Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2885/22.0T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: WILLIAM THEMUDO GILMAN
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
DECISÃO ADMINISTRATIVA
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
IRRECORRIBILIDADE
EXCEPÇÕES
Nº do Documento: RP202305042885/22.0T8VFR.P1
Data do Acordão: 05/04/2023
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – No direito das contraordenações vigora o princípio da irrecorribilidade das decisões judiciais, só sendo recorríveis as decisões cuja impugnação esteja expressamente prevista.
II – A cassação do título de condução por efeito da perda dos pontos, prevista no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada não é uma sanção acessória e por isso a sentença do tribunal judicial que em sede de impugnação da decisão da autoridade administrativa a aplica ou confirma, ficando fora da previsão do artigo 73º do RGCO, não é recorrível para o Tribunal da Relação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2885/22.0T8VFR.P1
Decisão sumária:
*
I. No processo nº 2885/22.0T8VFR do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 3, AA impugnou judicialmente a decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária que determinou a cassação do título de condução do Recorrente, n.º ..., pelo facto de terem sido subtraídos todos os pontos de que o condutor dispunha, nos termos do disposto no artigo 148.º n.º 4 alínea c) e n.º 10 do Código da Estrada.
Por sentença de 26.01.2023, o tribunal a quo julgou improcedente a impugnação e confirmou a decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária nos seus exatos termos.
Não se conformando com esta sentença, o recorrente interpôs recurso para este Tribunal da Relação pedindo a revogação e substituição da sentença recorrida, por se verificar a sua inconstitucionalidade.
Em síntese, alegou que: a cassação do título de condução do arguido viola o princípio ne bis in idem previsto no art.º 29°, n.º 5, da CRP e consagrado no art.º 54° da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen (CAAS); o recorrente não foi informado da possibilidade de cassação do título de condução nos processos crimes; considera como proporcional e adequado a imposição de obrigação de frequência de ações de formação ou tão-somente a obtenção de novo título de condução.
Recebido o recurso, o Ministério Público, na sua resposta, sustentou a inadmissibilidade do recurso e, subsidiariamente o seu não provimento e a confirmação da decisão recorrida.
Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, desde logo, quanto à questão da irrecorribilidade da decisão, entendendo que o recurso interposto pelo arguido se poderá enquadrar no âmbito do n.º2 do artigo 73º da RGCO, e depois quanto ao mérito do recurso no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o artigo 417º do CPP.
*
II. Questão prévia: da admissibilidade do recurso.
Sobre a admissibilidade de recurso no processo contraordenacional dispõe o artigo 73º do RGCO, sob a epígrafe ‘Decisões judicias que admitem recurso’, o seguinte:
«1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 249,40; b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;

e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.

2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infracções ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infracções ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses limites.»
No direito das contraordenações vigora o princípio da irrecorribilidade das decisões judiciais, só sendo recorríveis as decisões cuja impugnação esteja expressamente prevista[1].
E assim é porque dada a natureza do ilícito em causa ser de mera ordenação social, sem ressonância ética, e da sanção ser dirigida a advertir o cumprimento de deveres que nada têm a ver com os fundamentos éticos da vida em sociedade, o seu processamento e aplicação deve caber às autoridades administrativas, correndo o processo contraordenacional em termos simples e rápidos, libertando a função judicial para tarefas relacionadas com aqueles fundamentos.
Não obstante, em obediência à garantia constitucional de acesso de todos aos tribunais para defesa dos seus direitos (artigo 20º da CRP), a decisão da autoridade administrativa é suscetível de impugnação judicial, de ‘recurso’ a um tribunal, mas da decisão do tribunal só nos casos mais graves poderá haver recurso para o Tribunal da Relação[2]
O artigo 73º do RGCO estabelece de forma positiva quais as decisões de que cabe recurso para a Relação.
A decisão recorrida que confirmou a cassação do título de condução prevista no artigo 148º do Código da Estrada não se enquadra em nenhuma das situações previstas no artigo 73º, designadamente não configura a aplicação de uma sanção acessória.
Com efeito, sanção acessória é aquela cuja aplicação pressupõe a fixação na decisão de uma sanção principal (no caso das contraordenações a coima) e é pronunciada conjuntamente com a sanção principal.
Ora, não sendo a cassação do título de condução por efeito da perda dos pontos, prevista no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, determinada na decisão que aplicou a coima (em caso de ilícito contraordenacional) ou a pena (caso de ilícito penal), mas em processo autónomo (artigo 148º, n.º 1º do CE), não se pode ter como sanção acessória.
Como referiu o Tribunal Constitucional no Ac. TC 154/2022[3]:

«A cassação do título de condução por efeito da perda dos pontos, prevista no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, constitui uma medida administrativa de revogação de uma licença necessária à prática de uma atividade e que constitui o efeito, não da prática de uma infração criminal e do exercício estatal do ius puniendi, mas da verificação de que o seu beneficiário deixou de reunir as condições de aptidão que estiveram na base da sua concessão.»
E tanto assim é que o legislador teve de consagrar expressamente a possibilidade de impugnação judicial no n.º 13 do artigo 148º do Código da Estrada, pois que tratando-se de uma mera medida administrativa não suportaria o recurso para os tribunais judiciais.
A cassação do título de condução por efeito da perda dos pontos, prevista no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada não é uma sanção acessória e por isso a sentença do tribunal judicial que em sede de impugnação da decisão da autoridade administrativa a aplica ou confirma, ficando fora da previsão do artigo 73º do RGCO, não é recorrível para o Tribunal da Relação.
Resta apenas assinalar que também não é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 73º do RGCO, desde logo porque não foi formulado o requerimento autónomo de autorização de recurso previsto em tal norma e no artigo 74º do mesmo diploma legal, o que era necessário pois tal requerimento constitui requisito de tal recurso para melhoria da aplicação do direito ou promoção da uniformidade da jurisprudência. Não existe admissão ou conversão oficiosa do ou para o recurso previsto n.º 2 do artigo 73º do RGCO.
Nos termos do artigo 420º, n. 1, al. b) do CPP, o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414º, designadamente quando a decisão for irrecorrível.
A decisão que admitiu o recurso não vincula este tribunal – artigo 414º nº3 do CPP. Assim, nos termos dos artigos 420º nº1 al. b) e 414º, n.º 2 do CPP, terá de ser rejeitado o
presente recurso por inadmissibilidade legal.
*
III. Decisão.
Pelo exposto, decido:
a) Rejeitar o recurso interposto pelo arguido AA;
b) Condenar o recorrente em 3 (três) UC de taxa de justiça – art. 93º, n.º 3, do RGCO e Tabela III, anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
*
Porto, 4 de maio de 2023
William Themudo Gilman
________________
[1] Cfr. Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, UC, 2011, p. 298; Ac. TRP de 28-04-2021, proc. 194/2.9T9ALB.P1 (Eduarda Lobo), in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/2903f2e2437084cd802586db005628b6?OpenDocument ; decisão sumária do TRP de 18.04.2023, proc. 1159/22.1T9VCD.P1 (Francisco Mota Ribeiro), bem como a decisão sumária do TRP de 26.04.2023, proc. 2510/22.0Y2VNG.P1 (Maria dos Prazeres Silva); ambas ainda não publicadas em www.dgsi.pt, mas consultáveis no livro de registo de decisões da plataforma Citius.
[2] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social, in Jornadas de direito criminal, CEJ, 1983, p. 335.
[3] https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220154.html