Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0345071
Nº Convencional: JTRP00036804
Relator: DOMINGOS MORAIS
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
ACORDO INTERNACIONAL
EFICÁCIA
Nº do Documento: RP200401190345071
Data do Acordão: 01/19/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T TRAB GONDOMAR
Processo no Tribunal Recorrido: 166/03
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - Salvo se for outra a solução estabelecida em convenções internacionais, não podem ser invocadas perante os tribunais portugueses os pactos ou cláusulas que lhe retirem competência internacional atribuída ou reconhecida pela lei portuguesa.
II - As convenções internacionais só vigoram na ordem interna portuguesa depois de regularmente aprovadas ou ratificadas e oficialmente publicadas.
III - O Protocolo de Acordo sobre o Empreendimento de Cahora Bassa celebrado entre o Estado Português e a Frelimo, em 14 de Abril de 1975, é ineficaz na ordem interna portuguesa, por não ter sido oficialmente publicado.
IV - Por essa razão, o pacto privativo de jurisdição que no artigo 12 do seu Anexo I retira competência aos tribunais portugueses para julgar as acções emergentes de contratos de trabalho celebrados ao abrigo daquele Protocolo de Acordo é ineficaz.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:


I - ANTÓNIO... propôs no Tribunal do Trabalho de Gondomar a presente acção declarativa de condenação emergente de contrato individual de trabalho contra
HCB..., SARL, alegando o que consta da sua petição inicial, nomeadamente, qual a natureza do contrato de trabalho que o liga à ré, a ilicitude da cessação desse contrato e pedindo a sua condenação em conformidade.
A ré contestou, por excepção e por impugnação. Por excepção invocou o artigo 12.° do Anexo I do Protocolo de Acordo, celebrado em 14.4.1975, em Lourenço Marques, entre o Estado Português e a FRELIMO, para concluir pela incompetência absoluta dos tribunais portugueses para conhecer do mérito da causa.
Por decisão proferida pelo Mmo Juiz da 1.ª instância, a fls. 276-278 dos autos, foi julgada improcedente a arguida excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal de Trabalho de Gondomar.
Por não se conformar com essa decisão, a ré interpôs o presente recurso de agravo, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
1.- O Protocolo de Acordo sobre o Empreendimento de Cahora Bassa, assinado em Lourenço Marques no dia 14 de Abril de 1975, entre o Estado Português e a FRELIMO, é um acordo em forma simplificada, que vincula internacionalmente o Estado Português, de acordo com o sistema de recepção plena do direito das gentes então em vigor, desde a respectiva assinatura pelo Governo, não estando sujeito a ratificação.
3.- A publicação do referido Protocolo e seus Anexos, não é condição para o mesmo vigorar na ordem interna portuguesa.
4.- O Protocolo de Acordo foi objecto de concretização legislativa, entre outros, pelo DL n.º 276-B/75, de 4 de Junho, onde, para além da referência expressa à vinculação do Estado português, são regulamentados alguns aspectos relacionados com a execução do mesmo.
5.- Pelo que, é indiscutível que o mesmo vigora na ordem jurídica interna portuguesa, enquanto norma de direito internacional constante do tratado, com um valor supra legal.
6.- Assim sendo, encontrando-se o Estado Português vinculado internacionalmente às normas do Protocolo, é, no mínimo, paradoxal, que as mesmas normas não tenham eficácia na ordem jurídica interna portuguesa.
7.- Tendo em consideração que o artigo 12.º do Anexo I do Protocolo de Acordo sobre o Empreendimento de Cahora Bassa, consubstancia um pacto privativo de jurisdição exclusiva, os tribunais portugueses são incompetentes para julgar uma acção resultante de um contrato de trabalho celebrado ao abrigo do mesmo, entre o então A. - que prestou o seu trabalho na sede da recorrente em Moçambique - e a então R. - com sede no Songo, Moçambique -, porque, enquanto, norma de Direito Internacional convencional que é, prevalece sobre as normas portuguesas internas ordinárias, contrárias ao seu teor, no caso em apreço, o disposto no artigo 99.°, n.° 2, al. c) e artigo 65.ºA, al. c), ambos do C.P.C. e 10.º e 11° do C.P.T.
8.- Razão pela qual, a douta sentença recorrida, ao não atender ao estipulado no Protocolo, violou o disposto no artigo 8.°, n.° 2 da C.R.P.

O autor contra-alegou, defendendo a manutenção do decidido.
O Mmo Juiz sustentou o despacho agravado.
O Digno Magistrado do M.º Público, junto desta Relação, pronunciou-se pelo improvimento do agravo.
Foram corridos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.

II - O Direito
O assunto em discussão é o saber se o Tribunal do Trabalho de Gondomar é ou não competente internacionalmente para o conhecimento do mérito da presente acção.

Para aquilo que importa considerar no presente recurso de agravo, resulta provado, por acordo das partes e dos documentos juntos aos autos, que:
O autor e a ré celebraram o contrato de trabalho, referido nos autos, ao abrigo do Protocolo de Acordo Sobre o Empreendimento de Cahora Bassa e respectivos anexos;
O referido Acordo e respectivos anexos não foram objecto de publicação no jornal oficial português, isto é, no Diário do Governo ou Diário da República;
O contrato de trabalho contém uma cláusula que atribui a competência ao Tribunal do lugar da prestação da actividade;
O autor reside em Gondomar.

Nos termos do artigo 10.º do Código de Processo do Trabalho - CPT, “Na competência internacional dos tribunais do trabalho estão incluídos os casos em que a acção pode ser proposta em Portugal, segundo as regras de competência territorial estabelecidas neste Código, ou de terem sido praticados em território português, no todo ou em parte, os factos que integram a causa de pedir na acção”.
Ora, sobre as regras de competência territorial, o artigo 14.º n.º 1 do CPT dispõe que “as acções emergentes de contrato de trabalho intentadas por trabalhador contra a entidade patronal podem ser propostas no tribunal do lugar da prestação de trabalho ou do domicílio do autor” (sublinhado nosso).
Por sua vez, o artigo 11.º do mesmo diploma estabelece: “Não podem ser invocados perante tribunais portugueses os pactos ou cláusulas que lhes retirem competência internacional atribuída ou reconhecida pela lei portuguesa, salvo se outra for a solução estabelecida em convenções internacionais”.
Este princípio sobre os pactos privativos de jurisdição foi introduzido no direito processual do trabalho pelo DL n.º 45 497, de 30.12.1963, que aprovou o Código de Processo do Trabalho de 1963 (ver seu artigo 13.º).
A sua justificação assenta no facto das normas que fixam a competência internacional dos tribunais do trabalho portugueses serem de interesse e ordem pública, na medida em que determinam o campo dentro do qual a jurisdição portuguesa do trabalho, em conflito com a de outros Estados, se move soberanamente. Sendo regras de interesse e ordem pública, escapam ao domínio da vontade das partes.
Deste modo, é inválida a cláusula inserta no contrato de trabalho, celebrado entre o autor e a ré, que confere competência ao Tribunal do lugar da prestação da actividade (Moçambique) para a interpretação e aplicação desse mesmo contrato.

A ressalva, prevista na parte final do citado artigo 11.º, decorre do primado do direito internacional convencional sobre o direito interno português.
A ré argumenta que o artigo 12.º do Anexo I do Protocolo de Acordo sobre o Empreendimento de Cahora Bassa consubstancia um pacto privativo de jurisdição exclusiva e os tribunais portugueses seriam incompetentes para julgar uma acção resultante de um contrato de trabalho celebrado ao abrigo do mesmo, porque, enquanto, norma de Direito Internacional convencional que é, prevalece sobre as normas portuguesas internas ordinárias, contrárias ao seu teor.
A argumentação da ré suscita as seguintes questões: saber se o Protocolo de Acordo é uma convenção internacional e qual a sua recepção e seus efeitos no direito português.
A jurisprudência portuguesa já se pronunciou sobre estas mesmas questões, através do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Junho de 2000, publicado na CJ/STJ, Ano VIII, II, 2000, págs. 279 e ss..
Sobre a primeira questão, diremos, apenas, em consonância com o citado Acórdão do STJ, que o “Protocolo de Acordo” é uma convenção internacional, que corresponde à figura de “tratado em forma simplificada”, citando a expressão utilizada por Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, 2.ª ed., 1.º v., pág. 92.
Quanto à recepção automática do direito internacional público (DIP) pelo direito português, dispõe o artigo 8.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa - CRP: "As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificados ou aprovados vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português".
Nestes termos, para que a convenção vigore no direito interno, a CRP exige que a mesma tenha sido regularmente ratificada ou aprovada (de acordo com as regras constitucionais) e tenha sido oficialmente publicada (no Diário da República).
O regime de recepção automática das normas de DIP, com estas duas condicionantes cumulativas, já vigorava à data da assinatura do Protocolo de Acordo em causa.
Aquando da assinatura desse Protocolo, em 14.04.1975, ainda vigorava a Constituição de 1933, por força do artigo 1.°, n.º 1, da Lei n.º 3/74, de 14.05, que no artigo 4.º, § 1.º, estabelecia: "As normas de direito internacional vinculativas do Estado Português vigoram na ordem interna desde que constem de tratado ou acto aprovado pela Assembleia Nacional ou pelo Governo e cujo texto seja devidamente publicado" (sublinhado nosso).
As expressões “convenções internacionais” ou “normas de direito internacional” abrangem tanto os tratados solenes como os acordos ou tratados em forma simplificada.
Deste modo, basta que não se tenha verificado um dos requisitos enunciados (aprovação/ratificação ou publicidade), para que as normas de DIP não vigorem na ordem interna portuguesa.

A ré argumenta que a publicação do referido Protocolo e seus Anexos, não é condição para o mesmo vigorar na ordem interna portuguesa, dado que foi objecto de concretização legislativa pelo DL n.º 276-B/75, de 4 de Junho.
A este propósito transcrevemos a seguinte passagem do referido Acórdão do STJ: “As alusões que aí (no DL n.º 276-B/75) são feitas ao Protocolo, ou são fórmulas vagas e de mera referência, ou focam aspectos específicos e parcelares que não concretizam minimamente o seu conteúdo global. De resto, a tese da concretização legislativa, como sucedâneo ou substitutiva da publicação, só seria relevante se o diploma legal contivesse o texto da convenção, já que só assim daria satisfação às razões que estão na base da exigência da publicação. É que estas razões não se bastam com a notícia da existência e da aprovação da convenção, nem sequer com a descrição sumária do seu conteúdo e antes reclamar a exibição do seu texto completo para divulgação e exame pelos interessados.
Nada disto obtém satisfação no diploma citado, pelo que, nem por essa via, se pode dizer que a falta de publicação do Protocolo de Acordo não determina a sua ineficácia jurídica, nos termos do artigo 119.°, n.º 2 da Constituição da República”.
Na verdade, o âmbito do artigo 119.º da CRP não se circunscreve ao problema da publicação dos actos normativos ou das convenções internacionais, quer na forma de tratados solenes ou de acordos em forma simplificada.
Se atentarmos na epígrafe do artigo 119.º e no seu n.º 3, verificamos que o que se pretende é dar publicidade aos actos previstos no n.º 1, conceito mais amplo que o de publicação.
E, por isso, a exigência (“texto devidamente publicado” – artigo 4.º, § 1.º CRP de 1933 - e “publicação oficial” - artigo 8.º, n.º 2 da CRP) dessa publicidade através do jornal oficial: Diário do Governo ou Diário da República (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra citada, 2.º vol., pág. 89).
Assim, a falta de publicidade no “jornal oficial”, do Protocolo de Acordo em referência, determina a sua ineficácia na ordem jurídica portuguesa – artigo 119.º, n.º 2 da CRP.

III - Decisão
Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o agravo, confirmando o despacho recorrido.
Custas pela recorrente.

Porto, 19 de Janeiro de 2004
Domingos José de Morais
Manuel Joaquim Sousa Peixoto
João Cipriano da Silva