Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
646/20.0T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: SEGURO DE DANOS PRÓPRIOS
PAGAMENTO DA INDEMNIZAÇÃO
SUB-ROGAÇÃO LEGAL
Nº do Documento: RP20220405646/20.0T8AMT.P1
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE/DECISÃO REVOGADA.
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O segurador por danos próprios, cumprida que esteja a sua principal obrigação contratual (pagamento da indemnização), tem o direito de sub-rogação legal nos direitos do segurado, na medida do que houver prestado, contra o terceiro responsável pelo sinistro.
II - Constituem, por isso, requisitos para o exercício desse direito que, por um lado, o segurador tenha cumprido a sua referida obrigação contratual e, por outro lado, que haja um terceiro responsável pelo sinistro.
III - Verificados estes pressupostos e não havendo nenhuma exceção que o impeça, o segurador tem direito a ser reembolsado pelo valor dos danos que ressarciu, na exata medida em que os mesmos se integrem na esfera da obrigação indemnizatória a cargo do terceiro responsável pelo sinistro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 646/20.0T8AMT.P1
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Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto,


I- Relatório
1- Companhia de Seguros X ..., S.A, intentou presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra A... Limited – Sucursal em Portugal, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe, com juros de mora, a quantia global de 34.510,55€, correspondente à soma do montante que, no dia 31/10/2017, entregou ao seu segurado, em execução do contrato de seguro por danos próprios que com ele celebrou, bem como das despesas com peritagens e dinâmica do acidente ocorrido no dia 22/05/2017, em que esse segurado foi interveniente com o veículo automóvel de matrícula ..-QR-.., sendo que tal acidente foi ocasionado exclusivamente pelo condutor da viatura de matrícula ..., em relação á qual a Ré tinha assumido a responsabilidade infortunistica resultante de acidentes de viação.
2- Contestou a Ré, reconhecendo a dinâmica e responsabilidade pelo referido acidente, mas não o direito de crédito de que a A. se diz titular, uma vez que, no dia 26/07/2018, a pedido do segurado da A. pagou-lhe o montante de 20.216,00€ para reparação da perda total do veículo, ao abrigo da cobertura de responsabilidade civil, que é o que verdadeiramente está aqui em causa e não a cobertura por danos próprios em que a A. se baseou.
Pede ainda a intervenção provocada acessória do segurado da A., AA.
3- Admitida a intervenção deste, veio o mesmo defender, em síntese, que os 20.216,00€ que a Ré lhe pagou no dia 30/07/2018, foram para compensar quer os 900,00€ da franquia que não recebera da A., quer o valor da privação de uso, quer ainda os juros de mora em que as mesma incorreu.
4- Tentada a conciliação das partes sem êxito, foi proferida sentença na qual se julgou a presente ação improcedente, por não provada, e se absolveu a Ré do pedido.
Isto porque, no essencial, a causa de pedir invocada pela A. não se reconduz a nenhuma hipótese de sub-rogação ou direito de regresso [“desde logo por a autora ter cumprido uma obrigação própria e depois, porque a ré ao ter pago ao lesado, extinguiu qualquer direito que ao chamado pudesse assistir sobre si, seja ela pela sub-rogação, seja ele pelo direito de regresso], não tendo sido, por outro lado, alegados factos que permitam considerar a hipótese de enriquecimento sem causa, “na medida em que a ré não se enriqueceu, nem a causa de pedir foi moldada nesse instituto”.
5- Inconformada com esta sentença, dela recorre a A., finalizando a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:
“1. Nos presentes autos foi alegado o contrato de seguro e as coberturas e capitais aplicáveis (vide artigo 2.º da petição inicial), o pagamento efetuado ao abrigo do contrato de seguro em causa (vide artigo 15.º da petição inicial), foi identificado o terceiro responsável pelo sinistro (vide artigos 3.º a 10.º e 18.º a 20.º), bem como foi identificado o regime legal que prevê tal sub-rogação (vide artigo 21.º), aí se sustentando a pretensão deduzida.
2. A Recorrente alegou a factualidade essencial e suficiente para suportar a existência do direito invocado, pelo que não pode aceitar a decisão de mérito que, sem produção de prova, absolve a Recorrida do pedido.
3. Considerando que a Recorrente pagou uma indemnização contratualmente devida –o que não é posto em causa nos autos - ficou automaticamente sub-rogada no montante pago, nos termos do disposto no artigo 136.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
4. Sem prejuízo do supra exposto, resulta da contestação apresentada pelo interveniente acessório/segurado da Recorrente que o mesmo recebeu o pagamento da Recorrente - vide artigos 16.º e 17.º da contestação - no seguimento desse pagamento instou a Recorrente a junto da sua congénere A... auxiliar o Interveniente a ver ressarcido o remanescente dos danos por si sofridos - vide artigo 18.º da contestação - sendo que, a partir do pagamento pela Recorrente, o Interveniente apenas solicitou à Recorrida a quantia referente aos danos não indemnizados, concretamente, a franquia contratual aplicada pela Recorrente e o dano por privação de uso - vide artigos 22.º a 25.º da contestação do interveniente.
5. O Interveniente acessório na sua contestação, aceitou como verdadeira, entre o mais, a matéria de facto vertida nos artigos 15.º e 20.º da petição inicial, ou seja, que a Recorrente efetuou o pagamento em causa nos autos e que tem direito a ser ressarcida pela Recorrida.
6. Assim, da matéria de facto alegada pelo interveniente acessório, em conjunto com a matéria de facto já alegada pela Recorrente na sua petição inicial, resulta cristalino que o mesmo quis transmitir à autora o crédito que o mesmo seria titular e de que era devedora a Recorrida, pelo que, encontra-se alegada nos autos a matéria de facto suficiente para que a ação proposta seja considerada procedente.
7. Isto posto, a decisão que seja proferida sem antes o juiz ter cumprido um dos deveres inerentes ao dever de cooperação implica a nulidade da decisão por excesso de pronúncia (art. 615.°, n.° 1, al. d), 666.°, n.° 1, e 685.° do Código de Processo Civil) e/ou por omissão de ato devido nos termos dos nºs 1 e 2 do art. 195º do Código de Processo Civil, porque o tribunal não pode apreciar a causa (e menos ainda indeferir ou considerar improcedente um pedido) sem antes ter cumprido esse dever.
8. Destarte, deve a sentença ser declarada nula e, consequentemente, ser ordenado o Tribunal a quo a cumprir com o seu dever de prevenção.
9. Subsidiariamente, sempre se dirá que, caso se considere que existe uma falta de alegação dos factos essenciais da causa de pedir, tal circunstância sempre terá como consequência a ineptidão da petição inicial, com a consequente absolvição da instância, e não uma absolvição do pedido.
10. Acresce que, a Recorrida, companhia de seguros, à data do (alegado) pagamento ao Interveniente Acessório, tinha conhecimento de que havia sido efetuado um pagamento ao Interveniente pela Recorrente a título de perda total, e já havia confessado a sua responsabilidade em ressarcir a Recorrente pelo valor pago a título de perda total (ainda que com divergência quanto ao valor a ser pago), o que se invoca nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358.º n.º 2 do Código Civil.
11. Destarte, quando a Recorrida, com conhecimento do pagamento efetuado e já tendo confessado a sua responsabilidade perante a Recorrente, efetua um pagamento ao Interveniente Acessório, alegadamente também a título de perda total, pagou a quem já não tinha na sua esfera jurídica tal direito.
12. Por fim, sempre se dirá que não foi dado como provado que o pagamento alegadamente efetuado pela Recorrida ao Interveniente Acessório extingue a sua responsabilidade derivada do contrato de seguro, até porque resulta do artigo 27.º da contestação do Interveniente Acessório que o pagamento efetuado pela Recorrida limitava-se ao pagamento da franquia contratual de Eur. 900,00, dos danos de privação de uso e juros de mora.
13. Por tudo o exposto, é forçoso concluir que a Recorrente encontra-se sub-rogada nos direitos do seu segurado quanto ao montante por si pago, direitos esses que jamais serão extintos através do pagamento ao credor primitivo.
14. Considerando tudo o supra exposto, a sentença em crise violou o disposto nos artigos 236.º, 405.º, 406.º, 762.º do Código Civil, sendo certo que, interpretando devidamente as normas jurídicas supra referidas, impõe-se que os autos prossigam, sendo a ação proposta, a final, considerada integralmente procedente”.
É, em suma, o que pede.
6- A Ré e o Interveniente responderam, pugnando pela confirmação do julgado.
7- Recebido e recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la.
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II- Mérito do recurso
1- Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto do recurso em apreço, delimitado, como é regra, pelas conclusões das alegações da recorrente [artigos 608.º n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil (CPC)], cinge-se a saber se, tendo em consideração a versão da A., ocorrem os pressupostos do direito de sub-rogação pela mesma invocado e, não sendo caso disso, se lhe devia ter sido dirigido o convite para aperfeiçoar a petição inicial.
2- Baseando-nos nos factos descritos no relatório supra exarado - que são os únicos relevantes para o efeito -, vejamos, então, como solucionar estas questões:
Comecemos por ter presente o que se dispõe no artigo 136.º, n.º 1, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS)[1]. De acordo com ele, “[o] segurador que tiver pago a indemnização fica sub-rogado, na medida do montante pago, nos direitos do segurado contra o terceiro responsável pelo sinistro”.
Inserida no título dedicado ao seguro de danos (título II), esta norma tem sido maioritariamente entendida como uma manifestação do princípio indemnizatório (secção III). Isto é, do princípio segundo o qual, no seguro de danos, não pode haver duplicação de indemnização pelo mesmo evento danoso. “O seguro de danos visa, apenas e no máximo, suprimir o dano efetivo, sofrido pelo segurado” e, portanto, “não deve ir mais além, proporcionando lucro ao mesmo segurado”[2]. Mas, há quem avance outras explicações. Por exemplo, impedir que o terceiro responsável pelo sinistro beneficie da circunstância do lesado ser simultaneamente beneficiário de um seguro de danos próprios; prevenir fraudes, de modo a que o contrato de seguro não se transforme, ele próprio, num incentivo à verificação de sinistros; ou então vendo nesta sub-rogação legal uma simples orientação de política económica tendente a encorajar os fins sociais do seguro, diminuindo o seu preço e aliviando a situação do segurador, concedendo-lhe a possibilidade de diminuir o seu dano, agindo contra terceiro no lugar do segurado. Isto, para além de outras explicações[3].
Certo é que, para o que ora nos interessa, nos termos da norma já referenciada, o segurador por danos próprios, cumprida que esteja a sua obrigação principal (pagamento da indemnização), pode exigir do terceiro responsável pelo sinistro, aquilo que houver prestado, nessa exata medida.
O que pressupõe naturalmente um concurso de responsabilidades. De um lado, a responsabilidade do segurador por danos próprios e, de outro lado, a responsabilidade do ocasionador do sinistro ou de quem tenha assumido essa responsabilidade em seu lugar.
Não se trata, no entanto, de um conjunto de responsabilidades ligadas entre si por um vínculo de solidariedade. Cada um dos referidos responsáveis tem a sua fonte obrigacional própria e, nessa medida, não há qualquer direito de regresso entre eles. O que há é uma dualidade de responsabilidades com fundamentos distintos[4].
Mas, o direito de sub-rogação do segurador, tal qual está legalmente configurado, mostra-nos também que essas responsabilidades não estão colocadas exatamente no mesmo plano. Na verdade, como é comum neste tipo de situações[5], o risco próprio da conduta que originou o sinistro é a sua causa próxima e, assim, no limite, deve ser o autor dessa conduta (ou quem deva estar no seu lugar) quem tem a obrigação de reparar todos os danos dela decorrentes[6]. Inclusive, portanto, a obrigação de reembolsar o segurador de danos próprios pelas prestações pelo mesmo despendidas, embora só, repetimos, nessa exata medida.
O que pressupõe uma identidade de danos[7]. O segurador não tem, na verdade, o direito a reaver prestações que não tenha despendido para reparação do sinistro, no âmbito da execução do contrato consigo celebrado. Tal como o lesado não se pode arvorar do direito a receber, por essa via, a indemnização dos danos que não estejam cobertos por esse contrato.
Só, pois, os danos efetivamente ressarcidos pelo segurador lhe conferem o direito de sub-rogação que a lei lhe reconhece.
Regressando à estrutura desse direito, é comum alinharem-se os seguintes pressupostos para a sua constituição: por um lado, que ao segurado assista o direito de ação contra o lesante, assente na responsabilidade deste último; e, por outro lado, que o segurador já haja indemnizado o seu segurado.
Uma vez verificados estes requisitos, opera a dita sub-rogação - artigo 593.º, n.º1, do Código Civil, nos limites já indicados[8]. A menos que haja alguma exceção que o impeça; particularmente, alguma das previstas no n.º 4 do artigo 136.º, do RJCS[9]. Mas, não é isso que se passa na situação em apreço, ou melhor, nenhuma dessas exceções foi invocada, pelo que se tornam inúteis maiores desenvolvimentos, neste domínio.
O que se impõe aquilatar, antes, é se a A. alegou os requisitos necessários para a integração do referido direito.
Pois bem, analisada a petição inicial, verifica-se, em primeiro lugar, que a A. alegou que o acidente de viação por si descrito ocorreu, exclusivamente, por culpa do condutor da viatura de matrícula ...; ou seja, a viatura cujo risco de circulação foi assumido contratualmente pela Ré. E nisso, de resto, todas as partes estão de acordo. Logo, o lesado tinha, e tem, o direito de demandar a Ré pedindo-lhe a reparação dos danos ocasionados por tal acidente.
Por outro lado, também não é controvertido que a A., como alega, já ressarciu, no dia 31/10/2017, o dito lesado por alguns dos danos decorrentes do mesmo acidente, tendo por pressuposto o contrato de seguro por danos próprios entre ambos celebrado.
Por conseguinte, é manifesto que estes factos são suscetíveis de fundamentar o direito de sub-rogação pela mesma invocado. Falta só assinalar-lhe os limites, mas essa é matéria que está fora do âmbito deste recurso.
Isto dito, logo se vê que não concordamos com a sentença recorrida, seja a propósito da qualificação do referido direito de sub-rogação como integrando um direito de regresso (posto que o direito exercido pela A., enquanto seguradora de danos próprios, não é um direito novo, mas o que lhe foi transmitido pelo lesado), nem com a afirmação de que para o exercício desse direito a mesma (A.) estivesse obrigada a obter o prévio consentimento ou acordo do lesado. O direito de sub-rogação que aqui está em causa é de origem legal e, por conseguinte, a vontade das partes para o constituir é, neste aspeto, irrelevante. Só será decisiva para a sub-rogação convencional (artigos 589.º e 590.º, do Código Civil), o que, de todo, não é o caso.
Por outro lado, também não concordamos que o direito da A. se tenha extinguido pelo seu cumprimento. Pelo contrário, é justamente esse cumprimento que, entre outros aspetos já referidos, o constitui e, desse ponto de vista, a A. está perfeitamente legitimada para o exercer.
Ou seja, em resumo, o decidido na sentença recorrida não pode manter-se em vigor na ordem jurídica e, por conseguinte, fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas, a título subsidiário, neste recurso, posto que o mesmo terá necessariamente de ser julgado procedente.
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III- Dispositivo
Pelas razões expostas, acorda-se em conceder provimento ao presente recurso, e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida e determina-se o regular prosseguimento dos autos.
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- Em função deste resultado e das posições assumidas, nesta sede, por cada uma das partes, as custas deste recurso serão suportadas, em partes iguais, pela Ré e pelo Interveniente – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

Porto, 05 de Abril de 2022
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda
Linda Baptista
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[1] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril.
[2] António Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Almedina, pág. 748.
[3] Cfr., para maiores desenvolvimentos, Júlio Manuel Vieira Gomes, in “Da Sub-rogação Legal do Segurador à Luz da Nova Lei do Contrato de Seguro (Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril)”, Estudos em Memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches, Vol. II, Coimbra Editora, págs. 451 a 455
[4] Neste sentido, Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, Almedina, pág. 788 e 789 e ainda, do mesmo Autor, Direito dos Seguros, Princípia, pág. 120, especialmente na nota 138.
[5] De que são exemplo os acidentes de viação que o são, simultaneamente, de trabalho.
[6] Neste sentido, João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 7ª edição, Almedina, pág. 697, a propósito da concorrência de responsabilidades nos acidentes simultaneamente de viação e de trabalho, no plano das relações internas, entre os responsáveis.
[7] Neste sentido, Júlio Manuel Vieira Gomes, ob cit, págs 458 a 465.
[8] Sobre esta matéria, Ac. STJ, de de 30/06/2021, Processo n.º 113/18.2T8SNT.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt
[9] Neste sentido, embora versando sobre o anterior regime, José Vasques, Contrato de Seguro (Notas para uma Teoria Geral), 1999, Coimbra Editora, págs. 154 e 155.