Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0416341
Nº Convencional: JTRP00037950
Relator: ALVES FERNANDES
Descritores: DIFAMAÇÃO
Nº do Documento: RP200504200416341
Data do Acordão: 04/20/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: Não é ofensivo da honra ou da consideração de um veterinário dizer-se dele que entende mais de vinho do porto que de pombos e que manipula melhor a garrafa que os alados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1 – Relatório

No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal singular nº ../01 que correu termos pelo -º Juízo criminal do Tribunal Judicial de..... foi o arguido B....., divorciado, comerciante, nascido em 13/01/50, natural de....., filho de C..... e de D....., residente na Rua....., ..... - ....., absolvido da prática de um crime de concorrência desleal, p. e p. pelo art. 260.º, alínea c), e art. 1.º, 2.º e 3.º, com referência aos art. 257.º e 258.º, todos do Decreto-Lei n.º 16/95, de 24 de Janeiro, que lhe vinha imputado e condenado, pela prática do crime de difamação, p. e p. pelos arts. 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 2, do Cód. Penal, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de 10 euros, num total de 1.600,00 euros, absolvido do pedido cível formulado a fls. 135 e ss. e, condenado a pagar a título de indemnização cível a E....., a quantia de 2.000,00 euros, a título de danos não patrimoniais mais tendo sido condenado nas custas do processo, com 2,5 UC’s de taxa de justiça acrescida do legal 1% como receita própria do Cofre Geral dos Tribunais (art. 13.º, n.º 3, do Dec.-Lei n.º 423/91, de 30/10) e legal procuradoria.

Inconformado com tal decisão o arguido dela veio interpor o presente recurso formulando as seguintes conclusões:

1 – O Tribunal "a quo" violou, entre outras normas, as normas dos artigos 180° e 183°, n.º 2 do Código Penal;

2 - Verifica-se insuficiência da matéria de facto dada como provada para condenar o arguido, ora recorrente, como autor material de um crime de difamação nos termos em que vinha acusado.

3 - Conforme se pode comprovar do teor do documento de fls. 210 dos autos, a Ordem do Médicos Veterinários, em resposta ao oficio remetido pelo Tribunal a requerimento do arguido, refere expressamente que, à data dos factos constantes da acusação, ou seja no ano de 2001. Encontravam-se inscritos naquela Ordem dos Médicos Veterinários e a exercer a sua actividade no distrito de..... quatro médicos veterinários de nacionalidade estrangeira.

4 - Por outro lado, não poderia o Tribunal "a quo" dar como provado que o arguido ao produzir tais expressões bem sabia que ofendia, como ofendeu, o assistente E....., uma vez que nem sequer deu como provado que tal notícia visava o assistente.

5 - Quanto mais não fosse por respeito ao princípio "in dubio pró reo", teria o Tribunal "a quo" que absolver o arguido, ora recorrente, do crime de difamação que lhe era imputado pelo assistente E....., uma vez que da prova produzida no âmbito da Audiência de Julgamento não resultou, de uma forma irrefutável, que o arguido se referia ao assistente E..... ao proferir as declarações em causa.

6 - O assistente não é o único médico veterinário de nacionalidade estrangeira a exercer no distrito de.....

7 - O teor do documento de fls. 210 dos autos, resposta da Ordem do Médicos Veterinários ao oficio remetido pelo Tribunal a requerimento do arguido impõe uma decisão diversa da recorrida.

8 - A prova produzida na Audiência de Julgamento impõe uma decisão diversa da recorrida

O M.P. na 1ª instância pronunciou-se pela improcedência do recurso dizendo em síntese:

1 - A matéria de facto dada como provada, é suficiente para fundamentar a decisão ora recorrida, não padecendo, esta do vício a que alude o art.º 410º n° 2 al. a) do Código de Processo Penal.

2 - O tribunal não teve dúvida sobre a efectiva verificação dos factos pelos quais o arguido vinha acusado, condenando-o assim pela prática de um crime de difamação p. e p. pelos artigos 180º n° 1 e 183º n° 2 do Código Penal, por ter ficado provada a prática pelo arguido de factos susceptíveis de os integrarem.

3 - Não foram violadas as normas dos artigos 180º e 183º n° 2 do Código Penal.

4 - A sentença recorrida não violou o princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência, uma vez que se deram por provados os factos pelos quais o arguido vinha acusado, em virtude de tal resultar da ponderação criteriosa da prova produzida em audiência.

5 - Com efeito, só face a uma situação de impasse deverá o tribunal decidir a favor do arguido, sendo certo que face a toda a prova produzida não surgiu qualquer situação de non liquet que impusesse a absolvição do ora recorrente.

Termos em que deverá a sentença recorrida manter-se nos seus precisos termos.

Nesta Relação o Ex.mº Procurador Geral Adjunto emitiu parecer em que conclui pela procedência do recurso dizendo:
O Tribunal deu por provado que o Recorrente escreveu no seu jornal a seguinte expressão:
1 “…médicos veterinários... Temos conhecimento de um outro para os lados de....., mas este nem sequer é Português, embora ao que consta, seja um óptimo apreciador do nosso Vinho do Porto e até consta que ele entende mais de vinho que de pombos e que manipula melhor a garrafa que os alados...".

Enquadrou a sentença tal conduta nos artigos 180º, nº 1 e 183º, nº 2 do Cód. Penal e condenou o Arguido.

Pois o Ministério Público nesta instância não enquadra.
Em primeiro lugar não se vê onde pode ofender alguém o facto de se dizer que é óptimo apreciador de vinho do porto, coisa que, em geral, toda a gente o é.
Em segundo lugar onde está a ofensa em se afirmar que o Assistente percebe mais de garrafas do que de alados, referência à sua profissão de veterinário. O que da expressão se retira é que, na maneira de ver do Arguido, o Recorrido é melhor a apreciar o tal vinho do que o é na sua profissão. E depois? Pode ser crítica, ou descortesia, mas crime era o que faltava.
O direito penal não é para aplicar a sensibilidades muito sensíveis, passe a expressão, mas para reprimir crimes. A ser como quer a sentença, nunca poderíamos abrir a boca que já estávamos sentados no banco dos arguidos. A verdade é que estamos passando uma época em que toda a gente quer ver toda a gente sentada no auditório do juiz penal, procurando aí resolver o que se poderia, digo eu, resolver com poder de encaixe, desportivismo e mesmo tolerância para com os nossos concidadãos.

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º nº2 do C.P.P. e colhidos os vistos legais.
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal aplicável como da acta respectiva consta.

2 – Fundamentação

2-1 – Factos Provados

1. O arguido comercializa vários equipamentos e acessórios para columbofilia, sendo proprietário do F......
2. Para além disso, o arguido é director, redactor e revisor de uma publicação com periodicidade trimestral, com sede nesta comarca, denominada "G.....", que é propriedade do F......
3. A referida publicação, para além de publicitar vários equipamentos e acessórios para columbofilia que são comercializados pelo seu proprietário, contém, também, alguns artigos da autoria do arguido, sobre temas igualmente ligados à columbofilia.
4. No número 2 da revista em causa, referente aos meses de Julho a Novembro de 2001, foi publicado um artigo subscrito pelo arguido, sob o título "O Decreto Lei n.° 232 de 24 de Junho de 1999", cujo original consta de fls. 10 a 53, que aqui se dá por integralmente reproduzido, nos termos do qual fazia afirmações relativas aos produtos comercializados pela assistente – “H....., Lda.”, cujo legal representante é o ora assistente, E......
5. Em tal artigo, o arguido, entre outras declarações referentes à firma assistente, fez as seguintes: "...Os produtos da I..... são adquiridos pela H....., Lda na Bélgica, àquele laboratório. Por sua vez a H....., Lda na Bélgica, vende-os à H..... Portugal, que os vende aos seus representantes em diversos pontos do país. Estes representantes vendem-nos aos pequenos lojistas e estes por último ao consumidor final que é o amador, que é quem está a pagar as favas (...) Mas isto não é tudo. O mais caricato, é que a H..... Portugal e outros colegas, além de fornecerem os respectivos distribuidores, também têm uma loja aberta ao público em geral, onde o antibiótico “Am....” ou outros são comercializados pelo mesmo preço que os pequenos lojistas o vendem. Este é outro assunto em que os proprietários das médias e pequenas empresas poderão estudar e rever a sua posição. Para finalizar, não seria mais correcto que o laboratório I..... e os outros tivessem um representante em Portugal e esse representante, mesmo sendo a H....., Lda, vendesse o produto ao público, ou pelo menos directo aos pequenos lojistas, eliminando assim o circuito (estrategicamente preparado) que encarece o produto?”.
6. O arguido subscreveu tal artigo e nela apôs estas declarações de forma clara e inequívoca, bem sabendo que as invocações e referências à assistente não tinham sido por esta autorizadas e visavam levar o consumidor/leitor a optar pela sua empresa em detrimento da empresa da assistente.
7. Ao actuar da forma descrita, agiu o arguido voluntária e conscientemente, com o intuito de alcançar para a firma de que é proprietário - F..... - um benefício ilegítimo, uma vez que ambas as empresas - a sua e a da assistente - se dedicam ao mesmo ramo de negócio e comercializam produtos concorrentes.
8. Além disso, no mesmo n.º 2 e artigo, da citada revista, referido no item 4 dos factos provados, o arguido escreveu ainda que: "(...) sabemos da existência de alguns médicos veterinários a prestarem serviços aos columbófilos portugueses; um em Lisboa, um em Santarém, dois no Porto e um em Santa Maria da Feira. Temos conhecimento de um outro para os lados de.....; mas este nem sequer é Português, embora ao que consta, seja um óptimo apreciador do nosso Vinho do Porto e até consta que ele já entende mais de vinho que de pombos e que manipula melhor a garrafa que os alados".
9. Ao produzir tais expressões bem sabia o arguido que ofendia, como ofendeu, o assistente E..... na sua honra e consideração.
10. Em ambas as situações tinha o arguido perfeito conhecimento do carácter ilícito do seu comportamento.
11. O demandante E..... é um veterinário inscrito na Ordem dos Médicos Veterinários desde 23/03/92 e profissional conceituado e respeitado no seu meio pelo que se sentiu particularmente ofendido com a actuação do arguido.
12. A publicação supra referida contém, para além da publicidade a equipamentos e acessórios para columbofilia, artigos da autoria do arguido sobre temas também ligados a esta área.
13. A notícia dos autos foi lida e comentada por terceiros, designadamente ligados à columbofilia.
14. O arguido há cerca de 6-7 anos atrás era gerente de uma outra empresa ligada à criação de pombos e exercia funções de armazenista da empresa assistente, em....., tendo posteriormente emigrado para a ..... e substituído nessas funções de armazenista por um terceiro;
15. Quando o arguido regressou da.... e pretendeu retomar as referidas funções junto da assistente., foram-lhe as mesmas negadas, facto que não foi do agrado do arguido e estiveram na base das notícias dos autos.
16. O arguido:
a) é comerciante, sendo o representante legal da empresa “F.....”, com sede em....., ....., a qual tem uma facturação anual de 150.000 contos anuais;
b) na referida empresa, tem ao seu serviço 9 funcionários e aufere montante não apurado mas que se sabe ser nunca inferior a 700,00 euros mensais;
c) o arguido é ainda director da revista identificada em 2), tem uma carpintaria e algumas quintas fora de Portugal, mais concretamente em.....;
d) é divorciado, reside em casa própria e tem 3 filhos estudantes a seu cargo;
e) Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.

2.2 - Factos não provados:

Não se provou que:

a) o demandante E..... seja apreciador de vinho do Porto ou que o mesmo tenha ficado psicologicamente perturbado com a notícia dos autos;
b) se a notícia a que se refere a acusação causou ou não prejuízos efectivos à empresa assistente;
c) se a notícia referida a fls. 8-9, da notícia publicada na revista junta aos autos a fls. 173, respeita à empresa assistente dos autos;
c) não se provaram quaisquer outros factos para além ou em contrário dos dados como provados, com interesse para a boa decisão da causa.

2.3 - Convicção do Tribunal:

A convicção do Tribunal, relativamente aos factos provados e não provados, teve em conta os documentos juntos aos autos – fls. 6-9, 10-54, 112-113, 172, 203, 210-211 e 214 e o conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, que se encontra gravada e só sucintamente, se referirá:
a) o arguido referiu confirmou ser o autor das notícias dos autos e director da revista em que as mesmas foram publicadas, bem como, que é comerciante de vários equipamentos e acessórios para columbofilia, sendo proprietário do F......
No entanto, referiu – de forma não credível - que a referência à empresa assistente corresponde à verdade, só visou descrever o circuito, é apenas um exemplo e que só visou melhorar a situação dos columbófilos portugueses; além disso, referiu que a revista não tem carácter publicitário pese embora refira também que “só tenta promover os seus produtos”.
Relativamente à outra parte da notícia, referiu de forma que não se afigurou credível, que nada tem a ver com o assistente E....., embora saiba que o mesmo é médico veterinário na zona de.....; desconhece se o mesmo gosta ou não de vinho do Porto.
Inquirido, referiu ainda que há outro médico veterinário nessa zona, que se chama L....., querendo insinuar que a notícia se referia a este, o que fez de forma não convincente.
Referiu ainda que por volta de 1994 teve relações comerciais com a empresa assistente mas que posteriormente cessaram, sem que tivesse havido qualquer problema.
Confirmou que não falou com qualquer representante da assistente, antes de escrever a notícia dos autos.
b) nas declarações do assistente E....., que se afiguraram credíveis e referiu ser o representante legal da empresa assistente e médico veterinário em..... há cerca de 15 anos.
Referiu ainda que teve relações comerciais com o arguido há cerca de 6-7 anos (como armazenista), após o que o arguido emigrou para a ..... e, quando regressou queria retomar as ditas relações mas já não foi possível porque tinha já um substituto que havia sido indicado pelo próprio arguido.
Segundo o mesmo, a partir daí começaram os problemas com o arguido.
Referiu ainda que durante vários anos foi o único veterinário estrangeiro, na zona de....., a lidar com pombos e que toda a gente ligada à columbofilia saberia que a notícia se referia ao mesmo; sentiu-se ofendido com a notícia referida na acusação.
Quanto à parte da notícia referida na acusação particular, refere que visou denegrir a imagem da empresa assistente e sugere que os produtos da mesma são mais caros; além disso, referiu que a mesma teve prejuízos com a notícia, pese embora não tenha concretizado tais prejuízos (sendo certo que também não podia ser ouvido como testemunha do pedido cível).
Referiu ainda que não tem qualquer gosto especial por vinho do Porto.
c) nas declarações das testemunhas de acusação, que depuseram de forma credível:
c.1- M....., referiu ser vendedor da empresa assistente há cerca de 8 anos e que leu a notícia dos autos.
Disse ainda que o único médico veterinário estrangeiro, a exercer na zona de....., era o assistente E..... e que a notícia respeitava ao mesmo; nunca ouviu falar de qualquer L......
Quanto à parte da notícia referida na acusação pública, referiu que já não se lembrava bem mas tem a ideia que não dizia bem dos produtos desta; sabe que o arguido vende produtos similares aos da assistente, ligados à columbofilia.
c.2- N....., referiu ser columbófilo desde 1994 e cliente do arguido.
Referiu que gosta dos produtos da assistente e pensa que o artigo dos autos era para o “bota abaixo” da mesma; referiu ainda que o arguido também vende esses produtos e tentou puxar os clientes para este; no entanto, pensa que o artigo não prejudicou a assistente.
Referiu ainda que na data da notícia não conhecia qualquer outro médico veterinário na zona de....., ligado à Columbofilia a não ser o assistente E......
d) as testemunhas de defesa:
d.1- P....., depôs de forma credível e referiu conhecer o arguido desde 1981 e ser amigo deste e conhecer também o assistente.
Disse ainda que não conhece outro veterinário estrangeiro para além do assistente.
Depôs quanto à situação pessoal do arguido.
d.2 – a testemunha Q....., arrolada durante o decurso da audiência, referiu que é columbófilo desde há cerca de 40 anos; sabe que a notícia dos autos é sobre a empresa assistente e refere que é apenas de carácter informativo (ao depor sobre este último ponto, suscitaram-se dúvidas sobre a isenção da testemunha).
Não deixou de consumir produtos da empresa assistente.
Desconhece quem é o visado da notícia da acusação particular.
No que respeita às circunstâncias pessoais dos arguidos e seus antecedentes criminais, além dos respectivos certificados de registo criminal juntos aos autos, foram relevantes as declarações prestadas pelo arguido e testemunha de defesa ouvidas.
Quanto aos factos dados como não provados, resultaram os mesmos de não se ter feito prova convincente nesse sentido, sendo certo que não se provou se a assistente sociedade sofreu ou não prejuízos efectivos com a notícia dos autos, bem como, face à prova produzida não se ficou com dúvidas que a notícia se referia ao assistente E..... e não a qualquer outro veterinário como o arguido pretendeu fazer crer – de forma não credível - após a audição das testemunha de acusação ouvidas.

2.4 – Do Direito

São essencialmente duas as questões postas á consideração do tribunal, por um lado a insuficiência da matéria de facto para a decisão e por outro a violação do princípio in dúbio pró reo, concluindo o recorrente que com a sua condenação foi violado o disposto nos artigos 180º e 183º nº 2 do C. Penal.
Difamar é desacreditar, diminuir a reputação, o conceito público em que alguém é tido, isto é, imputar a outra pessoa um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou da sua consideração.

No entanto, certo é que nem todo o facto ou juízo que envergonha e perturba ou humilha, cabem na previsão do art. 180º, do Código Penal, tudo dependendo da intensidade da ofensa.
A lei fornece-nos um elemento importante, neste particular, ao exigir de forma expressa, relativamente a certos crimes contra a honra, designadamente o do art.185º (ofensa à memória de pessoa falecida), que a ofensa seja grave.
Com efeito, o respectivo texto legal alude a ofensa grave, utilizando a expressão ofender gravemente, enquanto que relativamente ao crime de difamação ora em apreço nada diz a esse propósito.

Daqui se pode concluir, desde já, que a gravidade da ofensa ou do perigo de ofensa não é elemento do tipo.

Por outro lado, o nosso ordenamento jurídico-penal ao contrário do que sucede com outros ordenamentos jurídicos, designadamente o espanhol, não contém qualquer preceito que incrimine autonomamente as ofensas leves (Vide o art.620º, n.º 2, do Código Penal espanhol.), pelo que teremos de concluir que no crime de difamação se incluem quaisquer ofensas à honra, mesmo as tidas por leves.
Tais conclusões conquanto não sejam determinantes na tentativa de delimitação do elemento material ou objectivo do crime de difamação do art.180º, a verdade é que auxiliam na respectiva tarefa, na medida em que nos dizem que, face ao nosso ordenamento jurídico-penal, o bem tutelado (honra) merece inteira protecção, no sentido de que aqui se devem incluir todos os comportamentos ofensivos, isto é, que o lesam ou são susceptíveis de o lesar.
Aquela delimitação terá, pois, de ser conseguida a partir do senso e da experiência comuns, os quais nos dirão se e quando certo e determinado comportamento é ou não ofensivo.

Explicitando.
Como é sabido, há um consenso na generalidade das pessoas, pelo menos de um certo país, sobre o que razoavelmente se não deve considerar ofensivo (Cf. Beleza dos Santos, R.L.J., 92, 167.).

Na realidade, existe em todas as comunidades um sentido comum, aceite por todos ou, pelo menos, pela maioria, sobre o comportamento que deve nortear cada um na convivência com os outros, em ordem a que a vida em sociedade se processe com um mínimo de normalidade. Há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros.

Tais limites como que se acham inseridos num «Código de Conduta» de que todos são sabedores, o qual reflecte o pensamento da própria comunidade e, por isso, é por todos reconhecido ou, pelo menos, pela maioria.
Do elenco desses limites ou normas de conduta fazem parte «regras» que estabelecem a «obrigação e o dever» de cada cidadão se comportar relativamente aos demais com um mínimo de respeito moral, cívico e social, mínimo esse de respeito que não se confunde, porém, com educação ou com cortesia, pelo que os comportamentos indelicados, e mesmo boçais, não fazem parte daquele mínimo de respeito, consabido que o Direito Penal, neste particular, não deve nem pode proteger as pessoas face a meras impertinências.
Ora, tal mínimo de respeito, corresponde, grosso modo, à linha demarcativa a que atrás fizemos referência.
A partir daí, de acordo com o referido «Código de Conduta”, pode surgir o comportamento ofensivo.

Feitas estas considerações vejamos se o escrito da autoria do arguido que subjaz aos autos se deve ou não considerar ofensivo da honra (honra ou consideração) do assistente.

Do exame e análise daquele decorre que no número 2 da revista G..... , referente aos meses de Julho a Novembro de 2001, foi publicado um artigo subscrito pelo arguido, sob o título "O Decreto Lei n.° 232 de 24 de Junho de 1999", onde consta "(...) sabemos da existência de alguns médicos veterinários a prestarem serviços aos columbófilos portugueses; um em Lisboa, um em Santarém, dois no Porto e um em Santa Maria da Feira. Temos conhecimento de um outro para os lados de.....; mas este nem sequer é Português, embora ao que consta, seja um óptimo apreciador do nosso Vinho do Porto e até consta que ele já entende mais de vinho que de pombos e que manipula melhor a garrafa que os alados".
O tribunal não teve qualquer dúvida e por isso é que não lançou mão do princípio in dúbio pró reo, de que a pessoa visada no artigo subscrito pelo arguido era o veterinário E....., único estrangeiro que durante anos se dedicou á columbofilia na zona de......
Sem podermos usufruir das vantagens resultantes da imediação e oralidade, que apenas são apanágio da 1ª instância, também nós não ficamos com dúvidas que era ao assistente que o arguido se queria referir.
Com efeito este, teve relações comerciais com o assistente para quem exerceu as funções de armazenista em 1994, após o que emigrou para a ..... e quando regressou a Portugal pretendeu reingressar na empresa do veterinário E....., radicado em..... há cerca de quinze anos, mas não foi possível porque tinha já um substituto que havia sido indicado pelo próprio arguido.
A partir desse momento, na perspectiva do assistente, terão começado os problemas com o arguido.
Todos quantos conhecem o assistente, nomeadamente os columbófilos a quem se destina a revista, ao lerem o artigo do arguido ficaram convictos que a pessoa visada no artigo de opinião era o E..... (atente-se no depoimento da testemunha M....., vendedor da empresa assistente há cerca de 8 anos, no depoimento de N....., columbófilo desde 1994 e cliente do arguido e no da testemunha de defesa P....., o qual referenciou não conhecer outro veterinário estrangeiro para além do assistente).
O vicio da insuficiência da matéria de facto para a decisão, al. a) do n. 2 do art.º 410º, consiste na formação incorrecta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas
A matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta, legal e justa.
Insuficiência em termos quantitativos, porque o tribunal não esgotou os seu poderes de indagação da matéria de facto na tarefa da descoberta da verdade material, podendo e devendo ter ido mais além.

Este vício previsto no art. 410º n.º 2 al. a) consiste na insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, tornando-se necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada.
Como se refere no Acórdão do STJ, de 13/2/91, AJ, nos 15/16, pág. 7, este vício traduz-se na insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, que não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, coisa bem diferente
Ora, seguindo o raciocínio delineado na sentença teremos de concluir que não existe insuficiência de matéria de facto para a decisão de direito, pois todos os factos alegados pela acusação e pela defesa foram tomados em conta, e não se vislumbra que outros factos essenciais não tenham sido considerados.
Portanto, não se verificam os vícios enunciados no art. 410º ns. 2 e 3, do C.P.P..
Ao arguido era imputado a prática, em autoria material, de um crime de difamação p. e p. pelo art. 180º e 183º do C. P.

O art. 26º n.º 1 da CRP consagra entre vários direitos da personalidade, o direito “ao bom nome e reputação”. A tutela penal desse direito é assegurada pelos arts. 180º e 181º, do Cód. Penal que, na descrição típica, utilizam a expressão “ofensivos da honra ou consideração”.
O bem jurídico honra traduz uma presunção de respeito, por parte dos outros, que decorre da dignidade moral da pessoa e o seu conteúdo é constituído basicamente, por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros.
Sem a observância social desta condição não é possível à pessoa realizar os seus planos de vida e os seus ideais de excelência na multiplicidade de contextos e relações sociais em que intervém.
Esse bem jurídico-constitucional assim delineado apresenta um lado individual (o bom nome) e um lado social (a reputação ou consideração) fundido numa pretensão de respeito que tem como correlativo uma conduta negativa dos outros; é ao fim e ao cabo, uma pretensão a não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade” (Augusto Silva Dias, Alguns aspectos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúrias, ADFDL, 1989, 17/18).
No tocante ao elemento subjectivo do crime de injúria ou de difamação tem de referir-se que basta o dolo genérico em qualquer das suas formas (directo, necessário ou eventual), bastando assim que o agente, ao realizar voluntariamente a acção se tenha dado conta da capacidade ofensiva das palavras ou seja, que são objectivamente ofensivas da integridade moral da pessoa visada, não se exigindo qualquer finalidade ou motivação especial, não estabelecendo a previsão legal do tipo do crime requisitos especiais, relativamente ao seu elemento subjectivo. Ou seja, o legislador bastou-se com o chamado dolo genérico - querer afectar a dignidade de outrem -, não sendo necessário para o preenchimento do tipo aquilo a que alguma doutrina denomina de animus injuriandi vel difamandi.
A verificação deste delito criminal - difamação - ocorre quando alguém, dirigindo-se a terceiro imputando a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo ofensivo da sua honra ou consideração ou reproduzir uma tal imputação ou juízo.
Passando à análise da situação concreta apreciemos se a expressão “Temos conhecimento de um outro para os lados de.....; mas este nem sequer é Português, embora ao que consta, seja um óptimo apreciador do nosso Vinho do Porto e até consta que ele já entende mais de vinho que de pombos e que manipula melhor a garrafa que os alados" tem aptidão para ofender a honra do assistente E....., dado por assente que era a ele que o escrito se dirigia.
Como supra foi referido, a verificação do delito criminal ocorre quando alguém, dirigindo-se a terceiro imputa a outra pessoa, um facto, ou formula sobre ela um juízo ofensivo da sua honra ou consideração ou reproduz uma tal imputação ou juízo.
Dizer que alguém é um bom apreciador do Vinho do Porto, que entende mais de vinhos do que de pombos e que manipula melhor a garrafa que os alados não reveste natureza desprestigiante e estigmatizante para a pessoa a quem é atribuído.
Como bem refere o Ilustre Procurador Geral Adjunto nesta Relação a expressão utilizada pode ser crítica, descortês mas nunca passível de ser enquadrada em ilícito penal, designadamente no previsto nos artigos 180º e 183º do Cód. Penal. Portanto, sendo posto em causa o carácter objectivamente ofensivo da mencionada expressão, teremos de concluir que a falta de aptidão para tal fim é óbvia.
Como já foi afirmado, o bem jurídico lesado pelo crime de difamação é predominantemente, a chamada honra subjectiva, isto é, o sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade social.
Portanto, quer o crime de injurias, quer o de difamação, são crimes de dano, na medida em que se traduzem numa imputação de factos objectivamente adequada para desacreditar alguém socialmente, e que é, como tal, compreendido pelo destinatário.
No crime em análise não se protege, pois, a susceptibilidade pessoal de quem quer que seja, mas tão só dignidade individual do cidadão, sendo uma das suas características a da sua relatividade, o que quer dizer que o carácter injurioso ou difamatório de determinada palavra ou acto é fortemente dependente do lugar ou ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorre, do modo como ocorre.
Não restam dúvidas que a expressão utilizada não reveste natureza ofensiva para a generalidade das pessoas e, neste caso não se pode assacar ao recorrente a prática de um crime de injúrias.

3 – Decisão

Nestes termos os juízes da 1ª Secção Criminal do tribunal da Relação do Porto acordam em dar provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida que se substitui por outra em que se absolve o recorrente da prática do crime de injúrias p.e p. nos art. 180º e 183º do C. Penal, que lhe vinha imputado.

Sem tributação
*
Porto, 20 de Abril de 2005
António Manuel Alves Fernandes
José Henriques Marques Salgueiro
Manuel Joaquim Braz