Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0532116
Nº Convencional: JTRP00038200
Relator: ATAÍDE DAS NEVES
Descritores: ACÇÃO
TRANSMISSÃO DE TÍTULO
Nº do Documento: RP200506160532116
Data do Acordão: 06/16/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: A entrega, a tradição da acção ao portador, é pressuposto formal e também material da transmissão da acção ao portador, e não apenas do exercício dos direitos nela titulados, o que obsta a que a transmissão dos mesmos direitos, dos direitos incorporados na acção, se opere sem essa mesma tradição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

B.........., casado, residente na Rua .........., n.º ., .........., e C.........., casado, residente na .........., n.º ..., .........., instauraram a presente declarativa, sob a forma ordinária, contra D.......... e mulher E.........., residentes na .........., n.º ...., 10º andar, .........., e “F.........., S. A.”, com sede na .........., n.º 1050, 10º andar, .........., e “G.........., Ldª”, com sede na Urbanização .........., lote 37, freguesia do .........., .........., pedindo que os réus sejam condenados a:
- Reconhecer os autores como únicos e legítimos proprietários das acções com os nº1 a 50.000 da sociedade “H.........., S.A”, com sede na .........., .........., .........., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de .......... sob o nº04446/970503 e a entregar-lhes essas acções.
Alegam, em síntese:
- que em 17 de Junho de 1999 celebraram com os réus, todos representados pelo réu D.........., um contrato de compra e venda pelo qual lhes compraram e estes lhes venderam as referidas acções ao portador, sendo 25.000 propriedade da ré “G.........., Ldª”, 15.000 propriedade da ré “F.........., S.A.” e 10.000 propriedade da ré D.........., ficando, assim, a deter a totalidade do capital social da sociedade “H.........., S.A”, na proporção de 50% para cada um deles;
- Que, para pagamento do preço global acordado de 63.000.000$00, entregaram três cheques, nos montantes de 23.000.000$00, 20.000.000$00 e 20.000.000$00, emitidos sobre uma conta da identificada sociedade “H.........., S.A.”, o primeiro com data de 17 de Junho e os dois restantes pré-datados para os dias, respectivamente, 17 de Setembro e 17 de Dezembro;
- Que, não obstantes os três cheques terem sido apresentados a pagamento e pagos, os réus nunca lhes entregaram fisicamente as acções, mantendo-as até hoje em seu poder, ainda que já tenham sido instados, por diversas vezes, para o efeito;
- Que, não obstante os cheques entregues aos réus terem sido sacados sobre uma conta da sociedade “H.........., S.A”, os mesmos foram considerados contabilisticamente como dívidas de terceiros à sociedade e não como aquisição pela sociedade;
- Que, em consequência do referido negócio, o 1º réu renunciou ao cargo de Presidente do Conselho de Administração e Presidente da Mesa da Assembleia Geral, este último exercido em representação da 3º ré, e os autores assumiram, respectivamente, os cargos de Presidente do Conselho de Administração e Vogal do Conselho de Administração.

Citadas os réus, vieram estes apresentar a sua contestação, excepcionando a competência territorial do Tribunal da comarca de Setúbal e impugnam parte da factualidade alegada pelos autores, alegando, em súmula:
- Que, apesar terem existido negociações com os autores com o fito de transmitirem as acções aqui em apreço e de que são detentores, tais negociações nunca conduziram à celebração de qualquer contrato de compra e venda, em virtude do preço pedido pelos réus (cento e cinquenta milhões de escudos) nunca haver sido aceite pelos autores e ser condição da celebração do contrato de compra e venda o integral pagamento do preço peticionado;
- Que os três cheques entregues ao réu D.......... pelos autores o foram para acertos de contas e que a renúncia pelo 1º réu aos cargos que vinha desempenhando nos órgãos sociais se deveu a motivos de saúde e não à transmissão das acções de que era titular.

Concluem pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.
A título de reconvenção, e para o caso de improceder a sua contestação, pedem a condenação dos autores a pagar-lhes a quantia de 150.000.000$00, acrescida de juros moratórios desde o dia em que se entender ter sido celebrado o contrato de compra e venda das acções, a título de preço acordado pela venda das acções, a entregar nas seguintes proporções: 20% para os 1º réus, 30% para a 2º ré e 50% para a 3ºré.

Mais requerem a intervenção principal dos cônjuges dos AA., a qual, após a tramitação processual adequada, veio a ser admitida, sendo os intervenientes citados, vindo estes a intervir no processo, fazendo seus os articulados dos AA.

Os autores apresentaram a sua réplica, defendendo, em síntese, a procedência da acção e a improcedência do pedido reconvencional.

Os réus apresentaram a sua tréplica, concluindo como na contestação/reconvenção.

Sobre a excepção de incompetência territorial foi proferida a decisão de fls. 108, que declarou competente em razão do território o Tribunal Judicial de Matosinhos, sendo essa decisão objecto de recurso, a que o Tribunal da Relação de Évora negou provimento, determinando a remessa dos autos ao tribunal Judicial de Matosinhos.

Foi então proferido despacho saneador/sentença que decidiu julgar a acção inteiramente improcedente, absolvendo os RR. do pedido.

Inconformado veio o A. B.......... interpor recurso dessa decisão, oferecendo as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:

1 – O A e ora recorrente não se conforma com a douta sentença.

2 – Com efeito, alegaram os AA, e pretendia-se provar à exaustão, a celebração de um contrato de compra e venda com os RR mediante o qual, pelo preço de 63.000 contos, que pagaram, lhes foram vendidas 50.000 acções do capital social da sociedade “H.........., S.A.”.

3 – Alegaram ainda que os RR ficaram de lhes enviar as respectivas acções, o que nunca fizeram.

4 – A douta sentença, contudo, e sem que os AA tivessem possibilidade de ilidir a presunção que resulta da posse das acções em causa por parte dos RR, determina, sem mais, que a compra e venda de acções é um contrato quod constitutionem e que, portanto, não se concretizou o negócio.

5 – Entende o ora recorrente que a entrega das acções é um efeito do negócio subjacente à transmissão das acções que, no caso dos autos, é uma compra e venda, pelo que deve seguir o seu regime legal previsto nos art.º 874º e seguintes do Código Civil.

6 – O facto de os RR não terem entregue as acções aos AA é abusivo mas não invalida que se considere o negócio – a compra e venda – validamente celebrada.

7 - Com efeito, o art.º 101º do CMVM estabelece que a transmissão das acções ao portador de verifica pela sua tradição. Ora, a tradição de um bem, a sua entrega física, não é mais do que um efeito decorrente do negócio jurídico subjacente à transmissão das acções, seja ele uma compra e venda, uma permuta ou qualquer outro (art.º 879º do Código Civil).

8 - No caso específico dos valores mobiliários em causa, o exercício dos direitos resultantes da transmissão só pode efectivar-se com a posse física dos documentos.

9 - O que significa que se transmite a propriedade, se transmite a posse jurídica, mas mantém-se a aparência da titularidade do direito para o vendedor se este não entregar as acções.

10 - Assim, quando o mencionado art.º 101º refere que a transmissão das acções se faz pela sua tradição quer dizer, tão só, que não são exigidas quaisquer formalidades para o efeito.

11 – Razão pela qual cabe aos AA, através da presente acção, provar que compraram as acções, que são os seus efectivos proprietários e que a atitude dos RR é abusiva, ilidindo a presunção da titularidade das acções por parte dos RR.

12 – Entender de outra forma RR permite legitimar abusos, o que não era, certamente, o pensamento do legislador ou do Meritíssimo Juiz a quo.

NESTES TERMOS, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida determinando-se que se proceda a julgamento, seguindo os ulteriores termos até final, para que se faça a costumada JUSTIÇA!

Foram oferecidas contra-alegações pelos recorridos, pugnando pela manutenção do julgado.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Apontemos as questões objecto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas se não encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso (art. 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3 do CPC), acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

Antes, porém, reunamos a matéria de facto que foi considerada provada:

1º - Autores e réus são accionistas da sociedade “H.........., S.A”, com sede na .........., .........., ..........;
2º - As acções da sociedade com os nº1 a 50.000 estão na posse dos réus, que nunca as entregaram aos autores.

1ª QUESTÃO

A primeira questão que nos cumpre apreciar prende-se com a natureza do contrato de compra e venda de acções ao portador, se um contrato meramente consensual, dependendo a sua eficácia do mero acordo de vontades, se um contrato quod constituionem ou real, ou seja, um contrato que exige, para além das declarações de vontade das partes, como requisito de validade, a entrega de uma certa coisa.

Entendeu a sentença recorrida que, sendo a acção sub judice uma acção de reivindicação, e sendo certo que os AA. ainda não têm em seu poder as acções ao portador que compraram aos RR., considerando a natureza real deste negócio, e assim dependendo o direito de propriedade da efectiva entrega dos títulos por parte do vendedor ao comprador, estão os demandantes impedidos de lograr vencimento na sua pretensão, porquanto, não possuindo os títulos em causa, ainda deles não são proprietários.

Dispõe o art. 101º do Código de Valores Imobiliários (CVM), sob a epígrafe “Transmissão de valores mobiliários titulados ao portador”:
1. Os valores mobiliários titulados ao portador transmitem-se por entrega do título ao adquirente ou ao depositário por ele indicado.
2. Se os títulos já estiverem depositados junto do depositário indicado pelo adquirente, a transmissão efectua-se por registo na conta deste, com efeitos a partir da data do requerimento do registo.
3. Em caso de transmissão por morte, o registo referido no número anterior é feito com base nos documentos comprovativos do direito à sucessão.

Este normativo integra o Dec. Lei nº 486/99 de 13 de Novembro, cujo art. 15º revogou o art. 327º do Código das Sociedades Comerciais, nos termos do qual “a transmissão entre vivos de acções ao portador efectua-se pela entrega dos títulos, dependendo da posse dos mesmos o exercício de direitos de sócio”.

Como é facilmente apreensível, aquele art. 101º nº 1 do CVM reproduziu no essencial este art. 327º do CSC.

Por seu turno, dispõe o art. 483º do Código Comercial (C.Com), subordinado à epígrafe “transmissão dos títulos de crédito”, que “a transmissão dos títulos à ordem far-se-á por meio de endosso, a dos títulos ao portador pela entrega real, a dos títulos públicos negociáveis na forma determinada pela lei de sua criação ou pelo decreto que autorizar a respectiva emissão, e a dos não endossáveis nem ao portador nos termos prescritos no Código Civil para a cessão de créditos”.

Esta questão tem suscitado diversas opiniões no âmbito doutrinal. Enquanto uns autores consideram que a transmissão da propriedade se opera com a entrega do título, com base no art. 483º do C.Com. [Pinto Coelho (1963, 243 e segs.), e Olavo (1978, 56 e segs.)], consideram outros que ela se verifica com o consenso entre os contratantes.

A este respeito escreve Amadeu José Ferreira [In Valores Imobiliários Escriturais, Um novo modo de representação e circulação de direitos, Almedina. pag. 173]: “Os títulos ao portador caracterizam-se, para além do anonimato dos seus titulares, por um regime especial de transmissão e legitimação: a mera posse do título tem efeitos de legitimação do portador para exercício dos direitos incorporados e a transmissão da titularidade do direito dá-se com a entrega do título ou a aquisição da propriedade sobre este”.

Vaz Serra, defensor da consensualidade, defende [1956, BMJ nº 61, 18 e segs. e 124 e segs] que “a simples entrega ou tradição não pode determinar a sua transferência, por ser um acto material. A entrega ou tradição deve ser acompanhada da vontade de transmitir o título. Este pode ser entregue por muitas razões, independentemente da vontade de transmitir…Além do acordo sobre a transferência da propriedade, é, porém, necessária, em princípio, a entrega”.

Alexandre Brandão da Veiga [In Transmissão de valores Imobiliários, Estudos sobre o mercado de valores mobiliários, edição da Comissão de valores Imobiliários, Almedina, 2004, pag. 119] sustenta que nos valores “titulados ao portador não depositados apenas existe como formalidade a tradição, sendo certo que esta é igualmente facto transmissivo…não existe nenhum crivo adicional em matéria de regras de transmissão”.

João Labareda [In Das Acções das Sociedades Anónimas, 1988, pag. 244] afirma que “as acções ao portador transmitem-se pela entrega real dos respectivos títulos, conforme decorre do art. 237º nº 1, que acrescenta ser a posse essencial ao exercício do direito social”.

Coutinho de Abreu [In Estudos de Direito das Sociedades, 6ª edição, Almedina, pag. 96] ensina, e no mesmo sentido assevera Alexandre Soveral Martins [In Valores Imobiliários, edição do IDET (instituto de Direito das Empresas e do Trabalho, da Faculdade de Direito de Coimbra, caderno nº 1, Almedina, pag. 26], que a transmissão entre vivos de acções tituladas ao portador se dá por entrega do título ao adquirente, isto, claro está, se não estiverem integradas em sistema centralizado (cfr. os art. 105º e ss. do CVM.
Questiona este último autor: se as acções ao portador se transmitem por entrega do título ao adquirente ou ao depositário por ele indicado, “como é que se sabe quem está legitimado para o exercício de direitos? Visto que nada terá de ficar a constar do título em caso de transmissão de acções, e como a legitimação activa é determinada “em conformidade com (…) o título”, a legitimidade depende da posse do título ou do certificado passado pelo depositário: veja-se o art. 104º do CVM.”

José de Oliveira Ascensão [In Direito dos valores mobiliários, Volume II, Coimbra Editora, pag. 78] escreve a este respeito: “O art. 327º nº 1 do CSC dispõe que a transmissão entre vivos de acções ao portador se efectua pela entrega dos títulos, dependendo da posse dos mesmos o exercício dos direitos de sócio…
Repare-se porém que o preceito regula a transmissão entre vivos. A transmissão mortis causa segue as regras gerais da sucessão. Há pois uma aquisição sem nenhuma entrega; e a própria posse se considera adquirida pelo herdeiro desde o momento da sua morte, independentemente da apreensão material da coisa (art. 1255º do CC)”.

Por fim, atentemos ainda nas doutas palavras que Paula Costa e Silva [In Direito dos Valores Mobiliários, Vol. I, Coimbra Editora, pag. 234] escreveu e respeito deste assunto: “Quanto às acções tituladas, fixou o legislador o momento em que estas se têm por transmitidas. No caso das acções nominativas, o momento em que se produzem os efeitos da transmissão é o do averbamento; no caso das acções ao portador é o momento da tradição.”
E continua, “é de todos conhecida a problemática geral suscitada por estas disposições no que respeita a uma eventual disjunção entre a transmissão dos direitos incorporados nos títulos e a circulação dos próprios títulos.
Entendemos que as formalidades previstas, tanto no art. 326 como no art. 327º não são causa adequada de transmissão dos direitos representados. A causa da transmissão será um negócio jurídico, que não tem expressão cautelar.
Mas tanto as formalidades previstas no art. 326º, quanto a tradição, prevista no art. 327º, são necessárias à luz da circulação do próprio título. Não podemos perder de vista que, tanto as acções nominativas, como as acções ao portador são títulos de crédito, donde, são títulos de legitimação. Por esta razão, o art. 327º nº 1 faz depender o exercício de direitos sociais da posse dos próprios títulos.”
E, em conclusão, diz “em suma, os direitos incorporados nas acções, quer estas sejam nominativas, quer sejam ao portador, transmitem-se por efeito do contrato. Porém, a legitimação para o exercício dos direitos transmitidos funda-se numa realidade formal, pelo que há que respeitar os termos particulares de circulação dos próprios títulos.”

Aqui chegados, cumprindo-nos tomar posição que resolva a questão que somos chamados a decidir, ponderando todos estes ensinamentos, e tendo muito presente a letra da lei (art. 101º do CVM) acima transcrita, e sem deixarmos de registar a nossa simpatia pela leitura das “coisas” feita pela Mestre Paula Costa e Silva, entendemos, na senda doutrinária maioritária, que a entrega, a tradição da acção ao portador, é pressuposto formal e também material da transmissão da acção ao portador, e não apenas do exercício dos direitos nela titulados, o que obsta a que a transmissão dos mesmos direitos, dos direitos incorporados na acção, se opere sem essa mesma tradição.
Ou seja, não se pode ser titular da acção ao portador, e por via da legitimação que esta concede, dos direitos incorporados na mesma, sem se ter a posse de tal título, nem se pode exercer tais direitos sem se ter essa mesma posse. [Sempre este princípio admitirá desvios, com a prevista na lei em relação à transmissão mortis causa dos títulos (art. 101º nº 3 do CVM), e também nos casos de reconstituição de títulos e reforma (art. 51º do CVM), retirando-se ao título anterior, em caso de extravio ou furto, o seu valor cartular (vide Alexandre Brandão da Veiga, obra e loc. Citados]

No caso vertente, sustenta o recorrente ter adquirido as acções ao portador em causa, por contrato de compra e venda celebrado com os recorridos, tendo pago o respectivo preço, mas não lhe tendo sido entregues (pelos vendedores) os títulos em causa.
Ora, de harmonia com o que temos vindo a afirmar, perspectiva que mais se adequa à letra da lei, não pode o recorrente, enquanto as acções não lhe forem entregues, sem ter a posse das mesmas, arrogar-se à qualidade de proprietário das mesmas.

Ora, constituindo a entrega das acções ao portador o momento decisivo da transmissão da propriedade das mesmas – esta não se operou pela mera consensualidade, pelo mero acordo de vontades subjacente ao contrato de compra e venda, somos levados a concluir pela natureza real ou quod constitutionem do contrato de compra e venda de acções ao portador.

A entrega das acções, a traditio, assume valor inexoravelmente determinante, não só para a eficácia da transmissão da propriedade, como também, necessariamente, para o exercício dos direitos incorporados nos títulos negociados.
Sem a respectiva posse não se concretiza a aquisição, em si legitimadora do exercício de direitos.

Assim, uma vez que o recorrente, que alegadamente negociou as acções com os RR., ainda não tem as mesmas em seu poder, porque as mesmas não lhe foram entregues, não pode o mesmo arrogar-se à titularidade das mesmas, porque a tanto obsta o disposto no art. 101º do CVM.
Daí que, tal como entendeu o Senhor juiz a quo, o mesmo não possa lançar mão da acção de reivindicação, uma vez que esta está à partida condenada ao insucesso no tocante ao primeiro pedido – o de condenação dos RR a reconhecer a sua qualidade de proprietário das ditas acções.

Contudo, não obstante as limitações impostas pela letra da lei à consensualidade, nem por isso o negócio alegadamente celebrado entre as partes desmerece a protecção legal.
Vejamos as razões da nossa afirmação:
Nos termos do art. 874º do CC “compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”.
Dispõe o art. 879º que a “compra e venda tem como efeitos essenciais:
a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito;
b) A obrigação de entregar a coisa;
c) A obrigação de pagar o preço.

Celebrado entre as partes o contrato de compra e venda das ditas acções, e dependendo a transmissão das mesmas da entrega efectiva de tais acções (art. 101º do CVM), nada impede que o recorrente, que alegadamente já pagou o preço de tais títulos ao portador, venha exigir judicialmente dos vendedores, ao abrigo dos art. 817º e art. 879º al. b), a entrega dessas mesmas acções.
E foi isso o que o A. recorrente também fez na presente acção.
Ora, daqui resulta que, não obstante o malogro a que a al. a) do pedido formulado pelo A. ora recorrente se encontra destinado, nada impede, antes pelo contrário, tudo aconselha, até por motivos de economia processual (evitando a instauração de outra acção judicial com tal objectivo), que o presente pleito deva seguir os seus termos legais (até porque a natureza da acção declarativa de condenação, com processo ordinário, não especial, em nada impede tal desiderato), para apreciação e decisão da pretensão formulada sob a al. b) do pedido, uma vez que existem condições (ante as posições assumidas nos autos pelas partes) de procedibilidade do mesmo.

Daqui resulta que a acção deva seguir os seus termos processuais, com organização da matéria de facto assente e base instrutória com vista à discussão da factualidade subjacente à al. b) do pedido formulado pelos AA, não obstante o acerto da decisão de improcedência da al. a) do mesmo pedido.

DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, em manter a decisão de improcedência da al. a) do pedido formulado pelos AA., mas ordenar o prosseguimento dos autos, com elaboração da matéria de facto assente e da base instrutória com vista à discussão e decisão da al. b) do mesmo pedido.

Custas pelos recorridos.
Porto, 16 de Junho de 2005
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha