Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5338/21.0T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONCLUSÕES DO RECURSO
ABUSO DO DIREITO
PROPOSTA DE TRABALHO
CONTRATO DE TRABALHO
ACTIVIDADE EXERCIDA
Nº do Documento: RP202305085338/21.0T8MTS.P1
Data do Acordão: 05/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO SOCIAL.
Área Temática: .
Sumário: I - Retirando-se das conclusões a discordância da recorrente com a decisão sobre a matéria de facto, mas já não a indicação, em termos concretos, dos factos impugnados – provados ou não provados –, nem tão pouco da resposta alternativa que eventualmente se pretende ver acolhida, aquelas não cumprem sua função definidora do objeto do recurso e balizadora do âmbito do conhecimento deste tribunal, dado não conterem o que é indispensável para esse efeito, ou seja, a indicação dos concretos pontos de facto cuja alteração se pretende e o sentido e termos dessa alteração, devidamente precisos, conforme exigido pelo art.º 640.ºn.º 1, alíneas a) e c), do CPC, sob pena de rejeição.
II - O princípio do abuso de direito constitui um expediente técnico, ditado por razões de justiça e equidade, para obstar que a aplicação de um preceito legal, certo e justo em circunstância normais, venha a revelar-se injusto numa situação concreta, em razão das particularidades ou circunstâncias especiais que nela concorram. Ocorrerá a figura de abuso “quando um certo direito – em si mesmo válido – seja exercido em temos que ofendam o sentimento de justiça dominante na comunidade social”.
III - O abuso de direito, consumado por actuação que exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, não é exclusivo do direito substantivo, podendo também resultar no exercício do direito de acção, numa perspectiva da actuação processual, nomeadamente, pelo recurso a juízo através de acções ou procedimentos cautelares.
IV - A desconformidade entre o texto do contrato e aquela que foi a proposta de trabalho apresentada e aceite pela autora, que depois teve execução prática em consonância com o acordado, não é fundamento suficiente para a Autora reclamar o direito a diferenças salariais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 5338/21.0T8MTS.P1
SECÇÃO SOCIAL



ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


I. RELATÓRIO
I.1 No Tribunal da Comarca do Porto – Juízo do Trabalho de Matosinhos, AA instaurou a presente acção emergente de contrato individual de trabalho, com processo declarativo comum, a qual veio a ser distribuída ao Juiz 2, contra M.A.D.A. – Movimento de Apoio ao Diminuído Intelectual de ..., pedindo que julgada a acção procedente, em consequência seja o Réu condenado a pagar-lhe créditos vencidos a título de actualizações salariais devidas e não pagas correspondentes ao período compreendido entre 01/07/2017 e 31/08/2021, no valor de €24.802,00, créditos vencidos a titulo de actualizações de subsídios de férias e de Natal de 2018 a 2021 no valor de €3.840,00, crédito no valor de €1.113,00 a título de formação contínua não promovida pela ré nos últimos 3 anos e créditos devidos pela cessação do contrato de trabalho (6 dias de trabalho, subsídio de alimentação, proporcionais de subsídio de férias, férias não gozadas e proporcionais de subsídio de Natal) no valor de €2.960,00, tudo acrescido de juros legais até efectivo e integral pagamento.
Alega, em síntese, que celebrou com o réu em 01/10/2015 um contrato de trabalho para exercer funções de professora, tendo o contrato cessado em 06/09/2021, mediante a retribuição mensal no valor de €840,00 correspondente ao previsto na tabela B, nº 4 para educadores de infância e professores com licenciatura profissionalizadas, Nível IX, do BTE para trabalhadores ao serviço de I.P.S.S., nunca tendo a sua retribuição mensal sido actualizada apesar das alterações salariais entretanto ocorridas com efeitos a partir de 01/01/2017.
Mais alega que o contrato cessou em 06/09/2021 e que a ré, nos últimos três, nunca promoveu formação contínua.
Realizada a audiência de partes, e frustrada que se mostrou a conciliação, foi designada data para a realização da audiência de julgamento e notificada a ré para contestar.
A Ré contestou, alegando que apesar do que ficou vertido no contrato de trabalho escrito, à autora foi proposto e esta aceitou ser admitida para o exercício das funções de monitora no Centro de Actividades Ocupacionais, funções que efectivamente exerceu ao longo da execução de todo o contrato, nunca tendo exercido quaisquer funções de professora de 2º e 3º ciclos de ensino, pelo que, tendo a autora auferido sempre uma retribuição de valor superior ao correspondente às funções de monitora que efectivamente exercia, nada lhe é devido a título de actualizações salarias.
Quanto à formação profissional o réu alegou que promoveu 4 horas e formação em 2019 e 4horas de formação em 2021, alegando nada ser devido à autora a esse título.
Finalmente o réu alega ter pago à autora todos créditos devidos pela cessação do contrato, nada devendo à autora.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, abstendo-se o tribunal de proferir o despacho a que alude o art.º 596º do Código de Processo Civil.
Realizou-se, depois, a audiência de discussão e julgamento.
I.2 Subsequentemente foi proferida sentença, fixando a matéria de facto provada e aplicando o direito aos factos, concluída com o dispositivo seguinte:
-«Por todo o exposto julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência decido:
I – condenar o réu a pagar à autora:
a) a quantia de €656,55 (seiscentos e cinquenta e seis euros e cinquenta e cinco cêntimos) a título de formação não ministrada, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a cessação do contrato até integral pagamento;
b) a quantia de €230,00 (duzentos e trinta euros) a título de retribuição de férias não gozadas, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a cessação do contrato até integral pagamento.
II – absolver o réu da parte restante do pedido.
*
Custas pela autora e pelo réu na proporção do respectivo decaimento – art. 527º do Código de Processo Civil
[..]».
I.3 Inconformado com esta sentença, a autora interpôs recurso de apelação, apresentando alegações finalizadas com conclusões - assinalando-se que há repetição das IX, X e XI – conforme segue:
I - Tal como resulta da sentença, não foi invocado qualquer vício da vontade ou da declaração negocial do contrato de trabalho que menciona qual a categoria profissional da Autora, assistindo assim à Autora a legitimidade para invocar a categoria profissional nele constante e exigir a aplicação da Convenção Coletivo Trabalho também nele mencionado.
II - Pois não foi invocado qualquer vício da vontade ou da declaração negocial do contrato de trabalho que aliás foi redigido pela Ré.
III - Pelo que entre as partes foi acordado que as funções da Autora seriam de Professora, sendo regulado pelo BTE 31, de 02/08/2015 e respetivas atualizações;
IV - E desde, pelo menos, fevereiro de 2019 (há mais de 2 (dois) anos) nos seus recibos de vencimento a sua categoria profissional é de “Professora do 2.º e 3.º Ciclos ensino”, documentos estes também não impugnados pelo Réu.
V - Dúvidas não restam, assim, que a Réu nunca impugnou os documentos juntos pela Autora nem invocou qualquer vício de vontade ou da declaração negocial, nem peticionou a anulabilidade da cláusula contratual que estipulou a retribuição da Autora, pelo que aceitou a categoria profissional constante nos mesmos e, consequentemente a retribuição correspondente.
VI - O que a Ré nunca aceitou foi o pagamento das atualizações salariais devidas à Autora, invocando para tanto o exercício de alegadas funções enquanto Monitora de CAO e ainda um alegado acordo verbal existente entre ambos;
VII - Mesmo que assim não fosse, quanto ao alegado acordo verbal, do depoimento de BB (Legal Representante da Ré) resulta que aquando da contratação, esteve numa reunião com a Autora, na qual apenas se encontravam presentes as duas. (ver ponto 23 das alegações).
VIII - E o depoimento prestado pela legal representante da Ré não se encontra minimamente corroborado por outros elementos de prova. Pelo contrário, da prova documental (contrato de trabalho e recibos) verificamos que a categoria profissional da Autora era de Professora.
IX - Sucumbindo a prova de tais factos, não está demonstrado qualquer acordo para outra categoria profissional, razão necessária e suficiente para a procedência da ação.
X - Ainda que assim não fosse, as testemunhas CC e DD, explicaram que o MADI é um centro educativo-pedagógico que engloba várias valências (PIT`s, CRI, formação, CAO) de forma a concluir o ensino secundário. (ver pontos 36 a 39 das alegações)
XI - Sendo através do depoimento da testemunha DD, Coordenadora do CAO (Centro de Atividades Ocupacionais), que se conclui que a Autora não só exercia funções letivas, dando formação profissional e lecionando no PIT`s e CRI, como apenas apoiava o CAO, nos horários livres (nomeadamente, pausas e férias letivas), distinguindo-se das demais monitoras pelo uso de vestuário diferenciado e pela forma como a tratavam: “Professora AA” ; (ver ponto 37 das alegações)
X - Resultando assim claro, do depoimento da testemunha, que a Autora realizava atividade de Formação (durante o ano letivo ela exercia atividade pedagógica de professora em estabelecimento socioeducativo (Formação)) e no tempo que lhe sobrava dava apoio no CAO
XI - Por outro lado, resultou do depoimento da testemunha EE que a Autora tem formação em ensino especial, tendo a visto a preparar as aulas e ainda a reclamar as atualizações salariais devidas. (ver ponto 43 das alegações)
XII - Assim, dos depoimentos conclui-se que a Autora celebrou com a Ré um contrato de trabalho para exercer funções de professora, não restando dúvidas que a Autora/Recorrente exercia funções nas várias valências do Réu/Recorrido, ministrando formação até ao 12º ano.
XIII - Pelo que da prova testemunhal ficou provado que:
- A Autora dava formação profissional, PIT`s e CRI apenas apoiando o CAO nas horas que sobravam (e que, para a Coordenadora do CAO, seriam apenas uma manhã e duas tardes por semana) conforme confirmado pela testemunha indicada pelo Réus, DD, Coordenadora do CAO;
- No CAO, a Autora era diferenciada das demais monitoras através do uso da bata branca e da forma como era tratada “Sra. Professora”;
- Assim, dúvidas não restam de que a Autora exercia funções de professora, e que a sua categoria profissional corresponde à constante no seu contrato de trabalho e recibos de vencimento;
XIV - Destarte, por auxiliar o Centro de Atividades Ocupacionais (no seu tempo livre), a Autora não poderá ver a sua categoria profissional ser alterada porquanto esta é mais benéfica para si.
XV - Aliás, no Instrumento de regulamentação coletiva do trabalho indicado no contrato de trabalho 2, na sua cláusula 16.º n.º 1 encontra-se explanado que “Sempre que haja alteração consistente da atividade principal para a qual o trabalhador foi contratado, deverá a instituição proceder à respetiva requalificação profissional, não podendo dai resultar a baixa de categoria ”,
XVI - Assim, deverá aplicar-se tal regime ao caso sub judice.
XVII - Não se vê, salvo o devido respeito, como se possa concluir, que as funções que a Autora sempre exerceu estejam incluídas na categoria de «Monitor de CAO» pois que, a Autora lecionava, deslocando-se aos estabelecimentos de ensino (básicos e secundários) de todo o município, preparava planos pedagógicos, fazia a avaliação dos alunos externos que frequentavam o ensino do MADI. A testemunha DD, na qualidade de Coordenadora do CAO, apenas solicitava o serviço da Autora quando esta tinha disponibilidade horária.
XVIII - Ora, como consta da sentença, de acordo com o CCT aplicável, estão referenciadas, entre outras, as indicadas categorias profissionais, nos termos seguintes:
● Monitor de CAO: De acordo com os planos individuais de desenvolvimento dos utentes, participa na definição das atividades a desenvolver, elabora os programas das áreas temáticas definidas, seleciona os métodos essencialmente demonstrativos a utilizar, prepara e desenvolve as atividades diárias, participa nos projetos de centro e nos processos de avaliação individual.
● Professora: exerce atividade pedagógica em estabelecimento sócio-educativo;
XIX - Vistas umas e outras funções, não se vislumbra em que medida a atividade pedagógica e de formação, se inclui nas funções que, de acordo com o CCT, estão atribuídas ao Monitor de CAO.
XX - Acresce que, independentemente das regras de aplicação de IRCT’s constantes do Código do Trabalho, não havendo outro IRCT aplicável que se imponha necessariamente e que com ele conflitue, nada impede que trabalhador e empregador, no exercício da sua autonomia de vontade (artigo 405º do Código Civil), estabeleçam que o contrato de trabalho seja regulado por um determinado CCT, a ele aderindo, tal como no caso sub judice.
XXI - Para que tal ocorra, necessário se torna que no contrato de trabalho conste uma cláusula que sujeite a relação de trabalho ao regime jurídico globalmente decorrente daquele CCT ou de parte determinada dele, o que sucedeu.
XXII - O que se disse anteriormente responde por si só, acrescente-se por último, à questão também invocada na sentença recorrida do abuso de direito.
XXIII - Ora, nestas situações, a paralisação do direito é justificada pela tutela da confiança, resultante da anterior conduta de um sujeito jurídico que, objetivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira, no dizer de Baptista Machado, acima citado.
XXIV - In casu, a Autora assinou um contrato na qual ficou mencionada a categoria profissional de Professora e a aplicação do CCT, não entrando em contradição com a sua segunda conduta que exige essa aplicação.
XXV - Mas mesmo que assim não fosse, o que por raciocínio acadêmico se admite, o disposto no artigo 476.º do CT impõe o primado de que as disposições de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho só podem ser afastadas quando este estabeleça condições mais favoráveis para o trabalhador.
XXVI - No caso em apreço, apenas está em causa a aplicação de princípio plasmado na lei, pelo que mesmo que pudesse existir um acordo entre as partes (o que não se concebe) nunca tal acordo poderia afastar a imposição do que se estabelece no CCT aplicável ao caso, ao abrigo do disposto no artigo 476º.
XXVII - O que não consubstancia qualquer abuso de direito face à natureza da aludida norma (norma imperativa que não pode ser afastada por vontade das partes). Norma jurídicas violados: 476 do CT, 334 do CC e CCT publicado no BTE n.º 31 de 22/08/2015, com Portaria de Extensão nº 87/2016, publicada no DR, 1ª série de 14/04/2016; CCT publicado no BTE nº 21 de 08/06/2018, com Portaria de Extensão nº 277/2018, publicada no DR, 1ª série de 08/10/2018; CCT publicado no BTE nº 47 de 22/12/2018, com Portaria de Extensão nº 197/2019 publicada no DR, 1ª série, de 26/06/2019; CCT publicado no BTE nº 41 de 08/11/2019, com Portaria de Extensão nº 44/2020 publicada no DR, 1ª série, de 17/02/2020; CCT publicado no BTE nº 1 de 01/08/2020, com Portaria de Extensão nº 99/2020, publicada no DR, 1ª série de 21/04/2020 e o CCT publicado no BTE nº 1 de 08/01/2021, com Portaria de Extensão nº 184/2021, publicada no DR, 1ª série, de 09/03/2021).
Termos em que se conclui que deve a decisão proferida ser revogada e consequentemente, ser proferida uma nova que condene a Ré no pagamento do peticionado na Petição Inicial.
I.4 O Recorrido Réu apresentou contra-alegações, mas não as sintetizou em conclusões.
Alega, no essencial, que os alunos entre o 10º ano e o 12º ano, têm atividades que visam a preparação para a idade adulta, onde se desenvolvem Planos Individuais de Transição, no qual transitam pelos nossos espaços de Padaria, Cozinha, Carpintaria e Jardinagem. Este acompanhamento é feito por monitores da Instituição e era com esta população que a Recorrente trabalhava nas manhãs. Estes apoios nunca passariam pela afetação de um Professor da Instituição, pois que os Professores necessários para trabalhar com estes alunos, são os da Escola de referência dos mesmos.
De igual modo, a Formação Profissional desenvolvida na Entidade, resulta de uma Candidatura aprovada por fundos europeus, gerida pelo IEFP (Instituto de Emprego e Formação Profissional). Estes Cursos de Formação são dirigidos para pessoas com deficiência e/ou incapacidades, com grau de incapacidade igual ou superior a 60%, maiores de 18 anos, com escolaridade obrigatória concluída e visam que os formandos desenvolvam competências práticas e sócio emocionais. O pessoal afeto ao desenvolvimento dos cursos com os formandos, envolve formadores e monitores. A Recorrente desempenhou aqui funções que nunca se confundiram com as de Professora, quanto mais não fosse porque os formandos eram maiores e já tinham concluído a escolaridade obrigatória.
O Recorrido alguma vez contratou Professores e muito menos, enquanto tal, a Recorrida.
Conclui, pugnando pela improcedência do recurso.
I.5 O Digno Procurador Geral Adjunto junto desta Relação teve visto nos autos, nos termos do art.º 87.º3, do CPT, tendo-se pronunciado no sentido da procedência do recurso, na consideração, no essencial, do seguinte:
«[..]
2. Na sentença em recurso, além do mais, deu-se como não provado que:
6) O contrato, com o teor de fls. 6 que se dá por reproduzido, foi reduzido a escrito em 01/10/2015, data a partir da qual a autora passou a exercer as funções referidas em 5), constando da sua cláusula 2ª que a autora desempenharia as funções de Professora e da cláusula 6ª que pelas funções exercidas a autora auferia o vencimento mensal ilíquido correspondente ao salário em vigor de acordo com BTE – Boletim do Trabalho e Emprego, para trabalhadores ao serviço de I.P.S.S. (Tabela B – Nº 4 – Educadores de infância e professores com licenciatura profissionalizante – Nível IX - €840,00), sendo o valor diário do subsídio de alimentação atribuído em espécie.
E do depoimento das testemunhas transcrito, nomeadamente de fls. 11 e 12 da alegação da Recorrente/autora, da testemunha DD, pode ver-se que as funções exercidas por esta se dividiam entre a categoria de monitora de CAO (Centro de Actividades Ocupacionais) e a de professora (como do contrato consta) – “meio meio”.
Exercendo estas funções inerentes à categoria de professora, que aliás consta do contrato, em pelo menos metade do horário de trabalho, entende-se, salvo melhor opinião, que deveria a Autora ser remunerada pela retribuição mais elevada, a desta categoria, incluindo actualizações salariais subsequentes
[..]».
I.6 Foram cumpridos os vistos legais e determinada a inscrição do processo para julgamento em conferência.
I.7 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 640.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho], coloca-se para apreciação saber se o Tribunal a quo errou ao julgar improcedentes os pedidos de condenação da Ré a pagar-lhe créditos vencidos a título de actualizações salariais devidas e não pagas correspondentes ao período compreendido entre 01/07/2017 e 31/08/2021, no valor de €24.802,00; e, créditos vencidos a titulo de actualizações de subsídios de férias e de Natal de 2018 a 2021 no valor de €3.840,00.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO
O elenco factual fixado pelo Tribunal a quo é o que segue:
Factos Provados
1) Na sequência da abertura de um novo Pólo do réu na freguesia ..., ..., e da recolocação de trabalhadores afectos ao Polo de ... naquele novo Pólo, o réu, que é uma instituição particular de solidariedade social, teve necessidade de contratar novos trabalhadores para o Polo de ....
2) A autora já antes tinha colaborado com o réu na valência de formação profissional, enquanto formadora externa, prestando três horas semanais de formação.
3) Quando a necessidade de novas contratações se colocou, o nome da autora foi sugerido à Direcção do réu pelas suas Coordenadoras, Dr.ª CC e Dr.ª FF, tendo sido proposto à autora o exercício das funções de monitora do Centro de Actividades Ocupacionais (CAO).
4) A direcção do réu, em reunião com a autora, na presença da Coordenadora Geral, Dr.ª CC, acedeu a dar-lhe uma oportunidade e a integrar a autora no seu quadro de pessoal.
5) Nessa reunião foi transmitido à autora que seria contratada para o exercício de funções de monitora do CAO, designadamente para, de acordo com os planos individuais de desenvolvimento dos utentes, participar na definição das actividades a desenvolver, elaborar os programas das áreas temáticas definidas, selecionar os métodos essencialmente demonstrativos a utilizar, preparar e desenvolver as actividades diárias, participar nos projectos do Centro e nos processos de avaliação individual, o que a autora aceitou.
6) O contrato, com o teor de fls. 6 que se dá por reproduzido, foi reduzido a escrito em 01/10/2015, data a partir da qual a autora passou a exercer as funções referidas em 5), constando da sua cláusula 2ª que a autora desempenharia as funções de Professora e da cláusula 6ª que pelas funções exercidas a autora auferia o vencimento mensal ilíquido correspondente ao salário em vigor de acordo com BTE – Boletim do Trabalho e Emprego, para trabalhadores ao serviço de I.P.S.S. (Tabela B – Nº 4 – Educadores de infância e professores com licenciatura profissionalizante – Nível IX - €840,00), sendo o valor diário do subsídio de alimentação atribuído em espécie.
7) Aquele contrato cessou em 06/09/2021, tendo o réu pago à autora mensalmente durante toda a vigência do contrato a retribuição mensal de €840,00 e feito constar e todos os seus recibos de vencimento a Categoria de “Professor do 2. E 3. Ciclos Ensino”.
8) Nos últimos três anos de duração do contrato a ré não proporcionou à autora qualquer formação contínua.
9) O réu pagou à autora no termo do contrato €112,00 a título de vencimento base, descontando dois dias de faltas injustificadas; €610,00 relativo a férias não gozadas, €626,18 a título de proporcionais de subsídio de férias e €574,00 a título de proporcionais de subsídio de Natal.
10) Os utentes do réu tem uma média de idades de 38 anos, tratando-se de pessoas com deficiências profundas, sem capacidade de aprendizagem a nível académico.
11) O réu não tem qualquer trabalhador ao seu serviço que exerça as funções de professor, tendo apenas três utentes cujo ensino é assegurado por um professor ali colocado pelo Ministério da Educação.
12) Durante os anos em que o réu teve utentes em idade escolar, possibilidade, entretanto, limitada pelo Ministério da Educação, o respectivo ensino sempre foi assegurado por professores ali colocados pelo Ministério da Educação.
13) No caso de dois outros trabalhadores do réu, tendo sido detectada uma desconformidade entre a categoria profissional atribuída pelo réu nos contratos de trabalho e as funções pelos mesmos exercidas, aqueles aceitaram a rectificação da categoria.
14) Já a autora, não aceitou tal rectificação, ainda que a mesma não implicasse diminuição da retribuição e apesar de, até essa data nunca ter reclamado ser credora de qualquer actualização salarial, daí em diante passou a exigir o pagamento das diferenças na retribuição.
Não se provou que:
a) O réu promoveu a formação de Medidas de Protecção – Pano de Emergência Interno em 12/01/209, no total de 4 horas e em 03/07/2021 a autora teve 4 horas de formação de Sensibilização de Segurança contra Incêndios.
II.2 IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
Retira-se das alegações e, também, das conclusões que a recorrente discorda da decisão sobre a matéria de facto.
Conforme decorre do n.º1 do art.º 662.º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Nas palavas de Abrantes Geraldes, “(..) a modificação da decisão da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância [Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 221/222].
O mesmo autor, após observar que a possibilidade de alteração da matéria de facto deixou de ter carácter excepcional, acabando “por ser assumida como uma função normal do Tribunal da Relação, verificados os requisitos que a lei consagra”, logo prossegue advertindo que “Nesta operação foram recusadas soluções que pudessem reconduzir-nos a uma repetição do julgamento, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por abrir apenas a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente [Op. cit., p. 123/124].
Pretendendo a parte impugnar a decisão sobre a matéria de facto, deve observar os ónus de impugnação indicados no art.º 640.º do CPC, ou seja, é-lhe exigível a especificação obrigatória, sob pena de rejeição, dos pontos mencionados no n.º1 e n.º2, enunciando-os na motivação de recurso, nomeadamente os seguintes:
- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
No que concerne ao que se deve exigir nas conclusões de recurso quando está em causa a impugnação da matéria de facto, sendo estas não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações, mas atendendo sobretudo à sua função definidora do objeto do recurso e balizadora do âmbito do conhecimento do tribunal, é entendimento pacífico que as mesmas devem conter, sob pena de rejeição do recurso, pelo menos uma síntese do que consta nas alegações da qual conste necessariamente a indicação dos concretos pontos de facto cuja alteração se pretende e o sentido e termos dessa alteração [cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: de 23-02-2010, Proc.º 1718/07.2TVLSB.L1.S1, Conselheiro FONSECA RAMOS; de 04/03/2015, Proc.º 2180/09.0TTLSB.L1.S2, Conselheiro ANTÓNIO LEONES DANTAS; de 19/02/2015, Proc.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, Conselheiro TOMÉ GOMES; de 12-05-2016, Proc.º 324/10.9TTALM.L1.S1, Conselheira ANA LUÍSA GERALDES; de 27/10/2016, Proc.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, Conselheiro RIBEIRO CARDOSO; e, de 03/11/2016, Proc.º 342/14.8TTLSB.L1.S1, Conselheiro GONÇALVES ROCHA (todos eles disponíveis em www.dgsi.pt)].
Para além disso, exige-se também que o recorrente fundamente “em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa” [cfr. Ac. STJ de 01-10-2015, Proc.º n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, Conselheira Ana Luísa Geraldes, disponível em www.dgsi.pt].
É também entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do STJ, que o recorrente não cumpre o ónus de especificação imposto no art.º 640º, nº 1, al b), do CPC, quando procede a uma mera indicação genérica da prova que, na sua perspetiva, justifica uma decisão diversa daquela a que chegou o Tribunal de 1.ª Instância, em relação a um conjunto de factos, sem especificar quais as provas produzidas quanto a cada um dos factos que, por as ter como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, fazendo a apreciação crítica das mesmas. Nesse sentido, acompanhando o entendimento afirmado nos acórdãos do STJ de 20-12-2017 e 5-09-2018 [respectivamente, nos processos n.ºs 299/13.2TTVRL.C1.S2 e 15787/15.8T8PRT.P1.S2, disponíveis em www.dgsi.pt], no acórdão de 20-02-2019, daquela mesma instância [proc.º 1338/15.8T8PNF.P1.S2, Conselheiro Chambel Mourisco, disponível em www.dgsi.pt], consignou-se no respectivo sumário o seguinte:
- I. O artigo 640.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil estabelece que se especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, e determina que essa concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, e quando gravados com a indicação exata das passagens da gravação em que se funda o recurso.
II - Não cumpre aquele ónus o apelante que nas alegações não especificou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, relativamente a cada um dos factos concretos cuja decisão impugna, antes se limitando a proceder a uma indicação genérica e em bloco, para aquele conjunto de factos.
Ainda a este propósito, o recente Acórdão do STJ de 06-07-2022 [Proc.º 3683/20.1T8VNG.P1.S1, Conselheiro Mário Belo Morgado, disponível em www.dgsi.pt], após enunciar a “jurisprudência do STJ, norteada por critérios de proporcionalidade e de razoabilidade e rejeitando abordagens desta problemática de raiz essencialmente formalcomo nele se refere, consolidada, entre outros, nos acórdãos de 13.01.2022 [Proc. nº 417/18.4T8PNF.P1.S1], 27.10.2021 [Proc. n.º 1372/19.9T8VFR.P1-A.S1], de 14.07.2021 [Proc. n.º 19035/17.8T8PRT.P1.S1], de 19-05-2021 [Proc. n.º 4925/17.6T8OAZ.P1.S1] e de 14.01.2021 [Proc. nº 1121/13.5TVLSB.L2.S1] – sintetiza no respectivo sumário o entendimento seguinte:
I - As implicações das falhas evidenciadas no plano do cumprimento dos ónus de alegação previstos no art. 640.º, do CPC, avaliam-se em função das circunstâncias de cada caso concreto, tendo em conta, nomeadamente, o número de factos impugnados, o número e a conexão existente entre os factos integrantes de cada “bloco”, o número e a extensão dos meios de prova, a maior ou menor precisão na indicação dos meios de prova e na formulação das pretendidas alternativas decisórias e o grau de clareza com que tenham sido expostas as razões subjacentes ao peticionado, razões que devem ser nitidamente percecionáveis, pois não é suposto que o tribunal da Relação se dedique à descoberta de motivos e raciocínio não explicitados claramente.
II - Impugnar uma decisão significa refutar as premissas e os motivos que lhe subjazem, contrapondo-lhe um pensamento (racionalidade) alternativo, que não dispensa a justificação das afirmações e a expressão de argumentos (tendentes a demonstrar a bondade dos motivos apresentados como sendo “bons motivos”).
III - Independentemente das exigências especificamente contidas no art. 640.º, do CPC, o recorrente – em qualquer recurso – não pode dispensar-se de claramente explicitar os “fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão” (art. 639.º, n.º 1, do mesmo diploma), resultando da articulação destas disposições legais que o recorrente é onerado com imposições (de motivação) situadas em dois planos que, sendo complementares, têm natureza diversa: i) por um lado, impõe-se-lhe a precisa delimitação do objeto do recurso; ii) por outro lado, exige-se-lhe a efetiva e clara compreensibilidade das razões em que assenta o recurso, por forma a que na sua apreciação o tribunal não se confronte com dificuldades desmesuradas, nem demore tempo excessivo.
Para encerrar estas notas, acresce dizer, que conforme o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, quando o recorrente não cumpra o ónus imposto no art.º 640.º do Código de Processo Civil não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento, que está reservado para os recursos da matéria de direito [Cfr. acórdãos de 7-7-2016, processo n.º 220/13.8TTBCL.G1.S1, Conselheiro Gonçalves Rocha; e, de 27-10-2016, processo n.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, Conselheiro Ribeiro Cardoso; (ambos disponíveis em www.dgsi.pt)].
II.2.1 Atentos os princípios enunciados, cabe verificar se algo obsta à apreciação da impugnação.
Percorrendo as conclusões encontram-se várias alusões a meios de prova, designadamente, ao depoimento de parte da legal representante da Ré BB [conclusões VII e VIII] e aos testemunhos de CC e DD [conclusões X, XI] e, ainda, de EE [conclusão XI repetida], bem como afirmações sobre o que, na perspectiva da recorrente, resulta desses meios de prova [conclusões VII, VIII, IX, X, XI, X(repetido), XI (repetido) e XII].
Conclui a recorrente, o seguinte:
[XIII] «Pelo que da prova testemunhal ficou provado que:
- A Autora dava formação profissional, PIT`s e CRI apenas apoiando o CAO nas horas que sobravam (e que, para a Coordenadora do CAO, seriam apenas uma manhã e duas tardes por semana) conforme confirmado pela testemunha indicada pelo Réus, DD, Coordenadora do CAO;
- No CAO, a Autora era diferenciada das demais monitoras através do uso da bata branca e da forma como era tratada “Sra. Professora”;
- Assim, dúvidas não restam de que a Autora exercia funções de professora, e que a sua categoria profissional corresponde à constante no seu contrato de trabalho e recibos de vencimento;».
E, mais adiante, conclui ainda o seguinte:
- [XVII] Não se vê, salvo o devido respeito, como se possa concluir, que as funções que a Autora sempre exerceu estejam incluídas na categoria de «Monitor de CAO» pois que, a Autora lecionava, deslocando-se aos estabelecimentos de ensino (básicos e secundários) de todo o município, preparava planos pedagógicos, fazia a avaliação dos alunos externos que frequentavam o ensino do MADI. A testemunha DD, na qualidade de Coordenadora do CAO, apenas solicitava o serviço da Autora quando esta tinha disponibilidade horária».
Da conjugação destas conclusões retira-se a discordância da recorrente com a decisão sobre a matéria de facto, mas já não a indicação, em termos concretos, dos factos impugnados – provados ou não provados –, nem tão pouco da resposta alternativa que eventualmente se pretende ver acolhida.
Mais, tão pouco se percebe se porventura é pretendido o aditamento de algum facto e em que termos. Note-se, que da matéria não provada indicada pelo Tribunal a quo, acima transcrita, não consta o que a recorrente - nas conclusões XII e XVII - diz ter resultado da prova testemunhal, o que bem se percebe, pois não foi alegado pelas partes, mais precisamente por ela.
Neste quadro, cremos ser forçoso concluir que as conclusões não cumprem sua função definidora do objeto do recurso e balizadora do âmbito do conhecimento deste tribunal, dado não conterem o que é indispensável para esse efeito, ou seja, a indicação dos concretos pontos de facto cuja alteração se pretende e o sentido e termos dessa alteração, devidamente precisos, conforme exigido pelo art.º 640.ºn.º 1, alíneas a) e c), do CPC, sob pena de rejeição.
Assim, não tendo sido observados todos os ónus de impugnação, cabe rejeitar a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
II.3 MOTIVAÇÃO DE DIREITO
A recorrente autora insurge-se contra a sentença, defendendo que o tribunal a quo errou na aplicação do direito aos factos, por não ter acolhido os seus pedidos de condenação da Ré a pagar-lhe créditos vencidos a título de actualizações salariais devidas e não pagas correspondentes ao período compreendido entre 01/07/2017 e 31/08/2021, no valor de €24.802,00, e créditos vencidos a título de actualizações de subsídios de férias e de Natal de 2018 a 2021 no valor de €3.840,00.
Na fundamentação da sentença, na parte em que se debruça sobre esses pedidos, o Tribunal a quo pronunciou-se como segue:
-«[..]
Considerando as pretensões deduzidas pela autora o tribunal terá que decidir se a autora tem direito aos valores que reclama a título de actualizações salariais não pagas durante a vigência do contrato, [..].
Tal como ficou demonstrado a relação laboral subjacente aos presentes autos iniciou-se em 01/10/2015 e sendo o réu uma instituição particular de solidariedade social, ainda que não tenha sido alegado ou demonstrada a sua filiação na CNIS, são-lhe aplicáveis os seguintes instrumentos de regulamentação colectiva do Trabalho: CCT publicado n BTE nº 31 de 22/08/2015, com Portaria de Extensão nº 87/2016, publicada no DR, 1ª série de 14/04/2016; CCT publicado no BTE nº 21 de 08/06/2018, com Portaria de Extensão nº 277/2018, publicada no DR, 1ª série de 08/10/2018; CCT publicado no BTE nº 47 de 22/12/2018, com Portaria de Extensão nº 197/2019 publicada no DR, 1ª série, de 26/06/2019; CCT publicado no BTE nº 41 de 08/11/2019, com Portaria de Extensão nº 44/2020 publicada no DR, 1ª série, de 17/02/2020; CCT publicado no BTE nº 1 de 01/08/2020, com Portaria de Extensão nº 99/2020, publicada no DR, 1ª série de 21/04/2020 e o CCT publicado no BTE nº 1 de 08/01/2021, com Portaria de Extensão nº 184/2021, publicada no DR, 1ª série, de 09/03/2021.
A autora, com único fundamento no texto do contrato de trabalho celebrado com o réu, do qual consta que aquela foi admitida para desempenhar as funções de Professora, categoria profissional prevista naqueles instrumentos de regulamentação colectiva, bem como consta que por tais funções a autora auferia o vencimento mensal ilíquido correspondente ao salário em vigor de acordo com BTE – Boletim do Trabalho e Emprego, para trabalhadores ao serviço de I.P.S.S. (Tabela B – Nº 4 – Educadores de infância e professores com licenciatura profissionalizante – Nível IX - €840,00), veio reclamar o pagamento de diferenças salariais desde 01/01/2017, alegando que o réu nunca actualizou o seu vencimento em conformidade com as sucessivas alterações introduzidas pelos instrumentos de regulamentação colectiva supra identificados.
E, na verdade, ficou provado que o réu nunca aumentou a retribuição base da autora ao longo de toda a vigência do contrato de trabalho, tendo-lhe pago sempre mensalmente a quantia de €840,00.
Tal seria bastante para que a pretensão da autora fosse procedente, não fosse a circunstância de ter ficado demonstrada a existência de uma desconformidade entre aquilo que foi acordado entre as partes com vista à respectiva vinculação contratual e foi executado ao longo da relação contratual e o teor da previsão contratual, no que respeita às funções efectivamente desempenhadas pela autora.
A autora não alegou quais as concretas funções que desempenhava ao serviço da ré, limitando-se a alegar que celebrou o contrato para exercer as funções de professora, categoria cujo conteúdo funcional, nas CCT aplicáveis se encontra definida como “exerce actividade pedagógica em estabelecimento sócio-educativo”.
O réu logrou, contudo, provar que na sequência da abertura de um novo Pólo na freguesia ..., ..., e da recolocação de trabalhadores afectos ao Polo de ... naquele novo Pólo, teve necessidade de contratar novos trabalhadores para o Polo de ... tendo o nome da autora sido sugerido à Direcção do réu pelas suas Coordenadoras, Dr.ª CC e Dr.ª FF e tendo sido proposto à autora o exercício das funções de monitora do Centro de Actividades Ocupacionais (CAO), o que foi transmitido à autora pela Presidente da Direcção e a autora aceitou.
E não só aceitou como passou daí em diante a exercer aquelas funções, ou seja, de acordo com os planos individuais de desenvolvimento dos utentes, participava na definição das actividades a desenvolver, elaborava os programas das áreas temáticas definidas, selecionava os métodos essencialmente demonstrativos a utilizar, preparava e desenvolvia as actividades diárias, participava nos projectos do Centro e nos processos de avaliação individual.
Tais funções não correspondem, pois, ao núcleo funcional da categoria de professor, mas antes como refere o réu ao núcleo funcional da categoria de monitor de CAO igualmente prevista pelos CCT supra referidos e aplicáveis à relação de trabalho entre a autora e o réu.
Ora, a categoria tem diversas acepções, consoante os papéis jurídicos que desempenha, das quais, as mais relevantes são a de categoria-estatuto e a de categoria-função, correspondendo esta à definição da atividade a que o trabalhador se encontra adstrito e que é intangível, salvo acordo das partes e o caso particular do “ius variandi” (art. 118º do Código de Trabalho de 2009) e aquela à designação dada nas fontes a certa situação laboral, a fim de lhe associar a aplicação de diversas normas (arts. 129º, al. e) e 119º e 120º do Código de Trabalho de 2009).
A categoria deverá, pois ser determinada em função das tarefas efectivamente desempenhadas e não em função da vontade unilateral do empregador, não estando o seu reconhecimento dependente da arbitrariedade deste (cfr. A. Menezes Cordeiro, Manuel de Direito do Trabalho, pag. 665).
O trabalhador deve, portanto, ser classificado na categoria que corresponde às funções efetivamente desempenhadas, seja qual for a categoria que a entidade empregadora lhe atribua, seja no contrato, seja nos recibos de vencimento.
Assim, no caso dos autos, ainda que a cláusula 2ª do contrato de trabalho dos autos pudesse ser interpretada no sentido de que a categoria atribuída à autora era a de Professora, e apesar de nos recibos de vencimento da autora constar como categoria “Professor do 2º e 3º Ciclos Ensino”, tendo em conta as funções efectivamente exercidas pela autora, que não se reconduziram em qualquer momento a actividade pedagógica, nunca essa categoria lhe poderia ser reconhecida.
E em bom rigor a autora também não pede o reconhecimento de tal categoria, mas o reconhecimento do estatuto remuneratório que lhe corresponde por via quer do contrato de trabalho, no qual foi convencionada que a sua remuneração seria a correspondente à de professores com licenciatura profissionalizante (Tabela B – Nº 4, Nível IX), quer das sucessivas alterações salariais daquele estatuto remuneratório nas sucessivas CCT.
Ora, não podendo ser reconhecida à autora a categoria-função de professora, afigura-se-nos que a mesma fica impedida de reclamar da ré o reconhecimento do estatuto remuneratório correspondente, o que leva à improcedência do pedido relativo às diferenças salariais.
De qualquer modo, não podemos deixar de considerar que, nada obsta a que no exercício da estrita liberdade contratual, as partes estipulem como contrapartida do trabalho prestado uma retribuição diversa, desde que superior, às retribuições mínimas fixadas por instrumento de regulamentação colectiva, pelo que mesmo que no caso dos autos não possa ser reconhecida à autora a categoria profissional de professora, com a consequência supra referida quanto ao peticionado, não podemos ignorar que no contrato outorgado pela autora e pelo réu foi efectiva e expressamente convencionado que a retribuição da autora seria a correspondente àquela categoria, de valor significativamente superior à retribuição mínima correspondente à de monitor CAO.
O réu não deu qualquer explicação para a desconformidade existente entre a sua vontade contratual expressa nas negociações prévias à outorga do contrato e o teor do contrato, quer quanto às funções, quer quanto à retribuição contratada. De resto, quanto à retribuição o réu não alegou que em tais negociações tal matéria tenha sido discutida, isto é, que tenha sido acordada uma retribuição seja a constante do contrato, seja outra e que esta tenha sido indevida ou erradamente transposta para o contrato.
Não foi, de resto, invocado qualquer vício da vontade ou da declaração negocial, nem peticionada a anulabilidade da cláusula contratual que estipulou a retribuição da autora.
Terá, por isso, a autora legitimidade para reclamar da ré os valores relativos às actualizações salariais.
Do ponto de vista do tribunal diremos, desde já, que não.
Com efeito, mesmo que a cláusula 6ª do contrato de trabalho seja interpretada no sentido de que, independentemente de a categoria da autora não ser a constante do contrato e dos recibos, tendo a retribuição sido fixada como sendo a correspondente ao salário fixado pela CCT em vigor para a categoria de Professor, Tabela B, Nº 4, nível IX, ela ficaria obrigatoriamente indexada aos aumentos salariais decorrentes das actualizações convencionais posteriores, a pretensão da autora não pode deixar de ser considerada manifestamente abusiva.
Na verdade, nos termos do art. 334º do Código Civil “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
E existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um direito válido, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural ou da razão justificativa da sua existência e em termos ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado.
Tal como se lê no Ac. RL de 04/03/2009, in www.dgsi.pt “Na verdade, pressupondo o abuso de direito a existência de um direito subjectivo, o mesmo apenas se verifica quando o titular deste exorbita dos fins próprios do mesmo ou do contexto em que o mesmo é exercido.
Para além disso, esse excesso tem de ser claro e manifesto, constituindo uma clamorosa ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante, sem, contudo, se exigir a consciência de se estarem a exceder os limites do direito, uma vez que no Código Civil se adoptou uma concepção objectivista do abuso de direito”.
No caso concreto, não podemos deixar de considerar que a retribuição reclamada pela autora, mesmo que tenha respaldo na previsão contratual, não tem qualquer correspondência com as funções efectivamente exercidas.
Por outro lado, às funções efectivamente exercidas pela autora corresponde uma retribuição substancialmente inferior à contratada e efectivamente paga pelo réu. De resto, mesmo considerando as actualizações salariais ocorridas e, sendo, na melhor das hipóteses, reconhecido à autora o estatuto remuneratório correspondente à categoria de monitora de CAO principal, de acordo com a última tabela salarial em vigor, a retribuição mínima devida a partir de 01/07/2020 em diante seria de €727,00, tendo a autora recebido sempre quantia superior, ou seja, €840,00.
Mais relevante, contudo, do nosso ponto de vista, é a circunstância de a autora não ignorar que a sua contratação se destinava ao exercício das funções de monitora de CAO, de sempre terem sido essas as funções que exerceu ao longo da relação laboral e de, quando foi detectada a desconformidade, ao contrário do que aconteceu com outros dois trabalhadores, não ter aceite a rectificação da sua categoria, que não implicava diminuição da retribuição, só a partir daí ter passado a reclamar o pagamento de diferenças na retribuição, não podendo, o que agora reclama, deixar de ser considerado manifestamente contrário à boa fé contratual, à qual estava especificamente vinculada nos termos do art. 126º do Código do Trabalho e em termos gerais nos termos do art. 762º, nº 2 do Código Civil.
Neste contexto, afigura-se-nos que a autora ao reclamar o direito às diferenças salariais, actua em manifesto abuso de direito, por a sua actuação, ser manifestamente contrária princípio da boa fé, conduzindo a condenação da ré um resultado manifestamente injusto e constituindo uma clamorosa ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante.
Nestes termos, a pretensão da autora terá, nesta parte, que ser julgada improcedente».
A recorrente insurge-se contra esta decisão com base em duas linhas de argumentação.
A primeira, sustenta-se nas afirmações das conclusões XIII e XVII, ou seja, que “[..] dúvidas não restam de que a Autora exercia funções de professora, e que a sua categoria profissional corresponde à constante no seu contrato de trabalho e recibos de vencimento”, defendendo a autora não poder concluir-se que «[..] as funções que [..] sempre exerceu estejam incluídas na categoria de “Monitor de CAO” pois que, [..] lecionava, deslocando-se aos estabelecimentos de ensino (básicos e secundários) de todo o município, preparava planos pedagógicos, fazia a avaliação dos alunos externos que frequentavam o ensino do MADI[..]».
Contudo, como assinala a sentença recorrida, cabe ter presente que a autora não veio pedir o reconhecimento da categoria profissional de “Professora”, mas o reclamar o direito às actualizações salariais decorrentes do estatuto remuneratório que corresponde àquela categoria, usando como único fundamento o facto do contrato de trabalho celebrado com a ré mencionar na cláusula 2.ª que desempenharia as funções de professora e na cláusula 6ª que auferia o vencimento mensal ilíquido correspondente ao salário em vigor de acordo com BTE – Boletim do Trabalho e Emprego, para trabalhadores ao serviço de I.P.S.S. (Tabela B – Nº 4 – Educadores de infância e professores com licenciatura profissionalizante – Nível IX - €840,00) [facto provado 6].
Melhor precisando com recurso à petição inicial, a autora não alegou quais as funções concretamente exercidas, mas antes que “Em 01/10/2015, a Ré celebrou com a Autora um contrato de trabalho para exercer funções de professora”, constando na sua cláusula 6ª, “Por tais funções aufere o vencimento mensal ilíquido correspondente ao salário em vigor de acordo com o BTE – Boletim do Trabalho e Emprego, para trabalhadores ao serviço de I.P.S.S. (Tabela B - No 4 - Educadores de infância e professores com licenciatura profissionalizadas Nível IX - €840,00). (...)”, vencimento inicial que “não sofreu qualquer alteração”, sendo que o CCT “referenciado no contrato de trabalho celebrado entre a Autora e Ré (BTE n.º 31, de 22/08/2015)”, sofreu as alterações respeitantes a actualizações salariais que indica [artigos 1.º a 8.º]. Com base nessa alegação, conclui de seguida serem-lhe devidos 24.802,00€ relativos às diferenças de retribuição mensal, acrescidos das atualizações salariais respeitantes aos subsídios de férias e de Natal e férias, estas no valor de 3.840,00€ [artigos 9.º a 11.º].
Sucede, porém, ter-se provado o alegado pela Ré para defender não serem devidas tais actualizações à autora, nomeadamente, o que consta nos factos provados 3 a 6 (primeira parte deste], onde se lê:
3) Quando a necessidade de novas contratações se colocou, o nome da autora foi sugerido à Direcção do réu pelas suas Coordenadoras, Dr.ª CC e Dr.ª FF, tendo sido proposto à autora o exercício das funções de monitora do Centro de Actividades Ocupacionais (CAO).
4) A direcção do réu, em reunião com a autora, na presença da Coordenadora Geral, Dr.ª CC, acedeu a dar-lhe uma oportunidade e a integrar a autora no seu quadro de pessoal.
5) Nessa reunião foi transmitido à autora que seria contratada para o exercício de funções de monitora do CAO, designadamente para, de acordo com os planos individuais de desenvolvimento dos utentes, participar na definição das actividades a desenvolver, elaborar os programas das áreas temáticas definidas, selecionar os métodos essencialmente demonstrativos a utilizar, preparar e desenvolver as actividades diárias, participar nos projectos do Centro e nos processos de avaliação individual, o que a autora aceitou.
6) O contrato, com o teor de fls. 6 que se dá por reproduzido, foi reduzido a escrito em 01/10/2015, data a partir da qual a autora passou a exercer as funções referidas em 5), [..].
Mantendo-se inalterada a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, necessariamente sucumbe a construção acima apontada da recorrente. Neste contexto, concorda-se, no essencial, com a fundamentação do Tribunal a quo para ajuizar, numa primeira conclusão, o seguinte:
«[..]
O trabalhador deve, portanto, ser classificado na categoria que corresponde às funções efetivamente desempenhadas, seja qual for a categoria que a entidade empregadora lhe atribua, seja no contrato, seja nos recibos de vencimento.
Assim, no caso dos autos, ainda que a cláusula 2ª do contrato de trabalho dos autos pudesse ser interpretada no sentido de que a categoria atribuída à autora era a de Professora, e apesar de nos recibos de vencimento da autora constar como categoria “Professor do 2º e 3º Ciclos Ensino”, tendo em conta as funções efectivamente exercidas pela autora, que não se reconduziram em qualquer momento a actividade pedagógica, nunca essa categoria lhe poderia ser reconhecida.
E em bom rigor a autora também não pede o reconhecimento de tal categoria, mas o reconhecimento do estatuto remuneratório que lhe corresponde por via quer do contrato de trabalho, no qual foi convencionada que a sua remuneração seria a correspondente à de professores com licenciatura profissionalizante (Tabela B – Nº 4, Nível IX), quer das sucessivas alterações salariais daquele estatuto remuneratório nas sucessivas CCT.
Ora, não podendo ser reconhecida à autora a categoria-função de professora, afigura-se-nos que a mesma fica impedida de reclamar da ré o reconhecimento do estatuto remuneratório correspondente, o que leva à improcedência do pedido relativo às diferenças salariais».
A segunda linha de argumentação da recorrente consta das conclusões XXIV a XXVII, e visa por em causa o outro fundamento considerado pelo Tribunal a quo para, concluir pela improcedência desse mesmo pedido, ou seja, ao entender “que a autora ao reclamar o direito às diferenças salariais, actua em manifesto abuso de direito, por a sua actuação, ser manifestamente contrária princípio da boa fé, conduzindo a condenação da ré um resultado manifestamente injusto e constituindo uma clamorosa ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante”. Defende a recorrente, o seguinte:
XXIV - In casu, a Autora assinou um contrato na qual ficou mencionada a categoria profissional de Professora e a aplicação do CCT, não entrando em contradição com a sua segunda conduta que exige essa aplicação.
XXV - Mas mesmo que assim não fosse, o que por raciocínio académico se admite, o disposto no artigo 476.º do CT impõe o primado de que as disposições de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho só podem ser afastadas quando este estabeleça condições mais favoráveis para o trabalhador.
XXVI - No caso em apreço, apenas está em causa a aplicação de princípio plasmado na lei, pelo que mesmo que pudesse existir um acordo entre as partes (o que não se concebe) nunca tal acordo poderia afastar a imposição do que se estabelece no CCT aplicável ao caso, ao abrigo do disposto no artigo 476º.
XXVII - O que não consubstancia qualquer abuso de direito face à natureza da aludida norma (norma imperativa que não pode ser afastada por vontade das partes).
Salvo o devido respeito, a recorrente não está a interpretar correctamente a fundamentação da sentença. O Tribunal a quo não concluiu que há abuso de direito por contradição da sua conduta face ao que consta do contrato de trabalho, mas antes na consideração do seguinte:
i) “a retribuição reclamada pela autora, mesmo que tenha respaldo na previsão contratual, não tem qualquer correspondência com as funções efectivamente exercidas”;
ii) “às funções efectivamente exercidas pela autora corresponde uma retribuição substancialmente inferior à contratada e efectivamente paga pelo réu. De resto, mesmo considerando as actualizações salariais ocorridas e, sendo, na melhor das hipóteses, reconhecido à autora o estatuto remuneratório correspondente à categoria de monitora de CAO principal, de acordo com a última tabela salarial em vigor, a retribuição mínima devida a partir de 01/07/2020 em diante seria de €727,00, tendo a autora recebido sempre quantia superior, ou seja, €840,00”.
iii) “a circunstância de a autora não ignorar que a sua contratação se destinava ao exercício das funções de monitora de CAO, de sempre terem sido essas as funções que exerceu ao longo da relação laboral e de, quando foi detectada a desconformidade, ao contrário do que aconteceu com outros dois trabalhadores, não ter aceite a rectificação da sua categoria, que não implicava diminuição da retribuição, só a partir daí ter passado a reclamar o pagamento de diferenças na retribuição, não podendo, o que agora reclama, deixar de ser considerado manifestamente contrário à boa fé contratual, à qual estava especificamente vinculada nos termos do art. 126º do Código do Trabalho e em termos gerais nos termos do art. 762º, nº 2 do Código Civil”.
Dito em poucas palavras, atento o que resultou apurado nos factos 3 a 6 (primeira parte deste), acima transcritos, o Tribunal a quo não só concluiu que essa factualidade retira fundamento à Autora para reclamar da ré o reconhecimento do estatuto remuneratório correspondente à categoria de Professor, no essencial, por não ter sido contratada para o exercício dessas funções nem efectivamente as ter desempenhado, mas também que bem sabendo ela quais as funções para que foi contratada e de facto exerceu, que a dedução desse pedido alicerçado na cláusula do contrato de trabalho, consubstancia uma actuação em abuso de direito por “manifestamente contrário à boa fé contratual, à qual estava especificamente vinculada nos termos do art. 126º do Código do Trabalho e em termos gerais nos termos do art. 762º, nº 2 do Código Civil”.
Pois bem, adiantamos já, concordamos com a decisão recorrida também quanto a este juízo. Passamos a justificar esta asserção.
O princípio do abuso de direito constitui um expediente técnico, ditado por razões de justiça e equidade, para obstar que a aplicação de um preceito legal, certo e justo em circunstância normais, venha a revelar-se injusto numa situação concreta, em razão das particularidades ou circunstâncias especiais que nela concorram. Ocorrerá a figura de abuso “quando um certo direito – em si mesmo válido – seja exercido em temos que ofendam o sentimento de justiça dominante na comunidade social[Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, Atlândida Editora, Coimbra, 1968, pp. 26/27].
O Código Civil consagra este princípio no art.º 334.º, estabelecendo que «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Acolhe-se a concepção objectiva do abuso de direito defendida por parte da doutrina, por contraposição à corrente subjectiva defendida por outra parte. O que interessa averiguar não é a intenção do agente titular, isto é, se ele agiu com o único propósito de prejudicar o lesado, mas antes os dados de facto, o alcance objectivo da sua conduta, de acordo com o critério da consciência pública. Como igualmente elucida Almeida Costa, “Não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido. Basta que na realidade esse acto se mostre contrário” [Op. Cit., pp. 29].
Porém, como notam Pires de Lima e Antunes Varela, “isto não significa, no entanto, que ao conceito de abuso do direito consagrado no art.º 334.º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido. A consideração destes factores pode interessar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito”. Contudo, exige-se um abuso nítido, isto é o titular do direito deve ter excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício. Por isso mesmo, “os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimaram, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações” [Op. cit. pp. 299/300; no mesmo sentido, também Almeida e Costa, Op. cit., pp. 29].
O abuso de direito, consumado por actuação que exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, não é exclusivo do direito substantivo, podendo também resultar no exercício do direito de acção, numa perspectiva da actuação processual, nomeadamente, pelo recurso a juízo através de acções ou procedimentos cautelares.
A esse propósito, Menezes Cordeiro escreve o seguinte:
- “O instituto do abuso do direito traduz a aplicação, nas diversas situações jurídicas, do princípio da boa fé.
E o princípio da boa fé equivale à capacidade que o sistema jurídico tem de, mesmo nas decisões mais periféricas, reproduzir os seus valores fundamentais.
A boa fé age através de dois princípios mediantes já expostos: a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente.
Ambos se concretizam numa constelação de situações típicas, acima ponderadas: desde o venire ao desequilíbrio no exercício”.
E, mais adiante:
As acções judiciais intentadas em grave desequilíbrio de modo a provocar danos máximos a troco de vantagens mínimas, são abusivas: há abuso do direito”.
[Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa “in agendo”, Coimbra, Almedina, 2006, pp. 91/92]
Como vimos, decorre dos factos provados 4 a 6, que em reunião realizada com a autora, foi-lhe “transmitido [..] que seria contratada para o exercício de funções de monitora do CAO, designadamente para, de acordo com os planos individuais de desenvolvimento dos utentes, participar na definição das actividades a desenvolver, elaborar os programas das áreas temáticas definidas, selecionar os métodos essencialmente demonstrativos a utilizar, preparar e desenvolver as actividades diárias, participar nos projectos do Centro e nos processos de avaliação individual, o que a autora aceitou”, bem assim que passou a exercer essas funções a partir da data em que o contrato foi reduzido a escrito.
Ignorar-se essa realidade para acolher a pretensão da autora, isto é, reconhecer-lhe o direito às diferenças salariais reclamadas, atendendo ao único argumento que vem esgrimir - o conteúdo da cláusula do contrato de trabalho –, sabendo-se, assim como o sabe a autora, que não tem correspondência com aquela realidade, conduziria de facto a uma decisão injusta e contrária aos princípios da boa-fé.
Não é despiciendo referir que os factos provados levam a crer que não foi por acaso, ou sequer por inépcia, que a autora apenas veio usar aquele argumento, nada referido quanto às funções efectivamente exercidas, como seria expectável, por ser lógico e normal em situações similares, que minimamente alegasse e procurasse demonstrar a correspondência entre as funções desempenhadas e a categoria profissional com base na qual reclama diferenças salariais. Usou este argumento, por ser o único de que dispunha, é o que se deduz dos factos provados 13 e 14, dos quais se retira que tendo-lhe a Ré proposto proceder à rectificação quanto à desconformidade entre a categoria profissional atribuída no contrato de trabalho e as funções auferidas, a autora “não aceitou tal rectificação, ainda que a mesma não implicasse diminuição da retribuição e apesar de, até essa data nunca ter reclamado ser credora de qualquer actualização salarial, daí em diante passou a exigir o pagamento das diferenças na retribuição”, significando isto, que ao propor a acção a autora não poderia deixar de antever a possibilidade da Ré pôr em causa que ela efectivamente exercesse as funções mencionadas no contrato de trabalho.
Por último, não tem razão a recorrente ao invocar o art.º 476.º do CT, para defender que “mesmo que pudesse existir um acordo entre as partes (o que não se concebe) nunca tal acordo poderia afastar a imposição do que se estabelece no CCT aplicável ao caso, ao abrigo do disposto no artigo 476º”.
Está provado, que a necessidade de contratação que a Ré tinha era para as funções de monitora do Centro de Actividades Ocupacionais (CAO), tendo sido essa a proposta apresentada à autora [facto 3]. Foi nesse contexto e para responder a essa necessidade que “A direcção do réu, em reunião com a autora, na presença da Coordenadora Geral, Dr.ª CC, acedeu a dar-lhe uma oportunidade e a integrar a autora no seu quadro de pessoal” [facto 4]. E, “Nessa reunião foi transmitido à autora que seria contratada para o exercício de funções de monitora do CAO, designadamente para, de acordo com os planos individuais de desenvolvimento dos utentes, participar na definição das actividades a desenvolver, elaborar os programas das áreas temáticas definidas, selecionar os métodos essencialmente demonstrativos a utilizar, preparar e desenvolver as actividades diárias, participar nos projectos do Centro e nos processos de avaliação individual, o que a autora aceitou”.
Para melhor contextualizar estes factos, nomeadamente, para se perceber quais as características do posto de trabalho que a Ré visava preencher, importa ter em conta estar também provado o seguinte:
10) Os utentes do réu tem uma média de idades de 38 anos, tratando-se de pessoas com deficiências profundas, sem capacidade de aprendizagem a nível académico.
11) O réu não tem qualquer trabalhador ao seu serviço que exerça as funções de professor, tendo apenas três utentes cujo ensino é assegurado por um professor ali colocado pelo Ministério da Educação.
12) Durante os anos em que o réu teve utentes em idade escolar, possibilidade, entretanto, limitada pelo Ministério da Educação, o respectivo ensino sempre foi assegurado por professores ali colocados pelo Ministério da Educação.
De acordo com o estabelecido no art.º 115.º, do CT, cabe às partes definir a actividade para cuja prestação o trabalhador é contratado, podendo a sua definição ser feita por remissão para uma categoria profissional do instrumento de regulamentação colectiva aplicável. Daí dizer-se, que a posição do trabalhador na organização em que se integra define-se a partir daquilo que lhe cabe fazer, isto é, pelo conjunto de tarefas serviços e tarefas que formam o objecto da prestação de trabalho, o qual determina-se a partir da actividade contratada com o empregador [art.º 115.º n.º 1, do CT 09].
Como sabido, a lei não define categorias profissionais. Mas como decorre do art.º 1º do CT 09, “O contrato de trabalho está sujeito, em especial, aos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho (..)”.
Ou seja, a lei remete a definição de categorias para a contratação colectiva, no âmbito da qual se estabelecem os quadros de categorias, classes, níveis ou graus profissionais, acompanhados da descrição das funções correspondentes, que se correlacionam com um certo estatuto ou tratamento contratual, desde logo, ao nível remuneratório.
A categoria “(..) assume, assim, a natureza de conceito normativo – no sentido de que converte a realidade empírica, a da execução consensual de certos trabalhos, num título de acesso a certos direitos, benefícios e garantias pré-definidas, integradores de um estatuto profissional reivindicável pelo trabalhador[António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 14.ª Edição, Almedina, 2009, p. 200].
A qualificação correcta na categoria assume-se como um direito do trabalhador, na medida em que lhe fixa direitos, nomeadamente, integrando-o numa determinada carreira e sendo o factor de referência para a determinação da retribuição devida em contrapartida da prestação da sua actividade.
Revertendo ao caso, o artigo 476.º, com a epígrafe “Princípio do tratamento mais favorável” – invocado ela recorrente -, estabelece o que segue: “As disposições de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho só podem ser afastadas por contrato de trabalho quando este estabeleça condições mais favoráveis para o trabalhador”.
Haveria violação desta disposição se no contrato de trabalho celebrado entre a R e a Autora tivesse sido acordada uma retribuição que fosse inferior à prevista para as funções contratadas, no CCT aplicável.
Mas como decorre da matéria provada, não foi essa a situação que se configurou. Acontece é que há uma desconformidade entre as funções contratadas e as que a autora passou efectivamente a desempenhar, constando que a autora “desempenhará as funções de professora”, quando “foi transmitido à autora que seria contratada para o exercício de funções de monitora do CAO, designadamente para, de acordo com os planos individuais de desenvolvimento dos utentes, participar na definição das actividades a desenvolver, elaborar os programas das áreas temáticas definidas, selecionar os métodos essencialmente demonstrativos a utilizar, preparar e desenvolver as actividades diárias, participar nos projectos do Centro e nos processos de avaliação individual, o que a autora aceitou”. Ora, como já ficou explicado, essa desconformidade entre o texto do contrato e aquela que foi a proposta de trabalho apresentada e aceite pela autora, que depois teve execução prática em consonância com o acordado, não é fundamento suficiente para a Autora reclamar o direito a diferenças salariais.
Por último, se é certo que não se logrou perceber qual a razão subjacente àquela desconformidade, importa assinalar que se porventura tivesse havido um propósito objectivo por acordo das partes, designadamente, o de atribuir à autora um estatuto remuneratório mais vantajoso a manter ao longo da execução do contrato de trabalho - pese embora não estivesse a ser contratada para exercer as funções de professora, nem de facto as tivesse exercido -, então, de acordo com as regras gerais de repartição do ónus de prova, incumbia a esta a alegação e prova dos factos essenciais para sustentar a existência desse eventual acordo como base para sustentar a sua pretensão [art.º 342.º /1, do CC].
Não foi certamente esse o caso, pois se tivesse sido a autora não deixaria de o ter invocado e alegado os factos que entendesse pertinentes.
Concluindo, o Tribunal a quo decidiu com acerto, não se reconhecendo fundamento ao recorrente, logo, improcedendo o recurso.

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso nos termos seguintes:
i) Rejeitar a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
ii) Improcedente o recurso na vertente de alegado erro na aplicação do direito, em consequência confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente, atento o decaimento (art.º 527.º CPC).



Porto, 8 de Maio de 2023
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Teresa Sá Lopes