Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8215/13.5TBVNG-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
SUBSÍDIO DE FÉRIAS
SUBSÍDIO DE NATAL
Nº do Documento: RP202010268215/13.5TBVNG-F.P1
Data do Acordão: 10/26/2020
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Por força da admissão ao instituto da exoneração do passivo restante aquilo a que o insolvente tem direito é apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno, o que significa que esse montante deve ter por critério o valor do salário mínimo nacional, sucessivamente aplicável.
II - O cálculo do rendimento disponível, para efeitos de entrega ao fiduciário, tem por referência o valor mensal dos rendimentos auferidos pelo insolvente e não o valor anual de tais rendimentos.
III - Os valores recebidos a título de subsídios de férias e de Natal devem ser cedidos ao fiduciário nos meses em que são processados e na medida em que ultrapassem o montante mensal fixado para o sustento minimamente digno do insolvente e do seu agregado familiar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 8215/13.5TBVNG-F.P1
Comarca do Porto – Juízo Local de VN Gaia – J3
Relator: Des. Jorge Miguel Seabra
1º Juiz Adjunto: Des. Dr. Pedro Damião e Cunha
2º Juiz Adjunto: Des. Drª Fátima Andrade
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Sumário (elaborado pelo Relator):
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO:
1. Nos autos de insolvência (pessoa singular) foi proferido o seguinte despacho:
Por despacho proferido em 17.06.2019, admitiu-se alterar o rendimento indisponível para 1,5 salários mínimos nacionais líquidos a partir dessa data, em virtude de se ter verificado uma alteração do circunstancialismo que tinha fixado à insolvente o rendimento indisponível em 1,25 salários mínimos nacionais: - as despesas com o seu filho, cujo crescimento implica, como é do conhecimento geral, um aumento de despesa.
Assim, as despesas escolares com o filho da insolvente não são a deduzir, pois serviram apenas para justificar o aumento do rendimento indisponível de 1,25 para 1,5 salários mínimos nacionais líquidos.
Por outro lado,
O artigo 239º, n.º 3 alínea a) do CIRE dispõe que “integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão do que seja razoavelmente necessário para (i) o sustento minimamente condigno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada em contrário, três vezes o salário mínimo nacional.”
Por isso essa exclusão traduz-se na fixação de um valor mensal e não anual, o que de resto resulta também do disposto no n.º 4, alínea c), do mesmo artigo 239º, pois o devedor fica com a obrigação de entregar imediatamente ao fiduciário, no momento em que for recebida, a parte dos rendimentos objecto da cessão.
Assim, consideramos e, por isso, determinamos que o cálculo do rendimento disponível a ceder ao fiduciário deverá ser efectuado por referência ao valor mensal efectivamente auferido pela devedora e não por referência ao valor anual.
Notifique.”

2. Inconformada com o decidido, veio a insolvente interpor recurso, em cujo âmbito ofereceu alegações e apresentou, a final, as seguintes
CONCLUSÕES (síntese)
(…)
IV. Se apenas for permitido ao insolvente sobreviver com o montante fixado mensalmente, ao contrário dos € 900,00 requeridos, tal não permitirá custear as despesas com a sua casa e o seu filho, pois este valor fixado apenas permite o pagamento da renda da sua casa, as despesas de água, luz e gás e pouco mais.
V. A pretensão da insolvente não é descabida porque, tendo em conta a existência de um menor, existem valores que se sobrepõem aos consignados no artigo 239º do CIRE.
VI. Apenas pela alteração da realidade existente, vem a insolvente requerer o aumento do rendimento disponível para € 900,00 ou montante superior por ser aquele que se adequa às suas necessidades e às do seu agregado familiar.
VII. Aceitando como adequadas as despesas apuradas afigura-se-nos que a quantia razoavelmente necessária para o sustento minimamente digno da insolvente e do seu agregado familiar se deve fixar em Novecentos euros.
VIII. Acresce ainda o facto do seu companheiro, também insolvente, e pai do seu filho ter sofrido um enfarte, conforme documentos já juntos aos autos e ter desde então que as despesas mensais aumentaram.
(…)
XII. No que respeita à determinação do que deva considerar-se por mínimo necessário ao sustento digno do devedor, a opção legislativa passou pela utilização de um conceito aberto, a que subjaz o reconhecimento da dignidade humana, necessariamente assente na noção de que é indispensável a uma existência condigna, a avaliar face às particularidades da situação concreta do devedor em causa, impondo-se uma efectiva ponderação casuística no juízo a formular no que respeita à fixação do quantitativo excluído da cessão dos rendimentos.
XIII. Ora, havendo um menor e os encargos inerentes a este, é mais do que óbvio que a concessão de um rendimento disponível assente num salário mínimo nacional é manifestamente insuficiente para garantir a sobrevivência deste agregado familiar.
XIV. Aproveitando o casal o pouco dinheiro que recebe de subsídios e de reembolsos para comprar, nomeadamente, manuais escolares e outros bens de basilar importância.
XV. Não se trata de gastar mal gasto, trata-se de gastar de forma a poder facultar ao filho uma vida o mais normal possível.
XVI. Nos termos do despacho n.º 405177587 foi fixado para sustento mínimo da insolvente o valor de um salário e meio;
XVII. Acontece, porém, que na maior parte dos meses, conforme recibos enviados ao Sr. Administrador de Insolvência (…), a insolvente não auferiu sequer um salário.
XVIII. Situação que se agravou com a baixa médica que a insolvente teve em Novembro e Dezembro, onde apenas auferiu € 554,21 e € 558, respectivamente.
XIX. Chegados a Agosto e Dezembro, mês de subsídios, a insolvente auferiu os rendimentos que se passam a descrever – subsídio de férias € 545,57; Vencimento € 606,00; Vencimento de Dezembro € 558,92; subsídio de Natal € 500,31.
XX. O que perfaz um total de € 1.151,57 em Agosto e € 1.059, 23 em Dezembro.
XXI. Entendendo o Sr. Administrador de Insolvência que a mesma teria então de entregar à massa insolvente € 597,95.
XXII. Pelo que, deste facto, e com o devido respeito, a insolvente não pode concordar.
XXIII. Isto porque se entende que os cálculos dos rendimentos mensais devem ser feitos tendo em conta os valores anuais no seu conjunto e não apenas num único mês.
XXIV. Pois, independentemente da periodicidade da prestação de contas ao Sr. Administrador e até da entrega de valores por conta, o cálculo devia ser feito pela fórmula anual, garantindo a equidade dos valores e do real rendimento disponível aos agregados familiares insolventes.
XXV. Ora, no nosso modesto entendimento, a fórmula de cálculo devia ser a seguinte: sobre a soma dos rendimentos anuais a dividir pela soma dos rendimentos disponíveis mensalmente (14 ou 12, se assim se entender), garantindo um real rendimento disponível mensal e verdadeira equidade na sua distribuição.
XXVI. Concluindo, não cabe entregar qualquer quantia ao fiduciário pela insolvente se, no cômputo dos rendimentos anuais, resultar que tal quantia é inferior mensalmente à quantia que fica excluída da cessão.
(…)
XXXI. Ora, se maioritariamente a insolvente não recebe um ordenado mínimo, de que adianta o seu rendimento disponível ter aumentado para 1,5 salários mínimos?
XXXII. Que justiça há nesta situação quando se a mesma auferisse os subsídios em duodécimos nada teria então que entregar à massa insolvente.
(…)
XXXIV. Não deverão os insolventes ter os mesmos direitos?
XXXV. Bem sabemos que os mesmos têm de fazer sacrifícios e têm que durante os cinco anos de cessão viver de forma humilde e cautelosa, mas uma mãe que ganha menos que o salário mínimo consegue neste país dar o mínimo a um filho menor, quando ganha menos que um salário mínimo?
XXXVI. E principalmente que não pode, mediante os cálculos do Sr. AI beneficiar dos subsídios para equilibrar a sua vida.
XXXVII. Ou seja, para quê, em Junho se ter admitido o aumento do rendimento disponível, se a insolvente ao ganhar o salário mínimo nunca vai beneficiar desse aumento?
XXXVIII. Tal situação não se nos afigura justa…
Nestes termos (…) deve ser declarado nulo o douto despacho recorrido, devendo ser efectuado o cálculo de acordo com a globalidade dos rendimentos que a insolvente aufere anualmente, de forma a proporcionar uma situação justa (…).
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3. Não foram oferecidas contra-alegações.
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4. Observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - artigos 635º, n.ºs 3 e 4 e 639º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
No seguimento desta orientação as questões a dirimir são as seguintes:
I. Nulidade do despacho recorrido;
II. Montante do rendimento indisponível;
III. Cálculo anual ou mensal do montante do aludido rendimento indisponível/subsídios de férias e Natal.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Os factos relevantes à decisão a proferir nesta instância são os que constam do relatório que antecede.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
IV.I. Nulidade do despacho recorrido:
Na sua peculiar leitura do nosso sistema de recursos, a apelante conclui pedindo que seja declarado nulo o despacho recorrido.
Esta pretensão é, de todo, destituída de fundamento, pois que, como é consabido, a nulidade da decisão apenas ocorre em casos muito específicos e não se confunde com o eventual erro de julgamento, a injustiça da decisão ou a sua não conformidade com o direito substantivo aplicável.
Com efeito, é usual distinguirem-se as nulidades do processo das nulidades da sentença, porquanto às primeiras, subjazem desvios ao formalismo processual prescrito na lei, quer por se praticar um acto proibido, quer por se omitir um acto prescrito na lei, quer por se realizar um acto imposto ou permitido por lei mas sem o formalismo requerido, enquanto as segundas se traduzem na violação da lei processual por parte do juiz na prolação de alguma decisão.
Neste sentido, as causas de nulidade da sentença ou do despacho (artigo 613º, n.º 3, do CPC) encontram-se taxativamente previstas no artigo 615º do CPC e, ademais, têm que ser expressamente invocadas pela parte interessada na respectiva procedência (daí que a doutrina fale de anulabilidade), a qual não pode, naturalmente, limitar-se a invocar conclusivamente a nulidade da decisão sem concretizar alguns dos vícios em causa que atinjam o acto decisório, a saber vícios de estrutura - falta de fundamentação de facto e de direito, contradição entre a fundamentação jurídica e a decisão; ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (alíneas b e c); vícios de limites (de pronúncia ou de objecto) - omissão ou excesso de pronúncia; condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (alíneas d e e). [1]
Ora, neste contexto, lidas as extensas conclusões (que, na prática, se limitam a reproduzir as alegações, conforme vem sendo, aliás, usual…), em lado nenhum a apelante concretiza ou densifica minimamente, relativamente ao despacho ora em causa, algum dos vícios a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1 do citado artigo 615º, do CPC.
Ao invés, a apelante, como explicita nas alegações e nas conclusões do seu recurso, discorda, isso sim, da solução acolhida no despacho recorrido quanto ao valor do rendimento indisponível fixado (1,5 do salário mínimo nacional) e quanto ao modo do respectivo cálculo (anual ou mensal/subsídios de férias e Natal) pedindo, por isso, a alteração da decisão proferida.
Significa, pois, que o objecto do recurso, tal como o mesmo se mostra definido pela própria apelante (princípio do dispositivo), é a verificação e correcção de um eventual erro de julgamento por parte do Juiz em 1ª instância, erro que, a existir, conduzirá à alteração do sentido decisório contido no despacho recorrido, mas nunca ao decretamento da sua nulidade.
E assim sendo, sem mais considerações – que temos por desnecessárias face à evidência da questão -, julga-se improcedente a arguida nulidade e, nesta parte, a apelação.
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IV.II. Montante do rendimento indisponível.
A segunda questão suscitada pela apelante refere-se, se bem percebemos o sentido da sua argumentação, ao montante do rendimento indisponível, isto é, o montante que fica excluído da cessão ao fiduciário, montante este que a mesma defende que devia ter sido fixado em € 900,00 mensais.
Nesta parte, e com o devido respeito, cumpre dizer que, em boa parte, a censura da apelante é dirigida, não ao Tribunal, mas ao valor do salário mínimo nacional que aufere e ao valor do salário mínimo fixado no nosso país, mas, como é consabido, não é o Tribunal que fixa o valor do salário efectivamente auferido pela apelante, mas a sua entidade patronal e também não é o Tribunal que fixa o valor do salário mínimo nacional, valor este que resulta de decisão do órgão executivo, democraticamente eleito, do (eventual) acordo da concertação social e das próprias condições económicas e financeiras do nosso país.
Dito isto, o Tribunal a quo fixou inicialmente o rendimento indisponível em 1,25 do salário mínimo nacional líquido e, posteriormente, levando em consideração a idade do filho menor da insolvente, e o acréscimo de despesa que implica o seu crescimento, aumentou esse valor para 1,5 do salário mínimo nacional líquido.
Neste enquadramento, actualmente, o salário mínimo nacional cifra-se em € 635,00 [2], o que equivale a um salário líquido de € 565,15 (não sujeito a tributação de IRS, mas sujeito a descontos para a Segurança Social – 11%), sem subsídio de alimentação.
Destarte, o valor fixado pelo Tribunal a quo cifra-se, actualmente, em 1,5x 565,15, ou seja, em € 847,72, valor que a apelante entende que deveria ter sido fixado em € 900,00.
Sucede que, apesar do assim alegado e defendido, a final a apelante não formula qualquer pedido nesse sentido, ou seja, não conclui o recurso no sentido de o valor do rendimento indisponível (não cedido ao fiduciário) ser fixado nesse outro valor ou em qualquer outro…
De facto, como se vê da conclusão do recurso e do pedido formulado pela apelante, que delimita a decisão a proferir, o que a mesma peticiona, a final, é, além do decretamento da nulidade do despacho – que já antes se apreciou -, que o despacho recorrido seja alterado no sentido de “SER EFECTUADO O CÁLCULO (do rendimento indisponível) DE ACORDO COM A GLOBALIDADE DOS RENDIMENTOS QUE A INSOLVENTE AUFERE ANUALMENTE…” (sic)
Vale isto por dizer que, ainda que a apelante tenha revelado, ao menos implicitamente, nas conclusões dissentir do valor do rendimento indisponível fixado pelo despacho de 17.06.2019 e mantido no despacho recorrido (€ 847,72), certo é que, a final, como se disse, nenhum pedido de revisão ou alteração desse valor é formulado pela apelante.
Destarte, não pode este Tribunal conhecer de tal pretensão, por falta de pedido da interessada/apelante e sob pena de proferir acórdão nulo por condenação em objecto diverso do pedido formulado pelo interessado.
Na verdade, em sede de recursos, como refere F. Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8ª edição, pág. 67, “[A]s impugnações estão sujeitas ao princípio geral da iniciativa da parte, que domina todo o ordenamento processual civil, daí o controlo das decisões nunca acontecer oficiosamente, mas somente mediante pedido da pessoa interessada.”
Por conseguinte, salvo se estiver em causa matéria de conhecimento oficioso e os autos contiverem elementos para dela conhecer, o Tribunal de recurso só pode conhecer concretas das questões suscitadas pelo apelante – em função das respectivas conclusões, que funcionam como meio de delimitação do objecto do recurso por parte do apelante – e na medida em que as mesmas contendam, em termos úteis, com o pedido formulado pelo mesmo apelante no recurso por si interposto.
Recorde-se, aliás, que o nosso sistema de recursos em processo civil segue tendencialmente um modelo de reponderação e não de revisão, o que significa que o Tribunal de recurso não é chamado a decidir novamente do litígio em toda a sua amplitude, mas apenas a reexaminar a decisão antes proferida pelo Tribunal de 1ª instância, em função das concretas questões suscitadas pelo apelante e do pedido formulado no recurso. [3]
Ora, no caso dos autos, restringindo expressamente a apelante o pedido formulado à alteração do modo de cálculo do valor do rendimento indisponível – anual, em contrário do modo mensal constante do despacho recorrido -, tal significa que a própria apelante limitou o objecto do recurso a tal matéria, não podendo, nesse contexto, este Tribunal conhecer de pedido que extravase aquele pedido, sob pena de condenação em objecto diverso do pedido formulado – cfr. artigo 615º, n.º 1 al. e) ex vi do artigo 666º, n.º 1, ambos do CPC.
Destarte, neste segmento não tem este Tribunal que conhecer das questões atinentes à estrita fixação do montante do rendimento indisponível e, em particular, se o mesmo deveria ser de € 900,00, por as mesmas ultrapassarem o pedido formulado pela apelante.
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IV.III. Cálculo anual ou mensal do montante do aludido rendimento indisponível/subsídios de férias e Natal.
Dirimidas as questões antecedentes, cumpre conhecer do objecto essencial do recurso, ou seja, saber se o cálculo do rendimento indisponível deve ser efectuado anual ou mensalmente e, ainda, porque conexo com tal matéria, da questão dos subsídios de férias e de Natal.
Relativamente à primeira questão, sufragamos por inteiro a posição adoptada pelo Tribunal de 1ª instância.
Nos termos do disposto no artigo 239º, nº 2, do CIRE o despacho inicial determina que no quinquénio subsequente ao encerramento do processo de insolvência, denominado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário.
Esta previsão legal tem sido interpretada no sentido de resultar da mesma que a entrega dos rendimentos auferidos pelo beneficiário da exoneração do passivo restante deve ser feita directamente ao fiduciário, entregando este depois os rendimentos excluídos da cessão ao devedor. Esta leitura resulta reforçada pela alínea c) do nº 4 do artigo 239º do CIRE e da qual resulta de forma incisiva que o recebimento de rendimentos pelo devedor é uma situação excepcional. No mesmo sentido, ainda, aponta a necessidade do fiduciário notificar a cessão de rendimentos às entidades de que o devedor tenha direito a receber rendimentos, notificação que visa possibilitar a entrega directa dos rendimentos do devedor por parte de tais entidades ao fiduciário.
No caso dos autos, tendo os rendimentos necessários ao sustento minimamente digno da apelante e do seu agregado familiar (que engloba apenas o seu filho, pois que o seu companheiro foi também declarado insolvente e a sua situação económica só pode ser apreciada nesse outro processo) e excluídos da cessão ao fiduciário sido fixados no montante de um salário mínimo e meio, o apuramento do que em cada momento faz parte do rendimento disponível é feito mensalmente, já que a unidade temporal pela qual se afere o salário mínimo nacional é o mês (cfr. artigo 273º do Código do Trabalho).
A circunstância de ser anual a informação prestada pelo fiduciário a cada credor e ao juiz nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 240º do CIRE e de a afectação dos rendimentos nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 241º do CIRE ser feita no final de cada ano não significa que o apuramento do rendimento disponível apenas se processe no final de cada ano apurando a média auferida nesse período temporal.
Se assim fosse, sendo cumprida a lei no que respeita à entrega dos rendimentos directamente ao fiduciário, só no final de cada ano o devedor receberia o rendimento disponível, o que, como é consabido, não sucede.
De facto, aquilo que ocorre no final de cada ano é a afectação dos montantes recebidos até então e não a liquidação do rendimento disponível nesse momento, liquidação que pelo contrário se foi processando, mensalmente, pelo menos, quando como sucede no caso, o devedor é trabalhador por conta de outrem, sendo os seus rendimentos percebidos mensalmente.
Assim, a regra da anualidade que decorre do n.º 2, do artigo 240º e do n.º 1, do artigo 241º, ambos do CIRE, dirige-se ao fiduciário, tendo em vista a prestação de informações aos credores e ao juiz e a afectação dos rendimentos que ao longo do ano foram sendo por ele recebidos.
A fixação do rendimento disponível do devedor num certo montante, no caso em apreço, em montante superior ao efectivamente auferido em regra em cada mês, não constitui qualquer garantia de que em cada mês receberá rendimentos desse montante, mas apenas que os receberá todos os meses em que os seus rendimentos excederem o aludido montante porque, não sendo esse o caso, isto é, ficando os seus rendimentos mensais aquém do montante do rendimento indisponível judicialmente fixado, apenas terá direito a haver os montantes efectivamente auferidos em cada mês. [4]
Na situação hipotética que a recorrente refere do pagamento em duodécimos dos subsídios de férias e de Natal a pessoa com rendimentos do trabalho iguais aos da recorrente, nenhum rendimento disponível haveria que afectar pelo fiduciário porque em cada período mensal o montante auferido pelo devedor ficaria sempre aquém do rendimento excluído da cessão por decisão judicial e nunca atingiria uma vez e meia o salário mínimo nacional.
Ao contrário, com o pagamento por inteiro do subsídio de férias e do subsídio de Natal, em cada um dos meses em que isso ocorre, o rendimento auferido pela devedora ultrapassa o montante de uma vez e meia o salário mínimo nacional, o que implica a afectação dos rendimentos que ultrapassem esse montante, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 241º do CIRE.
E, em nosso ver, esta interpretação e aplicação das regras relativas à determinação do rendimento indisponível do devedor beneficiário de exoneração do passivo restante nos termos que precedem não é, com o devido respeito, violadora do princípio da dignidade humana (artigo 1º da Constituição da República Portuguesa) e da igualdade de todos os cidadãos perante a lei (artigo 13º, n.º 1, da CRP).
Com efeito, a igualdade entre a situação da devedora dos autos e a pessoa colocada na situação hipotética configurada pela recorrente é apenas matemática, impendendo sobre esta última um esforço continuado de aforro em cada mês se quiser ter no período de férias ou no Natal os valores pagos em duodécimos a tal título, ao longo do ano.
Ao contrário, no caso da devedora, ao menos nos meses em que auferir o subsídio de férias e o subsídio de Natal, além do valor mensal do seu salário, terá logo disponível o valor de metade desse mesmo salário, sem ter que desenvolver um esforço continuado de aforro.
Esta diferença foi bem sentida recentemente entre nós quando por força das dificuldades financeiras atravessadas pelo nosso país se proveu no sentido dessas prestações serem pagas em duodécimos, aliviando as entidades pagadoras da necessidade de imobilização de montantes elevados de capital para fazer face aos pagamentos globais desses subsídios, distribuindo essa obrigação pelo ano e onerando os beneficiários desses subsídios com uma gestão cuidada dos valores a mais recebidos em cada mês, a fim de na altura própria deles poderem dispor para as finalidades para que foram previstos.
Deste modo, ao invés do que sustenta a apelante, no caso concreto, entende-se que não resulta da interpretação e aplicação dos preceitos relativos à determinação dos rendimentos do trabalho excluídos da cessão do rendimento disponível na decisão recorrida e neste acórdão qualquer violação dos princípios da dignidade humana e da igualdade de todos os cidadãos perante a lei.
E, assim, improcede também esta questão.
Por último, suscita a apelante a questão dos subsídios de férias e de Natal.
A resposta à questão suscitada já se mostra, de alguma forma, adiantada na resposta dada à anterior questão.
De todo o modo, e sendo certo que a questão foi recentemente por nós decidida em outro processo e não vislumbramos razões para divergir dos fundamentos expostos em tal decisão, sempre se dirá, em termos similares, que esta matéria não tem, como é consabido, merecido uniforme resposta da jurisprudência, sustentando uma corrente que a remuneração mínima garantida corresponde ao salário mínimo nacional vezes 14 (incluindo os subsídios de Natal e de Férias) e que, por isso, o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do insolvente não deve ser inferior à remuneração mínima anual dividida por 12.
Assim o defendem, além do mais, o AC RP de 22.05.2019 e o AC RL de 27.02.2018. [5]
Outra corrente, que cremos ser maioritária, sustenta, em termos gerais, que os subsídios de férias e de natal, não sendo imprescindíveis para o sustento minimamente condigno do devedor/insolvente, a parte que excedam esse rendimento indisponível mensalmente fixado, têm que ser incluídos no rendimento disponível, ou seja, no rendimento a disponibilizar ao fiduciário para os fins da insolvência. [6]
Com o devido respeito por opinião em contrário, é esta última a posição que subescrevemos, sendo que é a única que, em nosso ver, respeita o sentido e a razão de ser que emerge do preceituado no artigo 239º, n.º 3, al. i), do CIRE, tal como o entendemos.
Vejamos.
Os subsídios consistem em prestações, legalmente consagradas, destinadas aos trabalhadores por conta de outrem (e aos beneficiários de pensões de reforma) que visam proporcionar aos seus titulares um acréscimo de rendimento (equivalente ao valor da retribuição, duas vezes ao ano – no período de férias e de natal), a fim de que os mesmos usufruam de forma plena esses dois períodos festivos.
No caso do subsídio de férias o mesmo constitui um aumento do rendimento que vai proporcionar a quem o usufrui o seu gozo efectivo, com um melhor aproveitamento do tempo livre sem trabalhar, proporcionando o descanso merecido no final de um ano de trabalho.
No caso específico do subsídio de natal, o mesmo visa proporcionar ao seu titular o usufruto pleno da época natalícia, no meio familiar, com os inerentes excepcionais gastos da época.
Trata-se, em ambos os casos, de um valor «extra», de um acréscimo do rendimento que visa proporcionar ao seu titular um acréscimo de bem-estar, com efectivo descanso e com a realização das despesas inerentes a esses períodos.
Sendo assim, sem pôr em causa a natureza retributiva de tais subsídios, não se pode olvidar que, por força da submissão do devedor ao instituto da exoneração do passivo restante, aquilo a que o mesmo tem direito é apenas a um montante que lhe proporcione um sustento minimamente condigno – por respeito para com os seus credores e para vir a obter no final do período de cessão a exoneração/extinção de todo o seu passivo – e os subsídios em causa, enquanto acréscimos ao valor do seu salário mensal, não podem ser tidos como imprescindíveis para o sustento minimamente condigno do devedor/insolvente. De outro modo, ter-se-ia de entender, contraditoriamente, que o valor mensal do rendimento indisponível (excluído da cessão) nos meses em que não existe pagamento de subsídios de natal ou de férias não é o bastante para uma vida condigna do insolvente e do respectivo agregado familiar.
Por conseguinte, esses subsídios, na parte em que excedam o rendimento indisponível fixado (no caso, 1,5 do salário mínimo nacional líquido), devem ser incluídos no rendimento disponível e, logicamente, devem ser entregues ao fiduciário para os fins da insolvência.
Este sacrifício imposto ao devedor, como também já o referimos, tem como contrapartida a libertação das suas dívidas, decorrido o período da cessão, consentindo-lhe recomeçar de novo, totalmente desonerado.
Não está em causa, por outro lado, o direito da apelante, enquanto trabalhadora, a gozar férias e a festejar o natal ou a satisfação das necessidades essenciais do seu filho; a questão que se coloca é apenas a imposição de que adeqúe e controle os seus gastos em função dos seus recursos económicos e em conformidade com a realidade falimentar em que se encontra, sem colocar, portanto, em causa o mínimo indispensável a uma vida condigna.
Na verdade, segundo julgamos, essa vivência minimamente digna obtém-se, no caso dos autos, com a disponibilidade de cessão ao fiduciário do rendimento da apelante que ultrapasse o equivalente a 1,5 do salário mínimo nacional líquido, actualmente, de cerca de 847,00 €, não sendo, pois, necessário, para o efeito de assegurar a manutenção do sustento minimamente condigno do seu agregado familiar, tornar indisponíveis também os subsídios de férias e de natal, desde que fique sempre salvaguardado aquele valor mínimo de 1,5 do salário mínimo nacional líquido, sucessivamente aplicável.
Dir-se-á, pois, que, nos meses em que for pago o subsídio de natal e de férias, a insolvente terá que proceder à sua entrega ao fiduciário, na parte que ultrapasse aquele valor de 1,5 do salário mínimo nacional líquido fixado.
O que significa, pois, em síntese final, que improcede esta outra questão e com ela a apelação.
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V. DECISÃO:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso de apelação interposto, confirmando o despacho recorrido.
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Custas pela apelante, pois que ficou vencida – artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC -, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe tenha sido concedido.
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Porto, 26.10.2020
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade [Voto de vencimento:
“Por entender que são as 14 retribuições anuais (incluindo assim subsídio de férias e de natal) no valor correspondente à RMMG que garantem o almejado mínimo indispensável ao sustento do trabalhador-devedor a que ao alude o artigo 239º, n.º 3 al. b) i) do CIRE, conforme posição já assumida no processo n.º 1719/19.8T8AMT.P1, não acompanho neste segmento a motivação da decisão.
Em abstracto o montante de 1, 5 do salário mínimo nacional (x 12) fixado como rendimento excluído da cessão poderá até garantir valor superior ao correspondente às mencionadas 14 retribuições da RMMG divididas pelos 12 meses.
Em concreto depende do valor auferido mensalmente pelo devedor.
Alteraria assim e neste segmento a decisão no sentido de determinar que o rendimento indisponível ali fixado por 12 meses sempre teria que respeitar o mínimo do valor anual correspondente à RMMG multiplicada por 14 meses num ano.”]

(O presente acórdão não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] Vide, neste sentido, por todos, FRANCISCO M. FERREIRA de ALMEIDA, “Direito Processual Civil”, 2015, pág. 369 e A. VARELA, M. BEZERRA, S. NORA, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 686.
[2] DL n.º 167/2019, de 21.11.
[3] Sobre os modelos de recurso, vide, por todos, neste sentido, F. AMÂNCIO FERREIRA, op. cit., pág. 145-149 e F. FERREIRA de ALMEIDA, op. cit., pág. 399-400.
[4] Vide, neste sentido, por todos, AC RC de 28.02.2017, relator Sr. Juiz Desembargador Emídio Santos e AC RP de 7.05.2018, relator Sr. Juiz Desembargador Augusto Carvalho, AC RP de 30.04.2020, relator Sr. Juiz Desembargador Carlos Gil, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[5] AC RP de 22.05.2019, relator Srª Juíza Desembargadora Cecília Agante e AC RL de 27.02.2018, relatora Srª Juíza Desembargador Higina Castelo, ambos disponíveis in www.dgsi.pt. [6] Vide, neste sentido, por todos, AC RP de 24.03.2020, relatora Srª Juíza Desembargadora Lina Baptista, AC RP de 18.11.2019, relator Sr. Juiz Desembargador José Eusébio de Almeida, AC RP 7.05.2018, relator Sr. Juiz Desembargador Augusto Carvalho, AC RL de 22.03.2018, relator Sr. Juiz Desembargador Pedro Martins, AC RG de 17.12.2018, relator Sr. Juiz Pedro Damião e Cunha (ora 1º Juiz Desembargador Adjunto), AC RG de 17.05.2018, relator Sr. Juiz Desembargador António Barroca Penha, AC RG de 23.05.2019, relator Sr. Juiz Desembargador António Sobrinho, AC RC de 3.12.2019, relator Sr. Juiz Desembargador Ferreira Lopes, AC RC de 16.10.2018, relator Sr. Juiz Desembargador Emídio Santos e AC RE de 26.09.2019, relator Sr. Juiz Desembargador Francisco Matos, todos disponíveis in www.dgsi.pt