

Admitido o recurso, não foi apresentada resposta.

O Exmo. Senhor Procurador Geral Adjunto nesta Relação, na intervenção a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal, emitiu parecer no qual aderiu à motivação do recurso do Ministério Púbico do tribunal recorrido, pugnando pela procedência do recurso e pela revogação do despacho recorrido e a sua substituição por despacho que determine a realização da diligência de declarações para memória futura da ofendida B….

No âmbito do artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não houve qualquer resposta.
Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos à conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II. FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

In casu, o recurso, delimitado pelas conclusões da respetiva motivação, reconduz-se a saber se deve ou não ser deferida a tomada de declarações para memória futura da ofendida B….

A decisão recorrida, datada de 06.04.2021, tem o seguinte teor, que se transcreve:
“O M°P° veio requerer a tomada de Declarações à ofendida para Memória Futura, invocando que esta “encontra-se gravemente perturbada psicologicamente e com medo do arguido”, mais referindo que “impõe-se salvaguardar a prova, mas também não vitimizar mais a ofendida”.
Dispõe o art. 271°, n°. 1 do Código de Processo Penal que “em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, trafico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento”.
Nos termos do disposto no art.º. 33°, n°. 1 da Lei n°. 112/2009, de 16/09, “o juiz, a requerimento da vitima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, afim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento
Conforme decorre do uso naquelas normas citadas, da expressão «pode», e do contraste resultante entre essa redação e a que se mostra plasmada no art. 271°, no. 2 do Código de Processo Penal, a audição da vitima em” declarações para memória futura, no âmbito de processos em que se investigam crimes de violência doméstica, não é uma diligência legalmente obrigatória — é uma diligência que pode ser realizada.
Daqui resulta, na nossa perspetiva, e sempre ressalvado o devido respeito por quem perfilhe entendimento diverso, que o requerimento da diligência deve ser fundamentado na invocação concreta de circunstâncias, ligadas à especificidade do caso, que justifiquem a realização da prova por declarações para memória futura.
Note-se que do que se trata é de uma diligência que se traduz indiscutivelmente num desvio em relação àquilo que são os princípios gerais da imediação e do contraditório, “A ofendida encontra-se gravemente perturbada psicologicamente e com medo do arguido”. mais referindo que “impõe-se salvaguardar a prova, mas também não vitimizar mais a ofendida”.
Ora, não se questiona que a ofendida sinta receio do arguido, pois que esta o verbaliza.
Sucede, porém, que a audição da ofendida em julgamento poderá sempre ocorrer sem a presença física do arguido, e assim, sem comprometer o princípio da imediação.
A ofendida é maior de idade, dado que nasceu em 05.05.2001, estudante universitária e encontra-se já a ser acompanhada psicologicamente, como decorre dos autos.
Por outro lado, a ofendida foi já inquirida na fase de Inquérito, pelo que a sua reinquirição, nesta fase ou futuramente no julgamento, terá sempre que ocorrer, não se vislumbrando, pelas declarações já prestadas, a necessidade de salvaguardar a prova, como alude o M°P°.
Aliás, a sua nova audição neste momento na fase de Inquérito poderá sim importar uma revitimização, fazendo-a confrontar novamente com a necessidade de descrição do sucedido, nada garantindo que não venha a considerar-se necessário voltar a ser inquirida em julgamento.
Quanto ao facto alegado de que a ofendida encontra-se “gravemente perturbada psicologicamente”, tal não resulta clinicamente comprovado, sendo uma afirmação subjectiva do M°P°.
Pelo exposto, e tal como o mesmo se nos apresenta, indefere-se a tomada de declarações para memória futura da ofendida, dado entendermos que, no presente caso, as razões invocadas pelo M°P° não justificam a violação do princípio da imediação.”

Declarações para memória futura
Sobre a epigrafe “declarações para memória futura”, rege o disposto no art. 271°, n°. 1 do Código de Processo Penal, segundo o qual “em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, trafico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento”.
Nos termos desta norma é possível, na fase de inquérito, com derrogação do principio da imediação, produzir prova oral, válida em julgamento. Existindo situações em que esta diligência é obrigatória (artº 271º, nº2, do CPP), e outras em que poderá ser efectuada sob impulso, mormente, do Ministério Público, em casos de vitimas mais vulneráveis de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual ou tráfico de pessoas (artº 271º, nº1, 294º, do CPP, artº 33º, da lei 112/2009, de 16.09, artº 28º da Lei 93/99 de 14 de julho e artº 24º da Lei nº130/2015, de 04 de Setembro).
Refere a senhora JIC no despacho recorrido que do contraste entre o disposto no artº 33º, nº1, da Lei 112/2009, de 16.09, e o artº 271º, nº2, do CPP, “a audição da vitima em” declarações para memória futura, no âmbito de processos em que se investigam crimes de violência doméstica, não é uma diligência legalmente obrigatória — é uma diligência que pode ser realizada.
Ao contrário do expendido na fundamentação do despacho recorrido, não estamos perante um crime de violência doméstica. A situação em causa consubstancia factualidade indiciadora da pratica pelo arguido, de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 171°, n.°2, do Cód. Penal, e nove crimes de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 171°, n.°1, do Cód. Penal (cfr. a factualidade descrita a fis. 141 a 146, ref. 115453621).
A vitima, à data dos factos, era menor de idade (tinha 11 anos e a situação perdurou até aos seus 14 anos), o que determinaria, se a vitima ainda fosse menor, por força do artigo 271º, nº2, do CPP, a obrigatoriedade da sua inquirição no decurso do inquérito a fim de que o depoimento pudesse, se necessário, ser tomado em conta no julgamento. Porém, a vitima já é maior de idade (nasceu em 05.05.2001), e tratando-se de crime de abuso sexual de criança, rege o nº 1 do artº 271º, do CPP, supra descrito, o qual, determina que as declarações para memória futura podem ter lugar no decurso do inquérito a impulso, nomeadamente, do Ministério Público.
Foi o que ocorreu no caso, o Ministério Público veio requerer a tomada de declarações à ofendida, para memória futura, invocando os factos que consta do seu requerimento de fls. 141 e ss, e que indiciam os crimes praticados pelo arguido e alega que esta se encontra gravemente perturbada psicologicamente e com medo do arguido que é o seu vizinho da frente.
Perante o requerido, pronunciou-se a senhora JIC referindo que a diligência requerida não é “legalmente obrigatória — é uma diligência que pode ser realizada.” Daqui resulta (…), que o requerimento da diligência deve ser fundamentado na invocação concreta de circunstâncias, ligadas à especificidade do caso, que justifiquem a realização da prova por declarações para memória futura.” E, conclui que “indefere-se a tomada de declarações para memória futura da ofendida, dado entendermos que, no presente caso, as razões invocadas pelo M° P° não justificam a violação do princípio da imediação.”
O princípio da imediação, previsto no art.º 355° n.º1 do CPP, estabelece que “não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.”
É inquestionável que os princípios da imediação e da oralidade são principio basilares e estruturais do sistema penal, porém não podemos olvidar os direitos da vitima, a qual in casu, é uma vitima de abuso sexual, enquanto ainda menor de 11 anos e perpetrado pelo vizinho que tratava como avô….
Em matéria de protecção da vitima regula a Lei nº130/2015, de 04 de Setembro, que veio aprovar o Estatuto da Vítima, transpondo a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substitui a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho, de 15 de março de 2001.
O referido Estatuto estabelece no artigo 17º, nº1 que “a vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões”.
E, a vítima especialmente vulnerável tem o direito, enquanto medida especial de protecção, à prestação de declarações para memória futura (artigo 21º, alínea d) do Estatuto da Vitima), podendo, nos termos do artigo 24º, nº1, ser ouvida, no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal, a requerimento da própria vitima ou do Ministério Público.
O estabelecimento, pela Lei 130/2015, de 04 de setembro, do regime previsto pelo art.º 271° do C.P.P., configura uma excepção ao princípio da imediação, tendo em conta quer a necessidade de acautelar a eventual dissipação da prova testemunhal, quer a protecção de vítimas em situação de particular vulnerabilidade, a descoberta da verdade, e obviar à revitimização de pessoas alvo de crimes particularmente lesivos para a sua integridade física e psíquica.
Na verdade, o direito à prestação de declarações para memória futura da vítima especialmente vulnerável, enquanto medida especial de protecção, prevalece sobre a regra geral da imediação e oralidade em audiência de julgamento, e com o intuito de prevenir a vitimização secundária e evitar que sofra pressões (artº 17º, nº1, do Estatuto).
Para o efeito, o legislador estabeleceu regras rígidas relativas à forma como devem ser prestadas as declarações para memória futura, regras essas que se encontram plasmadas no artº 24º, nº, 2, 3, 4 e 5, do Estatuto. E, no nº 6 daquela norma, o legislador foi ainda mais longe ao estipular que “só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.”
É insofismável a prevalência absoluta da prevenção da vitimização secundária e o evitar que a vitima sofra pressões, em detrimento dos princípios da oralidade e imediação.
Vitima especialmente vulnerável é, nos termos do artigo 67º-A, nº1, b), do CPP, “a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;” e no nº 3, vem referido que “As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.”
A vitima de abuso sexual de criança é, nos termos da lei, considerada vítima especialmente vulnerável quer face ao disposto no artigo 1º, j), do CPP que considera “Criminalidade violenta' as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos.” Quer face ao disposto na alínea l) “´Criminalidade especialmente violenta' as condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos;”
Assim, a ofendida nos presentes autos, é vítima especialmente vulnerável, uma vez que os factos indiciados nos autos por configurarem crimes de abuso sexual de criança, previstos e punidos pelo artigo 171º, nº1, e nº 2, do CP, com penas de prisão de um a oito anos, e de três a dez anos, respectivamente, são considerados criminalidade violenta e especialmente violenta.
No caso das vitimas especialmente vulneráveis, “o legislador prescindiu dos requisitos exigidos para as testemunhas em qualquer processo, isto é, “doença grave ou de deslocação para o estrangeiro (…), que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento”, para deixar isso no livre arbítrio dos sujeitos processuais (Ministério Público, arguido, assistente e partes civis). Neste sentido v. o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/04/2012 proferido no proc. Nº 61/10.4TAACN-A.C1 in www.dgsi.pt. E, no mesmo sentido Código de Processo Penal Anotado de Henriques Gaspar e outros pág. 962 e seg.s
A actividade do juiz de instrução, tal como o preceito se encontra desenhado, é uma actividade vinculada de controlo formal dos pressupostos e não da verificação de qualquer outro elemento formal ou substantivo.
Não cabe, pois, nos poderes do juiz de instrução, por a lei não lho permitir, se é adequado ou inadequado requerer a tomada de declarações para memória futura nestas situações, nem aferir dos requisitos que o legislador exige para as testemunhas na primeira parte do preceito.
A especial protecção que o legislador quis assegurar para as vítimas de tais crimes em nada belisca os princípios que enfermam a audiência de julgamento porquanto o contraditório é assegurado ainda no inquérito, qualquer dos sujeitos processuais pode requerer a tomada das declarações e esse facto não prejudica a prestação de depoimento em audiência, nos termos previstos no nº 8 do preceito e nos princípios de liberdade de julgamento e de produção oficiosa de prova, com vista à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa (artigo 340º do CPP).” – Acórdão do TRL de 17.12.2014, em que é Relator Antero Luis, em www.dgsi.pt.
A tomada de declarações para memória futura a vitimas especialmente vulneráveis traduz-se numa faculdade atribuída ao juiz que implica como regra, “dever deferir a pretensão dos requerentes, só assim não decidindo quando, objectiva e manifestamente, se revele total desnecessidade na recolha antecipada de prova” - Ac Rel Lisboa de 04.06.2020, em www.dgsi.pt. No mesmo sentido Ac. da RC de 21 de agosto de 2020, www.dgsi.pt, onde se salienta que “a tomada de declarações para memória futura não é obrigatória (pode proceder).No entanto, deve ser este o procedimento a adotar, em nome da proteção das vítimas contra a vitimização secundária, só assim se não procedendo quando existam razões relevantes para o não fazer”.
Concluindo, é a própria lei que confere, no caso dos autos, a esta vitima o estatuto de vitima especialmente vulnerável e a quem o Estatuto da Vitima confere a medida especial de protecção que consiste na prestação de declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo artº 21º, nº2, d), e 24º, nº1, da Lei 130/2015.
Assim, requerida que foi a prestação de declarações para memória futura da vitima dos presentes autos a quem a Lei confere o estatuto de vítima especialmente vulnerável o juiz não pode indeferir o exercício desse direito, o qual se destina a prevenir a vitimização secundária a que se refere o artº 17º do Estatuto da Vitima. Na verdade, pretende-se evitar que a vítima seja levada a reviver o medo, a ansiedade, a insegurança, e a pressão que sente (neste caso), por se tratar do vizinho da frente com quem tinha relação de quase família, num ambiente formal e público (mesmo sabendo esta que seria na ausência da presença física do arguido na sala de audiências, mas que a vitima sabia estar presente no tribunal).
Nestes termos, a ofendida nestes autos tem o direito, enquanto vitima especialmente vulnerável, a beneficiar da possibilidade de prestar declarações para memória futura, em ambiente informal e reservado, assim obviando a que esta venha a ser compelida a prestar depoimento em audiência de julgamento, a qual, como decorre da experiência forense, é sempre realizada em contexto marcado por solenidade e pouco amigável para personalidades fragilizadas.
Concluindo, em observância do imperativo de prevenção da vitimização de vitimas especialmente vulneráveis, e de revitimização de vítimas especialmente vulneráveis expressos pela Lei 130/2015, de 04 de setembro, estatuto da vítima, deve ser acolhida a pretensão do Ministério Público, revogando a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que designe data para a tomada de declarações para memória futura da ofendida B….

III. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida a qual deve ser substituída por outra que designe data para a tomada de declarações para memória futura da ofendida B…, conforme requerido pelo Ministério Público.

Sem custas.

Porto, 28 de Outubro de 2021
Amélia Catarino
Vitor Morgado
(Elaborado e revisto pela relatora)