Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
564/07.8PAVCD.P1
Nº Convencional: JTRP00042858
Relator: JORGE JACOB
Descritores: IN DUBIO PRO REO
INJÚRIA
Nº do Documento: RP20090909564/07.8PAVCD.P1
Data do Acordão: 09/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO - LIVRO 386 - FLS 57.
Área Temática: .
Sumário: I - O princípio in dúbio pro reo, princípio relativo à prova, implica que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal.
II - Reduzida a prova em audiência às declarações do arguido e ao depoimento da testemunha, o facto de as afirmações de um e outro serem opostas entre si, não tem que conduzir a uma “dúvida inequívoca” por força do princípio in dúbio pro reo: as declarações e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, sem outra limitação que não seja a credibilidade que mereçam.
III - As expressões “palhaço” e “camelo”, dirigidas a outrem, constituem uma grosseria, mas não excedem o âmbito da falta de educação nem têm aptidão para ofender a honra e consideração do visado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Tribunal da Relação do Porto
4ª secção (2ª secção criminal)
Proc. nº 564/07.8PAVCD.P1
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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:


I – RELATÓRIO:

Nestes autos de processo comum que correram termos pelo .º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila do Conde, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:
(…)
Face ao exposto, Julgo procedente, por provada, nos termos referidos, a acusação e, consequentemente, decido:
1. Condenar o arguido B………. pela prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo art. 2912, n2 1, al. b), do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de e 6,00 (seis euros), e um crime de injúria, p, e p. pelo art. 181º, nº 1 e 184º, por referência ao art. 132º, nº 2, al. I) do mesmo Código, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de e 6,00 (seis euros);
2. Condenar o arguido B………. pela prática dos crimes acima referidos em 1), na pena única de 210 (duzentos e dez) dias de multa, à taxa diária de e 6,00 (seis) euros, o que perfaz o montante global de e 1.260,00 (mil duzentos e sessenta euros);
3. Condenar o arguido na pena acessória de inibição da faculdade de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses ao abrigo do disposto no art. 69º, al. a) do Código Penal;
3. Notifique, sendo o arguido Inclusive para entregar a carta de condução na secretaria do Tribunal ou em qualquer posto policial (art. 69º nº 3 do C.P. e art. 500º do C.P.P.), sob pena de, não o fazendo, incorrer no crime de desobediência;
4. Condenar ainda o arguido no pagamento das custas e encargos do presente processo, fixando a taxa de justiça em 2 (duas) UC's e a procuradoria no seu mínimo legal, e, bem assim, de 1 % da taxa de justiça aplicada, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 13º nº 3, do Decreto-Lei nº 423/91, de 30 de Outubro e arts. 513º e 514º do C.P.P., e 74º, 82º, 85º, nº 1, al. a), e 95º, nº 1, do CCJ.

Inconformado, o arguido B………. interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:
A) O recorrente não se conforma com a douta sentença proferida nos presentes autos, a qual julgou procedente, por provada, a acusação, condenando-o pela prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de condução perigosa de veiculo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291, nº I, al. b) do Código Penal e um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.°, nº 1 e 184.°, por referência ao artigo 132.°, nº 2, al. i), na pena única de 210 (duzentos e dez) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis) euros, o que perfaz o montante global de € 1.260,00 (mil duzentos e sessenta euros) e na pena acessória de inibição da faculdade de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses, ao abrigo do disposto no artigo 69.°, al. a) do Código Penal.
B) A avaliação dos factos assenta numa prova insuficiente e contraditória entre si.
C) Os elementos probatórios constantes dos autos não permitem ao tribunal concluir, com rigor e segurança, relativamente ao crime de condução perigosa de veiculo rodoviária, que o arguido praticou os factos de que vem acusado, visto que a prova testemunhal assenta apenas nas declarações do ofendido.
D) O arguido negou peremptoriamente os factos que constam da acusação.
E) No que respeita ao facto de o arguido alegadamente não ter parado no sinal de stop, ficou efectivamente provado que nenhuma testemunha, para além do arguido e ofendido, assistiu aos factos que se encontram em discussão, pelo que estamos perante duas declarações indiscutivelmente contraditórias e antagónicas.
F) Exige-se na sentença não só a indicação das provas ou meio das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, mas fundamentalmente, a expressão tanto quanto possível, completa dos motivos de facto que fundamentaram a decisão.
G) Na douta sentença recorrida a Meritíssima Sra. Juíza "a quo" não fundamenta a decisão em elementos que, em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos, pudessem constituir o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal fosse no sentido de condenar o arguido, pois limita-se apenas a considerar provada a materialidade impugnada, sem ser suficientemente explicita quanto às razões do convencimento alcançado, para além de os mesmos serem, notoriamente insuficientes.
H) O recorrente exige saber quais as inequívocas e fundamentadas razões, porque a Meritíssima Sra. Juíza "a quo" não acredita na sua tese, nem a considera credível, e mais importante ainda, porque não foi valorado a seu favor, o facto de ser motorista profissional, com responsabilidade acrescida no cumprimento das regras de trânsito e portanto, tendo todo o interesse em respeitá-las, e não possuir, nem antecedentes criminais, nem qualquer registo de infracções ao código da estrada, conforme se deu como provado no ponto 22 da douta sentença!
1) O recorrente exige saber porque é que o Tribunal "a quo" considerou o depoimento do ofendido C………. sincero, coerente! (no mínimo estranho face aos motivos atrás enunciados) e credível, quando na motivação do presente recurso foram apontadas diversas incongruências, imprecisões e fundamentalmente, contradições nas declarações prestadas em sede de inquérito e em sede de audiência de julgamento!
J) A antítese ofendido I arguido cujos depoimentos foram diametralmente opostos, tinha que levar o Tribunal a formular uma dúvida inequívoca, e por isso fazer funcionar a favor do arguido o principio do "in dubio pro reo", concedendo-lhe o beneficio da dúvida e da presunção de inocência, absolvendo o arguido da prática do crime de condução ilegal de veículo.
K) O recorrente não pode aceitar que o Tribunal "a quo" tenha considerado como provado que aquele "... dirigiu a C………. as expressões "palhaço, camelo, o que é que tu queres", quando ficou efectivamente demonstrado pelas declarações da única testemunha que presenciou os factos em discussão, o Agente D………., que o arguido apenas disse o seguinte: "O Sr. está a mentir, o Sr. é mentiroso", contrariamente ao que referiu o ofendido, o Sr. Agente C………. .
L) No respeitante ao alegado crime de injúria, o recorrente discorda veementemente que se possa considerar as palavras por si proferidas, como intenção de atingir o ofendido na sua honra e consideração, pois, no caso em concreto, apenas manifestou a sua indignação por estar a ser acusado de factos que em nenhum momento praticou e que considera que não ficaram provados.
M) A Jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto, nomeadamente no Acórdão de Junho de 2002, relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Manuel Braz no Recurso nº 332/02 tem entendido que, e passo a citar, "É próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente prejudicada por outra, por exemplo, pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas e agressivas..."
N) Ora, teremos que razoavelmente considerar que o arguido apenas procurou, isso sim, defender a sua honra, consideração e bom nome, que não poderá ser graduada em menor importância em relação ao ofendido, pois sentiu-se injustiçado com as falsas acusações de que foi alvo, e ainda que se possa entender que a expressão utilizada - "mentiroso" possa ter sido excessiva, teremos que aceitar que na situação e circunstâncias em que ocorreram, visaram apenas exprimir a sua revolta e particular indignação por toda essa situação, isto quando se imputa àquele (arguido) factos e expressões que não correspondem minimamente à verdade, por carecerem de insuficiência, incongruências e contradições insanáveis.
O) Desta forma, e analisando todo o conjunto de circunstâncias que envolveram todos os factos descritos, a expressão utilizada não pode ter a conotação e o sentido de injuriosa, pois a mesma fui proferida num quadro de perturbação e de consternação em que arguido se encontrava, pelo que tal expressão não preencherá o elemento volitivo do tipo legal de crime de injúria, pois este preenche-se com a vontade de realização do facto.
P) O tribunal não poderia ter obtido a convicção positiva acerca dos elementos objectivos e subjectivos do tipo, pelo que, à luz do principio "IN DUBIO PRO REO", corolário da presunção da inocência, deveria ter absolvido o arguido dos crimes de que fui acusado.
Q) Pelo supra exposto é por demais evidente a circunstância da douta decisão sob recurso encerrar várias situações de insuficiência de suporte factual relativamente à decisão tomada, erros notórios e contradições insanáveis, qualquer deles, de per si ou em conjunto, impondo a revogação da douta sentença recorrida, ou, entendendo os Meritíssimos Desembargadores a impossibilidade de decidir da causa, a repetição do julgamento na 1ª Instância (artigos 410º nº 2 alíneas a) e c) e 4260 do C.P.P.).
R) A douta sentença recorrida violou o princípio constitucional "IN DUBIO PRO REO", corolário da presunção da inocência.
Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser dado provimento ao presente recurso, absolvendo o Recorrente dos crimes por que foi condenado e por via disso, ser revogada a decisão recorrida, ou, não sendo possível decidir da causa, ordenar a repetição do julgamento em 1ª Instância.

O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se também pela improcedência do recurso.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:
- Impugnação da matéria de facto;
- Insuficiência da motivação;
- Violação do princípio “in dubio pro reo”;
- Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
- Erro notório na apreciação da prova;
- Relevância criminal das expressões proferidas;
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II - FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:
1. No dia 12 de Setembro de 2007, cerca das 13.50 horas, na Rua ………., no sentido Sul/Norte, em Vila do Conde, o ofendido C………., agente da PSP, conduzia o seu veículo automóvel, de matrícula nº ..-..-MF.
2. Na mesma altura, na Rua ………., no sentido Nascente/Poente, o arguido conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula nº ..-..-ZH, de marca e modelo "……….", de cor preta, de sua propriedade.
3. Naquele local a rua referida em 1. forma um cruzamento com a Rua ………., a qual por sua vez junto ao mesmo possui um sinal vertical "STOP".
4. Na altura, o piso encontrava-se seco, estava bom tempo e era dia.
5. Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar supra descritas o arguido entrou com o veículo automóvel por si conduzido naquele cruzamento, sem que tivesse obedecido ao referido sinal, ao não parar, e se certificado nos veículos que circulavam na via referida em 1.
6. De seguida o arguido virou para o seu lado esquerdo a fim de entrar na Rua ………. .
7. Por tal facto e quando o fazia, o condutor do veiculo automóvel referido em 1. para evitar a colisão lateral, no veículo conduzido pelo arguido, efectuou uma travagem brusca, pelo que conseguiu, dessa forma, evitar o acidente, o qual esteve iminente, colocando em perigo a integridade física do C………. .
8. De seguida, o arguido e o C………. imobilizaram os veículos por si conduzidos, pelo que este chamou a atenção do arguido para a manobra que acabara de efectuar.
9. Por tal facto, o arguido dirigiu-se ao ofendido e disse-lhe as seguintes expressões: "palhaço, camelo e o que é que tu queres!".
10. Perante o sucedido o ofendido, o qual trajava à civil, exibiu a carteira profissional de agente da PSP ao arguido e solicitou-lhe para que este se identificasse.
11.Apesar disso, o arguido não se identificou, continuou a sua marcha, pelo que o ofendido lhe moveu perseguição, vindo a interceptá-lo na ………. .
12.Já nesse local o ofendido exibiu-lhe, de novo, a sua carteira profissional, pelo que o arguido continuou a proferir as expressões "palhaço, camelo e o que é que tu queres!" e disse-lhe que: "há uns tempos fodi um GNR, agora vais tu!".
13. Perante a recusa do arguido em se identificar o ofendido chamou ao local um carro de patrulha, o qual ali chegou e na presença do agente da PSP D………., apelidou o ofendido de: "mentiroso!".
14.0 arguido ao praticar as condutas supra referidas, sabia que estava a violar de forma grosseira as regras de circulação rodoviária, ao não respeitar o sinal vertical "STOP", o qual o obrigava a parar, sabendo que punha em perigo a integridade física do outro condutor, tal como colocou.
15. Mais sabia que ao dirigir tais expressões ao ofendido, sabendo que era agente da PSP uma vez que este se identificou e lhe exibiu a sua carteira profissional, para proceder à sua identificação, o arguido quis ofender, como ofendeu, a sua honra, a seriedade, a sua consideração, o bom nome e o seu brio profissional.
16. O arguido ao actuar como o descrito fê-lo, sempre, de forma voluntária, livre e consciente, sabendo que tais condutas lhe estavam vedadas e que as mesmas são proibidas e punidas por lei e, ainda, assim, quis actuar da forma como o fez.
Mais se provou que:
17. O arguido é casado;
18. Encontra-se desempregado há cerca de dois anos, auferindo e 400,00/mês a título de subsídio de desemprego;
19. Reside com a mulher e com os três filhos menores de ambos com 15, 8 e 6 anos de idade;
20. Despende mensalmente a quantia de e 393,00 com o empréstimo para aquisição do veículo automóvel e 500,00 com o empréstimo contraído para aquisição de habitação; 21. Tem a título de habilitações literárias o 6º ano de escolaridade;
22. O arguido não tem antecedentes criminais nem registada qualquer infracção ao código da estrada.

Relativamente ao não provado foi consignado o seguinte:
Com interesse para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos além dos seguintes:
a-) que nas circunstâncias referidas em 9) o arguido sabia que ao dirigir tais expressões ao ofendido, sabia que o ofendido era agente da PSP uma vez que este se identificou e lhe exibiu a sua carteira profissional e que como tal quis ofender, como ofendeu, a sua honra, a seriedade, a sua consideração, o bom nome e o seu brio profissional;
b-) que nas circunstâncias referidas em 12) disse que não se identificava porque o ofendido não estava de serviço.

A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:
Formou-se esta com base na apreciação crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, nos seguintes termos:
- o arguido negou os factos, tendo explicado que apenas chamou mentiroso ao agente C………. em virtude deste lhe ter chamado palhaço e de este se ter lançado sobre o seu pescoço dizendo-lhe que o desfazia;
- tal versão não é contudo credível, atentas as declarações das testemunhas C………., agente da P.S.P. e ofendido, o qual descreveu tudo o que aconteceu e forma como se sentiu, a forma como o arguido conduziu e as expressões contra si dirigidas em conjugação com a reportagem fotográfica de fls. 53 a 58, depondo de forma que se nos afigurou sincera, coerente e credível.
Tal versão foi corroborada em parte e no que respeita à expressão referida em 13) da factualidade apurada pela testemunha D………., agente da P.S.P. que foi chamado ao local tendo presenciado o arguido a chamar mentiroso ao seu colega C………. e depois de este se ter identificado como agente de autoridade mostrando-lhe o documento identificativo. Refira-se que também esta testemunha depôs de forma que se afigurou isenta e credível;
- relativamente às condições sócio-económicas do arguido, nas suas declarações que se afiguraram nesta parte correctas, bem como quanto aos factos sob o ponto 22) no C.R.C. de fls. 116 e registo individual de condutor de fls. 64 e informação de fls. 66
Por último, no que respeita aos factos não provados, tal deveu-se a não ter sido feita prova sobre os mesmos.
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A primeira questão suscitada pelo recorrente prende-se com o erro de julgamento da matéria de facto, sustentando aquele a falta de suporte na prova produzida para os factos que o tribunal recorrido teve como provados.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, suscita, com pertinência, a questão do incumprimento dos pressupostos legais da impugnação da matéria de facto por ausência das indicações obrigatórias nas conclusões, ainda que o sentido da impugnação se possa deduzir com clareza. Na verdade, as conclusões acima transcritas, que servem entre outras finalidades a da delimitação do objecto do recurso [1], operando a vinculação temática do tribunal superior e definindo o âmbito do conhecimento que obrigatoriamente se impõe ao tribunal ad quem, não cumprem as exigências legais relativas à impugnação da matéria de facto. Inútil se revela, no entanto, o convite para correcção, porquanto o vício vem da própria motivação e esta é inalterável, não podendo as conclusões exceder os limites definidos por aquela. Mas mesmo admitindo que em função da simplicidade da matéria de facto em causa é perfeitamente compreensível o âmbito da impugnação, nem assim o recurso relativo à matéria de facto lograria proceder, já que o recorrente não impugna a correcção da matéria provada com base na falta de elementos de prova ou numa valoração absolutamente ilógica da prova produzida, mas sim com base na valoração que ele próprio faz da prova produzida, questionando a livre convicção do tribunal recorrido. No fundo, o que o recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida. O recorrente limita-se a fazer a sua interpretação e valoração pessoal das declarações e depoimentos prestados e da credibilidade que devem merecer uns e outros, exercício que no entanto é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova. Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso - o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir, eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância; não se procura encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso [2]. Acresce que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais” [3], razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum [4]. Com efeito, ao tribunal de recurso cabe apenas “…aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significara que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” [5]
No caso dos autos, a prova produzida oferece-se como coerentemente valorada. Se é certo que o arguido nega ter proferido as expressões que lhe são imputadas, foi desmentido pelas declarações da testemunha C………. e nenhuma prova em sentido contrário foi produzida. Nem se diga, como pretende o recorrente, que as suas declarações tinham que ser aceites como credíveis, com desvalorização do depoimento da testemunha C………. ou, quando muito, que o faço de as afirmações de um e outro serem opostas tinha que conduzir a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo. Não está em causa a igual valoração de declarações ou depoimentos, mas a valoração de cada um dos meios de prova em função da especial credibilidade que mereçam. As declarações e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereçam. Acresce que não só os arguidos não são ajuramentados nem estão sujeitos a um sancionamento decorrente do facto de faltarem à verdade, contrariamente ao que sucede com as testemunhas, como no caso concreto o depoimento da testemunha foi recebido como isento e credível, não tendo o tribunal encontrado razões para o questionar, pelo que também por aí não se vê que tenha sido afrontado o princípio in dubio.
Por outro lado, o arguido ataca a credibilidade do ofendido por este não ter referido em audiência afirmações feitas nas declarações prestadas em sede de inquérito (fls. 154vº). Ora, não só os factos em que se traduziriam tais afirmações não foram incluídos na acusação, como jamais poderiam tais afirmações ser valoradas em audiência fora do condicionalismo previsto no art. 356º do CPP (cfr. art. 355º do mesmo diploma).
Ou seja, e em síntese: a prova foi valorada com razoabilidade, os elementos apontados na sentença como relevantes para a decisão de facto foram coerentemente explanados e foram valorados de acordo com um raciocínio lógico-dedutivo que não fere as regras da experiência comum.

Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal [6]. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal.

Também não se poderá afirmar a verificação de insuficiência de fundamentação, como sustenta o recorrente. Na verdade, “o juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio, que há-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência” [7]. Ora, se há decisões cuja complexidade não prescinde de um detalhado e exaustivo processo de explicitação das conclusões e inferências retiradas da prova produzida pelo tribunal do julgamento, outras há cuja linearidade e simplicidade não colocam particulares exigências de análise crítica, bastando-se com pouco mais do que a indicação dos meios de prova valorados e a sintética indicação das razões que conduziram à sua aceitação. Tal é, aliás, o caso dos autos, resultando claramente da motivação consignada na sentença o modo de formação da convicção do tribunal.

Sustenta ainda o recorrente a verificação dos vícios previstos nas als. a) e c) do nº 2 do art. 410º do CPP, matéria que, de resto, se encontra no âmbito dos poderes de conhecimento oficioso da instância de recurso [8].
Conforme expressamente resulta do texto do nº 2 do citado art. 410º, os vícios referidos nas respectivas alíneas a) a c) apenas se poderão ter por verificados se resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
O primeiro desses vícios é o da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - al. a) -, que se traduz numa insuficiência dos factos provados para a conclusão que deles se extraiu, vício que se verifica quando a solução de direito, seja ela condenatória ou absolutória, não tem suporte seguro nos elementos de facto provados, devendo concluir-se que tais factos não consentem a decisão encontrada [9].
O vício referido na al. b) é o da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. Revela-se através de uma incoerência, evidenciada por uma relação de incompatibilidade ou conflitualidade entre dois ou mais factos ou premissas inconciliáveis, em termos tais que a afirmação de um ou uns implique necessariamente a negação do outro ou outros, e reciprocamente. É o que sucede, por exemplo, quando o mesmo facto é dado como provado e como não provado, quando se consideram assentes factos contraditórios ou quando se verifica uma insanável contradição entre a motivação e a decisão.
A al. c) contempla o erro notório na apreciação da prova, vício que “existe quando, do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta evidente, por não passar despercebido ao comum dos observadores, uma conclusão sobre o significado da prova, contrária àquela a que o tribunal chegou a respeito dos factos relevantes para a decisão de direito” [10].

Revertendo para a decisão recorrida e apreciada esta à luz das considerações que antecedem, não se detecta a verificação de qualquer daqueles vícios. Na verdade, os factos dados como provados constituem suporte bastante para a decisão adoptada, não se vislumbra incompatibilidade entre o provado e o não provado ou entre a fundamentação e a decisão e não é perceptível qualquer erro grosseiro e ostensivo na apreciação da prova.
Assim, não se evidenciando que a sentença padeça de qualquer dos vícios previstos no nº 2 do art. 410º do CPP, a matéria de facto há-de ter-se por definitivamente fixada.

A última questão suscitada é a da relevância criminal das expressões proferidas, com óbvia influência no preenchimento do tipo legal de crime de injúria agravada.
As expressões “palhaço” e “camelo”, dirigidas a outrem, constituem, sem dúvida alguma, uma grosseria, mas não excedem o âmbito da mera falta de educação nem têm aptidão para ofender a honra e consideração do visado. Já o epíteto de “mentiroso”, dirigido a um agente da PSP no exercício das suas funções e por causa desse exercício, é manifestamente ofensivo da honra do visado. Ao dirigir tal expressão ao ofendido, cometeu o ora recorrente o crime de injúria agravada. Tanto basta para que também no que a este aspecto concerne se conclua pela improcedência do recurso.
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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, nega-se provimento ao recurso.
Por ter decaído integralmente no recurso que interpôs pagará o recorrente a taxa de justiça, já reduzida a metade, de 3 UC.
Honorários ao defensor oficioso nos termos da tabela aplicável, a suportar pelo recorrente.
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Porto, 09/09/2009
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob
Artur Manuel da Silva Oliveira

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[1] - Jurisprudência constante dos tribunais superiores.
[2] - No sentido apontado, veja-se o Acórdão desta Relação, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss.
[3] - idem
[4] - Neste sentido, veja-se o Ac. da Relação de Coimbra, de 6/03/2002, CJ, ano XXVII, 2º, pág. 44.
[5] - Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253.
[6] - Cfr. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, pág. 213.
[7] - Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol II, pags. 126 e 127.
[8] - Cfr. o Ac. do STJ de 19/10/95, publicado no DR, série I-A, de 28/12/95; fixou jurisprudência nos seguintes termos: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410º, nº 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
[9] - Vício que não se confunde, no entanto, com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, questão que se situa no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, com sede legal no art. 127º do CPP.
[10] - Entre outros, conferir, no sentido apontado, o Ac. do STJ de 22 de Abril de 2004, in “Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça”, ano XII, tomo 2, págs. 166/167.