Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
414/15.1T8GDM-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: FUNDO DE GARANTIA DOS ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
MANUTENÇÃO DA PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS
MAIORIDADE ANTERIOR AO INICIO DA LEI N.º 24/2017
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: RP20180423414/15.1T8GDM-A.P1
Data do Acordão: 04/23/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 673, FLS.242-247)
Área Temática: .
Legislação Nacional: ANTERIOR Á LEI N.º 24/2017
Sumário: A parte final do nº 2, do artigo 1º, da Lei nº 75/98, de 19 de novembro, introduzida pelo artigo 6º da Lei n.º 24/2017, de 24 de Maio é aplicável a quem atingiu a maioridade antes da sua entrada em vigor, pois o que se visa com tal regime jurídico é que, nas situações dos jovens até aos vinte e cinco anos, o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores assegure uma prestação, no lugar do progenitor, impossibilitado de pagar, desde que o jovem ainda não tenha autonomia económica e esteja em curso um processo educativo ou de formação profissional, independentemente do momento em que atinge a maioridade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 414/15.1T8GDM-A.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 414/15.1T8GDM-A.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
1. Relatório
Em 26 de novembro de 2015, no Núcleo de Gondomar, 2ª Secção de Família e Menores da Comarca do Porto, com referência ao processo nº 414/15.1T8GDM, B… veio informar que C…, pai de D…, nascida em 04 de março de 1999, de E…, nascido em 07 de março de 2004 e de F… e de G…, nascidos em 20 de novembro de 2006, abandonou o seu emprego na Câmara Municipal H…, impossibilitando desde outubro o desconto no seu vencimento da quantia de €250,00, a título de alimentos aos filhos.
C… foi citado para, querendo, em cinco dias alegar o que tivesse por conveniente, nada tendo dito.
Em 04 de abril de 2016, foi proferida decisão que terminou com o seguinte dispositivo que se reproduz na parte pertinente:
Nestes termos, ao abrigo dos artigos 41º e 48º, n.º 1, alínea b), ambos do R.G.P.T.C., declara-se totalmente procedente o incidente de incumprimento do exercício das responsabilidades parentais, quanto às quantias reclamadas, quer quanto às vencidas, correspondente às prestações em dívida as prestações de alimentos referentes aos meses de Outubro de 2016 a Abril de 2016 no total de €1.500,00 (mil e quinhentos euros).
Em 12 de abril de 2016, C… veio alegar ter pago as mensalidades referentes aos meses de outubro e novembro de 2015 à filha mais velha, só não tendo pago a mensalidade de fevereiro de 2016, por se achar desempregado, como também sucede a partir de abril do mesmo ano, oferecendo para prova comprovativo de transferência bancária e recibos assinados pela filha.
Solicitaram-se inquéritos à Segurança Social a fim de ajuizar do preenchimento dos requisitos legais para intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores e, após junção aos autos do pertinente relatório, o Digno Magistrado do Ministério Público promoveu que se determinasse o pagamento “da mesada” pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores.
Ordenou-se a notificação ao Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores do teor do inquérito realizado pela Segurança Social, da promoção do Digno Magistrado do Ministério Público e para, querendo, se pronunciar.
Em 13 de dezembro de 2016, foi proferida decisão judicial[1] que terminou com o dispositivo que na parte pertinente se reproduz:
Por tudo o que se deixou exposto e nos termos dos preceitos citados, e face ao exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 1º, 2º e 3º da Lei nº 75/98 de 19 de Novembro e artigos 2º, 3º e 4º do DL nº 164/99 de 13 de Maio, decide-se fixar em €62,50 para cada menor, a prestação de alimentos a cargo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, a entregar à mãe da menor, devendo tal montante ser actualizado, anualmente, em Janeiro, com referência à percentagem de aumento dos vencimentos da função pública.
Manter estas prestações enquanto se verificarem as circunstâncias que determinaram a sua concessão e até que cesse a obrigação a que o devedor está obrigado.
Os beneficiários da prestação devem comunicar ao tribunal e/ou ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, a cessação ou alteração da situação de incumprimento ou da situação do menor.
Os beneficiários devem igualmente, renovar, junto deste tribunal e do Instituto de Gestão Financeira, a prova de que se mantêm os pressupostos subjacentes à sua atribuição, art. 9º, n º 4 do D/L 164/99 de 13.05.
Em 13 de outubro de 2017, B… requereu a renovação do pagamento da pensão de seus filhos E…, F… e G…, no montante de €62,50, a cada um e a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores e, na mesma data, D…, alegando achar-se ainda a estudar, requereu que se mantivesse o pagamento da pensão mensal no montante de €62,50, a seu favor, oferecendo para prova do alegado um documento[2].
Solicitou-se inquérito à Segurança Social e ainda antes de obtida resposta desta instituição, em 30 de janeiro de 2018, proferiu-se a seguinte decisão[3]:
Face aos documentos juntos, verifica-se manterem-se os requisitos previstos para accionar o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, previstos no artº 1º da Lei 75/98 de 19.11 e artº 3º D.L. 164/99 de 13.05,com as alterações introduzidas pelo Dl nº 70/2012, de 16/06. e pela Lei 66/12 de 31.12,nomeadamente a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfazer as quantias em dívida pelas formas previstas no art.º 189º da OTM, actual artigo 48º do RGCTP; o menor não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre.
Assim e face ao disposto no art.º 9.n.º4 do DL 164/99 de 13.05, considero renovada a prova de rendimentos, e em consequência mantenho a prestação alimentícia substitutiva fixada a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores e à ex menor, uma vez que se verificam os requisitos previstos no artigo 1880º e 1905º n.º 2 do Código Civil.
Em 19 de fevereiro de 2018, inconformado com a decisão que precede, o Instituto de Solidariedade e Segurança Social, I.P., na qualidade de gestor do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
I. A Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, criou o FGADM, e o Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio, veio regular a garantia dos alimentos devidos a menores previstos naquela Lei, com o objetivo de o Estado colmatar a falta de alimentos do progenitor judicialmente condenado a prestá-los, funcionando como uma via subsidiária para os alimentos serem garantidos ao menor.
II. O n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, na redação dada pela Lei n.º 24/2017, de 24 de maio, com entrada em vigor a 23 de junho de 2017, veio permitir que o FGADM, em substituição do progenitor obrigado a alimentos, continue a assegurar o pagamento das prestações que hajam sido fixadas durante a menoridade, até que o jovem complete 25 anos de idade se e enquanto durar processo de educação ou de formação profissional (desde que, cumulativamente, se encontrem preenchidos os restantes requisitos legalmente exigidos – n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, artigo 48.º do RGPTC, DL n.º 164/99, de 13 de maio, e DL n.º 70/2010, de 16 de junho).
III. Todavia, a obrigação de continuidade do pagamento em causa a assegurar pelo Fundo, cessa se:
- O respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes de atingida a maioridade;
- O processo de educação ou formação profissional tiver sido livremente interrompido;
- Se o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência.
IV. No caso em apreço, foi decido manter-se a prestação que tem vindo a ser suportada a título de prestação de alimentos pelo FGADM aos menores dos autos, F…, G… e E…, e ainda fixada uma prestação de alimentos no montante de €62,50 (sessenta e dois euros e cinquenta cêntimos) para a jovem, ora maior, D….
V. Salvo o devido respeito, entende o Recorrente que não se encontram preenchidos os pressupostos legais subjacentes à intervenção do FGADM, no que se refere à jovem, ora maior.
VI. Recorde-se que a Lei n.º 24/2017, de 24 de maio, que alterou o n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º
75/98, de 19 de novembro, apenas entrou em vigor a 24 de junho de 2017, ou seja, em data posterior à data em que a jovem atingiu a maioridade (04.03.2017).
VII. E a Lei só dispõe para o futuro, nos termos do artigo 12.º do CC.
VIII. Não foram salvaguardadas as situações de maioridade anteriores à entrada em vigor da Lei n.º 24/2017, de 24 de maio.
IX. Nestes termos, e tendo presente o pressuposto de continuidade que a lei confere à garantia daquele pagamento, não pode o ora recorrente, salvo o devido respeito, concordar com o entendimento explanado na douta decisão, na medida em que o FGADM não se encontrava obrigado ao pagamento da prestação de alimentos à jovem D…, no momento em que a lei se torna aplicável no ordenamento jurídico.
X. O pagamento da prestação de alimentos que o FGADM se encontrava obrigado cessou com
a maioridade, nos termos da legislação aplicável à data.
XI. A circunstância de o processo educativo ou de formação não se encontrar completo, no momento em que é atingida a maioridade, exceciona a cessação automática das prestações a que o FGADM se encontra a pagar, todavia, no momento em que esta possibilidade passa a existir no ordenamento jurídico a prestação já havia cessado, logo não há prestação a manter.
XII. Por conseguinte, e embora a 2ª parte do n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, remeta para o regime previsto no n.º 2 do artigo 1905.º do CC, não podemos esquecer o âmbito em que o mesmo é aplicado, ou seja, ao “pagamento das prestações a que o Estado se encontra obrigado” – cfr. Artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 75/98, de 19 de novembro.
XIII. Não pode assim, o recorrente concordar com a decisão recorrida, na medida em que o FGADM foi condenado a assegurar uma prestação de alimentos à jovem dos autos, mas da letra da lei resulta que o pagamento cessa com a maioridade, salvo nos casos e nas circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 1905.º do Código Civil, ou seja, o Estado tem de estar obrigado ao pagamento e no momento em que a alteração legislativa entra em vigor tal não se verificou in casu.
XIV. Pelo que, no presente caso tratar-se-ia não de uma continuidade ou manutenção do pagamento, mas de pela primeira vez o FGADM ser chamado a intervir na maioridade.
XV. É de referir que a obrigação de prestação de alimentos pelo FGADM é autónoma da prestação alimentícia decorrente do poder paternal e não decorre automaticamente da lei, sendo necessária uma decisão judicial que a imponha, ou seja, até essa decisão não existe qualquer obrigação.
XVI. Todo o regime de garantia dos alimentos devidos a menores, estabelecido na Lei n.º 75/98,
de 19 de novembro, e regulamentado no DL n.º 164/99, de 13 de maio, é construído com um objetivo e um sentido: o Estado assegurar um valor de alimentos ao menor, na sequência da verificação ou preenchimento dos requisitos legalmente previstos, entre eles o incumprimento por parte do progenitor que estava obrigado a prestar alimentos, por não se conseguir tornar efetiva essa obrigação pelos meios previstos no artigo 48.° do RGPTC, bem como pela reunião de todos os requisitos previstos na Lei n.º 75/98, de 19 de novembro [com a redação dada pela Lei n.º 24/2017, de 24 de maio].
Pelo que,
XVII. Se entende, salvo o devido respeito, que a douta decisão judicial em apreço, enferma de falta de fundamentação legal para justificar a intervenção do FGADM nos presentes autos, à jovem maior.
O Digno Magistrado do Ministério Público contra-alegou oferecendo as seguintes conclusões:
1 - Tem alguma razão o FGAM ao dizer que o despacho recorrido não está fundamentado, uma vez que mantem mesada a ex menor sem dizer claramente que estão alegados e provados os requisitos do artigo 1905 do CC.
2 - Tem também alguma razão o FGAM na segunda aparte do fraseado do recurso, mas apenas no que tange ao período de tempo referido, entre a data dos 18 anos da menor e a entrada em vigor da alteração da lei 24/2017.
3 - Por conseguinte, dando alguma razão ao recorrente, deverá o despacho recorrido ser substituído por outro que diga e refira claramente que a ex menor tem os requisitos previstos no artigo 1905 do CC,
4 - Devendo também dizer claramente que entre a data da maioridade da menor e a entrada em vigor da Lei 24/ 2007, a ex menor não tem direito á mesada a pagar pelo FGAM.
Sendo a questão decidenda apenas de direito e revestindo-se de relativa simplicidade, com o acordo dos restantes membros do coletivo, acordou-se na dispensa dos vistos, cumprindo desde já apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
Está o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores obrigado a prestar alimentos em substituição do progenitor inadimplente quando o alimentando atingiu a maioridade antes da entrada em vigor da alteração legal que prevê a possibilidade de manutenção da prestação a cargo daquele fundo nos casos e nas circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 1905º do Código Civil?
3. Fundamentos de facto[4]
3.1
Em 04 de maio de 2015, no âmbito dos autos de Regulação das Responsabilidades Parentais a que estes autos estão apensados, foi homologado por decisão judicial, transitada em julgado, um acordo quanto ao exercício das responsabilidades parentais, no âmbito do qual D…, nascida em 04 de março de 1999, E…, nascido em 07 de março de 2004, G… e F…, nascidos em 20 de novembro de 2006, ficaram a residir e aos cuidados da progenitora B…, tendo o progenitor C… ficado obrigado a pagar a quantia de €62,50 mensais, a título de alimentos a favor de cada um dos filhos, no total de €250,00 (duzentos e cinquenta euros), importância a ser paga até ao dia 08 de cada mês, atualizável anualmente segundo a variação da taxa de inflação, além de metade das despesas extraordinárias escolares, de saúde, vestuário e medicamentosas, mediante a apresentação dos correspondentes documentos.
3.2
D…, nascida em 04 de Março de 1999, filha de C… e de B… está matriculada no Agrupamento de Escolas de I…, no ano letivo de 2017/2018, na turma 11º …, do 2º ano (11º), com escalão A, no Curso Técnico I1… do Ensino Profissional e esteve matriculada no ano letivo 2016/2017, na turma 10º …, do 1º ano (10º), no Curso Técnico I1… do Ensino Profissional.
4. Fundamentos de direito
O Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores está obrigado a prestar alimentos em substituição do progenitor inadimplente quando o alimentando atingiu a maioridade antes da entrada em vigor da alteração legal que prevê a possibilidade de manutenção da prestação a cargo daquele fundo nos casos e nas circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 1905º do Código Civil?
O recorrente pugna pela revogação da decisão recorrida argumentando, em síntese, que estando cessada em função da maioridade da recorrida a prestação alimentar a cargo do seu progenitor e, em substituição deste, a cargo do recorrente, na falta de retroatividade da introdução de um nº 2, no artigo 1º, da Lei nº 75/98, de 19 de novembro pela Lei nº 24/2017, de 25 de maio, em vigor desde 24 de junho de 2017 e de disposição específica a regular os casos em que a prestação a cargo do recorrente cessou antes da entrada em vigor do novo regime, não tem a recorrida direito à prestação que o tribunal recorrido lhe atribuiu.
Cumpre apreciar e decidir.
O Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores[5], criado pela Lei nº 75/98, de 19 de novembro, visou assegurar aos menores residentes em território nacional, verificadas certas condições, o pagamento pelo Estado das prestações previstas em tal lei, sempre que a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a tais menores não satisfizer as importâncias em dívida pelas formas então previstas no artigo 189º da Organização Tutelar de Menores[6].
Entretanto, pondo termo a um dissídio jurisprudencial existente sobre os reflexos da maioridade na obrigação alimentar do progenitor a favor do filho menor[7], a Lei nº 122/2015, de 01 de setembro, veio dispor que para efeitos do disposto no artigo 1880º, entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda, se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência.
A partir desta alteração legislativa tornou-se flagrante uma diferença de tratamento entre os filhos maiores que têm o processo educacional ou de formação profissional em curso, com progenitor que possa ser responsabilizado pelo pagamento da prestação alimentar que vinha sendo prestada na menoridade e os filhos maiores que na mesma situação educacional ou de formação profissional viam a sua prestação alimentar assegurada pelo FGADM e que a viam cessada por mero efeito do termo da sua menoridade.
Para pôr termo a esta situação, o J… apresentou o Projeto de Lei nº 327/XIII (2ª)[8], fundamentando a alteração do regime jurídico do FGADM nos seguintes termos:
Em terceiro lugar, é proposta uma alteração ao artigo 1.º da Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, que estabelece os termos da garantia dos alimentos devidos a menores a cargo do Estado. Como é sabido, a Lei n.º 122/2015, de 01 de setembro, que alterou o Código Civil, aditou o n.º 2 ao artigo 1905.º, tendo aí assegurado que, cumpridas determinadas circunstâncias relacionadas com a formação profissional do filho, a pensão fixada em benefício deste durante a menoridade se mantinha para depois da maioridade e até que o descendente completasse 25 anos de idade. Ora, regime diverso está previsto nos termos da Lei n.º 75/98, de 19 de novembro, uma vez que este diploma legal prevê que “o pagamento das prestações a que o Estado se encontra obrigado, nos termos da presente lei, cessa no dia em que o menor atinja a idade de 18 anos”.
Com a presente iniciativa legislativa, o Grupo Parlamentar do J… por razões de coerência legislativa, por um lado, e de elementar justiça social, por outro, propõe a equiparação entre os dois regimes de forma a assegurar que o prosseguimento dos estudos e da formação profissional dos jovens cujos alimentos são assegurados pelo Estado, nos termos da Lei n.º 75/98, de 19 de novembro - regra geral, oriundos das classes sociais mais desfavorecidas -, não seja prejudicado por quaisquer constrangimentos financeiros.
Segundo dados conhecidos esta semana, cerca de 20 mil crianças e jovens veem os seus alimentos assegurados pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devido a Menores, um número significativo e que permite perceber a importância e o impacto que a alteração agora proposta pelo J… pode vir a ter no orçamento destes agregados familiares.
Em sede de emissão de pareceres sobre esta proposta de lei, o Conselho Superior da Magistratura, em parecer datado de 14 de novembro de 2016, elaborado pela Sra. Juíza Desembargadora Alcina da Costa Ribeiro alertou “para a necessidade de prever uma norma transitória que preveja os casos dos jovens com idade compreendida entre os 18 e os 25 anos abrangidos pelos artigos 1880º e 1905º, nº 2, do Código Civil, que tenham beneficiado do Fundo de Garantia de Alimentos e o viram cessar, por terem atingindo os 18 anos de idade.”
Não obstante este alerta, a alteração proposta foi aprovada, sem que se tenha criado qualquer norma transitória para regular os casos dos jovens com idade compreendida entre os 18 e os 25 anos abrangidos pelos artigos 1880º e 1905º, nº 2, do Código Civil, que tenham beneficiado do suporte do FGADM e o tenham visto cessar, por terem atingindo os 18 anos de idade, antes da entrada em vigor da Lei nº 24/2017, de 23 de maio.
Assim, por efeito da alteração introduzida pelo artigo 6º da Lei nº 24/2017, de 23 de maio, foi alterado o nº 2, do artigo 1º da Lei nº 75/98, de 19 de novembro, passando a ter o seguinte teor:
- “O pagamento das prestações a que o Estado se encontra obrigado, nos termos da presente lei, cessa no dia em que o menor atinja a idade de 18 anos, exceto nos casos e nas circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 1905º do Código Civil”[9].
A circunstância de não ter sido seguido o alerta do Conselho Superior da Magistratura acima transcrito significa que os jovens com idade compreendida entre os 18 e os 25 anos abrangidos pelos artigos 1880º e 1905º, nº 2, do Código Civil, que tenham beneficiado do apoio do FGADM e o viram cessar, por terem atingindo os 18 anos de idade, antes da entrada em vigor da Lei nº 24/2017, de 23 de maio quedam sem tutela?
Em resposta a esta interrogação, é do nosso conhecimento terem sido publicadas duas decisões de diferentes Tribunais da Relação[10], ambas em sentido oposto àquele por que pugna o recorrente. A primeira decisão data de 25 de janeiro de 2018, provém do Tribunal da Relação de Évora e foi proferida no processo nº 161/07.8TBBJA-F.E1, enquanto a segunda data de 22 de fevereiro de 2018, provém do Tribunal da Relação de Guimarães e foi proferida no processo nº 3174/16.5T8VCT.G1.
Que dizer?
A regra geral de aplicação da lei no tempo é a da não retroatividade (artigo 12º, nº1, do Código Civil). Porém, além do mais, quando a lei nova dispõe diretamente sobre o conteúdo de certa relação jurídica, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor (segunda parte do nº 2, do artigo 12º do Código Civil).
No caso em apreço, cremos que a situação se enquadra precisamente na previsão que se acaba de citar pois está em causa a atribuição de um direito subjetivo, a um certo sujeito (filha de certa pessoa), conformando o conteúdo de uma certa relação jurídica (relação de filiação), verificadas que sejam certas condições, sem que seja relevante o facto que deu origem a essa relação jurídica.
A recorrida atingiu a maioridade antes da entrada em vigor da alteração introduzida no artigo 1º da Lei nº 75/98, de 19 de novembro, pelo artigo 6º da Lei nº 24/2017, de 23 de maio, mantendo-se contudo na vigência desta última lei os pressupostos que determinaram a fixação de uma prestação a seu favor por parte do FGADM enquanto menor e estando esta a frequentar estabelecimento de ensino profissional.
Por isso, a nosso ver, com a entrada em vigor em 23 de junho de 2017 da Lei nº 24/2017, de 23 de maio, a recorrida adquiriu o direito a haver do FGADM uma prestação nos termos previstos no artigo 1º, nºs 1 e 2, da Lei nº 75/98, de 19 de novembro.
Esta interpretação é que melhor se quadra com a finalidade visada pela proposta de lei que deu origem à Lei nº 24/2017, é a que permite um tratamento igual de situações igualmente merecedoras de tutela jurídica, conformando-se com as exigências constitucionais do princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição da República Portuguesa), bem como com o princípio da equidade que é um dos princípios gerais do sistema da Segurança Social (vejam-se os artigos 5º e 9º da Lei da Segurança Social, aprovada pela Lei nº 4/2007, de 16 de janeiro).
Porém, nem só por estas considerações de direito transitório, direito constitucional e do direito da segurança social, a aludida interpretação é, a nosso ver, a correta, pois que a própria letra da lei, ao contrário do que pretende o recorrente aponta claramente no mesmo sentido.
Na verdade, no nº 1, do artigo 1º da Lei nº 75/98, de 19 de novembro define-se o quadro geral em que o Estado é chamado a assegurar o pagamento de prestações alimentares em substituição do obrigado, resultando do nº 2 na redacção introduzida pela Lei nº 24/2017, de 23 de maio, que o arco temporal em que essa obrigação do Estado se mantém vai para além da menoridade, podendo prolongar-se até aos vinte e cinco anos. E isso, independentemente de estar ou não fixada, na menoridade, uma prestação a cargo do FGADM.
De facto, pode o jovem maior ter o seu processo educacional ou de formação profissional em curso, sem rendimentos próprios, vir a achar-se numa situação de impossibilidade de satisfação da sua obrigação alimentar junto de um ou até de ambos os progenitores, sem que isso tenha sucedido até então. Nessa eventualidade, tal como tem o direito de exigir dos seus progenitores o cumprimento da pertinente obrigação alimentar, nos termos previstos no artigo 1880º do Código Civil, também tem o direito de exigir do Estado que assegure a satisfação dessas obrigações incumpridas pelos progenitores.
A circunstância de ter sido ou não fixada uma prestação a cargo do FGADM durante a menoridade do alimentando e de essa prestação estar a ser paga por este Fundo no momento em que o alimentando atinge a maioridade é, na nossa perspetiva, juridicamente irrelevante, importando sim que até aos vinte e cinco anos, independentemente do momento em que isso venha a suceder, o alimentando reúna as condições para que as prestações alimentares insatisfeitas sejam asseguradas pelo Estado.
A interpretação sufragada pelo recorrente conduz a resultados ostensivamente violadores do princípio da igualdade, com total desconsideração da finalidade visada pelo regime jurídico instituído pela Lei nº 24/2017, já que, nessa leitura, dois jovens em idênticas situações, só pelo facto de um deles ser mais velho do que o outro um dia, veriam as suas possibilidades de completar o seu processo educativo ou a sua formação profissional com o suporte do FGADM de forma totalmente oposta: enquanto a um seria totalmente vedado esse apoio, a outro, por ser um dia mais novo, já esse apoio seria concedido. Assim, também à luz das consequências, a interpretação do recorrente é juridicamente insustentável.
Pelo exposto improcede o recurso, mas sem custas, atenta a isenção de que beneficia o recorrente (artigo 4º, nº 1, alínea v), do Regulamento das Custas Processuais).
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelo Instituto de Solidariedade e Segurança Social, I.P., na qualidade de gestor do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida proferida em 30 de janeiro de 2018, no segmento impugnado.
Sem custas.
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O presente acórdão compõe-se de onze páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.
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Porto, 23 de abril de 2018
Carlos Gil
Carlos Querido
Correia Pinto
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[1] Notificada às partes mediante cartas registadas em 19 de dezembro de 2016.
[2] Certidão comprovativa da matrícula de D… no Agrupamento de Escolas de I…, no ano letivo de 2017/2018, na turma 11º …, do 2º ano (11º), com escalão A, no Curso Técnico de I1… do Ensino Profissional.
[3] Notificada às partes mediante cartas registadas em 31 de janeiro de 2018.
[4] Na decisão recorrida, contra o que legalmente está estabelecido, o Sr. juiz a quo não teve o cuidado de enunciar os factos que julga provados e não provados e de expor a pertinente motivação, cometendo a nulidade prevista na alínea b), do nº 1, do artigo 615º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável ao processo tutelar cível. Porém, na nossa perspetiva, trata-se de patologia que não é de conhecimento oficioso, nem sequer pela via prevista na parte final da alínea c), do nº 2, do artigo 662º do Código de Processo Civil, salvo se não constarem do processo todos os elementos que permitam o suprimento do vício, o que de todo o modo não se verifica no caso em apreço pois está ao dispor do tribunal de recurso toda a prova que serviu de base à decisão recorrida. Não obstante, esta instância não deve incorrer no vício da instância recorrida, devendo enunciar a factualidade pertinente para o conhecimento do objeto do recurso. Uma vez que do ponto de vista fáctico o recorrente não põe em causa a capitação da recorrida, mas apenas a verificação dos pressupostos específicos de manutenção da prestação alimentar decorrentes da previsão do nº 2, do artigo 1905º do Código Civil, a enunciação factual a que se procede baliza-se em função deste núcleo problemático.
[5] Doravante usar-se-á o acrónimo FGADM.
[6] A que corresponde atualmente o artigo 48º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei nº 141/2015, de 08 de setembro.
[7] Foi este o nosso entendimento no acórdão relatado em 09 de janeiro de 2017, no processo nº 62/14.3TMMTS-C.P1, assim sumariado pelo ora relator: “1. Leis interpretativas não são apenas que o legislador como tal qualifica expressa ou tacitamente, as denominadas leis interpretativas por determinação do legislador, mas também as chamadas leis interpretativas por natureza, ou seja, aquelas que “sobre um ponto onde a regra de direito é incerta ou controvertida, v[ê]m consagrar uma solução que poderia ter sido adotada pela jurisprudência, por si só”. 2. A primeira parte do nº 2, do artigo 1905º do Código Civil tem natureza interpretativa e, por assim ser, por força do disposto no artigo 13º do Código Civil integra-se na lei interpretada, não constituindo a sua vigência em momento ulterior ao da ocorrência da maioridade do alimentando qualquer obstáculo à sua aplicação, salvo relativamente aos efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença transitada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por atos de análoga natureza.
[8] Publicado no Diário da Assembleia da República, IIª série A, nº 19, de 26 de outubro de 2016.
[9] Sublinhado nosso para destacar a previsão aditada pelo artigo 6º da Lei nº 24/2017, de 23 de maio.
[10] Ambas acessíveis nas respetivas bases de dados da DGSI.