Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
472/13.3TAPNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ERNESTO NASCIMENTO
Descritores: OFENSA A PESSOA COLECTIVA
Nº do Documento: RP20150311472/13.3TAPNF.P1
Data do Acordão: 03/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A ofensa prevista no artº 187º1 CP só pode ser cometida por meios de palavras e verbalmente, e apenas pela afirmação ou propalação de factos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 472/13.3TAPNF da Comarca do Porto Este – Marco de Canaveses, Instância Central – Sec. Instrução J1

Relator - Ernesto Nascimento
Adjunto – Artur Oliveira

Acordam, em conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

I. 1. Deduzida acusação particular pela assistente B… contra os arguidos C…, D… e E…, a quem, com base em duas notícias publicadas no F…, imputa a prática dos crimes de difamação, publicidade e calúnia e ofensa a pessoa – acompanhada, entretanto pelo MP – requereram os arguidos a Instrução, que terminou com a prolação de despacho de não pronúncia dos arguidos.

I. 2. Inconformada com o assim decidido, interpôs a assistente o presente recurso – pugnando pela revogação de tal decisão e a sua substituição por uma outra que pronuncie os arguidos, nos termos constantes da acusação particular (ainda que com correcções de terminologia quanto aos nomes dos ilícitos) - apresentando aquilo que denomina de conclusões, mas que dada a sua extensão ao longo de 277!!! números, como tal não podem ser consideradas, pelo menos, na noção legal de resumo das razões do pedido e, que por isso aqui se não transcrevem, apenas se enunciando as questões aí suscitadas e que são a de saber se,

se a decisão é nula, por força dos artigos 97.º/4 e 5, 374.º/2 e 379.º/1 alínea a) C P Penal;
verificam todos os vícios do n.º 2 do artigo 410.º C P Penal.

I. 3. Responderam, quer o Magistrado do MP, quer os arguidos, em ambos os casos, pugnando pelo não provimento do recurso

II. Subidos os autos a este Tribunal o Exmo. Sr. Procurador Geral Adjunto, aderindo à resposta do MP em 1.ª instância entende, da mesma forma, que o recurso não merece provimento.

No exame preliminar o relator deixou exarado o entendimento de que o recurso fora admitido com o efeito adequado e que nada obstava ao seu conhecimento.

Seguiram-se os vistos legais.

Foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.

III. Fundamentação

III. 1. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso - e, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, então, as questões suscitadas nos presentes resumem-se, tão só em de saber se,

se a decisão é nula, por força dos artigos 97.º/4 e 5, 374.º/2 e 379.º/1 alínea a) C P Penal;
verificam todos os vícios do n.º 2 do artigo 410.º C P Penal.

III. 2. Apreciando.

III. 2. 1. A nulidade.

“O dever de fundamentação das decisões judiciais é uma garantia integrante do próprio Estado de direito democrático, artigo 2º da Constituição da República, ao menos quanto àquelas que tenham por objecto a solução da causa em juízo", cfr Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa Anotada", 3 ed. pág. 798.
Este dever de fundamentação mereceu consagração constitucional no artigo 205º nº 1 da CRP, provindo já da revisão de 1982, artigo 210º/1, mantido na revisão de 1989, artigo 208º/1.
De notar que nesta última, que deu lugar à actual redacção do artigo 205º/1 imprimiu contornos mais precisos ao dever de fundamentação, pois, onde antes se remetia para a lei os "casos" em que a fundamentação era exigível, passou a concretizar-se que ela se impõe em todas as decisões "que não sejam de mero expediente", mantendo-se apenas a remissão para a lei quanto à "forma" que ela deve revestir.
Este aprofundamento do dever de fundamentação das decisões judiciais reforça os direitos dos cidadãos a um processo justo e equitativo, assegurando a melhor ponderação dos juízos que afectam as partes, do mesmo passo que a elas permite um controle mais perfeito da legalidade desses juízos com vista, designadamente, à adopção, com melhor ciência, das estratégias de impugnação que julguem adequadas.
“Ao legislador incumbirá, então, definir a "forma" em que a fundamentação se deve traduzir, sem que, contudo, ele possa esvaziar o sentido útil daquele mandado”, cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional 59/97. Qualquer que seja essa forma, ela terá sempre que permitir o conhecimento das razões que motivam a decisão.
Mas se a relevância da fundamentação das decisões judiciais é incontestável como garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático, ela assume, no domínio do processo penal, uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos, muito embora o texto constitucional não contenha qualquer norma que disponha especificamente sobre a fundamentação das decisões judicias naquele domínio.
O Código de Processo Penal, expressa no artigo 97º/5, o princípio geral que vigora sobre a fundamentação dos actos decisórios: "os actos decisórios são sempre fundamentados devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão".
Consagrado este princípio geral, o mesmo Código não deixou de o reiterar, em concreto, relativamente a determinados actos que afectam ou podem afectar os direitos dos arguidos, vg. os relativos ao despacho que decrete medidas de coacção, cfr. artigo 194.º/3 e sentença, cfr. artigo 379.º - de resto, norma, esta, invocada pela assistente.
No entanto, apesar do cuidado patenteado pelo legislador ordinário, na exigência de fundamentação de todas as decisões jurisdicionais – algumas com grau de exigência mais acrescido - já, ao estabelecer o regime geral das nulidades em processo criminal, o incumprimento daquele dever, não lhe terá merecido particular rigor sancionatório.
Se as exigências expressas no C P Penal, nem sempre se convertem em exigências constitucionais - o que no caso em apreço acontece - por outro, o vício da nulidade não constitui o único nível de desvalor admissível para qualquer tipo de deficiência, sem que se deva ter em conta se ela atinge, e em que grau, a razão de ser e o fim último da imposição constitucional.
Na verdade, vigorando em processo penal, nesta matéria, o princípio da tipicidade ou da legalidade, desde logo afirmado no artigo 118º/1 C P Penal, "a violação ou infracção das leis de processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei", não consta daquele regime que a falta apreciação crítica da prova que no despacho de não pronúncia se tem por analisada e/ou a falta ou deficiência de fundamentação constitua vício gerador de nulidade insanável, artigo 119º ou de nulidade dependente de arguição, artigo 120º, ficando elas, deste modo, relegadas para o plano das irregularidades nos termos dos artigos 118º/2 e 123º C P Penal.
Tendo em conta o necessário compromisso entre interesses que justificam um formalismo rigoroso e os que aconselham uma minimização desse formalismo, subjacente ao regime de nulidades instituído, poderia questionar-se a conformidade constitucional deste regime em caso de incumprimento de formalidades que, essencialmente, visam tutelar direitos fundamentais dos arguidos e, seria, porventura, o caso da falta absoluta de fundamentação do despacho, no caso de não pronúncia.
Resta, então, determinar qual a consequência para a alegada falta de apreciação crítica da prova que na decisão se diz ter sido analisada.
Qual a concreta invalidade, que aquela omissão é susceptível de desencadear e com a qual agora somos confrontados.
Seguramente, que do que vem de ser dito, tal situação justifica um tratamento diverso, menos rigoroso e gravoso do que o inerente ao regime das nulidades, a apontar, assim, para a verificação de mera irregularidade, artigo 123º.
O que significa que se abre sempre a possibilidade de o arguido, no próprio acto, com a assistência do seu defensor, ou quando da decisão for notificado, nos 3 dias seguintes, invocar essa irregularidade; não o fazendo, a irregularidade fica sanada, nº. 1.
Este raciocínio tem subjacente, o evidente erro de enfoque da assistente ao invocar, uma norma que se reporta, única e exclusivamente, à sentença e, não às decisões instrutórias – campo em que nos movemos aqui e agora.
Razão pela qual não se verifica qualquer nulidade – mormente a invocada - que já vimos não seria, de resto, também, o vício adequado a sancionar a eventual deficiência ou insuficiência de fundamentação da decisão instrutória.
Importaria, antes, a verificação de uma mera irregularidade, que, no caso, terá que se haver como sanada, por falta de arguição atempada, artigo 123º/1 C P Penal.

III. 2. 2. Os vícios do artigo 410.º/2 C P Penal.

Como se decidiu no Acórdão do STJ de 20.6.2002, in site da dgsi, “os vícios do artigo 410.º C P Penal, embora possam em certos casos estender o seu regime aos simples despachos, são claramente vício da sentença final, sobretudo, são vícios da matéria de facto.”
Ainda que se possa entender – como o Acórdão deste Tribunal de 27.1.2010, igualmente, acedido in site da dgsi – que, em certos termos se possa invocar a existência dos vícios do artigo 410.º/2 C P Penal no que toca à decisão instrutória, cremos, no entanto, que será processualmente, mais adequado o tratamento da questão em sede da apreciação sobre a suficiência ou insuficiência de indícios.
Isto porque, nesta fase do processo não se visa alcançar a demonstração da verdade material, mas tão só, a existência de indícios, de sinais, de um crime ter sido cometido, por determinado agente, donde as provas produzidas nesta fase não constituem pressuposto da decisão de mérito, mas de mera decisão processual quanto ao prosseguimento do processo, para julgamento.
Que estes vícios tenham sido pensados para a decisão que verse sobre o julgamento da matéria de facto feito na sentença, parece, desde logo, resultar, do facto de terem, obrigatoriamente, que resultar do texto da decisão recorrida – por si ou conjugada com as regras da experiência comum - e ao sindicar-se a decisão instrutória - de pronúncia ou não pronúncia - a análise sobre a existência de indícios suficientes terá, necessariamente, que abranger todos os elementos de prova carreados para o processo.
Donde no caso concreto, carece de pertinente adequação processual a invocação pelos assistentes da existência de qualquer um dos vícios, contidos nas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 410.º C P Penal, assacados ao despacho de não pronúncia.
A questão essencial suscitada no recurso - que como vimos já a assistente trata como se tivesse uma sentença por objecto - resume-se então, em saber – como afinal expressa e concretamente, pretendem os assistentes – se há ou não prova, de natureza indiciária, do cometimento pelos arguidos dos crimes pelos quais vêm acusados.
Isto no pressuposto de que, em relação ao despacho de não pronúncia, se não pode ter como verificado, qualquer dos vícios do artigo 410.º/2 C P Penal e que o núcleo essencial do recurso se centra na discordância sobre a forma como o Juiz concluiu a fase da Instrução – a apontada insuficiência da análise crítica da prova, a sustentar decisão de arquivamento – e como procedeu, à, livre, apreciação dos indícios existentes nos autos - o apontado erro na apreciação da prova produzida nos autos.

III. 2. 3. Atentemos, então.

Toda esta questão no entanto – como, aflorada pelo Sr. PGA – tem subjacente a da operação de subsunção dos factos descritos na acusação ao tipo legal de crime de ofensas a organismo, serviço ou pessoa colectiva.

Isto porque, será o único – de entre os invocados pela assistente - que se pode ter como preenchido pela conduta dos arguidos dado o carácter de pessoa colectiva, lato senso, da assistente – seguramente como não pessoa física e singular.

Com efeito.
Dispõe o artigo 187º C Penal, sob a epígrafe “ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva” que:
“1. quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2. é correspondentemente aplicável o disposto:
a) no artigo 183º e,
b) nos n.ºs 1 e 2 do artigo 186”.

O artigo 187º C Penal foi introduzido na Reforma operada pelo Decreto Lei 48/95 de 15MAR, colocando-se fim à controvérsia a que se vinha assistindo sobre a questão de saber se as pessoas colectivas podiam ou não ser sujeito passivo de crimes contra a honra.
Como consta da acta n.º 25 da Comissão Revisora do C Penal de 1995, “visa o tipo legal previsto no artigo 187º C Penal criminalizar acções (os rumores) não atentatórios da honra, mas sim do crédito, do prestígio ou da confiança de uma determinada pessoa colectiva, valores que não se incluem em rigor no bem jurídico protegido pela difamação ou pela injúria”.

III. 2. 3. 1. O texto escrito e o tipo legal do artigo 187.º C Penal.

Entendemos que, quanto às pessoas colectivas, o artigo 187.º/1 C Penal, prevê os actos de “afirmar ou propalar”, donde este tipo legal de crime não abrange, nem directamente nem por remissão, além das ofensas verbais, as que se concretizem pela escrita.
Discordamos do entendimento sufragado ao longo do processo, de que as pessoas colectivas podem ser atingidas, por via da norma incriminatória em causa, através do texto escrito – como acontece in casu.
Isto porque, como deixamos escrito, já nos Acórdão proferidos neste Tribunal, nos processos 7515/08 e 1429/09., e que aqui passamos a transcrever:
“Como é sabido os tipos legais de difamação e de injúria, previstos, respectivamente, nos artigos 180º e 181º C Penal, pressupõem a comissão através do uso da palavra dita – prevêem crimes de difamação e injúria verbais.
É através do artigo 182º - que não constituindo uma norma incriminatória, antes se assume como uma norma de equiparação, como de resto, da própria epígrafe consta - que se concede à difamação e à injúria, feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão, igualdade de tratamento, que o concedido às verbais - previstas nos citados artigos 180º e 181º C Penal.
Este artigo 182º constitui, então, uma norma que alarga as margens de punibilidade dos tipos legais de crime de difamação e de injúria previstos nos artigos 180º e 181º C Penal.
Isto porque os tipos legais previstos nestas 2 normas estão estruturados, definidos – enfim, previstos – tão só, em termos de comissão por palavras.
Através desta norma de equiparação atribui-se à comissão por escrito, gestos imagens ou qualquer outro meio de expressão uma posição de equivalência em face daquelas, cfr. C Penal anotado e comentado por Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette.
Não fora esta norma de equiparação e o crime de difamação e o de injúria apenas previa a comissão através do verbo. Assim, podem ser cometidos por meio de palavras, por meio de escrito, por gestos, por imagens ou através de qualquer outro meio de expressão.
A norma do artigo 187º pressupõe, desde logo, a afirmação ou a propalação de factos.
Se, afirmar significa, desde logo, declarar com firmeza; dizer algo assumindo o carácter de verdade do que é dito; asseverar, sustentar, do mesmo modo, propalar, significa divulgar, espalhar, reiterar, apregoar, cfr dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
O n.º 2 do artigo 187º C Penal - que prevê e pune o novel crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva - espelha uma norma de remissão interna, o que vale por dizer que manda aplicar, de maneira correspondente, as normas contidas no artigo 183º e ainda as que se sedimentam nos n.ºs 1 e 2 do artigo 186º, nas palavras precisas do Prof. Faria Costa in Comentário Conimbricense.
O legislador consagrou no n.º 2 do artigo 187º uma determinação de correspondência, o que permite afastar aquilo que se considera inaplicável perante uma rigorosa análise de teleologia da norma, ibidem.
Como resulta manifesto, não existe norma remissiva para o artigo 182º C Penal – a tal norma que equipara a difamação e a injúria cometidas por escrito, por gestos, por imagens ou por qualquer outro meio de expressão, às que são cometidas através da palavra dita.
Donde, não pode deixar de se concluir, a propósito do tipo legal de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva - uma vez que a norma remissiva do artigo 187º/2 não inclui o artigo 182º - que a ofensa das entidades ali previstas, se cometida por escrito, gesto ou imagem ou por qualquer outro meio de expressão, que não o verbal, não está penalmente protegida.
Outra qualquer interpretação violaria o princípio da legalidade, no dizer do Prof. Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário.
Princípio consagrado, quer no artigo 29º/1 da CRP, quer no artigo 1º C Penal, segundo o qual ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão.
Este princípio, “nullum crimen, nulla poena sine lege” constitui, de resto, uma decorrência do estado de Direito democrático e como tem corolários as máximas seguintes: “nullum crimen sine lege”, reserva de lei; “nulla poena sine crimem”, princípio da conexão; “nullum crimem, nulla poena sine lege certa”, princípio da tipicidade; “nullum crimem, nulla poena sine lege praevia”, proibição da retroactividade”.
Donde, com este fundamento, sempre estaria a acusação votada ao insucesso”.

Nem se diga, que de outra forma, tal resultaria numa impunidade sistemática da ofensa à pessoa colectiva, pois que o modo escrito será o modo mais vulgar de ofensa à pessoa colectiva.
E porque, ainda, como de resto também ali escrevemos, “a esta mesma conclusão somos forçados a chegar, por aplicação do princípio da intervenção mínima do direito penal, ínsito no princípio da fragmentaridade, que afirma que o direito penal constitui a ratio extrema, donde deriva a circunstância de apenas ser previsto como crime o comportamento que atente contra valores fundamentais da vida em sociedade de modo particularmente grave. Ou seja e, dito de outro modo, só determinados comportamentos - os mais graves – são qualificados como crime, sendo o critério de selecção, o da gravidade do facto, não existindo a pretensão de a lei penal abranger todo o sector da vida social”.
Entendimento que bastaria, para que no caso concreto, uma vez que o meio usado na prática dos factos foi a escrita, num jornal diário, meio, de todo, não previsto, no tipo legal do artigo 187º C Penal, nem directamente nem por remissão, se entender que a conduta dos arguidos não assume, nesse segmento, dignidade penal, por falta de tipicidade.
De resto e, a propósito deste princípio e do que com ele se relaciona, de forma próxima e imediata, da legalidade e no que respeita ao problema da compatibilização da norma contida no artigo 187.º C Penal, com as exigências de tal princípio, passamos a recorrer ao que decidiu o Tribunal Constitucional – ainda que a propósito dos exemplos-padrão do n.º 2 do artigo 132.º C Penal – no recente Acórdão 852/2014, de 10.12.2014, “julgar inconstitucional a norma retirada do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal, na relação deste com o n.º 2 do mesmo preceito, quando interpretada no sentido de nela se poder ancorar a construção da figura do homicídio qualificado, sem que seja possível subsumir a conduta do agente a qualquer das alíneas do n.º 2 ou ao critério de agravação a ela subjacente, por violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade penais, garantidos pelo artigo 29.º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa”.
Deste Acórdão, com o devido respeito, respigamos os seguintes excertos, pro absolutamente esclarecedores:
“(…) a este respeito, Figueiredo Dias refere-se ao tipo legal ou tipo de garantia como «o tipo formado pelo conjunto de elementos cuja fixação se torna necessária para uma correta observância do princípio da legalidade». Nas palavras deste Autor, no plano da determinabilidade «aquilo que importa é que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos» (in Direito Penal. Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 185-186).
(…)
O princípio da tipicidade dos crimes, vertido na conhecida formulação romana nullum crimen nula poena sine lege, pode ser visto como corolário de outro princípio, o da legalidade.
A CRP, no seu artigo 29.º, n.º 1, dispõe que «ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou omissão…» A melhor doutrina constitucional descobre nesta norma uma tripla exigência:
a) A suficiente densidade da norma incriminadora, proibindo-se o uso de conceitos vagos ou insuficientemente determinados (nullum crimen nula poena sine lege certa);
b) A proibição da interpretação extensiva das normas penais incriminadoras (nullum crime nulla poena sine legestricta);
c) A determinação legal da pena correspondente a cada tipo de crime (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª edição revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p.495; também, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p.672).
(…)
As exigências de suficiente densidade da norma penal são condição de «um direito criminal objetivo que adequadamente cumpra a repartição de competências entre a legislação e a jurisdição – imposta pelo princípio da separação dos poderes –, que atue como fundamento normativo das decisões jurídicas concretas – imposta, por sua vez, pelo princípio da vinculação jurídica das mesmas decisões – e ofereça a prática possibilidade de controle ainda dessas decisões – como impõe o princípio da objetividade jurídica ou da exclusão do arbítrio» (A. Castanheira Neves, «O princípio da legalidade criminal», in Digesta, volume 1º, Coimbra, 1995, p. 380).
Também Taipa de Carvalho (Constituição Portuguesa Anotada, cit., Tomo I, pág. 672,) escreve que «dada a necessidade de prevenir as condutas lesivas dos bens jurídico-penais e igualmente de garantir o cidadão contra a arbitrariedade ou mesmo contra a discricionariedade judicial, exige-se que a lei criminal descreva o mais pormenorizadamente possível a conduta que qualifica como crime. Só assim o cidadão poderá saber que ações e omissões deve evitar, sob pena de vir a ser qualificado criminoso, com a consequência de lhe vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança».
Sousa Brito («A lei penal na Constituição», in Estudos sobre a Constituição, II, Lisboa, 1978, pp. 197 ss, 243, 244), reconhecendo tratar-se de problema de difícil solução, sustenta que «que alguma determinação terá que haver, resulta já dos princípios da legalidade das penas e da conexão entre crime se a lei que a impõe não determinasse com suficiente segurança os pressupostos genéricos a que está ligada. Previsões legais vagas, ou de outro modo indeterminadas são um modo de desvirtuar a função de garantia da reserva de lei e do princípio da legalidade por inteiro. Isto vale tanto para os crimes, como para as contravenções, como para os pressupostos das medidas de segurança.»
(…)
O Tribunal Constitucional já teve oportunidade, por mais de uma vez, de se pronunciar sobre o sentido e alcance do princípio da tipicidade dos crimes. Vejam-se, a título de exemplos significativos:
«…Averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima.» (Acórdão 168/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
«… O princípio da tipicidade exprime-se, em direito penal, na exigência de normas prévias, escritas e precisas. As normas incriminadoras – e, mais amplamente, as normas penais positivas, isto é, as normas que geram ou agravam a responsabilidade – só podem cumprir a sua finalidade preventiva geral e satisfazer o desígnio da segurança jurídica que enforma o princípio da legalidade e o próprio Estado de direito democrático se houverem entrado em vigor antes da prática das condutas criminosas e forem efetivamente cognoscíveis pelos destinatários» (Acórdão n.º 449/02, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
«…Num Estado de direito democrático a prevenção do crime deve ser levada a cabo com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, estando sujeita a limites que impeçam intervenções arbitrárias ou excessivas, nomeadamente sujeitando-a a uma aplicação rigorosa do princípio da legalidade, cujo conteúdo essencial se traduz em que não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege). É neste sentido que o artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, dispõe que ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.
Essa descrição da conduta proibida e de todos os requisitos de que dependa em concreto uma punição tem de ser efetuada de modo a que “se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos” (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 186). Daí que, incindivelmente ligado ao princípio da legalidade se encontre o princípio da tipicidade, o qual implica que a lei deve especificar suficientemente os factos que constituem o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos de medida de segurança), bem como tipificar as penas (ou as medidas de segurança). A tipicidade impede, assim, que o legislador utilize fórmulas vagas, incertas ou insuscetíveis de delimitação na descrição dos tipos legais de crime, ou preveja penas indefinidas ou com uma moldura penal de tal modo ampla que torne indeterminável a pena a aplicar em concreto. É um princípio que constitui, essencialmente, uma garantia de certeza e de segurança na determinação das condutas humanas que relevam do ponto de vista do direito criminal.» (Acórdão n.º 397/2012, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
(…)
Dúvidas não existem quanto à razão de ser da exigência da tipicidade. A incriminação de condutas humanas é absolutamente excecional, fundada como é na necessidade de prevenir e reprimir comportamentos antissociais que, pela sua gravidade, ameaçam a vida em sociedade. Mesmo quando as condutas humanas afetam negativamente direitos e interesses de outros membros da sociedade, causando-lhes prejuízo, a reação penal é uma patologia, apenas ocorrendo quando aqueles direitos e interesses são objeto de proteção constitucional (v., neste sentido, sublinhando que a sanção penal deve constituir o derradeiro recurso jurídico para o enquadramento de uma conduta humana, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., pp.493-494; Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p.671).
Ora, se apenas podem ser crimes comportamentos especialmente graves e censuráveis; e se estes comportamentos, para constituírem crimes, têm de ser previamente identificados como tais pelo legislador (e, acrescentamos, definidos de modo a poderem ser percebidos como tais pelos destinatários da norma), compreendem-se as dimensões constitucionais do princípio da tipicidade penal, tal como se referiram noutro ponto, nomeadamente as exigências de lei certa e de lei estrita.
A lei penal que institui uma conduta humana em crime não pode fazer apelo a conceitos vagos e de determinação difícil, a exigir do aplicador uma atividade perturbada e perturbadora.
Uma norma penal incriminatória tem, de alguma forma, de dividir o universo dos destinatários em dois compartimentos, tanto quanto possível, estanques: um, onde se encontram aqueles (muitos) que não adotaram a conduta proibida e sancionada; outro, onde estão aqueles (poucos) que incorreram nela. A fronteira entre ambos tem de ser – tem de procurar ser – uma linha separadora da luz e das trevas, não devendo ser uma zona de penumbra”.
Parafraseando, o que na quele aresto se escreveu, “estamos agora em condições de verificar se a interpretação normativa que veio sendo dada ao artigo 187.º C Penal, ao longo do processo, respeita ou não os limites apontados ao princípio da legalidade criminal, para concluir que, a interpretação / aplicação de um direito assim tornado equívoco e impreciso não satisfaz a exigência de «normas prévias, escritas e precisas», própria do direito penal (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 449/02, já citado), ofendendo, desta forma, os princípios da legalidade e da tipicidade penais, havendo de se considerar desconforme ao artigo 29.º, n.º 1, da CRP”.
O que aqui se decide, agora em relação ao artigo 187.º C Penal.

III. 2. 3. 2. Os juízos de valor e o tipo do artigo 187.º C Penal.

Ademais e decisivamente, a anteceder tal género de apreciação, atinente à objectividade das expressões, ao contrário do que exige o tipo em questão, as expressões utilizadas, nas notícias em apreciação, não encerram em si, quaisquer factos mas, tão só, se traduzem em juízos de valor que a norma em causa não prevê, como forma de cometimento do ilícito.
Se em sede de difamação tanto importa, pois, fazer uma imputação desonrosa de um facto, ”fulano tirou-me a carteira”, como formular um juízo, de igual sorte, desonroso, “fulano é um ladrão” e se em sede de injúria tanto basta a imputação do mesmo facto ou a afirmação da palavra, já no âmbito da ofensa a pessoa colectiva, apenas releva a imputação de factos.
Donde, ressalta um evidente interesse, real e efectivo na distinção (tarefa, as mais das vezes, plena de dificuldades) entre facto, por um lado, juízo e palavras, por outro.
A noção de facto constitui, assim, agora o ponto nuclear, no conhecimento da relevância jurídico-criminal da conduta do arguido.
A propósito da distinção facto versus juízo, refere o Prof. Faria Costa in Comentário Conimbricense:
“facto é o que se traduz naquilo que é ou que acontece, na medida em que se considera como um dado real da existência, facto é um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, um juízo de existência.
Um facto é um elemento da realidade, traduzível na alteração dessa mesma realidade, cuja existência é incontestável, que tem um tempo e um espaço precisos, distinguindo-se, neste sentido, dos acontecimentos, que são também factos, mas que se expressam por conjunto de cações que se protelam no tempo.
Por sua vez, o juízo, independentemente dos domínios em que pode operar (juízos psicológico, lógico, axiológico, jurídico) deve ser percebido, neste contexto, não como apreciação relativa a existência de uma ideia ou de uma coisa, mas ao seu valor”.
No caso concreto, a própria assistente trata as expressões utilizadas nas notícias, como constituindo juízos de valor, cfr. da acusação particular, artigo 16, “o texto em causa de forma insidiosa e encapotada fez e faz crer ao leitor, assim imputando à assistente, que esta explora pessoas …, artigo 17, é imputado e fez e faz crer ao leitor que a assistente pratica actos imorais, 28, propagou-se o juízo que a assistente não é pessoa de bem, que é imoral e comete actos que provocam humilhação nas pessoas, artigo 40, perante os juízos ofensivos, humilhantes, atentatórios do seu bom nome e história, artigo 44, os textos não representam a verdade dos factos e imputam à assistente juízos de valor negativos, artigo 45, houvesse da parte dos arguidos um interesse em reportar os factos e não juízos de valor, artigo 55, os textos da forma como foram escritos e pelos juízos aí formulados, artigo 57, os juízos imputados, artigo 60, os juízos imputados.
Assim, se conclui que, seguramente, não estamos na presença, da imputação de factos, mas fundamentalmente, perante a formulação de juízos de valor, sobre a imagem, sobre a actuação da assistente.
O que foi escrito não contém qualquer elemento de descrição/narração de realidade factual.
O que foi, sempre, invariavelmente, feito, foi a formulação de um quadro de juízos de valor, não concretizados com a descrição de factos, “pedaços da vida real” - não se afirmando, ou propalando factos, modo, via, instrumento, de todo, não previsto, no tipo legal do artigo 187º C Penal.
Donde, também, com este fundamento, não assume a conduta imputada aos arguidos dignidade penal, por falta de tipicidade, podendo, então, a assistente, através de outro ramo de direito – o civil – satisfazer perfeita e plenamente – aliás até de maneira sistematicamente mais coerente e eficaz – os seus interesses, em ver ressarcidos os prejuízos que a alegada violação da sua credibilidade, do seu prestígio e confiança, provocou.

Se a emissão de um juízo de valor não é susceptível de integrar a factualidade típica, desde logo, com este fundamento – que precede a análise, avaliação e apreciação do sentido, que lhe é dado, com que foi utilizado e que é idóneo a traduzir – nunca por nunca, as expressões utilizadas pelo arguido, se podem traduzir ou ter a virtualidade de integrar o tipo do artigo 187º/1 C Penal – que é o que aqui está em questão.

III. 2. 3. 3. Em resumo, não pode deixar de se manter a decisão recorrida,
ainda que com outros argumentos – na consideração de que a ofensa prevista no tipo de crime do artigo 187º/1 C Penal, não pode ser cometida, senão por meio de palavras, (verbalmente) estando excluída a possibilidade – previsto para os crimes de difamação e de injúria – de se lhe equiparar a comissão através da escrita, por gestos, por imagens ou por qualquer outro meio de expressão;
também, na consideração de que a ofensa prevista no tipo de crime do artigo 187º/1 C Penal, não pode ser cometida, senão pela afirmação ou propalação de factos, estando excluída a possibilidade – prevista para os crimes de difamação e de injúria – de ser cometido através da emissão de juízos de valor ou com palavras ofensivas.

É tempo de concluir, afirmando a falta de fundamento, para o concreto recurso apresentado pela assistente, ainda que o resultado final da sua interposição - a manutenção do decidido - se fique a dever, não à fundamentação por si aduzida, tão pouco, à falta de indícios suficientes da prática dos factos – como se entendeu na decisão recorrida - mas sim e, decisivamente, devido ao facto de os mesmos não constituírem crime.

IV. Dispositivo

Nestes termos e com os fundamentos acabados de expor, acorda-se em negar provimento ao recurso interposto pela assistente.

Taxa de justiça pela assistente, que se fixa no equivalente a 4 UC,s.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1º signatário.

Porto, 2015.março.11
Ernesto Nascimento
Artur Oliveira