Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5465/21.4T8VNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: RECLAMAÇÃO
RECURSO
CONCLUSÕES
DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE
Nº do Documento: RP202301275465/21.4T8VNG-A.P1
Data do Acordão: 01/27/2023
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: RECLAMAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O requerimento de reclamação contra a rejeição de um recurso, nos termos do art. 643º do C.P.C., não está sujeito à formulação de conclusões.
II - São de mero expediente as decisões que se traduzem numa mera ordenação de oportunidade sobre os termos do processo, em ordem à sua condução para os pertinentes momentos decisórios.
III - Não é de mero expediente o despacho em que o tribunal recusa a apreciação de uma pretensão de declaração de inutilidade superveniente da lide, com fundamento em encontrar-se esgotado o seu poder jurisdicional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROCESSO Nº 5465/21.4T8VNG-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 5

REL. N.º 745
Reclamação – art. 643º do CPC
Relator: Rui Moreira
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Sumário:
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1- RELATÓRIO

No âmbito de uma acção de anulação de deliberações sociais, intentada por AA contra L..., S.A., foi proferida sentença, em 16/06/2022, que declarou a anulabilidade das deliberações tomadas na assembleia geral da Ré, de 9 de Junho de 2021, no que diz respeito ao ponto 2 da respectiva ordem de trabalhos.
Face ao teor de tal sentença, foi convocada para o dia 2 de Setembro de 2022 assembleia geral destinada a renovar as ditas deliberações quanto aos mencionados pontos, tendo elas sido ratificadas em condições tidas por adequadas à superação dos vícios que haviam motivado a anulabilidade anteriormente reconhecida.
A 3 de Setembro de 2022, quando não tinha ainda transitado em julgado a sentença anterior, a ré veio aos autos invocar o nº 2 do art. 62º do CSC, conjugadamente com o disposto na al. e) do art. 277º do CPC, alegando a verificação de uma circunstância que implicava a inutilidade superveniente da lide, qual seja a existência de novas deliberações que tornavam inútil a afirmação da anulabilidade das deliberações de 9/6/2021. E requereu a extinção da instância.
Sobre esse requerimento, a 22/9/2022, recaiu despacho com o seguinte teor:
“Indefiro o requerido, uma vez que, tendo sido proferida sentença, mostra-se esgotado o poder jurisdicional (art. 613º, n.º 1, do CPC).”
Deste despacho, veio a ré interpor recurso, que culminou com as seguintes conclusões:
“ 1. Apesar da decisão de anulabilidade da deliberação tomada em 9 de Junho de 2021, tal anulabilidade cessou em virtude da deliberação tomada em 2 de Setembro de 2022.
2. Estando pendente uma acção tendo por objecto a pretérita deliberação, a nova deliberação é motivo de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
3. Não releva a circunstância de a deliberação de 2 de Setembro de 2022 ter sido tomada e comunicada aos autos depois de proferida a sentença, porquanto esta ainda não se mostrava transitada em julgado, não estando em causa a problemática do esgotamento do poder jurisdicional.
4. Mostra-se violado o disposto no art. 62º do CSC, no art. 277º, al. e), e no art. 613º, nº 1, ambos do CPC, impondo-se a revogação da decisão recorrida e reconhecendo a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.”
O Tribunal a quo, por despacho de 3/11/22 rejeitou este recurso, nos termos que se transcrevem:
“A ré veio interpor recurso do despacho de 22 de Setembro de 2022.
Contudo, cremos que o recurso interposto não é admissível.
Por um lado, afigura-se-nos que tal despacho é um despacho de mero expediente (arts. 152º, n.º4, e 630º, do CPC). Por outro lado, a sentença proferida a 16 de Junho de 2022 transitou em julgado (não tendo qualquer das partes interposto recurso da mesma).
Pelo exposto, não admito o recurso interposto a 13 de Outubro de 2022 (…)”
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É quanto a esta rejeição de recurso que vem deduzida a presente reclamação, na qual a reclamante argumenta que o despacho recorrido não pode ser qualificado como um despacho de mero expediente, bem como que, para efeitos do recurso interposto do despacho que rejeitou conhecer a inutilidade da lide, é indiferente a circunstância de a sentença anterior não ter sido alvo de recurso, pois que o reconhecimento daquela inutilidade prejudicaria a sentença em causa, por resultar de facto que lhe era anterior.
Concluiu pela admissibilidade do recurso.
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O autor, recorrido, apresentou resposta à reclamação, sustentando que, sendo esta, em substância, um verdadeiro recurso, a ausência de conclusões – tal como ocorre no caso sub judice - deve determinar a sua rejeição liminar.
Em qualquer caso, afirmou que o despacho recorrido constitui um despacho de mero expediente, bem como que o tribunal jamais poderia apreciar a pretensão da ora reclamante, por se ter esgotado o seu poder jurisdicional com a prolação da sentença de 16/6/2022.
Por isso, concluiu pela falta de fundamento da reclamação.

2 – SANEAMENTO.

Os presentes autos de reclamação, remetidos nos termos previstos no nº 3 do art. 643º do CPC, incluem os elementos necessários à decisão da questão neles colocada.
Importa, todavia, apreciar se a ausência de conclusões, que efectivamente se verifica no requerimento de reclamação, deve determinar a sua rejeição, por incumprimento do ónus de formular conclusões, previsto no art. 639º do CPC.
Com efeito, o autor/recorrido sustenta essa tese, invocando jurisprudência nesse sentido, designadamente o Ac. do TRL de 17.09.2015 (proc. nº 23801/13.5T2SNT-A.L1-8, em dgsi.pt), cuja argumentação veio a ser repetida no Ac. do TRG de 14.01.2016 (proc. 3718/14.7T8VNF-A.G1, em dgsi.pt), e concluindo que, não tendo a reclamante observado o ónus de formular conclusões e não sendo essa omissão passível de aperfeiçoamento, a reclamação deve ser simplesmente rejeitada.
Não se concorda, porém, com um tal entendimento do regime processual deste expediente destinado a reagir contra a decisão de rejeição de um recurso.
Com efeito, contrariamente ao defendido pelo recorrido, entendemos que a reclamação cujo regime se mostra previsto no art. 643º do CPC não é, em si mesma, um recurso de uma decisão judicial, subsumível ao regime dos recursos estabelecido no art. 627º e ss. e, assim, sujeita às regras do art. 639º do CPC. Diferentemente, consiste num expediente processual que, no âmbito de um recurso, assume a natureza de um incidente, com um regime processual específico e que, mesmo sistematicamente, se mostra destacado do regime processual do próprio recurso onde figura como imprescindível o alinhamento de conclusões.
A reclamação sobre a rejeição de um recurso destina-se, é certo, à impugnação de uma tal decisão processual. Mas a esse objectivo não se destinam só os recursos, como também, como acontece no caso, este expediente processual distinto, de reclamação.
Assim, o regime da reclamação está previsto no art. 643º, autonomamente e para além do art. 639º, que se dirige aos termos do próprio recurso. Naquele regime, fixa-se um prazo próprio (10 dias), diferente dos prazos de recurso (art. 638º: 30 ou 15 dias); a resposta está sujeita a idêntico prazo; o incidente é sempre autuado por apenso e instruído nos termos especificados no nº 3 do art. 643º; a decisão, na Relação, é sempre singular e tem prazo de 10 dias, sem prejuízo do direito à sua impugnação para a conferência.
Em suma, o incidente tem todo um regime específico que não comporta qualquer remissão para a aplicação das regras de oferecimento e tramitação de um recurso. E nesse regime não se prevê a necessidade de o requerimento de reclamação cumprir os requisitos previstos nos arts. 637º ou 639º do CPC, designadamente a necessidade de formulação de conclusões. E isso não por distracção do legislador, constituindo uma lacuna a preencher por analogia com o regime do recurso, mas porque simplesmente outra – e mais ligeira - foi a forma estabelecida para a abertura de um tal incidente.
Pelo exposto, conclui-se pela admissibilidade da presente reclamação, apesar de a mesma não apresentar conclusões, porquanto se conclui que as mesmas não são exigidas, face ao disposto no art. 643º do CPC.
Cumpre, pois, passar à apreciação da própria reclamação.

3- FUNDAMENTAÇÃO

É útil ter presente que o objecto da presente reclamação é o despacho de 3/11/2022.
Este despacho rejeitou o recurso oposto à decisão que indeferiu o pedido de declaração de inutilidade da lide, após sentença que declarara a anulação de uma deliberação social, por ter sido substituída a deliberação anulada ainda antes do trânsito em julgado dessa sentença. Nele se disse: “Indefiro o requerido, uma vez que, tendo sido proferida sentença, mostra-se esgotado o poder jurisdicional (art. 613º, n.º 1, do CPC).”
Entendeu o tribunal que este seu despacho é irrecorrível, por ser de mero expediente e por ter, entretanto, transitado em julgado a referida sentença.
Neste contexto, não cabe aqui aferir da qualidade da decisão que rejeitou declarar a inutilidade da lide. O que importa é verificar se esse despacho se deve ter, ou não, por irrecorrível, designadamente em função dos fundamentos para tal invocados: ser de mero expediente; ter entretanto transitado em julgado a sentença de anulação da deliberação social.
Dispõe o art. 630º, nº 1 do CPC que são irrecorríveis os despachos de mero expediente.
Por sua vez, o nº 4 do art. 152º do CPC dispõe: “Os despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes.
Assim, são de mero expediente as decisões que se traduzem numa mera ordenação de oportunidade sobre os termos do processo, em ordem à sua condução para os pertinentes momentos decisórios. Os despachos de mero expediente não têm a virtualidade de dispor sobre a relação processual ou substantiva estabelecida entre as partes, conferindo ou rejeitando direitos processuais ou substantivos, pois que apenas acautelam o curso da respectiva discussão de forma a que esta possa culminar na decisão que é pedida ao tribunal.
No caso, a ora reclamante L..., S.A., que fora destinatária de uma sentença de anulação de deliberações aprovadas na sua Assembleia Geral invocou a ocorrência de um facto ulterior, que considerava apto a fazer extinguir a acção, prejudicando a sobrevivência da própria sentença, por a tornarem inútil, entendendo que estava a tempo de o fazer acontecer.
O tribunal, considerando esgotado o seu poder jurisdicional, recusou apreciar essa pretensão, isto é, a apreciar a relevância do facto alegado para inutilizar a sentença proferida. Com ele, rejeitou o direito que a L..., S.A. entendia ter a eliminar a sentença proferida, por a ter tornado inútil e o ter feito a tempo, por essa sentença ainda não ter transitado em julgado.
É, assim, claro que um tal despacho não é de mero expediente, pois que dispôs directamente sobre a pretensão da ré L..., S.A., não se limitando a providenciar por qualquer tramitação em ordem à sua ulterior apreciação.
Não é, pois, à luz da sua qualificação como de mero expediente que pode rejeitar-se a impugnação do despacho de 22/9/2022.
Mas afirma ainda o tribunal a quo que este despacho também não pode ser objecto de recurso porque, entretanto, transitou em julgado a sentença de 16/6/2022.
Pressupõe esta afirmação que, estando definitivamente consolidada na ordem jurídica aquela sentença que decretou a anulação de deliberações sociais, não tem viabilidade a pretensão da ré de a ver cair por inutilidade da lide, o que prejudica o propósito do recurso da decisão que rejeitou apreciar essa mesma inutilidade.
Não tem, porém, razão o tribunal a quo, neste seu entendimento: é que se for pertinente e oportuno o facto determinante da inutilidade da lide, tal como invocado pela ré, a sentença ficaria prejudicada e não haveria sequer de transitar em julgado, antes desaparecendo da ordem jurídica antes de aí se consolidar. Por isso, a questão da eventual inutilidade tem de resolver-se por se situar logicamente antes do trânsito em julgado da sentença, pois que a reconhecer-se razão à ré esse trânsito em julgado não se consumaria.
Por conseguinte, contra essa pretensão não pode argumentar-se que a sentença transitou entretanto em julgado, pois que a pretensão da ré é logicamente anterior e, a proceder, seria apta a prevenir esse trânsito.
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Conclui-se, assim, não poder prevalecer o despacho reclamado, por não se poder acolher qualquer um dos fundamentos invocados para o seu dispositivo, de rejeição do recurso oferecido pela ré à decisão de 22/9/2022.
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Nestes termos, cumpre deferir a presente reclamação, requisitando-se ao tribunal recorrido o processo onde foi interposto o recurso em causa, que haverá de subir nos próprios autos e com efeito devolutivo, nos termos dos arts. 644º, nº 2, al. g), 645º, 1, a) e 647º, nº 1 do CPC.


4 - DECISÃO

Em conclusão, com os fundamentos anteriormente enunciados, julga-se procedente a presente reclamação, pelo que se requisitará ao tribunal recorrido o processo onde foi interposto o recurso de apelação em causa, que haverá de subir nos próprios autos e com efeito devolutivo, nos termos dos arts. 644º, nº 2, al. g), 645º, 1, a) e 647º, nº 1 do CPC.

Custas pelo reclamado.

Not.

Porto, 27/1/2023
Rui Moreira