Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0250621
Nº Convencional: JTRP00034344
Relator: MARQUES PEREIRA
Descritores: SOCIEDADES COMERCIAIS
SUPRIMENTOS
REEMBOLSO
FIXAÇÃO DE PRAZO
ACÇÃO ESPECIAL
TRIBUNAL COMPETENTE
Nº do Documento: RP200205200250621
Data do Acordão: 05/20/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 2 J CIV PORTO
Processo no Tribunal Recorrido: 2283/01-1S
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR JUDIC - ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional: LOTJ99 ART89 N1 C ART94.
CSC86 ART21 ART243 N1 ART245 N1 N2 N3 A B N4 N5 N6.
CCIV66 ART777 N2.
Sumário: Estando em causa o exercício de um direito social - direito de um sócio exigir o reembolso dos suprimentos - a competência para a preparação e julgamento da acção destinada a fixar prazo para o reembolso é dos Tribunais de Comércio, de acordo com o estabelecido no artigo 89 n.1 alínea c) do Decreto-Lei n.3/99, de 13 de Janeiro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Cível do Porto, Maria Rosa... e Silva Sousa... intentou acção especial de fixação judicial de prazo, nos termos do art. 1456 do CPC, contra T... - Clínica de Reabilitação Respiratória, Lda., indicando como adequado um prazo não superior a 30 dias para a Requerida proceder ao reembolso à Requerente da quantia de 1.400.000$00 de suprimentos.
Justificou o seu pedido, dizendo que não tendo sido estipulado prazo para o reembolso, se mostra necessária a sua fixação pelo tribunal, uma vez que a Requerida, apesar de instada, se tem recusado a satisfazer a sua pretensão.
O Ex. m.º Juiz considerou, porém, que estando em causa o exercício de um direito social, a preparação e julgamento da acção é da competência dos Tribunais de Comércio, de acordo com o preceituado no art. 89, n.º 1 al. c) da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
Julgou, por isso, o Tribunal Cível absolutamente incompetente em razão da matéria, absolvendo a Requerida da instância, ao abrigo do disposto nos arts. 101, 105, n.º 1, 288, n.º 1, al. a), 493, n.º 2 e 494, n.º 1 al. a), todos do CPC.
Inconformada, a Requerente recorreu para esta Relação, concluindo deste modo:
1. De acordo com os arts. 211, n.º 1 da CRP, 18, n.º 1 da LOFTJ e 66 do CPC, as causas que não sejam atribuídas a diferentes jurisdições são da competência dos tribunais judiciais.
2. Estipula o art. 67 do CPC que “as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada”.
3. Prescreve a al. a) do n.º 1 do art. 89 da Lei n.º 3/99, de 13/01, que “compete aos tribunais de comércio preparar e julgar: as acções relativas ao exercício de direitos sociais”.
4. Por sua vez, a Secção XVII, do Capítulo XVIII, do CPC (processos de jurisdição voluntária), elenca as acções relativas aos direitos sociais.
5. A acção para a fixação judicial de prazo encontra-se enquadrada na secção X, pelo que o tribunal do comércio não é o competente em razão da matéria para os seus termos.
6. Decorre do supra exposto, que não se encontrando a competência para o julgamento da presente causa atribuída por lei a qualquer outra ordem jurisdicional ou a qualquer tribunal judicial dotado de competência especializada, de acordo com o princípio da competência comum ou residual dos tribunais judiciais, são estes os tribunais competentes para os termos da presente causa.
7. A decisão proferida nos autos violou o disposto nos arts. 66 e 67, ambos do CPC e 18 da Lei n.º 3/99, de 13/01.
Não houve resposta.
Foi proferido despacho de sustentação.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
O problema que se nos depara, neste recurso, consiste em saber qual o tribunal judicial competente para preparar e julgar a acção especial de fixação judicial de prazo, intentada nos termos do art. 1456 do CPC, por se tornar necessário o estabelecimento de um prazo para o reembolso dos suprimentos: o Juízo de competência especializada cível ou o Tribunal de comércio?
São ambos de competência especializada.
Aos juízos de competência especializada cível compete a preparação dos processos de natureza cível não atribuídos a outros tribunais - art. 94 da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais).
A competência dos tribunais de comércio é a fixada no art. 89 da mesma Lei.
Nos termos da al. c) do n.º 1 deste artigo, compete aos tribunais de comércio preparar e julgar:
“As acções relativas ao exercício de direitos sociais”.
No caso sub iuduci, o problema reconduz-se a determinar se estamos ou não perante uma acção respeitante ao “exercício de direitos sociais”.
Considerou-se que sim, na decisão recorrida.
Defende que não a Recorrente, argumentando que a acção de fixação judicial de prazo se encontra regulada na Secção X e não entre as acções relativas ao exercício de direitos sociais elencadas na Secção XVII, ambas do Capítulo XVIII (Dos processos de jurisdição voluntária), do Título IV, do Livro III, do Cód. de Proc. Civil.
Quid iuris?
A nosso ver, o argumento tirado pela Recorrente da sistemática do Cód. de Proc. Civil, do capítulo onde se encontram previstos e regulados os processos de jurisdição voluntária, não procede.
Na verdade, nada nos autoriza a pensar que o legislador, ao estabelecer a competência dos Tribunais de comércio para a preparação e julgamento das “acções relativas ao exercício de direitos sociais”, tivesse querido circunscrever essa competência às acções respeitantes ao exercício de direito sociais elencadas na Secção XVIII, do Capitulo XVIII, do Título IV, do Livro III, do CPC, que não são, manifestamente, todas as que respeitam ao exercício de direitos sociais.[Observa, aliás, Abílio Neto, in Código de Processo Civil Anotado, 16.ª edição, em anotação ao art. 1479, que, entre as acções compreendidas na referida secção XVII, um processo existe, o do art. 1485, que não cai no âmbito de competência dos Tribunais de Comércio.]
Vejamos, então, se o direito que se pretende exercer, na presente acção, deve ser considerado um “direito social”.
A temática dos direitos sociais e da sua classificação tem sido objecto de estudo aprofundado na doutrina.[V., entre outros, Ferrer Correia, Sociedades Comerciais (policopiado), p. 348 e ss.; Brito Correia, Direito Comercial, Sociedades Comerciais, vol. II, 4.ª tiragem, p. 305 e ss.; Pupo Correia, Direito Comercial, 7.ª ed., p. 517; Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. II, Das Sociedades, p. 205 e ss.]
Como refere Paulo Olavo Cunha, “A posição jurídica de cada sócio não se traduz unicamente em direitos sobre o património social; trata-se de uma situação (recheada de direitos, deveres, ónus, expectativas jurídicas) ou posição complexa (que resulta da sua participação, do regime legal do tipo de sociedade e das cláusulas que subscreveu) perante a pessoa jurídica societária”.[Breve Nota sobre os Direitos dos Sócios (das sociedades de responsabilidade limitada) no âmbito do Código das Sociedades Comerciais, in Novas Perspectivas do Direito Comercial, p. 230 e ss.]
Situando-nos nos direitos dos sócios perante a sociedade, há uma distinção fundamental a fazer, entre, de um lado, os direitos extracorporativos ou extra-sociais e, de outro, os corporativos ou sociais.
Em termos genéricos, os primeiros são os direitos de que os sócios são titulares independentemente da qualidade de sócios, como terceiros face à relação jurídica social.
Os segundos são os que têm por pressuposto a qualidade de sócio. Dividem-se, por sua vez, em direitos gerais ou comuns e direitos especiais.
Na categoria dos direitos sociais, cabem os indicados no art. 21 do Cód. das Soc. Com. (sob a epígrafe “Direitos dos sócios”), que se podem considerar como direitos principais ou essenciais dos sócios: direito aos lucros; direito a participar nas deliberações dos sócios; direito a informação sobre a vida da sociedade; direito de ser nomeado para os órgãos sociais.
Mas, na mesma categoria, se incluem outros direitos, tais como: direitos de acção judicial de sócio (v.g., direito de impugnação de deliberações anuláveis - art. 59 -, direito de requerer inquérito judicial por falta de apresentação das contas - art. 67 -, direito de propor acção social de responsabilidade contra membros da administração - art. 77), direito de preferência nos aumentos de capital por novas entradas em dinheiro (nas sociedades por quotas e anónimas - arts. 266, 458 e ss.), direito de exoneração em certas circunstâncias (v.g., art. 3, 6, 137, 161, n.º 5), direito à quota de liquidação (art. 156).[v. Coutinho de Abreu, obra citada, p. 205.]
Isto dito.
A definição de contrato de suprimento é a que se encontra no art. 243, n.º 1 do CSC:
“1. Considera-se contrato de suprimento o contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo carácter de permanência”.
Seguindo Pupo Correia, [Obra citada, p. 514.] temos que o tipo negocial em apreço contém as características básicas da definição do contrato de mútuo (art. 1142 do CC), sendo, portanto, um contrato real quoad constitutionem, mas que assume algumas características próprias, a saber:
A formação do contrato pode ocorrer de três modos distintos:
- entrega (empréstimo com intenção de receber a restituição) do sócio à sociedade;
- diferimento do vencimento de créditos do sócio sobre a sociedade;
- aquisição pelo sócio de um crédito de terceiro sobre a sociedade, com vencimento diferido, por negócio entre vivos.
Ser a relação contratual estabelecida entre o sócio e a sociedade.
O carácter de permanência do crédito, que consiste na sua duração por mais de um ano, através de: ou a estipulação de um prazo de reembolso superior a um ano, simultânea ou posterior à constituição do crédito (n.º 2 do art. 243); ou a não utilização da faculdade de exigir o reembolso do crédito à sociedade durante pelo menos um ano a contar da constituição do crédito (n.º 3 do mesmo artigo).
Sobre o regime do contrato de suprimento, rege o art. 245 do CSC:
“1. Não tendo sido estipulado prazo para o reembolso dos suprimentos, é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 777 do Código Civil; na fixação do prazo, o tribunal terá, porém, em conta as consequências que o reembolso acarretará para a sociedade, podendo, designadamente, determinar que o pagamento seja fraccionado em certo número de prestações.
2. Os credores por suprimentos não podem requerer, por esses créditos, a falência da sociedade. Todavia, a concordata concluída no processo de falência produz efeitos a favor dos credores de suprimentos e contra eles.
3. Decretada a falência ou dissolvida por qualquer causa a sociedade:
Os suprimentos só podem ser reembolsados aos seus credores depois de inteiramente satisfeitas as dívidas daquela para com terceiros;
Não é admissível compensação de créditos da sociedade com créditos de suprimentos.
4. A prioridade de reembolso de créditos de terceiros estabelecida na alínea a) do número anterior pode ser estipulada em concordata concluída no processo de falência da sociedade.
5. O reembolso se suprimentos efectuado no ano anterior à sentença declaratória da falência é resolúvel nos termos dos artigos 1200, 1203 e 1204 do Código de Processo Civil.
6. São nulas as garantias reais prestadas pela sociedade relativas a obrigações de reembolso de suprimentos e extinguem-se as de outras obrigações, quando estas ficarem sujeitas ao regime de suprimentos”.
Como escreve João Aveiro Pereira, [O Contrato de Suprimento, 2.ª edição, p. 135.] em síntese conclusiva, acerca do regime do contrato se suprimento:
“No regime do contrato de suprimento previsto no artigo 245 avultam principalmente as limitações ao direito de reembolso dos créditos de suprimentos, em primeiro lugar, para salvaguardar os interesses dos restantes credores sociais e, em segundo lugar, para assegurar uma certa estabilidade no gozo desses dinheiros ou coisas fungíveis por parte da sociedade. Desde logo, não tendo sido estipulado prazo para o reembolso dos suprimentos a lei exclui a aplicação da regra geral de interpelação para o vencimento das obrigações puras, prevista no artigo 777, n.º 1 do CC. Ao invés, aplica-se o n.º 2, do mesmo artigo, ex vi artigo 245, n.º 1, cabendo assim ao tribunal fixar o prazo, ponderadas as consequências que o reembolso acarretará para a sociedade, e determinar inclusive que o pagamento seja fraccionado em prestações.
No caso de falência ou dissolução da sociedade três limitações se impõem ao direito dos sócios sobre os suprimentos. A primeira impede o reembolso antes que todos os outros credores sociais tenham visto satisfeitos os seus créditos. A segunda veda a possibilidade de compensação de créditos de suprimentos com créditos da sociedade sobre o sócio. Por força da terceira limitação tornam-se resolúveis os reembolsos de suprimentos que tenham sido efectuados no ano anterior à declaração de falência, nos termos dos artigos 1200, 1203 e 1204 do CPC, actualmente, revogados e substituídos, respectivamente, pelos artigos 156, 159 e 160 do CPEREF”.
Ora, em face das características e regime próprio do contrato de suprimento, parece-nos inegável que o direito de exigir o reembolso dos suprimentos, em prazo a ser fixado pelo tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 245, n.º 1 do CSC e 777, n.º 2 do CC, constitui um direito “sui generis”, resultante da posição que o sócio ocupa na sociedade, enquanto sócio, ou seja, deve ser considerado um direito social.
Fica, deste modo, resolvido o problema posto: estando em causa o exercício de um direito social, a competência para a preparação e julgamento da presente acção é da competência dos Tribunal de comércio, de acordo com o estabelecido no art. 89, n. 1 al. c) da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, tal como se considerou na decisão recorrida.
Decisão:
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juizes desta Relação em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela agravante.
Porto, 20 de Maio de 2002.
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira
Manuel José Caimoto Jácome
Carlos Alberto Macedo Domingues