Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1313/13.7GAVCD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DEOLINDA DIONÍSIO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
ANIMAIS PERIGOSOS
CULPA
NEGLIGÊNCIA
TRATADOR
Nº do Documento: RP201510141313/13.7GAVCD-A.P1
Data do Acordão: 10/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Sobre o detentor de um animal perigoso, para além dos deveres impostos pelo DL 315/2009 de 29/10, e respectivas altercações, incumbe o dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e de outros animais.
II - A simples contratação de um tratador não é suficiente para eximir os donos e detentores permanentes destes cães, da responsabilidade resultante dos actos contra a integridade física de terceiros causados por estes cães, por sobre eles poder existir culpa in eligendo e ou culpa in instruendo, por a responsabilidade destes não se transferir imediata, integral e automaticamente para o tratador ocasional.
III - De acordo com a teoria do incremento do risco, o resultado deve ser imputado à conduta do agente quando esta tenha criado, aumentado ou incrementado um risco proibido para o bem jurídico protegido e esse risco se tenha materializado no resultado típico.
IV - Se o detentor de cães rottweiler, que os mantém soltos no quintal, encarrega outrem de os passear e alimentar, e um deles vem a fugir por o portão estar aberto e avariado, e vem a atacar uma pessoa, o resultado devem também ser imputado àquele.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO PENAL n.º 1313/13.7GAVCD-A.P1
Secção Criminal
Relatora: Maria Deolinda Dionísio
Adjunta: Jorge Langweg

Processo: Instrução n.º 1313/13.7GAVCD
Comarca – Porto
Matosinhos - Instância Central – 2ª Secção Instrução Criminal-J4

Arguidos
B…
C…
D…

Assistentes
E…
F…
G…

Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO

1. Nos autos de inquérito n.º 1313/13.7GAVCD, da Secção Única do DIAP de Vila do Conde, finda a investigação, foi proferida acusação e requerido o julgamento da arguida B… pela prática de 1 (um) crime de ofensas à integridade física negligentes, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 3º b), c) e f), 11º, 33º e 34º, do Dec. Lei n.º 315/2009, de 29/10 e 15º, 26º e 144º, do Cód. Penal, e proferido despacho de arquivamento, de harmonia com o disposto no art. 277º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, relativamente aos dois restantes arguidos por se ter entendido, em síntese, que as lesões físicas provocadas à ofendida G… pelo canídeo de raça rottweiler, denominado “H…”, estavam causalmente ligadas a uma omissão do dever de cuidado unicamente imputável à primeira.
2. Inconformados com o arquivamento, os assistentes requereram a abertura de instrução, visando a pronúncia dos aludidos arguidos D… e C… pela prática do crime de ofensas à integridade física grave, por negligência, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 33º e 34º, do Dec. Lei n.º 315/2009, de 29/10, e 10º, 15º e 144º, do Cód. Penal.
3. Admitido o requerimento e declarada aberta a instrução, foram realizadas as diligências tidas por necessárias e convenientes e, realizado o debate instrutório, foi proferido despacho de não pronúncia dos arguidos e reiterado o arquivamento dos autos quanto a eles por se entender que os indícios recolhidos não permitiam concluir pela sua violação de qualquer dever de cuidado causal da ocorrência.
4. Inconformados com o decidido os assistentes G…, F… e E… interpuseram recurso finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões: (transcrição)
“A) No presente recurso requer-se a reapreciação da decisão da matéria de facto e da decisão de direito, e a consequente revogação do despacho de não pronúncia quanto aos Arguidos-Recorridos C… e D….
B) Ao considerar os factos constantes das alíneas c), d), e), f), g), i) como “não suficientemente indiciados”, o Tribunal a quo formou a sua convicção com base num raciocínio viciado que, atentas as disposições legais, as regras de experiência e de um homem médio, poderia e seria de todo expectável, a condução a esse, infeliz e injusto, resultado.
C) Resulta da prova produzida a convicção diversa, de modo a fixar os factos c), d), e), f), g), h) e i) como “INDÍCIOS SUFICIENTES”, de acordo com o n.º do art. 283.º do CPP, em conjugação com o Dec-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, na redacção que lhe conferiu a Lei n.º 46/2013, de 4 de Julho e arts. 10.º, 15.º, e 144.º do C.P.
D) Os elementos de prova que servem para formar tal convicção são constituídos pelos depoimentos, diligências e demais documentos juntos aos autos, para além dos factos notórios e do conhecimento público.
E) Desde logo, resulta suficientemente indiciado que ambos os Recorridos, D… e C…, eram os proprietários dos dois canídeos que permaneciam na outrora casa de morada de família, sita na Rua … n.º . em …; pelo que se exige essa complementação ao facto 2 dos “suficientemente indiciados”, uma vez que não existe prova em contrário;
F) Ou seja, não existe prova (e segura) que confira a propriedade do canídeo H… como sendo exclusiva do Arguido D…; confira-se que dos elementos constantes do sistema de identificação e recuperação animal do boletim sanitário (constantes de fls.11, 12, 13 e 139 a 150), em ambos os formulários só havia espaço para colocar a identificação de uma pessoa como proprietário, sendo normal e expectável que constassem apenas os dados daquele que lá foi tratar do assunto;
G) Acresce que, em momento algum do processo, é afirmado por qualquer dos intervenientes, que a Recorrida C… não é proprietária dos canídeos, nem nunca o disse o Recorrido D…!
H) Além disso, os canídeos foram adquiridos na constância do matrimónio, e, por isso, presume-se que são um “bem” comum do casal (art.1724.º alínea b do CC), pelo que não é permitido concluir, nem se ilidir tratar-se de bem próprio!
I) De todo o modo, ainda, que a propriedade dos canídeos (em especial a do H…) fosse exclusiva do Recorrido D…, os animais sempre permaneceram na referida residência, e desde Abril de 2013, só lá habitava a Recorrida C…, também, Detentora dos animais (art. 3.º al. f do DL), ora, legalmente responsável por estes!
J) Consequentemente, sobre ambos os Arguidos /Recorridos, impendia o dever de guarda e vigilância;
K) Impera atentarem um ponto fulcral, até agora desmesuradamente esquecido: o evento a que se reportam os autos não pode ser visualizado dum ponto de vista estático, mas antes dinâmico, resultado do encadeamento de um conjunto de actos, todos eles, determinantes, e, é desta forma que tem de ser analisado!
L) Acresce um outro, a falta/omissão de cuidado, zelo e diligência por parte dos Arguidos-Recorridos C… e D… não ocorreu apenas no dia 14 de Dezembro de 2013, pelas 10:30 (momento do ataque à menor de dois anos de idade, G…), mas desde a data em que os canídeos se encontram alojados na referida residência!
M) Da dinâmica dos factos e de toda a prova produzida, da clara violação das disposições constantes do Decreto-Lei n.315/2209, de 29 de Outubro, com a redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 46/2013, de 4 de Julho, e do bem jurídico que se visa proteger, sem esquecer a restante legislação penal (C.Penal), era imperativa a decisão totalmente diversa por parte do Tribunal a quo, uma vez que esta não reflecte os parâmetros do Direito e da Justiça do nosso ordenamento jurídico, como Vs. Ex.ªs facilmente poderão constatar!
N) Na fundamentação da matéria de facto, a analisada toda a prova produzida indiciária, que demonstra a imprudência, a falta de cuidado e diligência, as violações legais, e atitudes cívicas e morais totalmente reprovadoras, decidiu a Meritíssima Julgadora não pronunciar os Arguidos, aqui, Recorridos C… e D…, permitindo (e protegendo) condutas negligentes e imprudentes, e que põem em risco a integridade física, e até mesmo a vida de outrem!
O) Esclareça-se a boca de um rottweiler não é a sua única fonte de ataque!
P) Tal significa que, mesmo açaimado, se o animal H… tivesse fugido e saltado para cima da menor G…, com apenas dois anos de idade, resultava, directa e necessariamente, ofensa à sua integridade física, embora não com a mesma gravidade, assuma-se!
Q) Assim sendo, quanto aos factos c), d), e), f), g) considerados como não suficientemente indiciados, em boa verdade se admita que não podiam os Recorridos ignorar a realidade(!) de que qualquer dos canídeos pudesse sair para o exterior e atacar alguma pessoa ou animal, de todos conhecida, e que não escapa ao homem médio, que lhe associa consequências típicas!
R) Relembre-se que os canídeos não estavam sempre presos no canil que lhes era destinado, não era usual, mas antes circulavam livremente pelo jardim da habitação, sem qualquer medida de protecção, como o confessou a Arguida B… (fls.55 a 57) e confirmou a testemunha I… (fls.163 e 164) – como aconteceu nesse dia fatídico.
S) Essa testemunha não especifica, se, das vezes que chegou a ver os cães a sair da residência, sempre que alguém entrava ou saía, estavam açaimados, pelo que daí não se pode concluir que isso apenas ocorreu uma das vezes, conforme consta da motivação “Apenas numa ocasião viu um deles sem açaime”, uma vez que, quanto a esta frase, a testemunha reportava-se ao passeio dos cães!
T) O canídeo H… permanecia alojado na outrora casa de morada de família do casal, onde apenas ficou a residir provisoriamente a Recorrida C…, e resulta dos autos, que momentos antes do ataque, o canídeo H… estava solto, no jardim – como era habitual -, e sem qualquer protecção e, a Recorrida C… encontrava-se na residência no momento antes, durante e após os factos!
U) A Recorrida encontrava-se na residência, enquanto o canídeo H… livremente passeava no logradouro, momentos antes do ataque perpetrado pelo canídeo de que era detentora!
V) A Recorrida, portanto, ciente disso, não cumpriu com a diligência e cuidado que sobre ela impendiam, uma vez que, também, esta, tinha a detenção efectiva do canídeo! Porque não o prendeu no canil? Porque não chamou atenção de tal facto à Arguida B…? Porque não tomou qualquer providência de detenção e protecção?
W) Dúvidas não se suscitam de que a reiterada inércia desta Arguida-Recorrida claramente potenciou o resultado típico!
X) Tratando-se de animais irracionais e perigosos, podem ter reacções susceptíveis de pôr em perigo a integridade física e até a vida de outrem; daí que a sua detenção por parte dos seus donos, ou de quem os tenha a seu cuidado, deva obedecer a determinadas regras, destinadas a minimizar os perigos de eventuais ataques que possam protagonizar; é essa a ratio da Lei da Detenção – A Protecção De Terceiros!
Y) As condutas omissivas de todos os Arguidos facilmente permitem formular juízo de reprovação pelo que fizeram, bem como pelo que deixaram de fazer, quando podiam e deviam ter feito!
Z) Os dois canídeos permaneciam na outrora casa de morada de família do dissolvido casal, sita na Rua … n.º . em …, onde desde o mês de Abril de 2013, apenas residia a Recorrida C…, ou seja, a Detentora dos dois canídeos, H… e J…, e que, portanto, sobre ela impendia, também, o cumprimento das condições legais, dos deveres de cuidado!
AA) O pedido de licença do canídeo apenas foi solicitado pelo arguido D…, em 20-01-2014, data posterior aos factos, “não existindo nesta Junta de Freguesia qualquer pedido anterior a esta data” (conforme fls.273 a 278, nosso sublinhado), contrariamente ao invocado pelo mesmo (fls. 207 a 209, e fls. 3 a 7).
BB) À data dos factos não estava em vigor qualquer seguro sobre os canídeos H… e J…, que apenas foi contratado, pelo arguido D…, a 17 de Dezembro de 2013 (fls.130 e seguintes), contrariamente ao que o mesmo declarou (fls. 3 a 7).
CC) Não obstante, a responsabilidade criminal dos arguidos, que, no presente recurso se pugna, a violação das referidas disposições legais (arts. 3.º alíneas c, f, 5.º n.º 1, 10.º, 12.º) é sancionada a título contra-ordenacional nos termos do art.38.º do referido DL, o que, também, se pretende.
DD) Porém, no que concerne ao objecto do presente recurso, e atendendo ao disposto nos artigos 11.º e 33.º do DL e arts. 10, 15.º e 144.º do C.Penal, é manifesta a imputabilidade e o nexo de causalidade da omissão ao resultado por parte dos Arguidos C…, D… e B… (!);
EE) Porquanto, são conhecidas as circunstâncias da evasão do canídeo H… e do ataque que protagonizou à menor G…; que apesar de existir um canil de detenção dos cães, facto é que era usual os canídeos estarem soltos, no jardim, e sem qualquer medida de protecção; como se encontrava o canídeo H…, no momento dos factos!
FF) Os Recorridos C… e D… (fls. 3 a 7 e 207 a 209) tinham pleno conhecimento do estado corrosivo em que os portões da habitação se encontravam, e do que isso implicava ou podia implicar!
GG) Porque não trataram os arguidos de conformar as medidas de detenção com o legalmente exigido? Porque não trataram de arranjar o portão?!
HH) Mesmo, após os factos, a Arguida C…, manteve a mesma atitude omissiva, moral, cívica, crassa e desmesuradamente reprovável, que chocou o Sr. L…, avô da menor (conforme fls.153 a 154).
II) Por sua vez, o Recorrido D…, apesar de no momento em que os factos ocorreram ter assumido toda e qualquer responsabilidade pelos mesmos, vem, agora, habilidosamente, dar o dito, por não dito, arquitectando uma defesa falaciosa, com vista à sua inocência (realce-se que, até teve o desplante de juntar aos autos um contrato de seguro que celebrou com a “Companhia de Seguros K…, SA”, dois dias depois).
JJ) A violação do disposto no artigo 12.º, do Decreto – Lei n.º 315/2009, por parte dos Recorridos D… e C… é manifesta: os documentos de fls. 59, 125 a 150 e 273 a 278 demonstram que o canídeo agressor não estava licenciado, e não existia qualquer seguro de responsabilidade civil obrigatório sobre o animal;
KK) E, contrariamente ao invocado pelo Recorrido D… (fls. 207 a 209), o pedido de licença do canídeo, apenas, foi solicitado pelo mesmo, em 20-01-2014, data posterior aos factos, “não existindo nesta Junta de Freguesia qualquer pedido anterior a esta data” (conforme fls.273 a 278);
LL) E conforme resulta da diligência externa de fls.46, a habitação, onde o canídeo H… residia, não cumpria as medidas de segurança a que alude o art.12.º do referido Decreto – Lei n.º 315/2009, na medida em que o muro não possuía 2,00m altura em toda a sua extensão, não tinha espaçamento entre o gradeamento com 5cm e, ainda, não possuía placa, visível, a informar da existência no local de cão perigoso (só foi colocado após este sinistro)!
MM) Aliás, os canídeos não estavam sempre presos no canil que lhes estava reservado, mas soltos no jardim da habitação (conforme as declarações da Arguida B… e da testemunha I…, constante de fls. 55 a 57, e 163 a 164 respectivamente), como sucedeu com o animal H…, naquele fatídico dia!
NN) Tudo isto, associado ao facto de os Recorridos não terem zelado pela manutenção do portão, todo corroído de ferrugem, pesado, perro, e de abertura manual(!), dúvidas não se suscitam de que a inércia dos Recorridos potenciou a produção do resultado, verificando-se um nexo de causalidade entre a sua conduta e o resultado típico, entendimento perfilhado pelo Tribunal da Relação do Porto, em acórdão datado de 11 de Junho de 2014 (que se junta como documento n.º1)!
OO) Efectivamente, não foram tomadas as devidas precauções, conforme se impunha aos Arguidos e que, além do mais, estavam ao seu alcance; E, ao não cumprirem e diligenciarem tais cuidados, como se lhes impunha, viabilizaram a evasão do canídeo para a via pública, o que foi consequência necessária e directa das lesões que o mesmo causou na menor G….
PP) Todo o agente obrigado ao dever de cuidado pode ser autor de crime negligente; basta que crie a situação de perigo para o bem jurídico que se vem a concretizar na sua lesão, como fizeram os Arguidos B…, C… e D…!
QQ) Assim sendo, quanto à alínea “i)” dos considerados factos não suficientemente indiciários, impõe-se consideração diversa, e a inerente inclusão nos FACTOS SUFICIENTEMENTE INDICIÁRIOS, visto que esta posição do tribunal a quo assenta em evidente lapso, manifestamente ilegal, por contrária ao nosso ordenamento jurídico;
RR) Pelo que impera transcrever o disposto no art. 6.º do Código Civil, respeitante à vigência, interpretação e aplicação das leis (nosso sublinhado): “Ignorância ou má interpretação da lei - A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas.”
SS) Os Arguidos-Recorridos, eram, à data, proprietários de 2 canídeos, raça potencialmente perigosa (Portaria n.º 422/2004, de 24 de Abril), cuja detenção está sujeita a legislação estrita, e que não pode ser ignorada – relembre-se da intervenção dos “media” de que esta matéria foi objecto, e que facilitou a directa e imediata divulgação e, assim, proporcionou um conhecimento geral de todos os cidadãos!
TT) Assim, não é legítimo, nem sequer concebível, justificar a omissão de conduta, de diligência e de cuidado dos Recorridos C… e D…, apenas porque se pressupõe que sempre actuaram na convicção que os males só acontecem aos outros!
UU) Se atentarmos à realidade, a maioria dos cidadãos alega o mesmo: apesar de ser possível, o evento (resultado típico) não ocorrerá porque os males só acontecem aos outros;
VV) Mas vejamos: isso nem sequer consubstancia uma alegação! Tão-somente transparece o sentimento de impunidade, que a decisão recorrida inteiramente, e de forma ilegal, subscreveu!
WW) No que respeita à alínea h): “O canídeo em causa era agressivo, facto que era do conhecimento dos arguidos D… e C…”, que deve ser considerado como “FACTO SUFICIENTEMENTE INDICIADO” tal resulta da agressão por este perpetrada, do disposto no Decreto-Lei n.º 315/2009, da detenção de animais perigosos, e ainda do depoimento prestado pela testemunha I… (de fls.163 a 164).
XX) Tratando-se de um crime de resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo, como a omissão adequada a evitá-lo; no caso, o nexo de imputação do resultado típico deveu-se às reiteradas condutas omissivas por parte dos Arguidos-Recorridos, conforme se alegou (art.10.º do C.P).
YY) No mesmo sentido, cita-se o Professor FIGUEIREDO DIAS (Jornadas de Direito Criminal do CEJ, 1983, pág.56): “a imputação objectiva da conduta omissiva ao agente supõe a violação de um dever que especificadamente sobre ele impende, derivando essa posição de garante e a inerente obrigação de evitar o resultado de “uma relação fáctica de proximidade – digamos existencial – entre o omitente e determinados bens jurídico que ele tem o dever pessoal de proteger, ou, entre o omitente e determinadas fontes de perigo por cujo controlo é pessoalmente responsável.”
ZZ) A agressão está directa e causalmente ligada com as reiteradas e reprovadas omissões do dever de cuidado, por parte dos três Arguidos, dever imposto “por normas jurídicas atinentes á posse de tais canídeos e por normas não jurídicas, prudenciais e usuais, visando a evitabilidade do resultado material” (PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in Comentário ao Código penal)!
AAA) A omissão (e constante) desse dever de cuidado tipifica a negligência (pese embora os Recorridos continuem a questioná-la).
BBB) De todo modo estar convencido de que o resultado não se produzirá, não é o mesmo que ter uma certeza de que tal não aconteça! Porém, os Recorridos nunca estiveram convencidos disso; apenas não quiseram saber!
CCC) De todo o exposto, é possível concluir que as acções omitidas (e passíveis de se concretizar) pelos Arguidos seriam idóneas a evitar as ofensas graves que a Assistente G… sofreu, e, ainda, hoje sofre, bem como as suas repercussões.
DDD) Não foram observadas as regras de diligência e cuidado, indispensáveis à minimização dos riscos inerentes às respectivas condutas, por parte de todos os Arguidos.
EEE) Ao não acautelarem e cumprirem as medidas de segurança do alojamento dos canídeos (que se encontravam na residência), e à segurança das pessoas e outros animais que por ali passassem, os Arguidos actuaram com falta de cuidado, em violação crassa do especial dever de vigilância (art.11.º do DL nº315/2009), bem sabendo que esses animais eram considerados potencialmente perigosos, devendo os seus proprietários e demais detentores adoptar cuidados especiais para a sua guarda, em vez de comportamentos negligentes e reprováveis!
FFF) Ora, “I. A negligência é um tipo especial de punibilidade que oferece uma estrutura própria quer ao nível do ilícito quer ao nível da culpa. II. O tipo objectivo de ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído por três elementos: a violação de um dever objectivo de cuidado; possibilidade objectiva de prever o preenchimento do tipo; e a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação pelo agente, de um risco proibido de ocorrência de resultado. (…) VI – Enquanto na negligência consciente o agente representou como possível o resultado ocorrido, mas confiou, não devendo confiar, que ele não se verificaria, na negligência inconsciente o agente infringe o dever de cuidado imposto pelas circunstâncias, não pensando sequer na possibilidade do preenchimento do tipo pela sua conduta” (Acórdão do tribunal da Relação de Coimbra, de 17 de Setembro de 2014).
GGG) O essencial na definição de negligência reside no proémio unitário, sendo aí que se contém o tipo de ilícito e o tipo de culpa.
HHH) Por seu turno, o dever de cuidado, como elemento integrante do tipo de ilícito negligente, possui, ele próprio, os seus específicos elementos típicos;
III) Sendo eles, as normas jurídicas de comportamentos existentes; as normas não jurídicas (escritas, profissionais e do tráfego, correntes de certos domínios de actividade) e por fim, quando aquelas não existem, os costumes mais precisamente designados como figura-padrão cabida ao caso.
JJJ) É necessário ter em conta que a violação das normas de cuidado constitui indício por excelência de uma contrariedade ao dever de cuidado tipicamente relevante.
KKK) “Há uma coisa que nem Deus possui. O poder de fazer com que as coisas do passado nunca tenham acontecido” (Agaton).
LLL) Como consequência necessária e directa do ataque do canídeo H… à menor G…, esta sofreu lesões (cf. Factos suficientemente indiciados n.ºs 15 a 17) permanentes que se traduzem em grave perturbação da sua imagem, pelas sequelas cicatriciais da face, bem como da afectação do nervo facial (cfr. perícia médico-legal de fls.369 a 371);
MMM) E que não existem opções que melhorem significativamente o quadro estético ou funcional já obtido por parte da Ofendida G… (cfr. parecer de fls.364).
NNN) Os Recorridos C… e D… não abriram o portão, mas permitiram a evasão e a consequente agressão do cão violento de que eram proprietários, à menor G…!
OOO) No dia 14 de Dezembro de 2014, a menor G… não foi só atacada, pelo canídeo I…, como perdeu uma parte de si.
PPP) O que significa a sonoridade dos gritos de uma criança de dois anos, da irmã de doze e anos e de dois avós?
QQQ) Neste momento, a impunidade!”.
5. Admitido o recurso, por despacho de fls. 100[1], responderam o Ministério Público e o arguido D… sustentando, sem alinhar conclusões, a tese subjacente ao despacho de arquivamento e, por conseguinte, a não pronúncia e manutenção do decidido.
6. Neste Tribunal da Relação do Porto o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto elaborou douto parecer, concluindo igualmente pela improcedência do recurso, acompanhando a tese do Ministério Público da 1ª instância.
7. Cumprido o disposto no art. 417º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, responderam os assistentes reiterando a sua tese.
8. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência, que decorreu com observâncias das formalidades legais, nada obstando à decisão.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Consoante decorre do disposto no art. 412º n.º 1, do Código de Processo Penal, e é jurisprudência pacífica (cfr., entre outros, Acórdão do STJ de 24/3/1999, CJ-STJ, Ano VII, Tomo I, pág. 247 e segs. – especialmente fls. 248, último parágrafo), são as conclusões, extraídas pelo recorrente da sua motivação, que definem e delimitam o objecto do recurso.
In casu, a única questão suscitada é a da existência de indícios suficientes da omissão do dever de cuidado por parte dos arguidos C… e D… causal da agressão por canídeo à ofendida G….
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2. A fundamentação da decisão instrutória, no que ao caso interessa, é a seguinte: (transcrição)
“(…)
Inconformados com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público findo o inquérito vieram os assistentes E… e F…, em representação da filha menor, a ofendida G… requerer a abertura da instrução pretendendo que seja proferida decisão de pronúncia dos arguidos D… e C… pela prática, em co-autoria material, de um crime de ofensa à integridade física negligente grave p. e p. pelos art. 10º, 15º e 144º do Código Penal e pelos art. 33º e 34º do DL 315/09 de 29/10.
Alegam, em síntese, indiciar-se com suficiência que o canídeo da raça rottweiler que atacou a ofendia, quando caminhava pela via pública na companhia dos seus avós, era propriedade de ambos os denunciados e que a sua fuga do interior da respectiva morada apenas foi possível porque os portões se encontravam em avançado estado de deterioração e manifesta falta de manutenção, omissão que entendem ser de imputar aos arguidos. Assim, concluem que os arguidos, ao não procederem à manutenção e reparação dos portões da residência onde o canídeo habitava, não agiram com o cuidado de que eram capazes e a que estavam obrigados e, por isso, criaram e potenciaram o risco que se concretizou (em conjunto com a actuação da arguida B…) no ataque à ofendida e nas lesões dele decorrentes.
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Declarada aberta a instrução foram realizadas as diligências que se reportaram essenciais aos seus fins, tendo sido inquirida uma das testemunhas indicadas pelos requerentes.
*
Realizou-se a audiência de debate instrutório com observância das formalidades legais.
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Os indícios:
Nos termos do disposto pelo art. 286º, nº 1 do Código de Processo Penal, a instrução visa comprovar judicialmente a decisão de acusar ou de arquivar o inquérito, com a formulação de um juízo de probabilidade para legitimar a sujeição do arguido a julgamento.
Assim, se até ao encerramento da instrução forem recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação, em julgamento, de uma pena ou uma medida de segurança, o juiz profere despacho de pronúncia, caso contrário, profere despacho de não pronúncia – cf. art. 308º, nº 1 do Código de Processo Penal.
Segundo dispõe o art. 283º, nº 2 do Código de Processo Penal “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Embora existam divergências na doutrina e jurisprudência quanto a saber quando é que os indícios são suficientes. Diremos que, com a posição maioritária, entendemos ser necessário que dos indícios resulte uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento.
Nesta linha de orientação se posiciona o Professor Figueiredo Dias (“Direito Processual Penal”, I, 1984, pág. 133) que se pronuncia nos seguintes termos: “os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição”.
Assim também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2005, publicado em www.dgsi.pt/jstj, onde pode ler-se que “aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais razoável, mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é (mais) provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
No mesmo sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/9/11, publicado no mesmo local, decidiu que “a suficiência dos indícios (…) pressupõe a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade: Indícios suficientes são assim, «os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que (o arguido) virá a ser condenado. Eles constituem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado”.
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Os factos suficientemente indiciados:
1 – Desde, pelo menos, o ano de 2006, a arguida B… cuidava de dois canídeos de raça rottweiler um deles de nome H… (macho), nascido em 03.05.2007, e outro J… (fêmea), nascida a 13.09.05.
2 - Os supra identificados canídeos são propriedade de D… que os adquiriu na constância do matrimónio com C…, com quem casou catolicamente, sem convenção antenupcial, conforme assento de casamento de fls. 326.
3 - Após a separação dos arguidos, em Abril de 2013, os referidos canídeos permaneceram na que fora a residência do casal, sita na Rua …, n.º ., em …, Vila do Conde, que já era o local do seu alojamento.
4 - O proprietário dos canídeos D… deslocava-se uma vez por semana à residência supra referida para estar com o H… e a J… e ainda para deixar a alimentação para os mesmos.
5 - Para os passear o proprietário D… contratou a arguida B…, o que sucedeu quando ainda era casado com a arguida C… e posteriormente, após a separação do casal.
6 - Porque os canídeos tinham muita força a arguida B… passeava um de cada vez na via pública, apondo previamente nesse o açaimo funcional devidamente seguro à trela e esta, por sua vez, fixa à coleira, ficando o outro canídeo preso no canil, vedado com rede metálica, que havia sido construído para o efeito no logradouro da residência.
7 - No dia 14 de Dezembro de 2013, pelas 10:30 horas, preparando-se a arguida B…, para levar a cadela J… a passear na via pública, apôs-lhe o açaimo devidamente seguro à trela, estando esta, por sua, vez fixa à coleira.
8 - A arguida B… abriu o portão que dá acesso à rua, com a cadela presa, mas deixando solto e desprovido de açaimo o canídeo H….
9 - Esse portão, que era eléctrico, foi aberto de forma manual, por estar avariado desde Julho de 2013, facto que era do conhecimento dos arguidos D… e C….
10 - Os arguidos D… e C… não providenciaram pela reparação desse portão.
11 - Para o abrir a arguida B… exerceu muita força sobre o portão, por estar perro devido à ferrugem.
12 - Nessa altura, enquanto a arguida B… exercia essa força e segurava o canídeo J…., o cão H… aproveitou a abertura do portão e fugiu para a rua.
13 - E imediatamente atacou a menina G…, na data com dois anos de idade, que caminhava pelo passeio de mãos dadas com o avô L… e a irmã de doze anos de idade, quando já tinham passado em frente à casa de habitação dos arguidos D… e C… e tinham percorrido cerca de 25 metros.
14 - O cão surgiu repentina e inesperadamente na retaguarda dos referidos adultos, e mordeu a menor na face e na cabeça.
15 - Como consequência directa e necessária do ataque do canídeo G…, a G… sofreu esfacelo complexo transmural da hemiface esquerda e escoriações na pálpebra e couro cabelo, advindo-lhe as seguintes sequelas: no crânio cicatriz na região interparietal, média, sagital, plana linear avermelhada, recoberta por cabelo, com comprimento de 4 cm, cicatrizes notórias na face à esquerda, composta de várias linhas avermelhadas, que forma uma linha poligonal irregular, grosseiramente triangular, ocupando uma área de cerca de 20 cm2, com pele espessada contendo cordas fibrosas transcutâneas associadas e cicatriz palpebral superior esquerda, horizontal, avermelhada, plana, com 2cm de comprimento.
16 - Lesões que lhe determinaram, como consequência necessária e directa, sessenta dias para a cura, sete dos quais com afectação da capacidade de trabalho geral.
17 - Tais lesões são causa de consequências permanentes que se traduzem em grave perturbação da imagem da ofendida, pelas sequelas cicatriciais da face, bem como da afectação do nervo facial, conforme exame de perícia médico-legal de fls. 369 a 371.
18 - Em termos cirúrgicos ou de tratamento conservador não existem opções que melhorem significativamente o quadro estético ou funcional já obtido por parte da ofendida, tal como concluiu o parecer requerido à Unidade de Cirurgia Plástica, Reconstrutiva, Estética e Maxilo-facial do Hospital de São João, no Porto, junto a fls. 364.
19 - A arguida B… ao esquecer-se de prender o canídeo H… no canil e ao deixá-lo à solta, desprovido de qualquer meio de contenção, sabendo que o portão se encontrava avariado e perro, não podia deixar de prever que o canídeo pudesse sair para o exterior da área vedada, não tendo previsto a possibilidade de, no caso concreto, o cão H… vir a atacar a menor G….
20 - A arguida B…, enquanto detentora do cão estava obrigada a vigiá-lo de forma a garantir que o mesmo não se evadisse do recinto onde se encontrava, pois só assim acautelaria a segurança de terceiros e seus bens, nomeadamente a integridade física da G….
21 - Para tanto, estava obrigada a mantê-lo preso no canil vedado que o arguido D… edificou para o efeito.
22 - Ao omitir tais cuidados e diligências, a que se encontrava obrigada e que estavam na esfera dos seus conhecimentos, a arguida B… permitiu a evasão do H… para a via pública, acabando este por atacar a menor G….
23 - Os arguidos D… e C… sabiam que o canídeo em causa, enquanto não açaimado e à trela, tinha de estar fechado no canil aquando da abertura dos portões.
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Factos não suficientemente indiciados:
a) A arguida C… contribuía nas despesas com a alimentação dos cães.
b) A arguida C… contratou a arguida B… para passear os canídeos.
c) O canídeo que atacou a ofendida saiu do interior da residência dos arguidos D… e C… porque o portão se encontrava avariado e perro e teve que ser aberto pela arguida B… de forma manual.
d) Os arguidos D… e C…, ao não procederem à reparação, manutenção e conservação do portão da residência, previram que o referido canídeo pudesse sair para o exterior da área vedada, não tendo previsto a possibilidade de, no caso concreto, o cão H… vir a atacar, como atacou, a menor G….
e) Os arguidos D… e C… ao não diligenciarem pela reparação do portão não agiram com o cuidado e diligência que se lhes impunha e a que estavam obrigados.
f) Ao omitirem a reparação e manutenção do portão os arguidos C… e D… permitiram a evasão do cão H… para a via pública, dando causa ao ataque do canídeo à ofendida.
g) Ao assim procederem os arguidos agiram sem o cuidado e diligência a que estavam obrigados e que podiam ter observado.
h) O canídeo em causa era agressivo, facto que era do conhecimento dos arguidos D… e C….
i) Os arguidos D… e C… sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
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Motivação:
A convicção do tribunal, relativamente aos factos que considerou suficientemente indiciados e não indiciados, alicerçou-se no conjunto da prova recolhida nos autos e que foi aquela que, de seguida, se passará a expor.
Os autos iniciaram-se com o auto de notícia de fls. 3 elaborado pela GNR, dando conta de que, no dia 14 de Dezembro de 2013, pelas 10:30 horas, L… e a mulher M… caminhavam no passeio na Rua …, em …, Vila do Conde, juntamente com as duas netas menores (com dois e doze anos de idade), altura em que um canídeo de raça Rottweiler surgiu na retaguarda dos mesmos e, de imediato, atacou a neta G…, então com dois anos de idade, mordendo-a na face e cabeça. A criança veio a ser socorrida e transportada ao hospital por N… e O…, que passavam pelo local.
Os elementos documentais recolhidos são os seguintes:
- Registos clínicos, elementos médicos e exames médico-legais de fls. 10, 176, 177, 179 a 193, 237 a 255, 293 a 308, 338 a 340, 365, 368 a 371, que comprovam as lesões sofridas pela vítima e os tratamentos a que, por causa delas, se submeteu e que fundaram a convicção do tribunal relativamente aos pontos 15) a 18) dos factos indiciados;
- Elementos relativos à identificação do canídeo e respectivo proprietário de fls. 10 a 16, que a par das declarações do próprio arguido D…, que confirmou ser o proprietário dos canídeos, fundamentou a convicção do tribunal no que respeita ao ponto 2) dos factos indiciados;
- Documentos de fls. 59, 125 a 150 e 273 a 277 de onde resulta que, na data, o canídeo em questão não estava licenciado, tendo sido requerida a licença e efectuado o seguro obrigatório apenas em data posterior à ocorrência;
- Relato de diligência externa de fls. 46 elaborado pela GNR de onde se indicia com suficiência que o local onde o canídeo em causa residia, habitação sita na Rua …, nº ., em …, não cumpria as medidas de segurança a que alude o art. 12º do DL 315/09 de 29/10, na medida em que, não obstante a residência se encontrasse murada, o muro não possua dois metros de altura em toda a sua extensão, não possuía espaçamento entre o gradeamento com 5cm e também não possuía placa, visível do exterior, a informar da existência no local de cão perigoso;
- Relato de diligência externa de fls. 111 a 115, elaborado pela GNR de onde constam fotografias do local e a informação prestada por um dos habitantes das imediações, P…, relativa à pessoa que passeava os canídeos e que, no seu entender, seria ou amiga ou funcionária dos proprietários da habitação;
- Assento de nascimento relativo à menor G… de fls. 50;
- Certidão do registo predial de fls. 282 que atesta a propriedade da residência onde o canídeo se encontrava;
- Certidão da sentença que decretou o divórcio dos arguidos e os documentos que a acompanham, juntos a fls. 314 a 332, designadamente o assento de casamento de fls. 326.
No que respeita à prova testemunhal e declarativa foram interrogados os arguidos, tendo a arguida C… usado do direito de não prestar declarações – cf. fls. 221. Foram inquiridos os pais da vítima F… e E… que não presenciaram os factos e cujo relato se cingiu às consequências que advieram para a ofendida – fls. 397 e 400.
Foram também inquiridas as pessoas que socorreram a criança e que também não presenciaram o ataque. Assim, N… referiu que, quando passava no local, viu uma senhora agarrada a dois cães que se encontravam a ladrar e um casal com duas crianças, tendo parado para lhes prestar auxílio depois de se aperceber que a criança estava ferida – fls. 155. As suas declarações foram confirmadas pela companheira, O… que descreveu ainda o modo como prestaram auxílio à criança – fls. 161.
O vizinho da vítima I… também declarou não ter presenciado os factos, afirmando ter tido conhecimento de que no local habitavam dois cães da raça Rottweiler, que chegou a ver saírem para a rua quando alguém entrava ou saía de carro e a passearem junto do portão, geralmente com açaime. Apenas numa ocasião viu um deles sem açaime – fls. 163. Em declarações complementares referiu ter visto diversas vezes uma pessoa que prestava serviços na dita residência, que não soube identificar, a passear os canídeos – fls. 524.
O colega de trabalho do pai da vítima Q…, nas declarações que prestou referiu não ter presenciado os factos, mas ter-se deslocado ao local com o avô da criança e a GNR. Explicou que o proprietário dos animais disse que não residia ali desde Maio e que, no local, também se encontrava a pessoa que o avô da menor identificou como sendo quem estava a tomar conta dos cães aquando do ataque – fls. 165.
O militar da GNR S… que tomou conta da ocorrência também não presenciou os factos, tendo-se deslocado ao local posteriormente. Por ele foi referido que contactou a proprietária da habitação, o proprietário do canídeo, que identificou, e a funcionária, a arguida B…, tendo reproduzido o que por eles lhe foi dito na ocasião. No mais confirmou a existência de vestígios de sangue no local (pouco depois do portão pequeno e antes do portão grande de acesso às garagens, no sentido Este-Oeste) – fls. 157 e 158. Em declarações complementares referiu que a arguida B… lhe transmitiu ser funcionária naquela habitação e na altura pretender levar a cadela a passear como costumava fazer – fls. 386.
Em sede de instrução foi inquirida a testemunha Q…, amigo do pai da menor, cujo depoimento em nada revelou na medida em que não presenciou os factos, já que se dirigiu ao local após a sua ocorrência, na companhia do avô da menor. Referiu ter falado com o proprietário do animal, o arguido D…, que assegurou que o cão tinha seguro.
Foi ainda interrogada a arguida B… – fls. 55 – que afirmou ser amiga dos arguidos D… e C…, por via dessa relação, de vez em quando, passear os seus canídeos. No que se reporta ao dia dos factos explicou ter açaimado a cadela e, quando estava a sair para o exterior e a empurrar o portão, que sabia estar perro e ser difícil de empurrar (o que sucedia há cerca de 6 meses), o cão saiu do jardim, passou por trás de si e atacou a ofendida. Também explicou que os cães dispunham de um canil, um espaço com portão e grades. E, questionada no sentido de esclarecer por que motivo não prendeu o cão nesse local (canil) antes de abrir o portão, dado ter conhecimento do seu estado, afirmou não se ter recordado de o fazer.
Em declarações complementares – fls. 571 – reconheceu ter acordado há vários anos com o arguido D… tratar dos seus cães, designadamente alimentando-os, limpando a casota e passeando-os. E que, após a separação do casal, o arguido lhe deu indicações para manter o mesmo procedimento. Admitiu ainda saber que os cães tinham que estar açaimados para irem à rua, facto que lhe tinha sido transmitido pelo arguido D… e reiterou a existência, no jardim da residência, de um canil grande e fechado com grade e portão.
No que respeita ao portão da residência admitiu que, quando o arguido saiu de casa, já estivesse avariado e perro, embora referisse que não falou sobre esse assunto com o arguido após a separação, uma vez que ele raramente ali se deslocava e, quando o fazia, era apenas para levar a comida para os cães. Salientou que ambos os arguidos tinham conhecimento do estado em que o portão se encontrava e que também ela sabia que, em virtude do portão estar naquelas condições, tinha que ser mais cuidadosa, mas na data “passou-lhe”. Explicou que passeava um cão de cada vez e que enquanto passeava um deles o outro ficava preso no canil, só na data dos factos se esqueceu – fls. 571 e 572.
A avó da menor G…, M…, referiu que na ocasião se deslocava a pé pelo passeio, com o marido e as duas netas, a ofendida G… e a irmã, quando a primeira foi atacada, pelas costas, por um cão. Porque seguia à frente, ao escutar o marido a gritar, voltou-se para trás e viu já a neta no chão e um cão em cima dela a morder-lhe a face. Tanto ela como o marido tentaram retirar a criança da boca do cão, sem sucesso. Entretanto o animal largou a criança e pôde verificar os ferimentos que apresentava na cabeça e na face. Afirmou ainda ter visto a senhora que passeava os animais encostada à parede, com as trelas na mão, estando um dos cães açaimado e o outro em cima da neta. Por isso, referiu julgar que os dois animais estariam com trela e a pessoa que os passeava não ter força para os segurar. Após o ataque deslocou-se ao hospital com a neta, numa viatura que passava no local, tendo o marido ali permanecido para identificar a senhora que trazia os cães – fls. 151.
O avô da menor L… confirmou no essencial estas declarações, esclarecendo que a neta foi atacada por um cão, muito forte e com o peso de cerca de 50 a 60 kg, que a projectou para a frente, cerca de um metro, abocanhando-lhe a cabeça e, depois de a ter deitado ao chão, agarrou-a pela bochecha causando-lhe extensas lesões na face. Referiu que o cão que atacou a neta estava solto, mas trazia a trela ao pescoço e que, enquanto este atacava a neta, apareceu uma senhora a correr com outro cão, mas este com trela e açaimado. Essa senhora tentou, sem sucesso, puxar pela trela do cão, tendo-se encostado à parede da casa a puxar os cães com toda a força, mas os dois tinham mais força do que ela. Depois do cão largar a criança essa pessoa levou os dois animais para dentro da casa. No que respeita ao local por onde os animais saíram afirmou julgar tratar-se do portão pequeno porque tinha as chaves na fechadura pelo lado de fora – fls. 153.
O arguido D… referiu ser o proprietário do cão em causa, mas não ser o seu detentor, uma vez que não habitava na residência desde Abril de 2013, altura em que se separou da arguida C…. Desde essa data passou esta a ter a guarda dos animais, embora ele ali se deslocasse uma vez por semana para visitar os animais, sendo ainda o responsável pela aquisição da respectiva alimentação. Relativamente ao portão “grande” da residência referiu que se encontrava em mau estado há muito tempo, que era electrificado mas, após ter saído da residência, passou a funcionar manualmente encontrando-se perro. Afirmou que os cães dispunham de um canil com cerca de 12 m2 onde podiam estar fechados, sendo a residência murada e admitiu, na data, não ter licença para a detenção de cães perigosos emitida pela respectiva Junta de Freguesia.
No mais afirmou desconhecer por qual dos portões a arguida B… saiu, embora admitisse que o mais usual seria ter utilizado o portão grande (retratado a fls. 112) pois ao seu lado existe um local gradado onde os cães ficam fechados de modo a permitir, designadamente, a entrada e saída de viaturas (retratado a fls. 131) – fls. 209.
Em interrogatório complementar admitiu que depois de se ter separado da mulher acordou com a arguida B… ser ela a tratar dos cães e leva-los a passear, o que deveria fazer pelo menos uma vez por dia, como já sucedia desde que ele e a mulher para ali foram residir no ano 2000. Para o efeito pagava-lhe cerca de € 150 mensais. Referiu ainda que a arguida B…, já depois de se ter separado da mulher lhe transmitiu que ambos os portões estavam com ferrugem, o que dificultava abrir e fecha-los – fls. 559.
Do cotejo destes depoimentos, designadamente das declarações prestadas da arguida B… e dos depoimentos dos avós da criança, resulta, portanto, fortemente indiciado que, no dia 14/12/13, a arguida B…, incumbida pelo arguido D… de cuidar e passear os seus cães de raça Rottweiler, que residiam na habitação na data ocupada apenas pela arguida C… e onde dispunham de um canil fechado, decidiu ir passeá-los. Para tanto, a arguida B…, como sabia e lhe havia sido transmitido pelo arguido D…, deveria açaimar os animais antes de abrir o portão. Porém, naquela data, açaimou apenas a cadela e deixou o cão H… solto no jardim da residência e sem qualquer meio de contenção. Deste modo, quando abriu o portão, que sabia ser de abertura manual porque, embora eléctrico, estava avariado e perro, o cão K… fugiu do jardim da residência, passou por trás de si e atacou a ofendida que caminhava pelo passeio causando-lhe as lesões descritas nos exames-médico legais juntos aos autos.
Também se indicia, por ser facto que os arguidos D… e B… reconhecem, que os arguidos C… e D… tinham conhecimento do estado dos portões.
Porém, não foram recolhidos quaisquer indícios que permitam afirmar que a arguida C… contribuísse para as despesas com a alimentação dos cães ou que tivesse contratado a arguida B… para os passear, na medida em que tais factos foram negados pelos arguidos D… e B… e não foram confirmados por nenhuma outra das testemunhas inquiridas, o que levou a que o tribunal não os considerasse indiciados (cf. alíneas a) e b) dos factos não indiciados).
Também nenhuma prova indiciária foi recolhida no sentido de poder sustentar que o canídeo que atacou a ofendida tivesse saído do interior da residência e atacado a ofendida porque o portão se encontrava avariado e perro e por ter sido aberto de forma manual. Na verdade, o único relato produzido relativamente à fuga do canídeo, foi-o o pela arguida B… e o que ela refere é que açaimou apenas a cadela, deixou o cão solto no jardim e sem açaime e, quando estava a sair para o exterior para ir passear a cadela e a empurrar o portão, que sabia estar perro e ser difícil de empurrar, o cão saiu do jardim, passou por trás de si, e atacou a ofendida.
Resulta, portanto, da prova indiciária produzida ter sido a arguida B… quem, enquanto detentora do animal, não agiu com o cuidado a que estava obrigada e que podia ter observado, na medida em que, tendo conhecimento que o animal em causa era considerado legalmente como perigoso, se lhe impunha que o deixasse fechado no canil quando abrisse o portão e se preparasse para sair para a rua com a cadela, tanto assim que sabia que o portão estava perro e que era de difícil abertura. Aliás a arguida B… reconheceu que passeava um cão de cada vez e que, enquanto passeava um deles o outro ficava preso no canil e que só na data dos factos se esqueceu de adoptar esse procedimento (fls. 571 e 572) (sublinhado nosso).
Não podemos, por isso, afirmar que o facto do portão eléctrico estar avariado e perro tivesse sido causal da ocorrência, pois a causa do ataque foi a ausência aplicação ao cão de qualquer meio de contenção (açaime ou encarceramento no canil) enquanto a arguida B… abria o portão e se preparava para sair da residência com a cadela.
Efectivamente, se o cão estivesse açaimado como se impunha, mesmo que fugisse, como fugiu, quando o portão foi aberto, nunca teria tido possibilidade de morder a vítima, daí que se tivessem considerado como não indiciados os factos constantes das al. c) a g) e i).
Quanto à alegada agressividade do canídeo em questão também nenhum indício foi recolhido nesse sentido, na medida em que não consta dos autos que em data anterior tivesse atacado quem quer que fosse, nem esse facto foi confirmado pelas testemunhas inquiridas (al. h).
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O crime imputado:
Os assistentes pretendem ver imputada aos arguidos D… e C… a prática, em co-autoria material, de um crime de ofensa à integridade física negligente grave p. e p. pelos art. 10º, 15º e 144º do Código Penal e pelos art. 33º e 34º do DL 315/09 de 29/10, na versão introduzida pela Lei 46/13 de 4/7.
Este último diploma legal, conforme resulta do seu art. 1º, aprovou o regime jurídico da criação, reprodução e detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia.
Assim, define no seu art. 3º:
«Animal de companhia»: qualquer animal detido ou destinado a ser detido pelo homem, designadamente na sua residência, para seu entretenimento e companhia – cf. al. a);
«Animal potencialmente perigoso»: qualquer animal que, devido às características da espécie, ao comportamento agressivo, ao tamanho ou à potência de mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, nomeadamente os cães pertencentes às raças previamente definidas como potencialmente perigosas em portaria do membro do Governo responsável pela área da agricultura, bem como os cruzamentos de primeira geração destas, os cruzamentos destas entre si ou cruzamentos destas com outras raças, obtendo assim uma tipologia semelhante a algumas das raças referidas naquele diploma regulamentar – cf. al. d);
«Detentor» qualquer pessoa singular, maior de 16 anos, sobre a qual recai o dever de vigilância de um animal perigoso ou potencialmente perigoso para efeitos de criação, reprodução, manutenção, acomodação ou utilização, com ou sem fins comerciais, ou que o tenha sob a sua guarda, mesmo que a título temporário.
A raça Rottweiler é considerada raça potencialmente perigosa nos termos do anexo IV) à Portaria nº 422/2004 de 24/4.
Nos termos do art. 5º, nº 1 do DL 315/09 de 29/10, na versão introduzida pela Lei 46/13 de 4/7, “a detenção de cães perigosos ou potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia, carece de licença emitida pela junta de freguesia da área de residência do detentor, entre os 3 e os 6 meses de idade do animal, atribuída após comprovação da idoneidade do detentor”.
É ainda obrigado, nos termos do art. 10º do mesmo diploma legal, o detentor de qualquer animal perigoso ou potencialmente perigoso a possuir um seguro de responsabilidade civil destinado a cobrir os danos causados por este.
Finalmente impende sobre o detentor de animal perigoso ou potencialmente perigoso o dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e de outros animais – art. 11º.
Também as medidas de segurança nos alojamentos devem ser reforçadas, nos termos do nº 2 do art. 12º. Deste modo, os alojamentos “devem apresentar condições que não permitam a fuga dos animais e devem acautelar de forma eficaz a segurança de pessoas, de outros animais e de bens, devendo possuir, designadamente, no caso dos cães:
a) Vedações com, pelo menos, 2 m de altura em material resistente, que separem o alojamento destes animais da via ou espaços públicos ou de habitações vizinhas;
b) Espaçamento entre o gradeamento ou entre este e os portões ou muros que não pode ser superior a 5 cm;
c) Placas de aviso da presença e perigosidade do animal, afixadas de modo visível e legível no exterior do local de alojamento do animal e da residência do detentor.
A violação das disposições legais relativas à licença, seguro e condições de alojamento, é sancionada a título contra-ordenacional nos termos do art. 38º.
Nos termos do disposto pelo art. 33º:
Quem, por não observar deveres de cuidado ou vigilância, der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas graves à integridade física é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Segundo dispõe o art. 34º, as normas do Código Penal são subsidiariamente aplicáveis.
Porque em causa está a imputação aos arguidos de uma ofensa à integridade física grave, há que ter em atenção o disposto pelo art. 144º do Código Penal que define o que deve entender-se por ofensa à integridade física grave.
Assim, será grave a ofensa que importe para o ofendido:
a) Priva-lo de importante órgão ou membro, ou desfigura-lo grave e permanentemente;
b) Tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais ou de procriação, ou a possibilidade de utilizar o corpo os sentidos ou a linguagem;
c) Provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável; ou
d) Provocar-lhe perigo para a vida.
A conduta em questão deve ser equacionada, tal como resulta do disposto pelo art. 33º do DL 315/09 de 29/10, na versão introduzida pela Lei 46/13 de 4/7, na perspectiva negligente.
Nos termos do art. 15º do Código Penal:
Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.
Como ensina Figueiredo Dias, Sumários das Lições Proferidas ao 2º ano, 2ª turma, 1975, pág. 184 e 185, a negligência consubstancia um juízo de censura dirigido ao agente por ter violado um dever objectivo de cuidado adequado a evitar a realização de um tipo-de-ilícito, cuja observância lhe era objectiva e subjectivamente exigível, e, por, dessa forma, ter adoptado uma atitude pessoal leviana ou descuidada em face das exigências do dever-ser jurídico-penal.
Para que o agente possa ser responsabilizado a título negligente pelo resultado danoso é necessário, portanto, que se mostrem preenchidos os pressupostos objectivos e subjectivos que condicionam aquela imputação. Assim, seguindo os ensinamentos de Eduardo Correia (Direito Criminal, vol. I, pág. 421 e ss) para que um comportamento se possa dizer negligente há que verificar:
a) Se a produção do evento era previsível e se só a omissão ou violação do dever objectivo de cuidado tenha impedido a sua previsão ou a sua justa previsão. Tal dever e tal previsibilidade devem ser determinados através da exigência que, no mesmo sentido, de acordo com as regras da experiência, se possa fazer, numa análise “ex ante” da situação, à generalidade dos homens prudentes e conscienciosos;
b) Se foi observado o dever de adoptar um comportamento conforme ao objectivo de evitar a produção do evento.
c) Se o dever omitido ou violado era adequado a evitar a produção do evento.
d) Se o agente podia e era capaz, segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, de prever ou de prever correctamente a produção do evento e de adoptar um comportamento adequado a evita-lo.
Deve, pois, poder afirmar-se, segundo um padrão médio de conduta, a possibilidade de, face àquela situação concreta, se prever o perigo de violação do bem jurídico protegido e valorá-lo correctamente, uma vez que todas as precauções tendentes a evitar um resultado danoso dependem do conhecimento do perigo.
Em regra, a previsibilidade e o dever de prever existem sempre naquelas situações em que o evento seja uma consequência de verificação normal ou típica da conduta violadora do dever de cuidado. A adequação consiste na previsibilidade da produção de certo resultado como consequência normal e típica de uma certa conduta.
Deste modo, a causalidade deve considerar-se excluída não só quando o resultado era imprevisível, mas também quando, sendo previsível, era de verificação anormal ou muito rara.
O elemento configurador da censurabilidade da negligência reside na capacidade de cumprimento do dever objectivo de cuidado. Está aqui em causa um critério subjectivo, concreto ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as capacidades e qualidades do agente. Logo, se a adopção de um comportamento diferente for irrazoável ou inexigível, não podemos consubstanciar um juízo de censura dirigido ao agente e não há, por isso, fundamento para a punição.
A afirmação de um tal dever de cuidado far-se-á, caso a caso, em função das particulares circunstâncias de actuação do agente, constituindo auxiliares importantes nessa determinação as normas jurídicas que impõem aos seus destinatários específicos deveres e regras de conduta no âmbito de actividades perigosas.
A nível subjectivo a punição do agente depende do facto deste se encontrar em condições de reconhecer as exigências de cuidado que lhe dirige a ordem jurídica e de as cumprir, sendo ainda necessário que ao agente fosse possível actuar em conformidade com o dever violado.
E porque em causa está a omissão de um dever há que atender ao disposto pelo art. 10º do Código Penal nos termos do qual “Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei”. Sendo certo que, em conformidade com o n.º 2 do mesmo preceito, “A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o emitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado”.
No delito omissivo o não evitar do resultado típico pode equiparar-se à sua produção mediante um «facere».
No caso concreto, porém, não se indicia da matéria de facto recolhida que os arguidos D… e C… hajam violado qualquer dever de cuidado causal da ocorrência, porque não se indicia que tenha sido a omissão da reparação do portão que tenha permitido o ataque do canídeo, ao invés indicia-se que a ausência da aplicação dos meios de contenção por parte da arguida B… é que foi causal dos factos.
Em suma, tendo presentes os factos que o tribunal considerou indiciados e não indiciados, facilmente se alcança não se mostrar indiciada a prática pelos arguidos do tipo de ilícito que a assistente lhes pretende ver imputado, impondo-se, por isso, que seja proferida decisão de não pronúncia.
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Decisão:
Face ao exposto, por os autos não fornecerem indícios suficientes da prática dos factos que lhes são imputados pelos assistentes não pronuncio os arguidos D… e C… pela prática, em co-autoria material, de um crime de ofensa à integridade física negligente grave p. e p. pelos art. 10º, 15º e 144º do Código Penal e pelos art. 33º e 34º do DL 315/09 de 29/10 e determino, quanto a eles, o arquivamento dos autos.”.
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3. Apreciando e decidindo
3.1 Dos indícios
Por força do preceituado no art. 308º n.º 1, do Cód. Proc. Penal, “se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ao arguido é proferido despacho de pronúncia pelos factos respectivos, em caso contrário é proferido despacho de não pronúncia”.
O conceito normativo de indícios suficientes resulta do disposto no art. 283º n.º 2, do aludido Código, aplicável à fase de instrução por remissão expressa do seu art. 308º n.º 2, que comina que “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Assim, tanto a doutrina como a jurisprudência têm maioritariamente entendido que o juízo de indiciação positivo há-se ter como fundamento subjacente a alta probabilidade de condenação futura, ou pelo menos uma maior probabilidade de condenação do que de absolvição.
In casu, a questão controvertida relaciona-se com a possibilidade de imputação do crime de ofensas à integridade física negligente aos arguidos C… e D… na sequência do ataque de um dos cães de raça Rottweiler que tinham na sua casa de morada de família à ofendida G….
O tribunal a quo, seguindo na esteira do despacho de arquivamento do Ministério Público, afirmou, na decisão recorrida, a impossibilidade de o fazer por não haver indícios de que os mencionados arguidos tivessem violado qualquer dever de cuidado causal da ocorrência, pois que esta teria sido unicamente determinada pela ausência de aplicação dos meios de contenção ao canídeo pela sua detentora na ocasião, ou seja a arguida B….
Por seu turno, os assistentes pugnam pela apreciação da situação numa perspectiva dinâmica concluindo que foi a conjugação de toda uma série de circunstâncias, incluindo a omissão de reparação do portão por parte dos citados arguidos C… e D…, que potenciou e permitiu a verificação da ocorrência lesiva da integridade física alheia.
Vejamos.
3.2 Do quadro legal da detenção de animais perigosos e requisitos típicos do crime
In casu, é inquestionável que a produção da lesão no corpo e saúde da menor ofendida resultaram do ataque de um canídeo de raça rottweiler.
De harmonia com o disposto no art. 3.º, do Dec. Lei n.º 315/2009, de 29/10, na redacção da Lei n.º 46/2013, de 4/7, então em vigor[2], são considerados animais perigosos ou potencialmente perigosos os que se encontrem nas seguintes situações:
b) «Animal perigoso» qualquer animal que se encontre numa das seguintes condições:
i) Tenha mordido, atacado ou ofendido o corpo ou a saúde de uma pessoa;
ii) Tenha ferido gravemente ou morto um outro animal, fora da esfera de bens imóveis que constituem a propriedade do seu detentor;
iii) Tenha sido declarado, voluntariamente, pelo seu detentor, à junta de freguesia da sua área de residência, que tem um caráter e comportamento agressivos;
iv) Tenha sido considerado pela autoridade competente como um risco para a segurança de pessoas ou animais, devido ao seu comportamento agressivo ou especificidade fisiológica;
c) «Animal potencialmente perigoso» qualquer animal que, devido às características da espécie, ao comportamento agressivo, ao tamanho ou à potência de mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, nomeadamente os cães pertencentes às raças previamente definidas como potencialmente perigosas em portaria do membro do Governo responsável pela área da agricultura, bem como os cruzamentos de primeira geração destas, os cruzamentos destas entre si ou cruzamentos destas com outras raças, obtendo assim uma tipologia semelhante a algumas das raças referidas naquele diploma regulamentar.
Ora, é inegável - e tal não é sequer questionado - que os cães de raça rottweiler integram esta última categoria – v. ponto IV do Anexo à Portaria n.º 422/2004, de 24/4.
Resultando de criação selectiva (misturas artificiais) no sentido de potenciar características combativas e de guarda, pesando o macho adulto cerca de 50 kg, o cão de raça rottweiler (à semelhança de outros que integram a mesma categoria) é agressivo, forte e rápido na defesa do seu território, devendo ser educado e sociabilizado com outros cães e pessoas desde cachorro pois que o seu nível de agressividade está muito dependente do tipo de treino que lhe é proporcionado pelo dono, cuja companhia e atenção aprecia [daí que a solidão e confinamento sejam gatilhos para ataques inesperados de agressividade contra outros animais, bens ou pessoas], sendo certo que este deverá possuir alguma experiência ou conhecimentos que lhe permitam lidar com os desafios que resultam do temperamento e vigor físico desta raça de canídeos[3].
Daí que o legislador tenha imposto, no art. 21º, n.ºs 1 e 2, do citado Dec. Lei n.º 315/2009, a obrigatoriedade de treino, sendo agora dever legal dos detentores de cães potencialmente perigosos a promoção do treino destes, a iniciar entre os 6 e os 12 meses de idade, “com vista à sua socialização e obediência, o qual não pode, em caso algum, ter em vista a sua participação em lutas ou o reforço da agressividade para pessoas, outros animais ou bens”.
E, reconhecendo-se, actualmente, com maior certeza, fruto da experiência adquirida, que a perigosidade canina é potenciada por donos/detentores incapazes de proporcionar os cuidados e educação essenciais aos mesmos foi-lhes ainda imposta uma série de obrigações acrescidas, como decorre da previsão do art. 5º e segs., do aludido diploma legal, acrescida da imposição ao detentor de animal perigoso ou potencialmente perigoso de um “dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e de outros animais” e de manter medidas de segurança reforçadas, nomeadamente nos alojamentos e circulação na via pública, em lugares públicos ou em partes comuns de prédios urbanos – v. arts. 11º a 13º.
Como é bom de ver, face a tais exigências e obrigações, a simples contratação de um(a) tratador(a) não será suficiente para eximir os proprietários e detentores permanentes desses cães, da responsabilidade resultante dos actos contra a integridade física de terceiros perpetrados pelos seus animais.
Desde logo, por poder existir culpa in eligendo, ou seja responsabilidade adveniente da escolha de pessoa sem as capacidades e/ou os conhecimentos necessários para o efeito.
Depois, por culpa in instruendo, necessariamente decorrente do especial dever de cuidado e vigilância que impende sobre os proprietários ou detentores com carácter permanente dos canídeos e que não se transfere imediata, integral e automaticamente para o tratador, enquanto detentor ocasional ou provisório, sendo necessário que aqueles o vigiem e lhe transmitam as ordens e as instruções necessárias e adequadas ao bom desempenho das funções que lhe competem, tendo em vista a preservação da segurança e integridade física alheias.
E, a aferição da culpa há-de ser feita segundo o padrão do homem médio que detém cães potencialmente perigosos caldeado pelos conhecimentos e circunstâncias próprios dos agentes envolvidos, sendo a esta luz que há-de ser apreciada a estatuição do art. 33º, do citado Dec. Lei n.º 315/2009, que consagra a responsabilidade criminal de quem, por não observar deveres de cuidado ou vigilância, der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas graves à integridade física, cominando a pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Tratando-se, obviamente, de um tipo de ilícito punível a título de negligência e sabendo-se que “antes de tudo a negligência é omissão de um dever objectivo de cuidado ou diligência”[4], existe aqui a especificidade resultante do dever de vigilância legalmente imposto aos detentores.
Para se afirmar que o agente actuou com negligência é preciso, por conseguinte, que ele não tenha cumprido o dever de advertir o perigo para o bem jurídico protegido por omissão do cuidado ou vigilância devidos.
Cumpre ainda anotar que, ao conceito tradicional de negligência, referenciado na decisão recorrida, começa agora a afirmar-se a chamada «teoria do incremento do risco»[5], apoiada na premissa de que se a conduta incorrecta do agente fez aumentar a probabilidade de produção do resultado em comparação com o risco juridicamente permitido a este tipo de condutas, “existe uma violação do dever que se integra na tipicidade”, devendo punir-se o agente a título de crime negligente.
Se o agente, com a sua conduta, faz aumentar o perigo que ainda se tolerava, ou seja, se faz “em certo sentido subir as probabilidades de um certo evento […] isso faz com que a balança se incline a favor da protecção dos bens jurídicos e que resulte negligente a produção do resultado”[6].
Assim, o resultado deve ser imputado à conduta quando esta tenha criado, aumentado ou incrementado um risco proibido para o bem jurídico protegido e esse risco se tenha materializado no resultado típico.
Na hipótese em apreço é inquestionável que o evento directamente causal da ocorrência foi o facto do canídeo H… se encontrar solto e sem açaime no jardim/logradouro da residência dos arguidos C… e D… quando foi aberto o portão que dava acesso à via pública, pela arguida B…, por onde o mesmo logrou escapulir-se vindo a atacar a ofendida que, nesse momento, por lá passava com os avós.
A questão controvertida é a de saber se tal resultado apenas pode e deve ser imputado à falta de cuidado de tal arguida ou há-de abranger também os demais.
Delimitado, pois, o quadro em que nos movemos, cumpre descer ao caso concreto.
*
3.3 Da matéria fáctica indiciada
1ª Questão: A propriedade dos canídeos
Considerou o tribunal a quo que os canídeos “H…” e “J…” eram unicamente propriedade do arguido D…, ao que tudo indica, porque foi este quem os comprou e era ele quem pagava as suas despesas de alimentação, bem como foi ele quem contratou a arguida B… para deles cuidar.
No entanto, é também certo que os citados canídeos foram adquiridos na constância do matrimónio entre aquele e a arguida C…, foram alojados na respectiva casa de morada de família e aí continuavam à data do evento, pese embora o primeiro já lá não residisse com carácter de permanência, sendo inclusive também por ela alimentados [v. pontos 2 a 5 da matéria que o tribunal a quo considerou suficientemente indiciada, declarações do arguido a fls. 188/189 e da arguida B… a fls. 230 (“não queria os cães, mas dava-lhes de comer, não lhes batia”)].
Deste modo, não se vislumbra como excluir a compropriedade dos cães. Mas, não querendo arriscar-se tal específico vínculo jurídico, sempre restará a categoria de “detentora”, aliás a que interessa para efeitos de incriminação, segundo a definição legal consagrada na alínea f), do art. 3º, do Dec. Lei n.º 315/2009, pois que era a arguida C… quem tinha a respectiva guarda permanente ao contrário da arguida B… que apenas tinha a incumbência de os levar a passear e alimentar, todos os dias [versão do arguido – cfr. fls. 188 e 228] ou três vezes por semana [versão da arguida B… – cfr. fls. 229].
Acresce que, mesmo nessas alturas, os deveres de cuidado e vigilância dos três arguidos eram concorrentes e não sucessivos, isto é a circunstância da arguida B… se encontrar na residência a tratar dos canídeos não excluía, por si só, os deveres dos demais detentores sendo necessário demonstrar que aquela desobedecera ou incumprira as ordens ou instruções dos primeiros e daí resultara a fuga do H… com os resultados que se conhecem relativamente à ofendida.
Com efeito, mostra-se suficientemente indiciado que a arguida B… tinha 62 anos à data dos factos (conforme identificação fornecida aos autos nasceu a 21 de Maio de 1951), não tinha capacidade física para dominar os canídeos [vejam-se as declarações da própria (passeava um cão de cada vez… - fls. 230) e depoimento das testemunhas M… (“a senhora que os passeava não tinha força para eles, pois apenas se recorda de ter visto a senhora encostada à parede com as trelas na mão e um cão açaimado aos saltos e outro em cima da menina” – fls. 172) e L… (“enquanto o cão estava a atacar a menina veio uma senhora a correr com outro cão, mas este com trela e açaimado, e amarrou pela trela do cão e tentou puxá-lo mas não conseguia, acabando ele por largar a menina por ele mesmo” – fls. 174)], nem conhecimentos específicos relativamente aos cuidados que o tratamento e educação de cães desta natureza exigiam [tanto o arguido como a própria B… referem como única razão de tal incumbência o facto desta gostar de animais – v. declarações a fls. 228 e 229], tudo, pois, a demandar a supervisão e vigilância dos demais, com a consequente alteração do ponto 20 dos factos indiciados de molde a abranger todos os arguidos.
2ª Questão: A concausalidade do portão avariado
Considerou o tribunal a quo indiciado que os arguidos C… e D… sabiam que o portão da residência tinha o mecanismo automático avariado, tendo que ser aberto manualmente, e que se encontrava perro, mas que tal circunstância é alheia ao resultado danoso pois que este resultou unicamente do facto da arguida B… se ter esquecido de fechar o “H…” no canil e de lhe colocar o açaime.
Cremos, porém, que esta visão dos acontecimentos é manifestamente redutora e está intimamente relacionada com o facto de se ter considerado indiciariamente assente que a arguida B… foi contratada apenas para passear os cães (ponto 5) e que os cães estavam, habitualmente, fechados no canil vedado que o arguido edificou para o efeito (ponto 21).
Todavia, existe unanimidade na afirmação de que a arguida B… foi incumbida não só de passear os cães mas também de os alimentar e de proceder à limpeza do seu alojamento. E, os elementos probatórios e as regras de experiência comum ditam a conclusão de que os canídeos se encontravam, em regra, soltos no jardim/quintal/logradouro da residência.
Desde logo porque este tipo de cães é, por regra, utilizado como meio dissuasor da entrada de intrusos em vivendas e moradias ou outro tipo de residência mantendo-se em liberdade nos espaços adjacentes das mesmas e sendo apenas recolhidos ao respectivo alojamento (canil, box, jaula, etc.) para dormir e para evitar contacto com eventuais visitas.
Depois, é óbvio que a limpeza do canil sempre implicaria, em termos de normalidade, a remoção dos canídeos do seu interior.
Finalmente, embora a arguida B… venha nas suas últimas declarações afirmar que “passeava um cão de cada vez ficando o outro preso no canil, apenas desta vez se esqueceu” (declarações fls. 230), tal circunstância é contrariada pelas declarações do arguido D… das quais resulta precisamente que o normal era que tais animais permanecessem em liberdade no espaço vedado da residência (“No quintal os cães dispõem de um canil com cerca de 12 m2 onde podem ser fechados, mais estando o terreno da casa ladeado por muro” – declarações fls. 230), depoimento da testemunha I… (“chegou a ver os cães na rua, a passear junto ao portão, mas geralmente com açaime, uma vez viu um deles sem açaime, mas desta vez vinha de carro, e pensou ainda bem que não venho a pé”, “há cerca de dois anos sentiu-se ameaçado por estes dois cães, que se aproximaram do depoente, e os cães assustam por serem fortes e terem um ar agressivo, no entanto recorda-se que alguém os chamou e eles responderam, foram ter com a pessoa” – fls. 180. “Algumas vezes que os viu, o portão estava aberto e foi no interior da residência, e no exterior da mesma, junto ao portão, algumas das vezes acompanhados de uma senhora que sabe não ser a proprietária da casa…” – fls. 225) e mesmo do teor da placa colocada na residência após os factos, em cumprimento do disposto no art. 12º n.º 2 c), do Dec. Lei n.º 315/2009, que dá notícia de que não se deve entrar sem chamar devido a “cão feroz solto”[8] – v. 2ª fotografia de fls. 148.
Neste preciso contexto e sabendo os arguidos C… e D… que os canídeos permaneciam em liberdade no espaço exterior da sua residência e que o portão automático (e electrificado) desta se encontrava avariado, tendo que ser aberto manualmente, e com a agravante de estar perro devido a ferrugem, nada tendo feito para resolver a situação, durante cerca de 6 meses, não vislumbramos como sustentar que tal facto não contribuiu e até potenciou em larga escala o resultado danoso, ou seja a fuga do “H…” para o exterior e o ataque a uma criança que por aí passava na altura.
Veja-se que, de harmonia com as regras de experiência e de normalidade de acontecer, se o portão estivesse a funcionar automaticamente a arguida B… teria accionado o automatismo e poderia vigiar o outro cão que não trazia à trela, ou seja o “H…”, e afastá-lo do local, impedindo-o de sair para a rua. Porém, nas circunstâncias descritas nos autos, empenhada em duas tarefas claramente superiores às suas forças – abrir o portão avariado e perro e segurar a cadela “J…”-, não teve capacidade para vigiar o cão restante e obstar a que o mesmo conseguisse sair, nada indiciando que os donos da residência, sabedores da avaria e dificuldade de abertura do portão, da circunstância dos cães andarem soltos no jardim/logradouro/quintal e conhecedores das capacidades da arguida B… (contratada em 2006) lhe tenham dado quaisquer instruções no sentido de acautelar a segurança alheia enquanto tal situação se verificava ou se tenham sequer preocupado em tratar de mandar arranjar a avaria.
Assim sendo, a conclusão óbvia é a de que os arguidos não podiam ignorar que os canídeos podiam fugir e aceder à via pública sem açaime com prejuízo, além do mais, para a segurança e integridade física de terceiros.
E, embora não houvesse indícios de agressividade dos animais no sentido destes já anteriormente terem mordido, atacado ou ofendido o corpo ou a saúde de uma pessoa ou atacado ou ferido um outro animal, não podiam os arguidos ignorar que sobre os mesmos impendia uma presunção legislativa de perigosidade potencial para pessoas, animais e bens, não se vislumbrando que o comportamento escolhido seja de molde a densificar os deveres de cuidado e vigilância que a lei lhes impunha.
3ª Questão: A ausência de placas – art. 12º n.º 2, c), do Dec. Lei n.º 315/2009
Como decorre do despacho de arquivamento formulado pelo Ministério Público e da motivação da convicção exarada na decisão recorrida, os donos da residência onde se encontrava alojado o canídeo “H…”, ou seja os arguidos C… e D…, não acataram grande parte das imposições legais relativas à detenção de animais potencialmente perigosos [não possuíam seguro obrigatório de responsabilidade civil, não licenciaram os animais, não cumpriram as regras de segurança quanto ao alojamento dos mesmos, etc.] tendo-se, porém, considerado que tais violações eram alheias ao resultado danoso.
Cremos, no entanto, que a ausência de afixação visível e legível de placas de aviso da presença e perigosidade dos canídeos, não é totalmente inócua assumindo relevo e interferindo no resultado verificado porquanto a sua presença podia influenciar a escolha do percurso – sobretudo no caso de adultos idosos e/ou acompanhados de crianças – e o tipo de vigilância e atenção dos terceiros ao passarem no local[9]. Inexistindo, tais placas de aviso, foram a ofendida e avós que a acompanhavam surpreendidos pelo ataque do canídeo que não puderam impedir ou sequer atenuar (designadamente quanto à zona atingida).
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3.4 Concluindo
Neste conspecto, atento o exposto e revistos os indícios apurados, resta concluir que a matéria fáctica indiciada e não indiciada terá que ser alterada de modo a acolher a responsabilização dos arguidos C… e D… pelo crime que os assistentes lhe imputavam pois que o acervo probatório reunido permite, com segurança, fundar a convicção de que, uma vez submetidos a julgamento, será mais provável a sua condenação do que a absolvição, não podendo subsistir o despacho de não pronúncia.
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III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação julgar procedente o recurso interposto e, em consequência, revogar a decisão instrutória no que concerne à valoração dos indícios relativamente aos arguidos C… e D…, devendo o despacho de não pronúncia ser substituído por outro que, dando cumprimento ao disposto no art. 308º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, os pronuncie pelo crime de ofensas à integridade física negligentes, previsto e punível pelo art. 133º, do Dec. Lei n.º 315/2009, com referência, ex-vi art. 134º, ao art. 144º, do Cód. Penal, que os assistentes lhes imputavam.
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Sem custas - arts. 513º, n.º 1 e 515º, n.º 1, als. a) e b), ambos a contrario, e 522º n.º 1, todos do Cód. Proc. Penal.
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[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º n.º 2, do CPP]

Porto, 14 de Outubro de 2015
Maria Deolinda Dionísio – Relatora
Jorge Langweg - Adjunto
______________
[1] Numeração deste apenso como qualquer outra que venha a ser referida.
[2] As alterações introduzidas pela Lei n.º 110/2015, de 26/8, além de posteriores aos factos não relevam para a matéria em apreciação.
[3] Sobre a história e características destes canídeos podem ver-se, entre outras fontes, a Wikipédia e o Rottweiler Clube de Portugal.
[4] Eduardo Correia, in Direito Criminal I, Almedina, Coimbra, 1971, pág. 421.
[5] Com maior expressão em sede de acidentes rodoviários.
[6] Cfr. Claus Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal, 2ª Ed.
[7] Sublinhado nosso.
[8] Idem.
[9] Veja-se que a testemunha Q… dizendo ter-se deslocado ao local com alguma frequência alegou desconhecer a existência de cães nessa residência – cfr. segmento 04:08 a 04:15 do registo áudio do seu depoimento.