Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
194/14.8GBAND.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: ESCRITOS
DEPOIMENTO ESCRITO
VALORAÇÃO
PROVA PROIBIDA
REPETIÇÃO DO JULGAMENTO
Nº do Documento: RP20150617194/14.8GBAND.P1
Data do Acordão: 06/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: ANULADO O JULGAMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Toda a prova deve ser produzida e examinada em audiência para poder contribuir para a formação da convicção do julgador.
II - Se os escritos juntos aos autos pela ofendida não são mais do que depoimentos escritos prestadas por aquela, sobre os factos, durante o inquérito, por sua iniciativa não podem ser valorados como meio de prova.
III - A valoração dessa prova proibida constitui um a nulidade insanável tornando nulo o acto e os que dele dependerem e puderem afectar.
IV- Valorando a sentença tais escritos e não podendo eles ser cindidos da demais prova produzida que fundamentou a decisão, a nulidade implica para além da nulidade da decisão a repetição do julgamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º194/14.8GBAND.P1

Acordam, em conferência, os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
No processo comum [com intervenção do tribunal singular] n.º194/14.8GBAND da Comarca de Aveiro, Instância Local da Anadia, Secção de Competência Genérica, J1, por sentença proferida em 11/12/2014 e depositada na mesma data, foi decidido:
a) Condenar o arguido B… foi condenado como autor material de um crime de crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.°, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 02 (dois) anos e 06 (seis) meses de prisão.
b) Ao abrigo do disposto no artigo 50.°, n.ºs 1 e 5, do Código Penal decide-se suspender a pena de prisão aplicada por igual período de 2 anos e 6 meses, com regime de prova assente em plano de readaptação social elaborado, oportunamente, pela DGRS e subsequentemente homologado pelo Tribunal, executado com vigilância e apoio durante o tempo de duração da suspensão (cfr. artigo 53.° do Código Penal), o qual visará sensibilizar o arguido para a problemática da violência doméstica, vinculando-o à frequência de programas de formação que vierem a realizar-se durante o período da suspensão e, essencialmente, vocacionado para o acompanhamento da necessidade de intervenção ao nível psicológico/psiquiátrico, na medida em que as condutas evidenciadas nos autos traduzem a imperiosa necessidade deste acompanhamento, já que a dificuldade de autocontrolo das emoções e comportamentos poderá vir a associar-se a futuros conflitos e condutas disfuncionais que urge evitar-se, ficando o arguido obrigado a prestar toda a colaboração necessária e, bem assim, a comparecer às entrevistas que vierem a ser agendadas;
c) Ao abrigo do disposto no artigo 152.°, n.ºs 4 a 6, do Código Penal, decide-se ainda condenar o arguido na pena acessória de proibição de uso e porte de armas, por período igual ao da suspensão da execução da pena de prisão (2 anos e 6 meses).
Inconformado com a decisão condenatória, o arguido interpôs recurso, em que ao longo de 155 conclusões, suscita, em síntese, as seguintes questões:
- correção da sentença,
- prescrição do procedimento criminal quanto aos factos ocorridos até Maio de 1994,
-valoração de prova proibida,
-erro de julgamento,
-errada subsunção jurídica dos factos,
-medida da pena,
- suspensão da execução mediante regime de prova,
-pena acessória
O Ministério Público junto da 1ªinstância respondeu ao recurso, pugnando pela nulidade da sentença nos termos da parte final do da alínea c) do n.º1 do at.379.º do C.P.Penal, dado que foram utilizados na formação da convicção do tribunal escritos elaborados pela ofendida e juntos por ela em fase de inquérito, os quais não consubstanciam documentos em sentido estrito [fls.420 a 422].
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º n.º1 do C.P.Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que se pronunciou pela improcedência do recurso, defendendo que não houve valoração de prova proibida [fls.439 a 443].
Cumprido o disposto no art.417.º n.º2 do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Decisão recorrida
A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos e respetiva fundamentação:
«Da discussão da causa resultou provada a seguinte factualidade:
Da acusação pública
1. O arguido e C… casaram entre si em 18.12.1993, residindo ambos, na vigência do matrimónio, por último, na Rua …, n.° .., em ….
2. Dessa união nasceram dois filhos: D…, a 29/04/1997 e E…, a 19/03/2000.
3. Cerca de 8 dias depois de terem casado, na noite de Natal, quando se encontravam a jantar na residência dos pais do arguido, em …, Anadia, aquele agarrou a ofendida e atirou-a contra as prendas de casamento que ali se encontravam, assim lhe provocando um hematoma na coxa direita.
4. A partir daí e durante cerca de três anos, o arguido passou a molestar física e verbalmente a ofendida praticamente todos os dias, desferindo-lhe murros e bofetadas e empurrões. Muitas vezes, fazia-o recorrendo à utilização de objectos que tinha à mão, sendo que, em uma das ocasiões, a molestou fisicamente com uma cana de pesca.
5. Estas situações ocorriam, por regra, quando o arguido se encontrava sob a influência de bebidas alcoólicas.
6. Numa ocasião, o arguido, após a ingestão de bebidas alcoólicas, disse à ofendida que, se ela o deixasse, a matava.
7. No ano de 1994, o arguido chegou a casa embriagado e, dirigindo-se à sua mulher disse-lhe que lhe tinham contado que ela tinha amantes. Nessa mesma ocasião, o arguido atirou uma navalha na direcção da ofendida, a qual acertou na ombreira de uma porta, onde ficou espetada.
8. Três anos após a celebração do casamento, o arguido efectuou um tratamento de desintoxicação alcoólica.
9. Depois desse tratamento, o arguido ficou menos agressivo, mas persistiu com a pressão psicológica para com a ofendida, dado que também pressionava a ofendida para manter com ele relações sexuais, dizendo-lhe que caso não o fizesse isso significava que tinha amantes, acabando aquela por aceder nesse relacionamento, contra sua vontade.
10. Por vezes, também lhe dizia: não queres a bem, vais a mal, querendo com isso significar que se a ofendida não se relacionasse sexualmente com ele de livre vontade, a obrigaria. Para além disso, dizia-lhe, igualmente, que tinha outros homens e que se não queria com ele era porque tinha outros homens.
11. Após o referido período de menor agressividade, o arguido, desde há cerca de três anos e até, pelo menos, Julho de 2014, chamou puta, porca e malandra à ofendida quase diariamente, na residência comum e na presença dos dois filhos menores de ambos.
12. E também acusou a ofendida de se relacionar com outros homens.
13. Disse-lhe, igualmente, se não fosse ele, todos em casa passariam misérias, pelo facto de a ofendida não trabalhar e de ser ele o sustento da casa, que se quiser a coloca na rua e fica com os filhos já que ele é o único que contribui para o sustento da casa.
14. Desde Dezembro de 2013, o arguido acusa a ofendida de se relacionar com uma paneleira, referindo-se a uma colega da ofendida numa formação do centro de emprego que ambas frequentam desde aquela altura.
15. Por várias vezes, de madrugada, entre as 3 e as 5 horas, o arguido deambula pela casa, fazendo barulho com objectos, abrindo e fechando portas, e falando alto, perturbando a ofendida e impedindo-a de descansar.
16. Já chegou a ir vigiá-la e controlá-la ao Centro de Apoio Social de …, local onde a ofendida frequenta a referida formação profissional.
17. O arguido diz à ofendida que ela não faz nada em casa e, de seguida, foi dizer à mãe da mesma que ela só se dava com putas e escumalha, o que fez com que aquela se zangasse com a filha.
18. Nos dias que se seguiram a esse, o arguido acusou sistematicamente a ofendida de se relacionar com outros homens, seus amantes que ela não era uma mulher em condições, que é mandriona e que não faz nada.
19. No dia 18/06/2014, cerca das 5h00, na residência comum, o arguido começou a deambular pela casa, dizendo que a ofendida se ia foder, que andava com o caralho de uma puta e que andava a desafiar a filha de ambos para maus caminhos e a levá-la para casa de uma paneleira. Depois, quando a ofendida estava a sair de casa, disse-lhe que andava com outros homens.
20. No dia 19/06/2014, ao final do dia, na residência comum, o arguido disse à ofendida que ela não olhava para ele, mas andava a olhar para os outros e para as queridas dela. Depois, na presença da ofendida, disse à filha de ambos: "já perguntaste à tua mãe se já veio o abono, vai-se foder, vai pagar metade das contas que eu não do a trabalhar para quem anda a gozar comigo'.
21. No dia 20/06/2014, cerca das 5h00, na residência comum, o arguido disse à ofendida que não andava para se matar a trabalhar e que podiam morrer todos de fome, ao mesmo tempo que fazia barulho para não a deixar descansar.
22. No dia 21/06/2014, o arguido disse à filha que a ofendida andava a ter um caso com uma colega, que vai durar quatro anos e que vai comprar algo para lhe pôr no sumo.
23. No dia 22/06/2014, pela manhã, na residência comum, o arguido disse à ofendida que ela andava com uma puta, que andava embeiçada por ela e que iria durar quatro anos.
24. No dia 23/06/2014, na residência comum, o arguido perguntou à ofendida se tinha ido ao tribunal e o que se estava a passar. Como ela não lhe respondeu o arguido disse-lhe que a punha na rua e que os filhos ficavam com ele, bem como que ela andava metida com uma paneleira e que não é educação para os filhos.
25. Na semana de 21 a 29/06/2014, aquando da Feira …, que decorre anualmente em Anadia, o arguido seguiu por diversas vezes a ofendida pelo recinto da feira, dirigindo-lhe olhares intimidatórios e chegando a dizer à filha de ambos, numa dessas ocasiões: ''aproveita que é a última vez que sais com a tua mãe".
26. Entre o final de Julho e meados de Agosto de 2014, o arguido disse várias vezes à ofendida, depois de ter entregue as armas de que é proprietário no âmbito destes autos, a 10/07/2014 que, se até 15 de Agosto não tivesse as armas, podia ir preso mas ela não ficava cá.
27. E também a continua a acusar a ofendida de se relacionar com uma paneleira e com outros homens, de ser uma malandra, e diz-lhe que qualquer dia vai ali para cima, referindo-se ao cemitério e que vai rebentar com o carro.
28. Por causa de todas essas condutas do arguido, a ofendida sofreu várias depressões.
29. Ao actuar da forma e nas situações descritas, actuou o arguido com o propósito reiterado, de maltratar física e psicologicamente a sua mulher, no domicílio comum e na presença dos seus filhos menores, dessa forma violando os deveres de respeito e solidariedade que sabia lhe incumbirem como seu cônjuge, querendo agir da forma por que o fez.
30. Sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal
Mais se provou que:
31. O arguido encontra-se desempregado, auferindo rendimento mensal de cerca de € 405,00.
32. Actualmente vive em casa dos pais, dormindo no chão, dado que a casa não dispõe de condições para o acolher.
33. Na comunidade é reconhecido como trabalhador, respeitador, honesto e pacato.
34. O arguido tem por habilitações literárias o 4.° ano de escolaridade.
35. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.
*
2. Factos não provados
- a situação descrita em 3. Ocorreu na presença de vários familiares do arguido, tendo este a elevado do solo e tendo a ofendida embatido num conjunto de porcelana, que se partiu.
- o arguido dava pontapés à ofendida.
- Nas ocasiões relatadas em 5. o arguido também chamava porca, malandra e puta à ofendida e acusava-a de se relacionar com outros homens, dizendo-lhe que tinha amantes.
- o relatado em 7. ocorreu no Verão e o arguido puxou os cabelos à ofendida.
- Durante o ano de 1995, o arguido, na residência comum, disse à ofendida que a matava quando ela chegasse do trabalho.
- Após o tratamento o arguido dizia à ofendida que ela não queria trabalhar e só queria estar em casa.
- O arguido acusava a ofendida de deixar entrar homens em casa na sua ausência.
- o arguido diz à ofendida que lhe tira o carro e o telemóvel, bem como que tem pessoas a vigiá-la e a tirar fotografias e que sabe todos os passos que dá.
- o relatado em 14. ocorre desde Setembro de 2013.
- na ocasião referida em 15. O arguido liga e desliga interruptores e aparelhos eléctricos
- o descrito em 16. ocorreu à hora do almoço, no final de Maio de 2014.
- o descrito em 17. ocorreu no dia 24/05/2014.
- No dia 3/06/2014, cerca das 5h00, o arguido abriu as janelas da residência e começou a falar alto, dizendo que a ofendida tinha amantes, que lhe quer roubar a casa que é dele, que lhe vai tirar o telemóvel, partir-lhe o carro e tirar-lhe as rodas.
- No dia 1/06/2014, na residência comum, o arguido voltou a acusar a ofendida de ter amantes e a dizer-lhe que tinha pessoas a vigiá-la para saber com quem ela andava e já tinha fotografias dela com outras pessoas, que iria tirar a limpo que coisas lá de casa é que a mesma andava a vender.
- No dia 13/06/2014, o arguido, durante a noite, andava pela residência, falando, fazendo barulho e impedindo a ofendida de dormir. Nessa ocasião, o arguido disse à ofendida que ela só queria o carro para andar com as amigas e que andava a roubar os filhos gastando o abono de família dos mesmos.
- na ocasião referida em 19, o arguido chamou puta à ofendida;
- na ocasião referida em 26., o arguido disse à ofendida que que ela se vai foder e que vai pagar por isso".
- Chama-a de mentirosa, falsa, malandra de merda, porca e diz-lhe que a quer fora de casa.
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3. Motivação:
Nos termos do disposto no artigo 374.° n.° 2 do Código de Processo Penal, deve o Tribunal indicar as provas que serviram para formar a sua convicção e bem ainda proceder ao exame crítico das mesmas.
A resposta dada à matéria de facto dos autos resultou do cotejo de todos os meios de prova produzidos e carreados em sede da audiência de julgamento e conjugados à luz das regras da experiência comum.
Nos termos do disposto no artigo 127.° do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente.
Questionado sobre os factos constantes da acusação o arguido o mesmo negou, na sua essencialidade o teor dos mesmos, refutando as acusações de agressão e os insultos. Assumiu, no entanto, a existência de uma relação conjugal conturbada, em que frequentemente eram trocadas "bocas e berros" entre o casal, tendo por base as desconfianças quanto à fidelidade da mulher e o facto desta, que não trabalha, não lhe preparar as refeições. Referiu que as discussões se tornaram mais frequentes há cerca de dois anos, e apenas assumiu apelidar a mulher de malandra, por esta não tratar da casa.
O arguido colocou a tónica do seu discurso num discurso vitimizador e desculpabilizante, centrando a causa das discussões e mau-estar entre o casal no comportamento assumido pela mulher, enquanto dona de casa, referindo ser o único que trabalha e a mesma não cumprir com as suas obrigações.
O arguido apresentou uma linguagem simples e demonstrou, em sede das suas declarações, uma postura cultural de pré-conceito tradicional face à estrutural familiar e aos papeis assumidos por cada um das partes na vida conjugal.
Em contraponto das declarações prestadas pelo arguido, valorou este Tribunal de forma positiva, as declarações prestadas pela ofendida, C…, que apresentou ao tribunal um discurso visivelmente sofrido e condoído, relatando a este Tribunal, em suma, e na sua essencialidade de forma espontânea, toda a factualidade que resultou como provada, sendo que quanto à factualidade dada como não provada a não confirmou.
Verificou este Tribunal a forma espontânea como depôs, sem se verificar qualquer sentimento de vingança face ao arguido, mas mágoa e desilusão, razão pela qual mereceu credibilidade por parte deste Tribunal.
Verificamos que o relato impressivo dos episódios da vida em comum foi acompanhado de um enquadramento motivacional crível e apenas não cabalmente pormenorizado temporalmente, facto inteiramente compreensível atentos os sucessivos factos ocorridos e descritos, sobretudo nos últimos três anos.
Descreveu a sua vivência em comum com o arguido desde a data do casamento até à actualidade, descrevendo os comportamentos assumidos antes e depois do tratamento ao álcool, efectuado pelo arguido, situando as agressões nos primeiros anos de casamento, antes do tratamento, e a injúria, coacção, pressão psicológica e ameaças mais frequentes nos últimos anos, de forma intensa e reiterada, no inteiro da casa comum e, por vezes, na presença dos filhos menores.
Referiu, de forma convincente a este Tribunal, que tomou maior consciência do problema e da gravidade dos comportamentos assumidos pelo marido, após assistir a uma palestra sobre violência doméstica, esclarecendo que, após se ter dirigido à GNR para apresentar queixa e referindo aos militares a vivência diária de persistente mau- trato, foi aconselhada pelos mesmos a registar as ocorrências vivenciadas.
Porquanto se afigura crível tal justificação, valorou este Tribunal, em complemento das declarações prestadas pela ofendida o teor dos escritos pessoais juntos pela mesma aos autos, com descrição pormenorizada das ocorrências vividas, os quais a mesma confirmou e, em parte, relatou de forma directa e espontânea, sem recurso à sua exibição.
Mais esclareceu que, nos últimos tempos relatou a sua vivência familiar a colega da formação, da qual se aproximou e se tornou sua confidente, facto que o arguido rejeitava, insultando aquela de "paneleira" e sugerindo uma relação entre as duas.
Mais referiu que se sentiu ao longo dos anos não valorizada, razão pela qual desenvolveu uma depressão.
Os filhos menores comuns do casal, no exercício de um direito que lhes assiste, declararam não pretender prestar declarações a este Tribunal.
Verificou este Tribunal ser patente a diferença de discursos entre o arguido e a ofendida, o primeiro mais simples, o desta mais estruturado, demonstrativo da diferença de posicionamento cultural entre os membros do casal, que agudizou o seu relacionamento, facto assumido por ambos, ainda que não se trate de elemento justificador dos comportamentos assumidos pelo arguido.
As testemunhas apresentadas pelo arguido (F…, G…, H…, I… e J…) demonstraram nada conhecer sobre a vivência conjugal do casal, assumindo opiniões baseadas em convicções pessoais (que este Tribunal não valora à luz do disposto no artigo 130.° do Código de processo Penal), demonstrativas de alguma animosidade face à ofendida, centrando os seus discursos e a manifestação das suas opiniões na mesma defesa apresentada pelo arguido, referente ao facto de o arguido trabalhar fora de casa e a ofendida não.
No que concerne à descrição oferecida do arguido, do seu comportamento profissional e social, mereceram tais depoimentos credibilidade porquanto não surgiram infirmados por qualquer outro meio de prova produzido em sede de audiência de julgamento.
Mais atendeu este Tribunal ao acervo pericial e documental junto aos autos, mormente:
- certidões de assento de nascimento, de fls. 8 a 13, que sustenta os factos dados como provados em 1. e 2;
- escritos de fls. 20 a 23, 34 a 37, 44 a 51, 79 e seguintes;
- informação policial quanto às armas detidas pelo arguido de fls. 19;
- termo de recebimento de armas de fls. 67 e 241;
- auto de apreensão de fls. 242
- auto de exame directo e avaliação de fls. 73 a 78, 243 a 253; respeitante às armas detidas e apreendidas ao arguido;
No que concerne aos antecedentes criminais do arguido teve o tribunal em consideração e valoração o teor do certificado criminal juntos aos autos, do qual nada consta.
O arguido depôs de forma crível sobre a sua condição económica e social.»
Apreciação
De harmonia com o disposto no art.412.º, n.º1, do C.P.Penal, o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, as quais devem ser proposições claras e sintéticas, resumindo as razões do pedido.
No caso vertente, o recorrente não fez qualquer esforço de síntese, sendo as conclusões a quase reprodução da motivação. Só não se ordena o cumprimento do disposto no art.417.º, n.º3, do C.P.Penal, porquanto não obstante a prolixidade das conclusões, é possível a identificação das questões que o recorrente pretende ver apreciadas pelo tribunal de recurso.
As questões suscitadas são as seguintes:
- correção da sentença,
- prescrição do procedimento criminal quanto aos factos alegadamente ocorridos até 26 de Maio de 1994,
-valoração de prova proibida,
-erro de julgamento,
-errada subsunção jurídica dos factos,
-medida da pena,
- suspensão da execução mediante regime de prova,
-pena acessória

Correção da sentença
O recorrente veio invocar lapso de escrita constante da sentença ao fazer-se referência na fundamentação da matéria de facto que o tribunal considerou o teor do relatório social junto aos autos, a fls.304 a 307, quando é certo que não há qualquer relatório social nos autos.
Considerando que o tribunal recorrido, a fls.415 a 416, já procedeu à requerida correção da sentença, eliminando o segmento «e mais considerou este Tribunal o teor do relatório social junto aos autos, a fls.304 a 307», a questão já se mostra decidida, nada havendo a ordenar quanto à mesma.
Apreciemos agora, por uma razão de precedência lógica, a questão da valoração da prova proibida.
Na tese recursiva o tribunal a quo recorreu à valoração de prova proibida ao tomar em conta, na formação da sua convicção, os escritos de fls.20 a 23, 34 a 37, 44 a 51 e 79 a 96, os quais não foram apreciados em audiência de julgamento.
A questão traduz-se em saber se o tribunal a quo podia valorar, para efeitos de formação da convicção, os escritos pessoais da ofendida e que esta juntou aos autos em fase de inquérito, em que relata pormenorizadamente grande parte dos factos imputados ao arguido na acusação e pelos quais foi julgado.
Na verdade, na fundamentação da matéria de facto, costa da sentença recorrida «(…) valorou este tribunal, em complemento das declarações prestadas pela ofendida o teor dos escritos pessoais juntos pela mesma aos autos, com descrição pormenorizada das ocorrências vividas, os quais a mesma confirmou e, em parte, relatou de forma directa e espontânea, sem recurso à sua exibição».
Será de valorar como «documental» a prova traduzida em declarações escritas da ofendida?
Pese embora a acusação tenha indicado os escritos como prova documental, incorreu num equívoco, pois tais escritos são meras «declarações documentadas» da ofendida. No fundo traduzem-se em declarações da ofendida, que as reduziu a escrito e juntou aos autos.
Ora, as declarações prestadas para serem atendidas têm de ser lidas na audiência de julgamento, face ao disposto nos arts.356.º 357.º do C.P.Penal.
Conforme refere Damião da Cunha[1] «parece adquirido genericamente que, num processo de estrutura acusatória, a audiência de julgamento e em especial a produção da prova assume o lugar central no processo penal. A produção da prova que deve servir para fundamentar a convicção do julgador, tem de ser realizada na audiência e segundo os princípios naturais de um processo de estrutura acusatória: os princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção da prova»
No mesmo sentido se pronunciou Germano Marques da Silva: «O modelo consagrado no Código de Processo Penal de 1987 é o acusatório que implica a participação de todos os sujeitos processuais na constituição da prova que há-de servir para a decisão. A ciência do juiz de julgamento deve ser comum aos demais sujeitos processuais e comuns as fontes onde colhe esse conhecimento. Ora, o melhor método técnico para assegurar esta participação é o contraditório em audiência. A admissão da prova recolhida em modo inquisitório, ainda que submetida posteriormente a apreciação contraditória, representa um desequilíbrio entre a acusação e a defesa, em prejuízo da defesa. Acresce que o juiz deve decidir sob a impressão de quanto viu e ouviu e daí a necessidade de que a prova seja produzida oralmente em audiência, ressalvadas as excepções em que tal seja de todo impossível»[2].
É esta a solução consagrada no n.º1 do art.355.º do C.P.Penal, o qual dispõe «Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência».
Se a prova não foi produzida ou examinada em audiência não pode valer para o efeito da formação da convicção do julgador nem deve ser invocada na fundamentação da sentença.
O n.º 2 do artigo 355.º ressalva, porém, diversas exceções àquela regra, as quais são depois enunciadas nos artigos 356.º e 357.º.
No caso dos autos, foram valoradas as declarações escritas da ofendida e que a mesma juntou aos autos, em que faz um relato pormenorizado das várias situações ocorridas. É certo que a ofendida foi ouvida em audiência de julgamento e até confrontada com alguns dos escritos, concretamente os de fls.20 a 23 e 30 a 37, conforme ata de fls.285 a 289, mas da fundamentação resulta que a ofendida não confirmou na íntegra as declarações vertidas nos aludidos escritos, tendo tido o tribunal necessidade de recorrer aos mesmos para complementar a prova produzida pelas declarações prestadas pela ofendida na audiência de julgamento.
Tais escritos mais não são do que depoimentos escritos prestados por iniciativa própria da ofendida, pelo que o tribunal valorou prova fora do âmbito das exceções prevista no art.356.º. Na verdade, uma vez que estes depoimentos não foram prestados perante autoridade judiciária ou órgão de policia criminal, nunca seria possível a sua leitura em audiência de julgamento.
Ocorre violação do disposto no art.355.º do C.P.Penal, ou seja, valorou-se um meio de prova que a lei não permite. Como defende Costa Andrade[3], o direito português associou as proibições de prova à figura e regime de nulidades, o que significa que, nos termos do art. 122º do C.P.P, tornam inválido o ato em que se verificarem bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar.[4]
Segundo a jurisprudência dominante, a nulidade da valoração de provas proibidas é uma nulidade insanável.[5]
De salientar que não se trata da nulidade da sentença prevista na parte final da al.c) do n.º1 do art.379.ºdo C.P.Penal, como defende o Ministério Público junto da 1ªinstância, uma vez que não é um caso em que o tribunal se tenha pronunciado sobre uma questão de que não pudesse conhecer mas antes da valoração de uma prova proibida.
Uma vez que a decisão condenatória valorou os escritos e eles não são suscetíveis de serem cindidos da demais prova em que se alicerçou aquela decisão, a referida nulidade implica, também, a repetição do julgamento.[6]
Face à nulidade da sentença e à necessidade de repetição do julgamento, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso parcialmente procedente e em consequência declarar nula a sentença recorrida, bem como o julgamento, que deve ser repetido, se possível, pelo mesmo juiz.
Sem custas.
[texto elaborado pela relatora e reviso por ambas as signatárias]

Porto, 17/6/2015
Maria Luísa Arantes
Ana Bacelar
____________
[1] «O regime processual de leitura de declarações na audiência de julgamento (arts. 356.º e 357.º do CPP), Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 7, fasc. 3, Julho-Setembro 1997, pág. 405,
[2] Produção e Valoração da Prova em Processo Penal, Revista do CEJ, 1º trimestre 2006, número 4 (número especial), pág. 42
[3] «Sobre as proibições de prova em processo penal», Coimbra Editora 1992, pág.313
[4] No mesmo sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol II, 3ºed., cit. págs. 125-126 Francisco Marcolino de Jesus, Os meios de Obtenção da Prova em Processo Penal, Coimbra 2011, Almedina, págs. 93-94.
[5] Ac.R.Porto de 4/7/2001, relatado pela Desembargadora Conceição Gomes, Coletânea de Jurisprudência, ano XXVI, tomo 4, pág. 222 e de 1/2/2012, proc. n.º 632/08.9TBVFR.P1, relatado pelo Desembargador João Abrunhosa.
[6] cfr., neste sentido, «Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto», Código de Processo Penal - Comentários e notas práticas, pág. 890