Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
588/13.6TVPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PACTO DE JURISDIÇÃO
Nº do Documento: RP20151001588/13.6TVPRT.P1
Data do Acordão: 10/01/2015
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Se a acção emerge de uma relação plurilocalizada, respeita a matéria comercial com conexão ao território de Estados-Membros da União Europeia e pelo menos uma das partes tem domicílio num dos Estados-Membros, a competência internacional para julgar a acção é definida pelo Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22.12.2000, relativo à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial.
II - O Regulamento n.º 44/2001 é directamente aplicável às acções compreendidas no respectivo âmbito territorial, material e temporal e tem primazia sobre as normas correspondentes do direito interno, excluindo a aplicação destas, designadamente na parte em que estabelecem requisitos de validade dos pactos de atribuição de jurisdição não previstos no Regulamento.
III - Nos termos do Regulamento n.º 593/2008, de 17.06.2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), o contrato rege-se pela lei escolhida pelas partes e a existência e a validade substancial do contrato ou de alguma das suas disposições são reguladas pela lei que seria aplicável, por força desse regulamento, se o contrato ou a disposição fossem válidos.
IV - A noção de pacto de jurisdição do Regulamento n.º 44/2001 é autónoma relativamente aos direitos nacionais dos Estados-Membros, pelo que os seus requisitos são estritamente os elencados no Regulamento e a sua validade não depende de qualquer conexão entre o objecto do litígio e o tribunal designado ou de um interesse atendível na sua localização.
V - Prescindindo o Regulamento n.º 44/2001, para a validade do pacto, do requisito da alínea c) do n.º 3 do artigo 99.º do aCPC (94.º do nCPC), o mesmo não poderá ser exigido por via de outra norma do direito nacional, designadamente o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais.
VI - Num contrato celebrado entre um empresário ou entidade equiparada, a validade do pacto de jurisdição é analisada, exclusivamente, segundo o disposto no art. 23.º, do Regulamento n.º 44/2001, sendo inaplicável o regime jurídico interno das cláusulas contratuais gerais ainda que a cláusula que contém aquele pacto possa estar abrangida por este regime.
VII - O art. 24.º do Regulamento n.º 44/2001 contém uma situação de extensão da competência e não de redução da competência, pelo que a instauração de uma acção num tribunal diferente do designado no pacto de jurisdição não significa uma renúncia tácita ao pacto para novas acções.
VIII - Não actua em abuso de direito a parte que instaura uma acção num tribunal diferente do designado no pacto de jurisdição e depois, ao ser demandado em acção instaurada pelo ali réu no tribunal do mesmo Estado-Membro, argui a incompetência deste por violação do pacto de jurisdição, uma vez que a competência para a acção por si instaurada apenas se fixou em virtude de o réu ter comparecido e apresentado a sua defesa sem arguir a incompetência, gerando dessa forma a extensão da competência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação Processo n.º 588/13.6TVPRT.P1 [Comarca do Porto / Inst. Central / Porto / Sec. Cível]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.
B…, LDA., sociedade comercial com sede na Rua …, no Porto, presentemente com a denominação C…, S.A., instaurou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, acção judicial contra D…, com sede em …, Londres, Reino Unido, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €7.318.759,30 (sete milhões trezentos e dezoito mil setecentos e cinquenta e nove euros e trinta cêntimos) a título de indemnização de clientela e indemnização por danos emergentes e lucros cessantes.
Para o efeito, alegou que celebrou com a ré um contrato de concessão comercial para comercialização do software produzido pela ré (D… anti-vírus, anti-spam e internet security) em Portugal, em regime de exclusividade, o qual perdurou durante cerca de 10 anos, sendo que a ré incumpriu de forma ilícita e culposa o referido contrato, gerando à autora os danos cuja indemnização esta pretende obter pela presente acção.
A acção foi contestada pela ré que refutou os factos alegados pela autora e entre a alegação de várias excepções, concluiu pela improcedência total do pedido.
Excepcionando, começou a ré por arguir a excepção dilatória da incompetência internacional dos tribunais portugueses com fundamento no acordo das partes, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 23.º do Regulamento n.º 44/2001, em atribuir aos Tribunais do Reino Unido a competência internacional exclusiva para resolver o litígio da presente lide, conforme cláusula 16.8 do contrato, segundo a qual “este Acordo reger-se-á e será interpretado de acordo com a Lei Inglesa e as Partes submeter-se-ão à exclusiva jurisdição dos Tribunais Ingleses”. Mais sustentou a ré que a referida cláusula é conforme ao direito comunitário e nacional e, por isso, válida e eficaz para as partes.
A autora respondeu que a referida cláusula do contrato é nula por violação do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais contido no Decreto-Lei nº 445/86, de 25 de Outubro, pois não foi objecto de qualquer negociação entre as partes, não lhe foi comunicada atempadamente de forma adequada e efectiva, foi elaborada previamente pela ré que a impôs à autora sem lhe dar a oportunidade ou a possibilidade de influenciar o seu conteúdo, e envolve graves inconvenientes para a autora, sem que os interesses legítimos da ré justifiquem a escolha feita. Em consequência da nulidade dessa cláusula os tribunais portugueses são os competentes nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 5º do Regulamento (CE) n.º 44/2001.
Por outro lado, acrescentou, na 4ª Vara Cível deste Tribunal corre termos sob o nº 74910/12.6YIPRT, uma acção intentada pela aqui ré contra a aqui autora na qual aquela pede a condenação desta no pagamento de montantes que alegadamente seriam devidos em resultado da relação contratual celebrada entre as partes que constitui a causa de pedir da presente acção. Ao instaurar essa acção, a aqui ré renunciou à aludida cláusula, tendo mesmo defendido a competência dos tribunais portugueses quando o tribunal suscitou a questão do relevo da referida cláusula do contrato. A autora, por seu lado, aceitou tal derrogação por parte da ré ao previsto no contrato pois entendia que a cláusula é nula e que o foro português era o mais adequado para discutir quaisquer temas relacionados com o contrato. Esta posição de ambos os contraentes representa uma verdadeira revogação da cláusula e uma expressa substituição da mesma por novo acordo das partes quanto aos tribunais competentes. A não se entender assim então terá que se considerar que a posição da aqui ré de numa acção defender um regime e na outra outro regime quanto à competência internacional constitui um abuso de direito sob a veste de venire contra factum proprium.
Findos os articulados, conheceu-se desta excepção e decidiu-se julgar verificada a excepção de incompetência relativa do tribunal por violação de pacto privativo de jurisdição, absolvendo-se a ré da instância.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1ª Vem o presente recurso interposto do Despacho Saneador-Sentença com a ref. 347199709 CITIUS, que julgou verificada a excepção de incompetência relativa do Tribunal por violação de pacto privativo de jurisdição e, em consequência, absolveu a Ré da instância.
2ª Salvo o devido respeito, que muito é, não pode a Autora conformar-se com tal decisão, que fez errada aplicação do disposto nos artigos 7º, nº 6, 8º, nº 4 e 13º da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 5°, nº 1, al. a), 23º, nº 1, 24º do Regulamento (CE) nº 44/2001, dos artigos 1º, 3º e 6º da Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, dos artigos 5º, 8º, al. a) e 19º, al. g) do Decreto-Lei nº 446/85 de 25 de Outubro e do artigo 334º do Código Civil.
3ª Os presentes autos têm por objecto o incumprimento, imputado pela Autora à Ré, de um contrato de concessão comercial, ao abrigo do qual a Autora promoveu, durante dez anos e em regime de exclusividade, a comercialização em Portugal de produtos de software produzidos pela Ré, tendo elevado os mesmos de um total desconhecimento do público português à liderança no mercado nacional.
4ª Com a cessação, ilícita e culposa, da relação contratual que vigorava entre as partes, constituiu-se a Ré devedora à Autora de uma indemnização de clientela e de uma indemnização por danos emergentes e lucros cessantes, no valor global de € 7.318.759,30 (sete milhões trezentos e dezoito mil setecentos e cinquenta e nove euros e trinta cêntimos), a que acrescem os juros vincendos até integral pagamento, montante esse que a Autora, pela presente acção, pretende ver-lhe reconhecido e ressarcido.
5ª Não chegou o Tribunal a quo a apreciar o mérito da pretensão da Autora, entendendo na decisão recorrida que a cláusula 16.8 do Contrato celebrado entre as partes a 1 de Janeiro de 201015, de acordo com a qual o contrato em causa se regeria e seria interpretado de acordo com a Lei inglesa e as partes se submeteriam à exclusiva jurisdição dos Tribunais Ingleses, configurava um pacto válido no sentido da competência exclusiva do foro anglo-saxónico, em prejuízo da competência dos Tribunais Portugueses.
6ª Tal cláusula – que consta, efectivamente, da redacção do contrato em apreço – é nula e, como tal, de nenhum efeito.
7ª Na sua Petição Inicial – mais concretamente, nos artigos 79º a 87º daquela peça processual –, relatou a Autora as circunstâncias em que foi firmado entre as partes o Contrato de 1 de Janeiro 2010, que substituiu o contrato que anteriormente vigorava, de 1 de Novembro de 2006.
8ª Este último contrato havia estabelecido condições mais favoráveis para a primeira do que as que decorriam do contrato inicial celebrado entre as partes no ano de 2003, designadamente subindo a margem prevista de 45% para 50%, dos quais, durante o primeiro ano de vigência do contrato, 2% a título de comparticipação nas despesas da Autora com um técnico de suporte informático.
9ª Apesar de tal aparente vantagem formalmente concedida, a Ré logo no início de 2007 deu início a um conjunto de actuações, que se detalham nos artigos 57º e seguintes da Petição Inicial, que visaram realizar um verdadeiro bypass à actividade da Autora, designadamente junto dos sub-distribuidores por esta contratados, a quem a Ré ofereceu margens superiores às que a Autora podia, por força do teor do Contrato vigente, oferecer.
10ª Tal degradação efectiva das condições contratuais da Autora veio a concretizar-se também formalmente no contrato de 1 de Janeiro de 2010, no qual a Ré forçou a Autora a aceitar a redução da sua margem de desconto na aquisição dos produtos para os 45%, assim reconduzindo os valores auferidos pela Autora aos praticados no contrato de distribuição celebrado em 2003, em que o volume de vendas atingido era de € 4.000,00 (quatro mil euros),
11ª Quando, no ano de 2009, imediatamente anterior à celebração desse contrato de 1 de Janeiro de 2010, o volume de vendas obtido pela Autora havia sido de €2.385.052,20 (dois milhões trezentos e oitenta e cinco mil e cinquenta e dois euros e vinte cêntimos), dos quais cerca de €1.804.255,53 (um milhão oitocentos e quatro mil duzentos e cinquenta e cinco euros e cinquenta e três cêntimos) entregues à Ré a título de pagamento do preço devido.
12ª A Autora foi obrigada a aceitar este novo e agravado contrato de distribuição sob a ameaça da imediata cessação da relação comercial que vigorava entre as partes, à qual a Autora tinha subordinado toda a sua estrutura operativa e os seus investimentos nos sete anos anteriores, com todos os prejuízos inerentes a esse abandono, e os necessários custos da súbita desafectação dos recursos da Autora desse negócio que havia criado de raiz para a Ré no nosso país.
13ª Não foi dada à Autora qualquer possibilidade de negociar o teor das várias cláusulas que nele foram apostas por parte da Ré, que se limitou a impô-las em bloco.
14ª O Legal Representante da Autora, Senhor Eng.º E…, não só não interveio na formação e elaboração do contrato, como não pôde discutir ou comentar qualquer das suas cláusulas, designadamente a Cláusula 16.8 aqui em apreço, que prevê o referido pacto privativo de jurisdição.
15ª Pacto esse que, aliás, e como resulta evidente, servia unicamente os interesses da Ré, em prejuízo manifesto dos da Autora, afastando a competência dos Tribunais portugueses quando toda a relação de distribuição se processava em território nacional, onde (i) os produtos eram previamente comprados pela Autora e (ii) aí eram efectivamente vendidos, (iii) tendo o pagamento dos respectivos impostos vindo a ser feito em Portugal.
16ª Atento tal contexto negocial (rectius, ausência de qualquer negociação), entendeu a Autora, como entende ainda, que tal pacto de aforamento é nulo, em face do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, consagrado no Decreto-Lei nº 445/86, de 25 de Outubro (doravante, Regime das Cláusulas Contratuais Gerais), tendo intentado a presente acção nos Tribunais portugueses.
17ª Nos termos do nº 2 do artigo 1º do referido diploma, o seu âmbito de aplicação abrange as “cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar”, como sucedeu in casu, já que a cláusula 16.8 do Contrato, na qual se encontra vertido o pacto relativo à jurisdição aplicável, foi previamente elaborada e imposta pela Ré à Autora, sem possibilidade e oportunidade de influenciar o conteúdo da mesma.
18ª Sendo certo que, em consonância com o disposto no nº 3 desse normativo, “o ónus da prova de que uma cláusula contratual resultou de negociação prévia entre as partes recai sobre quem pretenda prevalecer-se do seu conteúdo”, ou seja, à Ré.
19ª Ao contrário do determinado pelo artigo 5º do mencionado diploma, a cláusula em apreço (bem como todo o teor do contrato de 1 de Janeiro de 2010) não foi comunicada atempadamente, de forma adequada e efectiva, à Autora já que a redacção do contrato lhe foi apresentada como verdadeiro facto consumado, que a Autora deveria assinar de cruz.
20ª O que, em face do disposto no nº 1 do artigo 8º do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, determina a exclusão da cláusula em causa do contrato assinado entre as partes.
21ª Por outro lado, nos termos da alínea g) do artigo 19º do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, serão relativamente proibidas as cláusulas que “estabeleçam um foro competente que envolva graves inconvenientes para uma das partes, sem que os interesses da outra o justifiquem.”
22ª A escolha do foro britânico como único foro competente para a resolução de litígios decorrentes do acordo em causa representa, desde logo, um claro afastamento das regras de competência internacional aplicáveis e que, como é consabido, privilegiam como foro o local do cumprimento da obrigação, porquanto será sempre neste local que haverá maior facilidade e conveniência na recolha de prova e, como tal, na boa e correcta realização dessa apreciação da causa.
23ª Com referência aos graves inconvenientes crê-se ser incontestável que para a aqui Autora, empresa portuguesa de pequena dimensão, que não logrou sequer, como acima se referiu, negociar os termos do contrato que se visa apreciar, a circunstância de se verificar uma exclusão do foro português e atribuição de competência aos Tribunais ingleses revelava-se indubitavelmente penosa e sacrificante.
24ª Donde se concluiu que, também por esta razão, a cláusula em apreço era relativamente proibida e, consequentemente, nula ─ cf. artigos 12º e 19º, alínea g), do Decreto-Lei n.º 446/85.
25ª Assim o não entendeu o douto Tribunal recorrido, decidindo na sentença a quo, com apoio em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Fevereiro de 2015 que, atento o primado do direito europeu sobre o direito nacional, a validade dos pactos de jurisdição é autónoma relativamente aos direitos nacionais dos Estados-Membros, devendo ser apreciada exclusivamente com recurso aos pressupostos que do artigo 23º do Regulamento (CE) nº 44/2001 resultam e implicando, pois, o afastamento das regras nacionais, mormente das previstas no DL 446/85 para aferir da validade de tal pacto.
26ª Não pode aceitar-se tal entendimento, considerando-se, salvo o devido respeito, que muito é, que a decisão daquele Tribunal Superior, em que o Tribunal recorrido se sustentou para a prolação da sentença aqui em crise, interpretou singular e incorrectamente a Jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias a propósito do primado do artigo 23º do Regulamento 44/2001 sobre a lei nacional, exacerbando-a e extravasando-a claramente.
27ª Primeiramente, e desde logo, porquanto a questão suscitada pela Autora – a da inexistência de autonomia da vontade – é, naturalmente, prévia e independente de qualquer análise do teor do pacto privativo de jurisdição em apreço, e da aferição da susceptibilidade de o direito interno impor requisitos diferentes ou mais gravosos do que os estatuídos pelo Regulamento (CE) nº 44/2001, prendendo-se com a própria génese da cláusula em questão.
28ª Pressupondo o artigo 23º do Regulamento (CE) nº 44/2001 um acordo de vontades, é imperativo que o Tribunal chamado a apreciar a validade de um pacto privativo de jurisdição averigúe, previamente, se causas existem que possam inquinar ter inquinado a vontade expressa pelas partes, questão que foi expressamente submetida ao Tribunal a quo.
29ª O Regulamento (CE) nº 44/2001 não trata tais questões de capacidade das partes, validade do seu consentimento, ou regras para a formação do contrato, pelo que a sua solução há-de ser encontrada no direito interno que se tenha por aplicável.
30ª Em rigor, tal questão foi já resolvida no novo Regulamento (EU) nº 1215/2012, que entrou em vigor a 19 de Janeiro de 2015, no qual se prevê expressamente a apreciação da validade substantiva do pacto, nos termos do disposto no artigo 25º, nº 1 daquele diploma: “Se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo (…)”.
31ª Nenhuma dúvida subsiste, pois, que a validade da cláusula em que está ínsito o pacto de preenchimento pode (e deve) ser analisada à luz do direito nacional (aqui se incluindo também, naturalmente, o direito da União aplicável em cada Estado-Membro), em nada contendendo tal questão com o primado do direito da União.
32ª É que, como é manifesto, primado significa primazia, prioridade. Não a total ablação dos direitos nacionais, como se nenhum outro direito existisse…
33ª Daí que mal se compreenda o raciocínio expendido pelo douto Tribunal a quo e pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de que o primeiro se socorreu na sentença em apreço, no sentido de admitir a apreciação da validade de um pacto privativo de jurisdição à luz da Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa a contratos de adesão celebrados com consumidores, mas já não o remanescente do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais.
34ª Desde logo, porque a Directiva, atenta a sua natureza normativa, e como é consabido, não tem em regra aplicação directa, contrariamente ao que sucede com os regulamentos, necessitando de ser transposta para o direito interno, sendo essa transposição, no caso de Portugal, exactamente o Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, já que tal regime jurídico foi instituído, no ordenamento jurídico português, pelo Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, posteriormente adaptado aos princípios definidos na Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores e nos contratos de adesão, cuja transposição para o ordenamento jurídico português foi alcançada pelo Decreto-Lei nº 220/95, de 31 de Janeiro.
35ª Tal disparidade de aplicação significaria, em rigor, que o Tribunal admite a aplicação de direito interno na parte em que este transpôs o direito europeu, mas já não quando o direito europeu nada disponha sobre determinada questão, o que é manifestamente contrário à ideia de primado, no sentido que acima se expôs.
36ª E, por outro lado, porque, do prisma da formação da vontade, são equiparáveis aos consumidores os empresários que não puderam influir sobre o teor das cláusulas, o que é precisamente o caso dos autos.
37ª Pelo que, a sufragar-se a decisão do Tribunal a quo e do aresto do Supremo Tribunal de Justiça que aí se invocou, estaríamos, em última análise, a tratar de forma diferente aquilo que é essencialmente igual, em manifesta violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
38ª Em suma, havendo que apurar se determinada cláusula foi verdadeiramente objecto de consentimento por ambas as partes, e sendo aplicável, como se deixou exposto, o direito interno, a par do comunitário, é naturalmente convocável o Regime das Cláusulas Contratuais Gerais.
39ª In casu, e como se deixou exposto, não foi cumprida a obrigação de comunicação efectiva de tal cláusula à Autora, que não pôde, analisá-la previamente, discuti-la ou, até, exclui-la, porquanto nenhum domínio tinha sobre o conteúdo do Contrato que lhe foi apresentado para assinatura.
40ª Sendo que, em boa verdade, a Ré não juntou aos autos nenhum documento nem indicou qualquer outro meio de prova quanto à comunicação efectiva, como era seu ónus, pelo que, sempre teria de considerar-se a cláusula em apreço excluída, nos termos dos artigos 5º e 8º, alínea a) do Decreto-Lei nº 446/85 de 25 de Outubro, o que determina a aplicação do regime supletivo vigente, nos termos do artigo 9º, nº 1 do mesmo diploma.
41ª Por outro lado, e como igualmente se referiu supra, impunha igualmente a alínea g) do artigo 19º do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais a nulidade da cláusula que, à semelhança da que aqui se analisa, “estabeleçam um foro competente que envolva graves inconvenientes para uma das partes, sem que os interesses da outra o justifiquem.”, que não pode tolerar-se se não advier, demonstradamente, do livre e incondicionado exercício da autonomia privada da parte prejudicada.
42ª Sendo que, evidentemente, os interesses da parte beneficiada a que alude a alínea g) do supracitado artigo 19º do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais não podem ser interesses ilegítimos, como o de dificultar ou até coarctar em absoluto, na prática, o recurso da parte prejudicada aos Tribunais, quer pelos custos inerentes à deslocação do litígio, quer pelas diferentes (e eventualmente desconhecidas) regras processuais e substantivas aplicáveis.
43ª Em face do exposto, a cláusula 16.8, que imporia tal foro, também por força do disposto na alínea g) do art. 19º do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, não poderia ter deixado de ser declarada nula pelo douto Tribunal a quo.
44ª E, assim sendo, não se aplicando o aludido “pacto privativo de jurisdição” pelas razões supra expendidas, as regras do Regulamento 44/2001 sempre determinariam a competência dos Tribunais portugueses.
45ª O mencionado Regulamento veio estabelecer a regra geral do domicílio como factor de conexão essencialmente relevante para a determinação da competência internacional do tribunal, no sentido de que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.
46ª Porém, tal regra não é absoluta, porquanto há casos em que, atendendo a especiais factores de conexão, é possível instaurar a acção nos tribunais de um Estado-Membro diverso daquele em que o sujeito passivo esteja domiciliado ou sedeado.
47ª O artigo 3º do Regulamento (CE) nº 44/2001 determina que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro só podem ser demandadas perante os tribunais de um outro Estado-Membro por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do capítulo onde se insere.
48ª Um desses casos é exactamente o aqui em apreço, nos termos do disposto na alínea a) do art. 5º da secção 2ª do Regulamento (CE) nº 44/2001.
49ª Isto, quer se entenda, como se crê, que a obrigação em causa se reporta aos termos do cumprimento dos contratos que vigoraram entre as partes, e à sua cessação, quer se se entendesse – o que não se sufraga – que a obrigação relevante no âmbito dos presentes autos seria apenas a de pagamento da indemnização de clientela e da compensação pelos danos sofridos que aqui se invoca.
50ª Estando nos presentes autos em causa um contrato de distribuição, cuja prestação característica é – como é sabido – a assumida pelo distribuidor, que assume perante o principal a obrigação de adquirir produtos deste, com vista à sua revenda num determinado local, e tendo, in casu, a Autora desenvolvido essa actuação em Portugal, local onde foram, como se disse na Petição Inicial, entregues e revendidos os produtos F… adquiridos junto da Ré, resulta claro que era em Portugal que deveria ter sido cumprida a obrigação em questão.
51ª De resto, à mesma conclusão chegaríamos se considerássemos que estaria aqui apenas em discussão o pagamento de uma indemnização por incumprimento contratual – o que apenas se admite por mero dever de cautela no patrocínio, e sem conceder – na medida em que seria sempre em Portugal que tal obrigação pecuniária deveria ser cumprida (cf. neste sentido o disposto nos artigos 774º e 566º, nº1 do Código Civil).
52ª Em suma: devendo a obrigação contratual em causa ser cumprida em Portugal, em qualquer dos dois cenários expostos, forçoso se mostra, sem mais delongas, concluir que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer da acção em causa, por força do disposto no art. 5°, nº 1, al. a), do Regulamento 44/2001.
53ª Ao decidir diferentemente fez o Tribunal a quo errada aplicação do Direito, designadamente, dos artigos 7º, nº 6, 8º, nº 4 e 13º da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 5°, nº 1, al. a) e 23º, nº 1 do Regulamento 44/2001, dos artigos 1º, 3º e 6º da Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993 e dos artigos 5º, 8º, al. a) e 19º, al. g) do Decreto-Lei nº 446/85 de 25 de Outubro.
54ª Mas ainda que assim não se entenda, sem conceder, certo é que tal pacto privativo de jurisdição sempre teria sido objecto de revogação tácita pelas partes, não podendo já ser invocado pela Ré.
55ª É facto inegável – e do conhecimento do Tribunal a quo – que a Ré intentou, perante os Tribunais portugueses, contra a Autora, acção destinada a cobrar montantes alegadamente em dívida por força da relação contratual estabelecida entre as partes a que supra se aludiu.
56ª Com efeito, ignorando então o pacto privativo de jurisdição inserto naquele contrato que invocou para se eximir à presente acção nos Tribunais Portugueses, optou a aqui Ré por intentar, em Portugal, acção contra a Autora, tendo, aí, quando questionada pelo Tribunal a sua competência em face do pacto privativo de jurisdição, reconhecido expressamente a competência do Tribunal Português.
57ª Na verdade, além de invocar que, nos termos do artigo 24º do Regulamento 44/2001 de 16 de Janeiro, é competente o tribunal de um Estado-Membro perante o qual o requerido compareça, defendeu a ali Autora a competência dos Tribunais portugueses para dirimir aquele litígio com base no facto de a relação comercial entre as partes estar já finda e o pacto privativo de jurisdição ali em causa ter de ser interpretado no sentido de apenas ser aplicável aos litígios decorrentes entre as partes na pendência da relação comercial existente entre as mesmas.
58ª Citada para contestar a identificada acção, não questionou a aqui Autora a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses, não só por considerar a cláusula correspondente ao pacto privativo de jurisdição inválida mas, também, por concordar com a Ré, ali Autora, na derrogação daquela cláusula que, assim deixava de poder ser aplicável ao contrato em causa, substituindo-se a mesma, por manifesto acordo entre as partes, pelo regime que corresponde ao supletivamente estabelecido pela alínea a) do nº 1 do artigo 5º do Regulamento (CE) nº 44/2001, de 16 de Janeiro.
59ª Como é evidente, tal prorrogação tácita de competência dá-se no momento em que a parte demandada comparece porquanto tal comparência corresponde à declaração de vontade convergente com aquela que também tacitamente foi assumida pela contraparte com a propositura da acção.
60ª Por outras palavras, carecendo a modificação do pacto privativo de jurisdição previamente acordado de um ulterior acordo de vontades, permite o artigo 24º que esse mesmo acordo seja tácito, e se consubstancie (i) no intentar por uma das partes da acção em jurisdição diversa da que havia sido prevista e, seguidamente (ii) na aceitação dessa jurisdição pela contraparte deduzida a sua apresentação em juízo sem arguir a incompetência do Tribunal.
61ª Esse acordo posterior revoga, necessariamente, qualquer anterior cláusula existente.
62ª Não se pode, pois, aceitar, ao contrário do que foi defendido pelo Tribunal a quo, que da conduta da Ré não se possa extrair qualquer declaração no sentido de derrogação da cláusula, quando é, precisamente, isso que resulta não só do intentar da acção em Portugal mas também da posição ali expressa que não se reconduz, naturalmente, àquela concreta acção, já que reportando-se à questão da competência dos Tribunais para dirimir litígios respeitantes ao contrato entre as partes, sempre terá de ser compreendida como posição relativa a todos os litígios originados no seio desse mesmo contrato, e não só, convenientemente, àqueles suscitados pela aqui Ré contra a aqui Autora...
63ª Em face do exposto, mal andou o Tribunal a quo, fazendo errada aplicação do disposto no artigo 24º do Regulamento (CE) nº 44/2001, ao decidir que não tinha ocorrido qualquer revogação da cláusula 16.8 do Contrato de 1 de Janeiro de 2010.
64ª Mas ainda que assim não se entendesse, e pudesse considerar-se que a conduta da Ré naqueloutra acção não consubstanciava uma verdadeira revogação da cláusula em questão (embora tal não se conceba), a invocação do pacto privativo de jurisdição sempre seria um manifesto venire contra factum proprium.
65ª Na verdade, enquanto nos presentes autos invoca a aqui Ré a incompetência internacional dos Tribunais português para dirimir o litígio em causa, em acção intentada pela mesma Ré contra a mesma Autora com base no mesmo contrato celebrado entre as partes, o foro elegido pela Ré foi o nacional, tendo-se esta expressamente batido, de forma veemente, pela competência internacional dos Tribunal Portugueses para apreciar a questão, e pretendendo, assim, derrogar a cláusula que no Contrato celebrado entre as partes atribuía a um foro estrangeiro a competência para dirimir litígios,
66ª Derrogação que a aqui Autora sem reservas aceitou, não só, como se referiu, por entender ser tal cláusula nula, mas, e em qualquer caso, por igualmente considerar ser o foro português o mais adequado para, atenta a localização da execução do contrato, discutir quaisquer temas como o mesmo relacionados.
67ª E, assim, num acordo testemunhado por um Tribunal português, as partes daquele contrato – leia-se Autora e Ré dos presentes autos – derrogaram expressamente a cláusula 16.8 do contrato, devolvendo aos tribunais nacionais a competência para julgar quaisquer conflitos provenientes daquela relação contratual.
68ª Ora, em acção contra si deduzida, vir a mesma Ré D… invocar a excepção dilatória de incompetência do foro, fazendo tábua rasa do que naquela acção havia defendido e invocado, pretendendo, assim, assumir uma posição diametralmente oposta à assumida em acção por si intentada, não pode deixar de configurar um caso típico de abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.
69ª O abuso de direito, previsto no artigo 334º do Código Civil, na modalidade de “venire contra factum proprium”, caracteriza-se, precisamente, pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente.
70ª Assumindo, no caso dos autos, o afastamento da cláusula 16.8 do contrato, o tal “factum proprium” e tendo a Autora, com fundamento e legitimidade, confiado na estabilidade desse mesmo “factum proprium”, o regresso à situação anterior – in casu, a invocação da excepção de incompetência internacional com base na violação de cláusula antes afastada – traduz-se numa flagrante injustiça, sendo manifesto que a confiança investida pela Autora na anterior conduta da Ré lhe é, naturalmente, recondutível.
71ª Injustiça essa que o Tribunal a quo não podia ter tolerado e que, confia-se, não deixará o douto Tribunal ad quem de censurar porquanto está visivelmente patente a necessidade ético-jurídica de impedir aquela conduta contraditória, designadamente, por não ser possível evitar ou remover de outra forma o prejuízo da Autora “confiante”, e por a situação conflituar com as exigências de conduta de uma contraparte que se exige leal, correcta e honesta – com os ditames da boa-fé em sentido objectivo.
72ª Só uma consciente má-fé por parte da Ré pode justificar que a mesma venha agora invocar a cláusula em causa quando a acção é intentada contra si e já não por si...
73ª Assim, e não podendo deixar de se concluir pela actuação da Ré com abuso de direito, sempre terá de improceder a questão da incompetência dos tribunais portugueses para dirimir o presente litígio, tendo, pois, de considerar-se derrogada pelas partes a cláusula 16.8 do contrato celebrado entre ambas e admitindo-se a competência dos tribunais portugueses para julgar tal litígio.
74ª Ao decidir diversamente fez o Tribunal a quo errada interpretação do disposto no artigo 334º do Código Civil.
Termos em que Deve ser a decisão em crise revogada e substituída por outra que, reconhecendo a competência internacional dos tribunais portugueses, aprecie o mérito da causa.
A recorrida respondeu a estas alegações, em não menos extensas e denodadas alegações que por não terem sido objecto de conclusões aqui se não apresentam, defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.
As conclusões das alegações de recurso demandam deste Tribunal que decida as seguintes questões:
i) Se estamos perante um litígio compreendido no âmbito territorial, material e temporal do Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22/12/2000, Relativo à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial.
ii) Se o pacto de jurisdição preenche os requisitos de validade consagrados no referido Regulamento.
iii) Se a validade do pacto pode ser excluída por aplicação de normas do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais vigente na ordem jurídica interna.
iv) Se a não ser assim se viola o princípio da igualdade ao tratar diferentemente os consumidores e os empresários que não puderam influenciar o teor das cláusulas que subscreveram quando estas situações são equiparáveis.
v) Se ao ter instaurado, antes desta acção em que é ré, uma acção perante os tribunais portugueses tendo por objecto obrigações emergentes do mesmo contrato, a aqui ré renunciou tacitamente à competência definida no pacto de jurisdição.
vi) Se por ter instaurado a anterior acção perante os tribunais portugueses, ao invocar agora nesta acção a excepção da incompetência internacional dos tribunais portugueses a ré actua abusando do direito.

III.
Os factos que relevam para a decisão a proferir são os que constam do relatório que antecede, havendo apenas que precisar os seguintes:
A) A redacção da cláusula 16.8 do contrato celebrado pelas partes com data de 1 de Janeiro de 2010 é a seguinte: “Este Acordo reger-se-á e será interpretado de acordo com a Lei Inglesa e as Partes submeter-se-ão à exclusiva jurisdição dos Tribunais Ingleses”.
B) Na acção nº 74910/12.6YIPRT instaurada na então 4ª Vara Cível da Comarca do Porto, a aqui ré demandou a aqui autora, alegando que ao abrigo das relações contratuais que com esta estabeleceu, designadamente através do contrato com data de 1 de Janeiro de 2010, lhe forneceu diversos produtos antivírus para comercialização no mercado português, mas a aqui autora não lhe pagou o respectivo preço, pedindo a sua condenação no pagamento dos montantes indicados nas facturas que descrimina.
C) Nesse processo, o Tribunal suscitou a questão da competência internacional para decidir a acção e convidou as partes a pronunciarem-se sobre essa questão.
D) A ali autora pronunciou-se defendendo a competência dos tribunais portugueses com base na seguinte argumentação:
“(…) 8- A competência internacional dos Tribunais Portugueses, resulta, no presente caso, do princípio da submissão do Réu ou competência convencional tácita, plasmado do artigo 24º do Regulamento em apreço, onde se estatui que “para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro perante o qual o requerido compareça (…)”
9- Resulta, assim, e desde logo, de tal normativo comunitário que, muito embora uma acção tenha sido instaurada no tribunal de um Estado-Membro que, em princípio, não era competente,
10- Todavia, a comparência da parte contrária torna o mesmo competente, a não ser que ser que essa comparência se destine a arguir tal incompetência ou, se existir competência exclusiva de outro tribunal por força do artigo 22º do Regulamento – o que não sucede in casu.
11- Ora, é inequívoca a comparência da Ré no presente pleito, que após citada, compareceu, apresentando a sua defesa (oposição à injunção e contestação aperfeiçoada) sem arguir a incompetência internacional,
12- Pelo que, são os Tribunais Portugueses os competentes para julgar a presente acção, por força do artigo 24º do Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22/12/2000.
13- (…) a incompetência internacional não é de conhecimento oficioso,
14- Porquanto, na secção 8ª do Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22/12/2000,referente à verificação da competência e sua admissibilidade, o Regulamento estatui no seu o artigo 25º, nº 1, que (…)
15- E, no artigo 26º, nº 1 do Regulamento dispõe que (…)
16- Assim, da conjugação dos dois normativos supra citados resulta que o Juiz só está obrigado a, oficiosamente, conhecer e declarar a incompetência internacional nas situações de competência exclusiva de um tribunal de um Estado-Membro e nas situações em que o réu, domiciliado num Estado-Membro, for demandado perante um tribunal de um outro Estado-membro e não compareça
17- Sendo que, nenhumas das situações supra descritas ocorre no presente caso,
18- Sem prescindir, ainda que assim não se entenda, o que não se concede e por mero dever de patrocínio se pondera, importa esclarecer que o pacto privativo de jurisdição, constante na clausula 16.8 do Acordo de Fornecimento e Distribuição junto aos autos, deve ser interpretado, e apenas aplicável, aos litígios decorrentes entre a Autora e Ré na pendência da relação comercial existente entre as partes,
19- Relação comercial essa, finda, conforme já oportunamente alegado e explanado.
20- Pelo que, também, à luz do princípio do domicílio do Réu, presente no artigo 2º, n.º 1 do Regulamento, advém a competência internacional do foro Português para julgar o presente pleito (…)”

IV.
Discute-se nos autos a competência internacional dos tribunais portugueses para preparar e julgar a presente acção.
Sendo a acção instaurada por uma sociedade comercial cuja sede social é em Portugal contra uma sociedade comercial cuja sede social é no Reino Unido e tendo a acção como causa de pedir uma relação contratual celebrada entre essas sociedades no âmbito da qual a ré fornecia à autora a partir do Reino Unido os seu produtos da marca F… e a autora adquiria os produtos fornecidos pela ré para depois os comercializar em Portugal, estamos seguramente perante um litígio emergente de uma relação plurilocalizada ou transnacional.
Essa circunstância coloca o problema da competência internacional para o julgamento da acção que aqui importa decidir.
A legislação portuguesa, como as dos demais países, define os critérios em função dos quais reconhece aos tribunais portugueses competência internacional. Tendo a acção sido instaurada em 23.07.2013, antes portanto de 01.09.2013, data em que entrou em vigor o novo Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, e sendo certo que nos termos do artigo 22.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Março, a competência dos tribunais se fixa no momento em que a acção se propõe, tais critérios são os contidos nos artigos 65.º, 65.º-A e 99.º do antigo Código de Processo Civil.
Prevê este último artigo a faculdade de as partes estenderem ou modificarem a competência internacional através de pactos privativos ou atributivos de jurisdição. De acordo com o preceito as partes podem convencionar qual a jurisdição competente para dirimir um litígio determinado, ou os litígios eventualmente decorrentes de certa relação jurídica, contanto que a relação controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica. No entanto, nos termos do n.º 3 do preceito, esse pacto apenas é válido se se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos: a) dizer respeito a um litígio sobre direitos disponíveis; b) ser aceite pela lei do tribunal designado; c) ser justificada por um interesse sério de ambas as partes ou de uma delas, desde que não envolva inconveniente grave para a outra; d) não recair sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses; e) resultar de acordo escrito ou confirmado por escrito, devendo nele fazer-se menção expressa da jurisdição competente.
Sucede que Portugal e o Reino Unido fazem ambos parte da União Europeia, pelo que importa chamar à colação as normas jurídicas europeias sobre esta matéria. O regime comunitário aplicável está contido no Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22/12/2000, Relativo à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial (substituído a partir de 10 de Janeiro de 2015 pelo Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, todavia não aplicável aos presente autos nos termos do respectivo artigo 60.º que delimita a sua aplicação às acções instaurada após aquela data).
O referido Regulamento é obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados-Membros em conformidade com o Tratado que institui a Comunidade Europeia. Isso mesmo resulta do disposto no artigo 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia segundo o qual “o regulamento tem carácter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados-Membros”. E resulta ainda do disposto no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.
Por conseguinte, na ordem jurídica portuguesa vigoram em simultâneo dois regimes gerais de competência internacional: o regime comunitário e o regime interno. No entanto, quando a acção estiver compreendida no âmbito de aplicação do regime comunitário, é esse regime que prevalece sobre o regime interno por ser de fonte hierarquicamente superior e face ao princípio do primado do direito europeu.
Por essa razão o Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, quando alterou os artigos 65.º e 65.º-A do antigo Código de Processo Civil, acrescentou no início da respectiva redacção a ressalva “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos comunitários e em outros instrumentos internacionais”, com o propósito afirmado no preâmbulo do diploma de colocar as normas processuais nacionais de competência internacional “em consonância com o regime do Regulamento (CE) n.º 44/2001” (no novo Código de Processo Civil a ressalva mantém-se mas passou a estar integrada na norma geral relativa à competência internacional do artigo 59.º).
Conforme foi afirmado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia entre vários outros no Acórdão de 8.09.2010, no processo C-409/06 (Winner Wetten GmbH contra Bürgermeisterin der Stadt Bergheim), publicado na Colectânea de Jurisprudência 2010-I-08015, “(…) resulta de jurisprudência assente [que], por força do princípio do primado do direito da União, as disposições do Tratado e os actos das instituições directamente aplicáveis têm o efeito de, nas suas relações com o direito interno dos Estados-Membros, impedir de pleno direito, pelo simples facto da sua entrada em vigor, qualquer disposição contrária da legislação nacional (v., designadamente, acórdãos Simmenthal, já referido, n.º 17, e de 19 de Junho de 1990, Factortame e o., C-213/89, Colect., p. I-2433, n.º 18). 54. Com efeito, como salientou o Tribunal de Justiça, as normas do direito da União directamente aplicáveis, que são uma fonte imediata de direitos e obrigações para todos, sejam Estados-Membros ou particulares partes em relações jurídicas abrangidas pelo direito da União, devem produzir a plenitude dos seus efeitos de modo uniforme em todos os Estados-Membros, a partir da sua entrada em vigor e durante todo o seu período de validade (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Simmenthal, n.os 14 e 15, e Factortame e o., n.º 18). 55. Resulta igualmente de jurisprudência assente que qualquer juiz nacional, no âmbito da sua competência, tem, enquanto órgão de um Estado-Membro, a obrigação, por força do princípio da cooperação consagrado no artigo 10.° CE, de aplicar integralmente o direito da União directamente aplicável e de proteger os direitos que este confere aos particulares, não aplicando nenhuma disposição eventualmente contrária da lei nacional, seja anterior ou posterior à norma do direito da União (v., neste sentido, designadamente, acórdãos, já referidos, Simmenthal, n.os 16 e 21, e Factortame e o., n.º 19).”
A presente acção está compreendida no âmbito territorial, material e temporal do Regulamento 44/2001. Com efeito, o regulamento é aplicável em todos os Estados-Membros, designadamente ao Reino Unido e à Irlanda, que notificaram a intenção de se vincular a este regulamento; o litígio tem conexão com o território de Estados-Membros vinculados pelo Regulamento, Portugal e Reino Unido, sendo que o requerido está domiciliado num desses Estados-Membros; a acção tem por objecto matéria comercial não excluída do âmbito do Regulamento por nenhum dos seus preceitos; a acção foi instaurada depois de 1 de Março de 2002, data em que entrou em vigor o Regulamento (artigos 66.º e 76.º do Regulamento), o qual é aplicável apenas às acções judiciais intentadas depois da sua entrada em vigor.
Tal qual o artigo 99.º do nosso antigo Código de Processo Civil (artigo 94.º do novo) o artigo 23.º do Regulamento consente que as partes convencionem um foro específico para julgar o seu conflito. Nos termos do preceito “se as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado-Membro, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência. Essa competência será exclusiva a menos que as partes convencionem em contrário”.
Resulta da norma que o pacto de jurisdição é válido desde que pelo menos uma das partes se encontre domiciliada no território de um Estado-Membro, que o pacto atribua competência a um tribunal ou aos tribunais de um Estado-Membro e se trate de uma situação jurídica internacional (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.2015, Gregório Jesus, processo n.º 877/12.7TVLSB.L1-A.S1, in www.dgsi.pt). A grande diferença relativamente ao direito nacional é que a validade do pacto não está dependente dos requisitos cumulativos enunciados no n.º 3 do artigo 99.º do antigo Código de Processo Civil, designadamente o requisito de a escolha do foro “ser justificada por um interesse sério de ambas as partes ou de uma delas, desde que não envolva inconveniente grave para a outra”.
Sustenta a recorrente que não obstante isso, isto é, não obstante a situação cair dentro do âmbito de aplicação do Regulamento n.º 44/2001 e o pacto preencher os requisitos exigidos neste diploma europeu, o pacto é nulo por violação de normas do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais consagrado no Decreto-Lei nº 445/86, de 25 de Outubro e, consequentemente, deve ser recusada a sua aplicação, aceitando os tribunais nacionais a competência internacional que resulta das demais disposições do Regulamento.
A primeira objecção a fazer à tese do recorrente é a de que as partes não convencionaram apenas o foro competente, definiram outrossim a lei aplicável e essa não é a lei portuguesa em cujas disposições o recorrente se ancora, em exclusivo, para defender a invalidade do pacto de jurisdição.
Na verdade, nos termos do artigo 3.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de Junho de 2008 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), “o contrato rege-se pela lei escolhida pelas partes”. No caso, segundo a cláusula 16.8 do contrato, este “reger-se-á e será interpretado de acordo com a Lei Inglesa”.
Acresce que nos termos do n.º 1 do artigo 10.º do citado Regulamento “a existência e a validade substancial do contrato ou de alguma das suas disposições são reguladas pela lei que seria aplicável, por força do presente regulamento, se o contrato ou a disposição fossem válidos”. Por outras palavras, no caso a validade da cláusula de escolha do foro e da lei aplicável são reguladas pela lei inglesa pois é essa a lei aplicável se essa cláusula for válida. O n.º 2 da norma contém uma excepção a essa regra, estabelecendo que “o contraente, para demonstrar que não deu o seu acordo, pode invocar a lei do país em que tenha a sua residência habitual, se resultar das circunstâncias que não seria razoável determinar os efeitos do seu comportamento nos termos da lei designada no n.º 1”. No caso não foi invocada nenhuma circunstância para permitir fazer essa determinação, pelo que subsiste a regra do n.º 1: a validade da cláusula de escolha da lei aplicável é regulada pela lei inglesa.
Por isso, não sendo aplicável ao contrato a lei portuguesa, está-nos vedado aplicar ao contrato o Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais constante do Decreto-Lei nº 445/86, de 25 de Outubro. E não vindo invocado o preenchimento da previsão de qualquer preceito legal da ordem jurídica inglesa que seja fundamento legal da invalidade da cláusula de escolha do foro, não há como ou porque concluir no sentido dessa invalidade.
A segunda objecção resulta do facto de o Tribunal de Justiça ter vindo a interpretar as normas da Convenção de Bruxelas e depois do Regulamento n.º 44/2001 que definem os requisitos do pacto de jurisdição como contendo um conceito autónomo relativamente aos direitos nacionais dos Estados-Membros, cujos requisitos são estritamente os que constam daqueles instrumentos legais transnacionais, os quais devem ser lidos em função do objectivo de assegurar a segurança jurídica na determinação do tribunal competente.
Assim, por exemplo, no Acórdão de 16.03.1999, processo C-159/97, Trasporti Castelletti Spedizioni Internazionali SpA e Hugo Trumpy SpA, o Tribunal de Justiça afirmou que:
“48. Tal como o Tribunal de Justiça afirmou em diversas ocasiões, obedece ao espírito de segurança jurídica, que constitui um dos objectivos da convenção, o facto de o juiz nacional a quem foi submetida a questão poder facilmente pronunciar-se sobre a sua própria competência com base nas regras da convenção, sem ser obrigado a proceder a um exame do processo quanto ao mérito (acórdãos de 22 de Março de 1983, Peters, 34/82, Recueil, p. 987, n.º 17; de 29 de Junho de 1994, Custom Made Commercial, C-288/92, Colect., p. I-2913, n.º 20; e Benincasa, já referido, n.º 27). Nos n.os 28 e 29 do acórdão Benincasa, já referido, o Tribunal de Justiça precisou que esta preocupação de garantir a segurança jurídica através da possibilidade de prever com segurança o foro competente foi interpretada, no âmbito do artigo 17.º da convenção, através da fixação de condições de forma estritas, tendo esta disposição por objectivo designar, de forma clara e precisa, um tribunal de um Estado contratante a quem é atribuída competência exclusiva em conformidade com o consenso das partes. 49. Resulta do exposto que a escolha do tribunal designado só pode ser apreciada à luz de considerações ligadas às exigências estabelecidas pelo artigo 17.º. 50. Foi por estas razões que o Tribunal de Justiça concluiu em várias ocasiões que o artigo 17.º da convenção abstrai de qualquer elemento objectivo de conexão entre a relação controvertida e o tribunal designado (acórdãos de 17 de Janeiro de 1980, Zelger, 56/79, Recueil, p. 89, n.º 4; MSG, já referido, n.º 34; e Benincasa, já referido, n.º 28). 51. Pelas mesmas razões, numa situação como a dos autos no processo principal, deve excluir-se o controlo suplementar do mérito da cláusula e do objectivo prosseguido pela parte que a inseriu, e não pode ser reconhecida qualquer incidência, quanto à validade da referida cláusula, das normas substantivas em matéria de responsabilidade aplicáveis no tribunal escolhido. 52. Deve, por consequência, responder-se às terceira, sétima e sexta questões que o artigo 17.º, primeiro parágrafo, segunda frase, terceira hipótese, da convenção deve ser interpretado no sentido de que a escolha do tribunal designado numa cláusula atributiva de jurisdição só pode ser apreciada à luz de considerações ligadas às exigências estabelecidas pelo artigo 17.º da convenção. São estranhas a estas exigências quaisquer considerações relativas aos elementos de conexão entre o tribunal designado e a relação controvertida, ao mérito da causa e às normas substantivas em matéria de responsabilidade aplicáveis no tribunal escolhido.” [sublinhados nossos].
Sendo assim, parece sustentável que independentemente de ter na origem cláusulas contratuais gerais, o pacto de jurisdição deverá ser reconhecido como válido mesmo que o foro designado como competente envolva graves inconvenientes para uma das partes, sem que os interesses da outra o justifiquem.
Da mesma forma, se o Regulamento n.º 44/2001 permite o pacto de jurisdição independentemente dessa conexão, assim afastando, no seu âmbito espacial, material e temporal, o obstáculo da alínea c) do n.º 3 do artigo 99.º do antigo Código de Processo Civil que exige que a escolha do foro se justifique por um interesse sério de ambas as partes ou de uma delas e não envolva inconveniente grave para a outra, parece que essa exigência não poderá ser recolocada por via de outra norma do direito nacional, designadamente o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais. Cremos bem que se assim não for resultará frontalmente violado o princípio da primazia do direito europeu e colocado em crise o objectivo da segurança jurídica na determinação do tribunal competente prosseguido pelo Regulamento n.º 44/2001.
No que concerne à comunicação (adequada) da cláusula de escolha do foro, cuja falta, tratando-se de uma cláusula cujo conteúdo tenha sido previamente elaborado e sem se permitir ao destinatário influenciá-lo, poderia motivar a sua exclusão do contrato com fundamento nos artigo 1.º, n.º 2, 5.º e 8.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, convém não esquecer que o Regulamento n.º 44/2001 é taxativo quanto às condições de existência e de validade formal do pacto.
Ao exigir que o pacto atributivo de jurisdição seja celebrado (a) por escrito ou verbalmente com confirmação escrita, (b) em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si, ou (c), no comércio internacional, em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado, o Regulamento não define somente a forma que o pacto deve adoptar mas também define que o cumprimento desses requisitos de forma é bastante para tornar o pacto válido e eficaz.
Parece, portanto, dever entender-se que havendo um contrato escrito assinado por ambas as partes, como aqui sucede, donde conste o pacto de jurisdição, a validade material dessa cláusula só poderá ser questionada com fundamento, por exemplo, na falta de capacidade dos outorgantes ou de vício de representação de quem outorgou o contrato em seu nome.
Nessa medida, tendo a autora defendido que não lhe foi consentido negociar as cláusulas do contrato pelo que não lhe restou outra solução comercial que não aceitar o contrato e assiná-lo, isto é, não questionando a autora que subscreveu o contrato, que tem conhecimento das suas cláusulas e que, embora naquelas condições de falta de alternativa comercial, as aceitou, tanto parece bastar para preencher os requisitos do Regulamento n.º 44/2001 necessários para assegurar a validade e eficácia do pacto de jurisdição, face ao já referido objectivo de segurança jurídica que lhe preside.
Esta questão da possibilidade de questionar a validade do pacto de jurisdição com fundamento em normas do direito interno, designadamente as relativas ao regime jurídico das cláusulas contratuais vigentes entre nós, foi abordada e decidida recentemente pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 11.02.2015, Gregório Jesus, no processo n.º 877/12.7TVLSB.L1-A.S1, in www.dgsi.pt. Neste aresto, após citação da posição sufragada pelo Tribunal de Justiça nos Acórdãos de 14.12.1976 (Estasis Salotti di Colzani v. Rüwa), de 03.07.1997 (Benincasa v. Dentalkit), de 10.03.1992 (Powell Doffryn v. Wolfang Petereit), de 07.02.2013 (Refcomp SpA v. Axa Corporate Solutions Assurance S.A. e outros) e de 16.03.1999 (Trasporti Castelletti Spedizioni Internazionali SpA v. Hugo Trumpy SpA), afirma-se o seguinte:
“A orientação do TJUE é, pois, categórica e inequívoca no sentido dos requisitos de validade do pacto de jurisdição só serem aqueles que estão vertidos no art. 23.º do Regulamento n.º 44/2001. (…)
Destarte, é irrelevante para esse efeito fazer qualquer tipo de apreciação da validade do pacto de jurisdição à luz do direito interno do respectivo Estado-Membro.
E, assim sendo, para que a escolha do tribunal seja válida é desnecessário que exista qualquer conexão entre o objecto do litígio e o tribunal designado, não sendo valoráveis, designadamente, os hipotéticos inconvenientes, para uma das partes, da localização do foro convencionado. (…)
Adicionalmente, mesmo que se pondere que nos deparamos com uma cláusula contratual geral, tem se atender ao facto de a autora/recorrida ser uma sociedade comercial que se dedica à fabricação de produtos de papel e alimentares, e, por isso mesmo, uma entidade com natureza empresarial e não um mero consumidor individual.
Ora, nessa circunstância, inexiste qualquer disposição de Direito da União Europeia que deva ser respeitada, ao abrigo do art. 67.º do Regulamento, pelo que a validade do pacto de jurisdição é aferida exclusivamente pelo disposto no art. 23.º do Regulamento.
Só assim não seria se a cláusula contratual geral estivesse integrada num contrato celebrado com um consumidor, pois, nessa circunstância, decorre do art. 67.º do Regulamento, de forma indirecta, que se impõe a consideração do disposto na Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 05/04/1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores – cf., v.g., art. 3.º, n.º 3 da Directiva e n.º 1, al. q), do Anexo à Directiva (pode ser abusiva a cláusula que suprima ou entrave a possibilidade de intentar acções judiciais ou seguir outras vias de recurso por parte do consumidor).
Em todo o caso, mesmo aventando que o pacto de jurisdição constava de uma cláusula contratual geral e que se considerasse que o contrato foi outorgado em Portugal, constando as cláusulas em apreço de dois contratos de swap celebrados entre empresários ou entidades equiparadas (para utilizar a terminologia da Secção II LCCG), nunca seria de aplicar a Directiva 93/13/CEE – ou o regime do art. 21.º da LCCG (que está inserido na Secção III reportada aos consumidores finais) – por não estar em causa qualquer consumidor.
Acrescenta-se, também, e como já antes se demonstrou, que jamais seria de recorrer ao art. 19.º, al. g), da LCCG, por se tratar de um normativo de direito interno, não resultante do direito europeu, o qual é insusceptível de prevalecer sobre o regime do art. 23.º do Regulamento n.º 44/2001.
Em resumo: a validade do pacto de jurisdição constante de uma cláusula contratual geral integrada num contrato celebrado entre um empresário ou entidade equiparada é analisada, exclusivamente, segundo o disposto no art. 23.º do Regulamento n.º 44/2001.”
A mesma posição foi mais recentemente seguida também pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08.09.2015, Afonso Henriques, processo n.º 542/14.0TVLSB-1, in www.dgsi.pt. E mereceu inteira adesão de Miguel Teixeira de Sousa que considera mesmo em post do blog do IPPC, in http://blogippc.blogspot.pt/ 2015/02/jurisprudencia-86.html, tratar-se da “única posição possível”.
Segundo Teixeira de Sousa in http://blogippc.blogspot.pt/2014/04/pactos-de-jurisdicao-e-swaps-demasiado.html:
“A orientação do TJ é bastante clara: (i) os requisitos de validade da convenção de competência só podem ser aqueles que constam do art. 17.º CBrux (agora do art. 23.º Reg. 44/2001 e, a partir de 10/1/2015, do art. 25.º Reg. 1215/2012), pelo que o direito dos Estados-membros não pode acrescentar outros requisitos de validade a essa convenção; (ii) para que a escolha do tribunal seja válida não é necessário que exista uma qualquer conexão entre o objecto do litígio e o tribunal designado. (…) Começando pelo comentário de referência ao Reg. 44/2001, nele afirma-se, sobre a matéria em análise, o seguinte: “No seu campo de aplicação, o art. 23.º decide exclusivamente [realce no original] sobre a admissibilidade, a forma e os efeitos de uma convenção de competência. Por isso, a escolha do tribunal designado só pode ser apreciada com base em considerações que estejam em conexão com os requisitos do art. 23.º. […] O preceito renuncia a exigir qualquer conexão objectiva entre o tribunal escolhido e o objecto do litígio. Não importam as considerações nem sobre as relações entre o tribunal acordado e o objecto litigioso, nem sobre a adequação da cláusula de escolha do foro, nem sobre o direito material em vigor no tribunal escolhido” (Kropholler/von Hein, Europäisches Zivilprozessrecht, 9.ª ed. (2011), Art. 23 EuGVO 17). A mesma orientação encontra-se em muita outra doutrina. (…) Na doutrina portuguesa, cf., no mesmo sentido, S. Henriques, Os Pactos de Jurisdição no Regulamento (CE) n.º 44 de 2001 (2006), 81 s.”
Ainda a propósito das condições em que o regime constante do art. 23.º Regulamento n.º 44/2001 é exclusivo na apreciação da validade da convenção de competência, designadamente quando esta consta de uma cláusula contratual geral, este autor acrescentou depois o seguinte in http://blogippc.blogspot.pt/2014/04/pactos-de-jurisdicao-e-swaps-demasiado_30.html:
“1. (…) O que se tem entendido é o seguinte:
– Se a cláusula contratual geral estiver contida num contrato celebrado com um consumidor, o art. 67.º Reg. 44/2001 impõe a consideração do disposto na Direct. 93/3/CEE, de 5/4/1993; nos termos do art. 3.º, n.º 3, Direct. 93/13/CE e do n.º 1, al. q), Anexo Direct. 93/13/CEE, pode ser abusiva a cláusula que suprima ou entrave a possibilidade de intentar acções judiciais ou seguir outras vias de recurso por parte do consumidor; salienta-se na doutrina, no entanto, que esta possibilidade de controlo não tem sentido prático, dado que é o próprio art. 23.º, n.º 5, Reg. 44/2001 e a respectiva remissão para o disposto no art. 17.º Reg. 44/2001 que determinam o modo como o consumidor é protegido no âmbito do Reg. 44/2001: essa protecção é conseguida através do disposto no art. 17.º Reg. 44/2001, que estabelece em que condições uma convenção de competência celebrada por um consumidor é válida e que “exclui convenções de competência em desfavor do consumidor”, constem elas de uma cláusula negociada ou de uma cláusula contratual geral (cf. Kropholler/von Hein, Europäisches Zivilprozessrecht, 9.ª ed. (2011), Art. 23 EuGVO 20; Brüssel I Verordnung/unalex Kommentar (2012)/Hausmann, Art. 23 22; no entanto, é referido Heinig, Grenzen von Gerichtsstandsvereinbarungen im Europäischen Zivilprozessrecht (2010), 317 ss. e 334 ss., como entendendo que a aplicação do Reg. 44/2001 não afasta que o consumidor também deva ser protegido pelos padrões mínimos impostos pela Direct. 93/13/CEE);
– Se a cláusula contratual geral constar de um contrato celebrado com um empresário ou uma entidade equiparada, não há nenhuma disposição de direito europeu especial que deva ser respeitada nos termos do art. 67.º Reg. 44/2001, pelo que, neste caso, a validade da convenção de competência contida na cláusula é aferida exclusivamente pelo disposto no art. 23.º Reg. 44/2001.
2. Resta retirar as consequências do exposto para uma convenção de competência que consta de uma cláusula contratual geral contida num contrato celebrado em Portugal:
– Se a cláusula contratual geral constar de um contrato celebrado com um consumidor, há que dar prevalência ao direito europeu, mas a aplicação do disposto nos art. 19.º, al. g), e 20.º LCCG (diploma que transpôs a Direct. 93/13/CEE) é consumida pela aplicação do art. 17.º Reg. 44/2001; o que realmente se verifica é que a aplicação de direito europeu (Direct. 93/13/CEE) é afastada por outro direito europeu (art. 17.º Reg. 44/2001);
– Se a cláusula contratual geral constar de um contrato celebrado com um empresário ou uma entidade equiparada, não se aplica a Direct. 93/13/CEE (porque não está envolvido nenhum consumidor) e também não se pode aplicar o estabelecido no art. 19.º, al. h), LCCG (porque é puro direito interno, não imposto por direito europeu, e, por isso mesmo, insusceptível de prevalecer sobre o art. 23.º Reg. 44/2001); dito pela positiva: a validade de uma convenção de competência que consta de uma cláusula contratual geral num contrato celebrado com um empresário ou entidade equiparada é analisada exclusivamente segundo o disposto no art. 23.º Reg. 44/2001 (ou, a partir de 10/1/2015, no art. 25.º Reg. 1215/2012).”
Acompanhamos esta posição e em consonância com a mesma concluímos assim que a argumentação desenvolvida pela recorrente a propósito da aplicação do regime jurídico nacional das cláusulas contratuais gerais ao pacto de jurisdição convencionado no contrato não pode permitir questionar e afastar a validade e eficácia do aludido pacto que no caso atribui a jurisdição aos tribunais ingleses.
Quanto ao argumento de que por essa via se tratam diferentemente situações equiparáveis e se viola o princípio da igualdade, diremos que não podemos estar mais em desacordo com a recorrente e que não são equiparáveis a posição de um consumidor e a posição de um empresário que celebra um contrato individual contendo cláusulas que não lhe foi consentido que negociasse e influenciasse.
Como sabemos, a Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de Julho), define no seu artigo 2.º consumidor como todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.
Na Directiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, cujo âmbito de aplicação é restrito “aos contratos celebrados entre um profissional e um consumidor” (artigo 3.º), define-se o consumidor como “qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue com fins que não se incluam no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional” e define-se o profissional como “qualquer pessoa singular ou colectiva, pública ou privada, que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue, incluindo através de outra pessoa que actue em seu nome ou por sua conta, no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.
A protecção especial de que beneficiam os consumidores resulta dessa particular relação: a relação entre quem adquire bens ou serviços destinados a uso não profissional e quem lhos fornece ou presta no âmbito da sua profissão. É essa desigualdade material entre quem actua sem disso fazer profissão ou sem ser no âmbito da sua profissão e, por conseguinte, fora do âmbito de influência dos conhecimentos profissionais ou comuns na profissão, e quem actua fazendo disso profissão e, portanto, munido de conhecimentos e práticas que lhe permitiram transformar essa actuação numa profissão, que justifica diferenças significativas de tratamento entre consumidores e profissionais.
É substancialmente diferente a posição de quem pratica um acto isolado, para seu próprio uso ou benefício e não com vista a um posterior relacionamento profissional com terceiro, e a posição de quem se colocou no mercado profissional, afectando meios e conhecimento ao desenvolvimento de uma actividade que visa o lucro e pressupõe o relacionamento lucrativo com a generalidade das pessoas a quem possa vender os seus produtos e serviços. Enquanto o primeiro em condições normais não tem conhecimentos que lhe permitam defender-se de um mercado que lhe é estranho e em cuja actividade e resultados não participa, preservar a sua autonomia negocial e tomar de modo livre e informado as suas decisões negociais, o segundo participa directamente nesse mercado e, portanto, é suposto que o conheça, que saiba interagir no seu meio e que se oriente de forma determinada para o lucro.
Mesmo quando negoceia com outrem com posição dominante ou mais forte um contrato cujo conteúdo pouco ou nada acabará por influenciar, o profissional detém, ao contrário do consumidor, o conhecimento necessário para saber das implicações da aceitação das cláusulas do contrato e estar alerta para as consequências que delas poderão advir. É assim possível alargar ao profissional protecções que são dispensadas aos consumidores, mas não é possível sustentar que àqueles devam ser dispensadas sempre as mesmas protecções que a estes são concedidas.
Por essa razão, como vimos, o regime jurídico da protecção dos consumidores exclui do seu âmbito os profissionais, e por exemplo no domínio das cláusulas contratuais gerais que vimos abordando precisamente, aos consumidores é dispensada uma protecção bem mais alargada que aos profissionais que celebrem contratos individuais com cláusulas que não puderam influenciar (cf. organização do diploma que num crescendo de previsões distingue as “relações entre empresários ou entidades equiparadas” das “relações com os consumidores finais”). Da mesma forma que o próprio Regulamento n.º 44/2001 trata diferentemente os consumidores dos não consumidores, estabelecendo regras de competência internacional específicas para aqueles e condicionando a liberdade de as partes estabelecerem pactos de jurisdição em contratos com consumidores (artigos 15.º a 17.º e 23.º, n.º 5).
Inexiste, pois, qualquer violação do princípio da igualdade ao não dispensar à autora, independentemente da possibilidade que ela teve de influenciar as cláusulas do seu contrato, o tratamento legal que seria dispensado a um comum consumidor quanto à validade e eficácia dessas cláusulas.
A questão seguinte que importa decidir consiste em saber se a instauração nos tribunais portugueses da anterior acção da aqui ré contra a aqui autora para obter a condenação desta a pagar o preço de bens fornecidos ao abrigo do contrato que contém o pacto de atribuição de jurisdição aos tribunais ingleses significa que a aqui ré renunciou tacitamente a esse pacto.
Esta questão liga-se com o disposto no artigo 24.º do Regulamento n.º 44/2001, que dispõe o seguinte: “Para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro perante o qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objectivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 22.º”.
Trata-se, como se vê, de uma extensão de competência (é essa a epígrafe da secção que contém os artigos 23.º e 24.º), isto é, de uma situação em que a competência para o julgamento do litigio se alarga, passando a ser competente não só o tribunal inicialmente designado por disposição do Regulamento como também aquele perante o qual o demandado compareça a oferecer a sua defesa.
A competência pode assim resultar não apenas do acordo explicito (pacto de jurisdição) como ainda do acordo implícito das partes que ao apresentarem-se perante aquele tribunal a demandar e a oferecer a sua defesa aceitam tacitamente a respectiva jurisdição, caso o requerido compareça em tribunal sem arguir no primeiro acto de defesa a incompetência do tribunal ao qual é posta a questão.
A interpretação do artigo 24.º do Regulamento n.º 44/2001 foi já feita pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 20.05.2010, no processo C-111/09 (Česká podnikatelská pojišťovna as Vienna Insurance Group), no qual se formulou a seguinte jurisprudência (os sublinhados são nossos):
“21. (…) o artigo 24.º, primeiro período, do Regulamento n.º 44/2001 estabelece uma regra de competência baseada na comparência do demandado no processo, aplicável a todos os litígios em que a competência do tribunal onde foi intentada a acção não decorra de outras disposições deste regulamento. Esta disposição é aplicável também nos casos em que a acção foi intentada em violação das disposições do referido regulamento e implica que a comparência do demandado no processo possa ser considerada uma aceitação tácita da competência do tribunal onde foi intentada a acção e, portanto, uma extensão da sua competência.
22. O artigo 24.º, segundo período, do Regulamento n.º 44/2001 prevê excepções a essa regra geral. Estabelece que não há uma extensão tácita da competência do tribunal onde foi intentada a acção se o demandado deduzir uma excepção de incompetência, expressando assim a sua vontade de não aceitar a competência desse órgão jurisdicional, ou se o litígio em causa for um dos litígios relativamente aos quais o artigo 22.º do referido regulamento estabelece regras de competência exclusiva. (…)
25. (…), segundo a jurisprudência relativa ao artigo 18.º da Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186), disposição idêntica, no essencial, ao artigo 24.º do Regulamento n.º 44/2001, nos casos que não constam expressamente de entre as excepções previstas na segunda frase do referido artigo 18.º, é aplicável a regra geral sobre a extensão tácita da competência. Ao pronunciar-se no âmbito de um litígio em que as partes tinham celebrado um pacto atributivo de jurisdição, o Tribunal de Justiça afirmou que não havia qualquer razão decorrente da economia geral ou dos objectivos da referida Convenção para se considerar estarem as partes impedidas de submeter um litígio a um órgão jurisdicional diferente do estipulado no pacto (v. acórdãos de 24 de Junho de 1981, Elefanten Schuh, 150/80, Recueil, p. 1671, n.º 10, e de 7 de Março de 1985, Spitzley, 48/84, Recueil, p. 787, n.os 24 e 25).
26. Nestas condições, uma vez que as regras de competência enunciadas na secção 3 do capítulo II do Regulamento n.º 44/2001 não são regras de competência exclusiva, o tribunal onde a acção foi intentada com inobservância das referidas regras deve declarar-se competente quando o demandado comparece no processo e não deduz qualquer excepção de incompetência.(…)
30. (…) embora nos domínios visados pelas secções 3 a 5 do capítulo II do mesmo regulamento as regras de competência tenham por objectivo oferecer à parte mais fraca uma protecção reforçada (v., a este respeito, acórdão de 13 de Dezembro de 2007, FBTO Schadeverzekeringen, C-463/06, Colect., p. I-11321, n.º 28), não pode ser imposta a essa parte a competência judiciária determinada por essas secções. Se essa parte decidir deliberadamente comparecer no processo, o Regulamento n.º 44/2001 dá-lhe a possibilidade de contestar o mérito da acção perante um órgão jurisdicional diferente dos determinados com base nas referidas secções.
33. Resulta do exposto que importa responder à segunda questão que o artigo 24.º do Regulamento n.º 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que o tribunal em que a acção foi intentada, sem que as regras constantes da secção 3 do capítulo II deste regulamento tivessem sido respeitadas, deve declarar-se competente quando o demandado comparece no processo e não deduz uma excepção de incompetência, constituindo essa comparência no processo uma extensão tácita da competência.”
Também no Acórdão de 11.09.2014, no processo n.º C-112/13, o Tribunal de Justiça assinalou que:
“50. (…) segundo jurisprudência constante, as disposições do Regulamento n.º 44/2001 devem ser interpretadas de maneira autónoma, com referência principalmente ao seu sistema e aos seus objectivos (v., neste sentido, acórdãos Cartier parfums-lunettes e Axa Corporate Solutions Assurance, C-1/13, EU:C:2014:109, n.º 32 e jurisprudência referida, e Hi Hotel HCF, C-387/12, EU:C:2014:215, n.º 24). (…)
53. (…) há que recordar, em primeiro lugar, que esse artigo 24.º faz parte do capítulo II, secção 7, do Regulamento n.º 44/2001, sob a epígrafe «Extensão de competência». O referido artigo 24.º, primeiro período, estabelece uma regra de competência assente na comparência do requerido, aplicável a todos os litígios em que a competência do tribunal onde foi intentada a acção não decorra de outras disposições deste regulamento. Esta disposição é aplicável também aos casos em que a acção foi intentada em violação das disposições do referido regulamento e implica que a comparência do requerido possa ser considerada uma aceitação tácita da competência do tribunal onde foi intentada a acção e, portanto, uma extensão da sua competência (v. acórdãos ČPP Vienna Insurance Group, C-111/09, EU:C:2010:290, n.º 21, e Cartier parfums-lunettes e Axa Corporate Solutions Assurance, EU:C:2014:109, n.º34).”
Como se vê, o que a secção 7 do capítulo II do Regulamento n.º 44/2001 prevê não são situações de renúncia tácita à competência, são situações de extensão (expressa e tácita) de competência. Por força do preenchimento da previsão do artigo 24.º a competência não se reduz ao tribunal onde o réu foi demandado e perante o qual compareceu sem arguir a respectiva incompetência, a competência alarga-se a esse tribunal que passa a ser também competente, tal qual o era e continuou a ser o tribunal designado pelo acordo das partes ou por disposição específica do Regulamento.
Nessa medida, a instauração da anterior acção não representa nem uma renúncia tácita à competência do tribunal designado no pacto (quando muito uma renúncia expressa à faculdade de instaurar a acção no outro tribunal competente), nem o estabelecimento de um novo pacto entre as partes que atribua competência exclusiva ao novo tribunal para toda e qualquer acção posterior relacionada com o mesmo contrato.
E com isto somos chegados à última questão suscitada pela recorrente: abuso do direito.
A esta questão podem opor-se desde logo duas das objecções já antes referidas.
Por um lado, sendo aplicável a lei inglesa, era aos institutos da ordem jurídica do Reino Unido que a recorrente tinha de recorrer para sustentar que a invocação da cláusula devesse ser considerada ilegítima, sendo que nenhum instituto daquela lei foi referido, tal como não foram alegados os factos necessários a preencher a respectiva previsão.
Por outro lado, face à jurisprudência do Tribunal de Justiça que autonomiza o conceito de pacto de jurisdição do Regulamento n.º 44/2001, impondo que a validade da convenção de competência seja aferida exclusivamente pelo disposto no art. 23.º do mesmo Regulamento, é duvidoso que a eficácia do pacto possa ser questionado com fundamento em institutos dos direitos nacionais cuja consequência jurídica não seja a invalidade da cláusula, mas apenas o impedimento da sua invocação em virtude de circunstâncias exteriores ao pacto e posteriores à sua celebração, sobretudo sabendo-se que um dos objectivos do Regulamento é a segurança jurídica na determinação da lei aplicável enquanto mecanismo necessário para assegurar a livre circulação no espaço europeu.
Como quer que seja, face à interpretação que atrás se fez do conteúdo do artigo 24.º do Regulamento propendemos para pensar que a atitude da aqui ré de instaurar primeiro uma acção nos tribunais nacionais, supondo e defendendo a sua competência, e defender depois na nova acção a incompetência dos mesmos tribunais, não constitui um abuso de direito, um venire contra factum proprium.
O artigo 334.º do Código Civil consagra a figura do abuso de direito do seguinte modo: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Segundo Orlando de Carvalho, in Teoria Geral do Direito Civil, Centelha, Coimbra, 1981, pág. 72: “Sendo embora uma extrema ratio na sindicância da ilicitude ... o abuso de direito não é, porém, um extremum nem no sentido de ser algo que força a legalidade reinante e, coagindo-a, digamos a uma inflexão ética insólita, nem no sentido de ser como que um remédio de excepção para pôr cobro a consequências clamorosas do jus strictum. O abuso de direito não é uma intrusão de ordem ética ... nem é, enfim, uma anomalia metódica (do ponto de vista do iter da sindicação da ilicitude). Nenhum juiz está dispensado de o conhecer, como não está dispensado de conhecer nenhuma instância do ilícito. ... Por outro lado, a correcção que ele permite não é uma correcção do sistema, mas uma correcção pelo sistema. Não é uma entorse ou um desvio da lei - é a voluntas da lei levada, em suma, até ao fim.”
O instituto do abuso do direito visa impedir situações em que a invocação ou exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça dominante – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2008, in www.dgsi.pt/jstj -. E isso é assim porque no exercício dos seus direitos toda a pessoa deve adoptar um comportamento honesto, correcto e leal, respeitando e correspondendo às legítimas expectativas que criou em outrem.
Enquanto cláusula de último controlo teleológico das actuações dos sujeitos de direito, o instituto do abuso de direito consagra a supremacia dos limites impostos designadamente pelos bons costumes sobre as actuações humanas. A parte que abusa do direito, actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito. Como refere Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 5.ª edição, pág. 260, “o direito subjectivo é substancialmente funcional, tem um sentido de utilidade que se perde se não tiver em atenção qual o fim do titular que deve realizar – ou contribuir para realizar – com êxito, e o bem que vai ser afectado à realização desse fim. Nesta perspectiva, a substância do direito subjectivo resulta do nexo funcional existente entre uma tríade de realidades: a pessoa, o seu fim e o meio utilizado para o realizar.”
“O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé.” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.11.96, in Colectânea de Jurisprudência - AcSTJ, 1996, tomo III, pág. 117. Para o efeito, não é necessário que a parte tenha a consciência de com a sua actuação exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, basta que objectivamente esse excesso ocorra – cf. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 7ª edição, pág. 536 –.
Existem diversas figuras típicas que encerram uma violação desse dever de actuação conforme às expectativas criadas e que reconhecidamente constituem exercícios abusivos do direito. Conta-se entre elas o chamado venire contra factum proprium que se reconduz à situação em que o titular do direito adopta um comportamento capaz de criar no outro pólo da relação jurídica a expectativa de que o direito é concebido e será exercido pelo seu titular em consonância com o significado desse comportamento, mas depois vem a actuar em contradição ou desconformidade com o comportamento anterior, frustrando aquela confiança.
Constituem modalidades desta figura os casos chamados suppressio e surrectio. Tratam-se dos casos em que o comportamento do titular do direito ao longo do tempo criou a legítima confiança de que aquele não exercerá mais o direito ou renunciou a ele ou então que reconhece a outrem um direito ou faculdade jurídica que de outra forma não existiria ou já se encontrava extinta.
Enquanto formas de tutela da confiança concitada noutrem por um determinado comportamento, o que releva é o significado da aparência do comportamento, a ilação que o mesmo permite quanto ao comportamento da mesma pessoa – do mesmo titular do interesse juridicamente protegido – no futuro. Por isso, não importa se por não exercer o direito, o seu titular queria ou não renunciar ao mesmo, nem isso poderia ser facilmente concluído a partir de um comportamento – puramente – omissivo. Importa sim que a esse comportamento possa ser legitimamente associado um determinado significado perceptível pelo comum dos destinatários. Menezes Cordeiro, in Da boa fé no direito civil, Almedina, 3.ª reimpressão, a pág. 811, nota 607, cita Griebeling para afirmar que este “analisa com mérito o condicionalismo a aditar ao decurso do tempo para que de suppressio seja o caso, em: a) comportamento exterior: o titular deve comportar-se como se não tivesse o direito ou não mais quisesse exercê-lo; b) previsão de confiança: a contraparte confia em que o direito não mais será feito valer; c) desvantagem injusta: o exercício superveniente do direito acarretaria, para a outra parte, uma desvantagem iníqua”.
Assim, mais que o tempo e para além do tempo, tornam-se necessários indícios objectivos desse significado que permitam concluir que a confiança criada não foi iminentemente subjectiva – correspondente à vontade e desejo de outrem – mas objectivamente fundada, só assim merecendo a tutela do direito. Para tanto, esses elementos objectivos hão-de indiciar que o direito não mais será exercido ou se renunciou a ele em definitivo. O que significa afinal que as circunstâncias e o contexto em que o comportamento tem lugar podem ser decisivas para a interpretação do seu significado.
Feito este breve enquadramento teórico do instituto do abuso do direito, centremos a atenção nos dados do caso, recordando que a partir do momento em que o artigo 24.º do Regulamento n.º 44/2001 constitui uma extensão da competência e não uma redução ou modificação da competência, qualquer das partes no contrato pode instaurar uma acção num tribunal não designado no pacto de jurisdição, ficando, no entanto, dependente de que o réu compareça perante esse tribunal e não argua a incompetência deste.
Nessa situação, independentemente do que o pacto de jurisdição possa definir sobre a competência, o simples facto de o requerido comparecer em tribunal e não arguir a incompetência do tribunal onde a acção foi proposta, optando por apresentar somente a sua defesa quanto ao fundo da causa, determina que a competência fique atribuída também a este tribunal.
Este desfecho é independente do acordo anterior das partes e não pressupõe que haja qualquer novo acordo entre elas já que o que define a competência é a comparência do réu e a sua opção por não arguir a incompetência do tribunal. Note-se, aliás, que essa extensão de competência ocorre ainda quando conduza à derrogação das competências de protecção, só cedendo perante as normas do Regulamento que definem competências exclusivas (artigo 22.º), ao contrário do que sucede com a definição de competência através do pacto de jurisdição que nunca pode contrariar as regras de competência em matéria de seguros, contratos celebrados por consumidores e contratos individuais de trabalho (artigo 23.º, n.º 5).
Foi precisamente isso que a aqui ré e autora da anterior acção sustentou, pelo menos a título principal, quando nessa o tribunal a convidou a justificar a instauração da acção perante os tribunais portugueses ao arrepio do pacto de jurisdição que atribuía a competência aos tribunais ingleses. Sendo assim, entendemos que não existiu uma situação de confiança imputável à ali autora que pudesse fazer a ali ré confiar legitimamente que numa qualquer outra acção relativa ao contrato a ré adoptaria comportamento idêntico ao seu, de aceitar ser demandada noutro tribunal à sua escolha sem arguir a incompetência do tribunal.
Se estamos perante competências cumulativas, ou seja, perante uma situação em que existe mais que um tribunal a poder vir a ser considerado competente e a parte pode optar por qualquer deles para instaurar a acção (num à margem do posicionamento da parte contrário, no outro na dependência da aceitação por esta dessa designação), parece seguro que uma parte não pode confiar que noutra acção posterior a parte contrária não venha a fazer opção distinta, sobretudo quando o êxito da sua opção inicial dependeu exclusivamente não da parte que fez a opção, mas da parte que aceitou essa opção da outra. Se confiou nessa hipótese, confiou por seu livre alvedrio e porque isso lhe convém ou é do seu interesse, não por a parte contrária ter feito uma opção geradora para terceiros de uma confiança firme em que no futuro a sua opção continuaria a ser a mesma.
A aqui autora não abusa do direito precisamente porque continua a exercê-lo nos precisos termos em que o Regulamento lho consente, e esse exercício, melhor essa liberdade de exercício, é conforme aos objectivos a que se propõe a norma do artigo 24.º do Regulamento: facilitar a instauração de acções e a livre circulação de decisões em matéria civil e comercial para desenvolver um espaço de liberdade, de segurança e de justiça e assegurar o bom funcionamento do mercado interno.
Concluímos, assim, no sentido da improcedência também da questão do abuso do direito suscitada pela recorrente. E com isso pela improcedência total do recurso.
Uma última nota para dizer que não ignoramos o disposto no artigo 367.º, n.º 3, do TFUE, segundo o qual sempre que uma questão relativa à interpretação ou à validade dos tratados ou de um acto europeu seja suscitada num processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça. Da mesma forma que não ignoramos a decisão do Tribunal de Justiça no recente Acórdão de 9.9.2015, no processo C-160/14, sobre as consequências da não submissão das questões à interpretação daquele tribunal e do risco de se fazer das normas europeias uma interpretação desconforme com a interpretação do Tribunal de Justiça.
Todavia, levando em conta que o próprio Tribunal de Justiça entende que essa obrigação só existe se houver dúvidas razoáveis e se não existir uma jurisprudência consolidada do Tribunal (cf. Acórdão de 6.10.1982, processo C-283/81), que as interpretações que fazemos se encontram abundantemente sustentadas em Acórdãos do Tribunal de Justiça (nas palavras de Teixeira de Sousa são mesmo “a única possível”) e que em virtude do douto voto de vencido de um dos Distintos Adjuntos que subscrevem este Acórdão está afastada a dupla conforme, afigura-se-nos que no caso é desnecessário suscitar a intervenção prejudicial desse Tribunal, sendo certo que o mesmo a recusaria no caso de a entender desnecessária.

V.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
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Porto, 1 de Outubro de 2015.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto224)
Teles de Menezes
Mário Fernandes (com voto vencido)
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VENCIDO.

Com todo o devido respeito pela posição sufragada no Acórdão, somos de opinião que a jurisprudência publicada do Tribunal de Justiça sobre a interpretação do artigo 23.º do Regulamento n.º 44/2001 e sobre os artigos da Convenção de Bruxelas e da Convenção de Lugano que o antecederam, consente o entendimento de que a validade do pacto de jurisdição pode ser efectivamente questionada com recurso as normas de direito interno do Estado da lei aplicável.
Aliás, é nessa medida que se compreende que o artigo 25.º do Regulamento n.º 1215/2012 (que substituiu o Regulamento n.º 44/2001 a partir de 10 de Janeiro de 2015, mas que, como se refere no Acórdão, não tem aplicação à presente acção) tenha passado a referir expressamente que a competência dos tribunais do Estado-Membro designado no pacto é excluída quando o pacto for, nos termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo.
A jurisprudência que se conhece entende efectivamente que a escolha do tribunal designado no pacto não pode ser controlada por considerações relativas aos elementos de conexão entre o tribunal designado e a relação controvertida, ao mérito da causa ou às normas substantivas em matéria de responsabilidade aplicáveis no tribunal escolhido (p.ex. Acórdão Castelletti), e admite, por outro lado, que a validade material do pacto possa ser questionada com fundamento na falta de capacidade dos outorgantes ou de vício de representação de quem outorgou o contrato em seu nome. Todavia, tanto quanto vemos, estes aspectos são referidos a título de exemplo e não como os únicos fundamentos possíveis de impugnação da validade material do pacto (cf. Acórdão de 19.6.1984, Tilly Russ, processo 71/83).
Por outro lado, os objectivos da segurança jurídica e de assegurar a livre circulação de decisões em matéria civil e comercial, sempre invocados para refrear a possibilidade de elementos exteriores ao Regulamento interferirem com as suas regras, não são, quer-nos parecer, incompatíveis com a aplicação de regras de direito interno cujo fim sejam, por exemplo, o controle da formação da vontade dos contraentes ou o estabelecimento de limites à utilização de cláusulas contratuais previamente elaboradas e não submetidas à discussão dos outorgantes, sendo certo que a sua aplicação está ainda em conformidade com a exigência do Regulamento n.º 44/2001 de que o pacto corresponda a um "acordo das partes", a um autêntico "pacto" que as partes devam respeitar por ter sido celebrado de forma livre e informada.

De todo o modo, a nosso ver, a interpretação do artigo 23.º do Regulamento n.º 44/2001 motiva ainda dúvidas sérias quanto à possibilidade de controle da validade do pacto com fundamento nas regras de direito interno do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais e do abuso do direito que no caso também é invocado. Por isso, cremos que se justificava solicitar ao Tribunal de Justiça que se pronunciasse expressa e especificamente sobre essa matéria, recurso com recurso ao mecanismo do artigo 367.º, n.º 3, do TFUE.

Mário Fernandes