Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
67150/16.7YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: CONTRATO DE UTILIZAÇÃO DE CARTÃO DE CRÉDITO
TAXA DE JURO
Nº do Documento: RP2018041167150/16.7YIPRT.P1
Data do Acordão: 04/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTO Nº 821, FLS 120-127)
Área Temática: .
Sumário: I - Num contrato de utilização de cartão de crédito outorgado em 1994 são aplicáveis as taxas de juros, remuneratórios e moratórios, convencionadas pelas partes.
II - As instituições de crédito e sociedades financeiras podiam, então, estabelecer livremente as taxas de juros das suas operações, sem prejuízo da convocação do regime da usura.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 67150/16.7YIPRT
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Gondomar - Juiz 1

Acórdão
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
B..., S.A., com sede na Avenida ..., n.º ..., ....-... Lisboa, apresentou requerimento de injunção no qual pediu a notificação de C..., residente na Rua ..., n.º ..., ...., .... – ... Gondomar, para proceder ao pagamento da quantia global de €11.421,62, sendo €9.634,75 de, €1.633,87 de juros de mora e €153,00 de taxa de justiça.
Alegou que, sendo uma instituição financeira de crédito, se dedica ao financiamento de crédito e à gestão e emissão de cartões de crédito. No exercício dessa atividade, celebrou com a Requerida, em 02/08/1994, um contrato de atribuição de crédito, mediante o qual esta passou a ser titular de um cartão de crédito, com a atribuição do número ................ ao último dos cartões emitidos. A Requerida aderiu às condições gerais de utilização e correspetivos direitos e deveres, elaborados de acordo com o previsto no Aviso n.º 11/2001 do Banco de Portugal e do Regulamento (CE) n.º 2560/2001 do Parlamento Europeu e do Conselho de 19/12/2001, designadamente a possibilidade desta adquirir bens e/ou serviços pelo montante acordado entre este e o vendedor e efetuar operações de levantamento em numerário na rede de ATMs e aos balcões de bancos aderentes ao sistema Visa. Como tem a obrigação de proceder ao pagamento dos bens e/ou serviços adquiridos pela Requerida a terceiros, os respetivos valores são debitados no seu extrato da conta, sobre ela impedindo a obrigação de proceder ao seu pagamento. Desde 21/01/2016 que a Requerida não efetua qualquer pagamento do saldo em dívida, cujo valor ascende a €9.634,75, apesar de diversas vezes interpelada para o efeito. Em função do acordado são também devidos os juros de mora contratuais, calculados às sucessivas taxas praticadas pela instituição, em conformidade com o estabelecido pelas instruções do Banco de Portugal de acordo com o previsto no decreto-lei n.º 133/2009, de 2 de junho, desde 02/04/2015 até à data de entrada do presente requerimento de injunção; a taxa atualmente em vigor é de 29,700%, ascendendo nesta data a €1.7894,8. O montante de imposto de selo está incluído no valor dos juros de mora, sendo devidos os vencidos e os vincendos até integral pagamento à taxa anual de 29,700%.
Juntou documentos.
A Requerida deduziu oposição ao requerimento de injunção, aceitando a adesão ao cartão de crédito e a sua utilização para compra de bens e serviços, mas impugnou o montante exigido e os juros moratórios, por entender que a sua liquidação está limitada à taxa máxima legal para as operações comerciais, regulada no artigo 102.º do Código Comercial, fixada em 8% ao ano.

Remetidos os autos à distribuição, foi designada data para a realização da audiência de julgamento, a qual teve lugar com observância das formalidades legais. Foi pronunciada sentença com o seguinte dispositivo: “Nos termos e fundamentos expostos, decide o Tribunal julgar totalmente procedente, por totalmente provada, a ação e, em consequência,
- condenar a Requerida C... a pagar à Requerente B..., S.A. a quantia de € 11.268,62 (onze mil, duzentos e sessenta e oito euros e sessenta e dois cêntimos) e a pagar juros de mora, calculados à taxa de 29.700%, sobre a quantia de € 9.634,75 (nove mil, seiscentos e trinta e quatro euros e setenta e cinco cêntimos), desde a data de 22/06/2016 até integral e efetivo pagamento;
- decide condenar a Requerida a pagar à Requerente, a quantia de € 153,00 (cento e cinquenta e três euros), acrescida de juros compulsórias à taxa de 5%, a contabilizar desde a notificação do requerimento de injunção até efetivo e integral pagamento.”
A pedido da Requerente foi retificado último segmento decisório da sentença, que passou a exibir a seguinte redação: “- decide condenar a Requerida a pagar à Requerente, a quantia de € 153,00 (cento e cinquenta e três euros), acrescidas de juros compulsórias à taxa de 5%, a contabilizar desde a notificação do requerimento de injunção até efetivo e integral pagamento.”

Inconformada, a Requerida, C..., interpôs recurso da sentença, cuja alegação assim rematou:
“1º - As normas imperativas ou de interesse e ordem pública são irrevogáveis.
2º - A norma do artigo 1146º nº 3 do CC é uma norma imperativa: as convenções entre particulares celebradas para regulação de contratos privados não permitem a estipulação de taxas de juro superiores às do artigo 559º e 1146º do CC. Os valores de capital em dívida resultantes de celebração de um contrato de crédito, dada sua natureza comercial é aplicável o disposto no artigo 102º do Código Comercial que remete para as disposições citadas no Código Civil.
4º - A celebração de contrato mediante o qual uma das partes concede à outra crédito para bens de consumo integra-se na disciplina do Decreto-Lei 359/2011, de 21/09 que regula o regime específico sobre a taxa aplicável dos juros.
5º - No período em causa a taxa de juro aplicável é a 8% ao ano sobre o capital em dívida, em virtude de a Recorrente não ter optado pelo pagamento parcial da dívida. Aliás,
6º - cancelado o cartão ficam automaticamente revogadas todas as cláusulas do contrato e convencionadas sobre agravamento das taxas de juro.
Termos em que deve o presente Recurso ser julgado procedente, e a decisão recorrida anulada e substituída por outra que determine a rectificação do cálculo dos juros de capital em dívida à taxa de 8% ao ano, como é de JUSTIÇA.”

Respondendo, a Recorrida, B..., S.A., concluiu a sua alegação do seguinte modo:
a) O recurso interposto pela Apelante circunscreve-se apenas à condenação daquela no pagamento dos juros de mora à taxa contratual de 29,700% sobre o capital devido, desde 22/06/2016 até efectivo e integral pagamento, por entender que apenas serão devidos juros de mora calculados nos termos do artigo 102º do Código Comercial, o qual determina a aplicação dos juros comerciais ao abrigo do disposto nos artigos 559º A e 1146º do Código Civil.
b) Não assiste porém razão à Apelante, como aliás resulta clara e extensamente fundamentado da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, a qual não merece assim qualquer reparo ou censura, e à qual se adere!
c) Conforme decorre da douta sentença, é facto provado (entre outros) que:
“b) No exercício da atividade referida em a), a Requerente celebrou com a Requerida um contrato de atribuição de cartão de crédito, em 02/08/1994, através do qual esta passou a ser titular de um cartão de crédito cujo último emitido tem o n.º ................ (resposta ao artigo 2.º do requerimento de injunção e ao artigo 1.º do articulado de oposição ao requerimento de injunção).
c) Ao subscrever o contrato identificado em b), a Requerida aderiu às condições gerais de utilização do cartão (resposta ao artigo 3.º do requerimento de injunção e ao artigo 1.º do articulado de oposição ao requerimento de injunção).
f) Desde 21/01/2016 que a Requerida não pagou à Requerente o saldo em dívida resultante da utilização do cartão que se cifra em € 9.634,75 (resposta aos artigos 6.º, 7.º e 8.º do requerimento de injunção).
g) Apesar da Requerida ter sido diversas vezes interpelada para o efeito pela emissão e receção dos subsequentes extratos de conta do cartão (resposta ao artigo 9.º do requerimento de injunção).
h) Da utilização do cartão a quantia de € 9.634,75 é devida desde 02/04/2015 (resposta ao artigo 12.º do requerimento de injunção).
i) No contrato referido em b), foi estipulado na cláusula 17.ª das Condições Gerais de Utilização, Direitos e Deveres das Partes que “Em caso de não cumprimento da obrigação do pagamento mínimo acordado, a B... poderá exigir, quando a mora se prolongue por mais de 60 dias, e até efetivo pagamento da obrigação, juros moratórios correspondentes à soma da taxa de juro remuneratória anual vigente acrescida de dois pontos percentuais e dos correspetivos impostos, contados aqueles desde a data do vencimento da obrigação”, que atualmente é de 29.700% (resposta aos artigos 13.º e 14.º do requerimento de injunção). negrito e sublinhado nosso
d) Para tal decisão da matéria de facto o Tribunal a quo expendeu a seguinte fundamentação: “Para julgar os factos nos termos sobreditos o Tribunal procedeu à apreciação conjunta e crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, nomeadamente, o depoimento da testemunha inquirida; os documentos que se encontram juntos aos autos e; o acordo das partes. No que tange aos factos provados a), b), c) e i), o Tribunal teve em consideração o acordo das partes, uma vez que a Requerida não os impugnou, pelo que, têm de ser considerados assentes, nos termos do artigo 574.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. (…) E, especificamente quanto ao factos provados b), d), e) e i), o Tribunal também se ancorou no documento que se encontra junto aos autos de fls. 75 a fls. 80 que consubstancia o contrato celebrado entre as partes. Relativamente aos factos provados f), g) e h), o Tribunal teve em consideração o depoimento da testemunha D..., que na qualidade de funcionária da Requerente, tem conhecimento direto dos factos. Esta testemunha esclareceu o Tribunal que a Requerente é sua entidade patronal desde 1991; mais esclareceu que a relação contratual estabelecida entre as partes é bastante antiga; sendo certo que a Requerida apresentou um pedido de adesão ao cartão de crédito, através do E... em 1992. O cartão foi emitido e entregue à Requerida, explicou que se a Requerida não pagar os 100% da quantia utilizada existe uma taxa de juro contratada regulada pelo Banco De Portugal. Os problemas começaram a surgir em 2016. A partir de 2016 os pagamentos começaram a vir devolvidos, pois não havia provisão na conta. A Requerida fazia pequenos pagamentos e havia incumprimento pois não pagava os montantes mínimos contratados; o incumprimento da Requerida culminou no cancelamento do cartão. O valor do capital em dívida é de € 9.643,75, tendo ficado fixado no extrato de 2 de março de 2016, documento de fls. 122/123, no qual se verifica que a partir daí já não tem utilização do capital e juros; sendo que o último pagamento ocorreu em janeiro de 2016, conforme se pode verificar do extrato de fls. 120/121 e já não estava dentro dos mínimos contratados e taxa acrescida e do imposto de selo. Esclareceu, ainda, que a partir do momento em que o cartão é cancelado são efetuados contactos telefónicos com a Requerida para regularizar a situação e, que seja do seu conhecimento a Requerida não contactou a Requerente para regularizar a situação. (…) Finalmente, a Requerida não apresentou qualquer meio de prova em Juízo, pelo que não logrou provar como lhe competia nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil que tivesse efetuado qualquer pagamento relativamente à quantia em dívida e por si utilizada.”
i) A douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, repete-se não merece qualquer reparo ou censura!
j) Efectivamente, encontramo-nos perante um regime particular para as operações comerciais, nas quais as taxas de juro aplicáveis são estabelecidas com referência ou indexação à taxa máxima de operações de crédito activas, sendo determinadas por referência ou indexação à taxa de referência fixada pelo Banco de Portugal ao abrigo do Decreto-Lei 311-A/85, de 30 de Julho.
k) A este respeito cumpre ainda ter em atenção o disposto no Decreto-Lei 133/2009, de 2 de Junho que procedeu à transposição da Directiva comunitária relativa a contrato de crédito ao consumo, nomeadamente de atribuição de cartões de crédito, estabelecendo as novas regras a que tais contratos devem obedecer.
l) O referido diploma determinou a fixação de taxas máximas que as instituições financeiras devem respeitar nos novos contratos de crédito por este abrangidos, atribuindo ao Banco de Portugal, a responsabilidade pela identificação dos tipos de contrato de crédito relevantes para a determinação das respectivas taxas máximas e a sua divulgação ao público, trimestralmente.
m) E foi nesse contexto que as partes, Apelante e Apelada, contrataram, ao abrigo das condições gerais, que a taxa a aplicar seria a “taxa moratória máxima legal para as operações comerciais….”
n) Alega a Apelante que independentemente de tal convenção, e tal como foi decidido no Aresto proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa de 11/02/2010 (Proc. 24936/03.8YXLSB l.1.8) “e porque tal crédito ao consumo se integra na classificação legal de actos de comércio, cai na alçada do artigo 102º do Código Comercial, que determina a aplicação dos juros comerciais no disposto nos artigos 559º A e 1146º do CC”, concluindo pela imperatividade de tais normas.
o) Ora, como já devidamente fundamentado pelo Mmo. Juiz a quo, tal entendimento jurisprudencial recaiu sobre situação diversa da discutida nos autos ora em apreço e, acrescenta-se não corresponde sequer ao entendimento dominante na nossa melhor Jurisprudência e doutrina.
p) Com efeito, já recentemente (15/02/2018) o mesmo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, a propósito de questão idêntica quanto à determinação da taxa de juro, proferiu aresto no Proc. 92/17.3T8CSC.L1 onde se pode ler: “Conforme refere Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14-11-2017 (4) “A jurisprudência, sem qualquer excepção, tem vindo a entender que as taxas de juro bancárias, quer relativamente aos juros remuneratórios, quer quanto aos juros de mora, estão liberalizadas por força do disposto no n.º 2 do dito Aviso 3/93 de 20 de Maio de 1993, podendo instituições de crédito e sociedades financeiras estabelecer livremente as taxas de juro das suas operações, salvo nos casos em que sejam fixadas por diploma legal. (…) Como ensina o Prof. Menezes Cordeiro, in obra citada, pág. 683 “Desenha-se, hoje, uma certa tendência para liberalizar, em geral, a temática dos juros. Os Estados e os bancos centrais dispõem de fórmulas indiretas mas eficazes para gerir a política dos juros, enquanto o Direito civil e as leis de tutela dos consumidores podem, em concreto, resolver as situações injustas. Mas a inexistência de limites máximos leva os bancos nacionais a praticar juros impensáveis. Por exemplo, num mútuo para investimento, a cinco anos, com garantia hipotecária sobeja a fiança dos sócios solventes: 8%. Nos empréstimos para consumo, ou através de cartão, as taxas podem ir a 20%. Impunha-se uma intervenção legislativa” Não podemos deixar de concordar com o Prof. Menezes Cordeiro e seguir a jurisprudência dominante de que as taxas de juro bancárias, quer relativamente aos juros remuneratórios, quer quanto aos juros de mora, estão liberalizadas por força do disposto no n.º 2 do Aviso 3/93 de 20 de Maio de 1993, podendo instituições de crédito e sociedade financeiras estabelecer livremente as taxas de juro das suas operações, salvo nos casos em que sejam fixadas por diploma legal. “Portanto, os juros moratórios à taxa de juro contratualizada pelas partes incidem a partir do momento em que se figura o incumprimento da obrigação, podendo dizer-se que correspondem ao que o credor pode exigir pelo facto de ter prestado ou de não ter recebido o que se lhe devia prestar. Como tal são devidos até ao momento do efectivo pagamento da obrigação”
q) Por tudo, o supra exposto, dever-se-á manter a sentença proferida pelo Tribunal “a quo” julgando-se improcedente in totum o recurso interposto pela Apelante, assim se fazendo a devida e costumada Justiça!”

II. Objeto recursivo
O thema decidendum é balizado pelas conclusões da alegação do recorrente [artigos 635º/4 e 639º do Código de Processo Civil (CPC)], pelo que cabe apreciar se é legítima a taxa de juros contratualizada pelas partes.

III. Fundamentação de facto
a) A Requerente é uma instituição financeira de crédito que, devidamente autorizada, se dedica ao financiamento de crédito e à gestão e emissão de cartões de crédito (resposta ao artigo 1.º do requerimento de injunção).
b) No exercício da atividade referida em a), a Requerente celebrou com a Requerida um contrato de atribuição de cartão de crédito, em 02/08/1994, através do qual esta passou a ser titular de um cartão de crédito cujo último emitido tem o n.º ................ (resposta ao artigo 2.º do requerimento de injunção e ao artigo 1.º do articulado de oposição ao requerimento de injunção).
c) Ao subscrever o contrato identificado em b), a Requerida aderiu às condições gerais de utilização do cartão (resposta ao artigo 3.º do requerimento de injunção e ao artigo 1.º do articulado de oposição ao requerimento de injunção).
d) Através do referido cartão de crédito foi concedido à Requerida a possibilidade de esta adquirir bens e/ou serviços pelo montante acordado entre este e o vendedor, bem como, efetuar operações de levantamento em numerário na rede ATM e aos balcões de bancos aderentes ao sistema Visa (resposta ao artigo 4.º do requerimento de injunção).
e) E, a Requerente obrigou-se a proceder ao pagamento dos bens e/ou serviços adquiridos pela Requerida a terceiros, os quais posteriormente são debitados no extrato de conta da Requerida para pagamento (resposta ao artigo 5.º do requerimento de injunção).
f) Desde 21/01/2016 que a Requerida não pagou à Requerente o saldo em dívida resultante da utilização do cartão que se cifra em € 9.634,75 (resposta aos artigos 6.º, 7.º e 8.º do requerimento de injunção).
g) Apesar da Requerida ter sido diversas vezes interpelada para o efeito pela emissão e receção dos subsequentes extratos de conta do cartão (resposta ao artigo 9.º do requerimento de injunção). h) Da utilização do cartão a quantia de € 9.634,75 é devida desde 02/04/2015 (resposta ao artigo 12.º do requerimento de injunção).
i) No contrato referido em b), foi estipulado na cláusula 17.ª das Condições Gerais de Utilização, Direitos e Deveres das Partes que “Em caso de não cumprimento da obrigação do pagamento mínimo acordado, a B... poderá exigir, quando a mora se prolongue por mais de 60 dias, e até efetivo pagamento da obrigação, juros moratórios correspondentes à soma da taxa de juro remuneratória anual vigente acrescida de dois pontos percentuais e dos correspetivos impostos, contados aqueles desde a data do vencimento da obrigação”, que atualmente é de 29.700% (resposta aos artigos 13.º e 14.º do requerimento de injunção).
j) A Requerida fez a utilização do cartão para compra de bens e serviços (resposta ao artigo 2.º do articulado de oposição ao requerimento de injunção).

IV. Fundamentação de direito
Da decisão recorrida a Recorrente dissente apenas da condenação nos juros peticionados pela Autora com três ordens de razões: o artigo 1146º/3 do Código Civil é uma norma imperativa e, por isso, aos contratos privados não podem ser aplicadas taxas de juro superiores, sendo, no caso aplicável o disposto no artigo 102º do Código Comercial; a taxa de juro aplicável é a 8% ao ano sobre o capital em dívida, por não ter optado pelo pagamento parcial da dívida; com o cancelamento do cartão de crédito ficam automaticamente revogadas todas as cláusulas do contrato, designadamente as convencionadas sobre agravamento das taxas de juro. Argumentos que passaremos a decantar.
A autora é uma instituição financeira de crédito e, nesse âmbito, celebrou com a Recorrente, em 02/08/1994, um contrato de atribuição de crédito, mediante o qual aquela passou a ser titular de um cartão de crédito, deixando por solver o saldo em que foi condenada, segmento sentenciador que não questiona.
A decisão recorrida fundamentou, de forma profusa, o enquadramento jurídico do cartão de crédito, que o decreto-lei n.º 359/91, de 21 de setembro, vigente à data dos factos, qualificou explicitamente como contrato de crédito ao consumo [artigo 2.º/1, alínea a), doravante denominado RJCC]. Não obstante esse diploma legal ter sido revogado pelo decreto-lei n.º 133/2009, de 2 de junho, a verdade é que, como sinalizado pelo tribunal a quo, o contrato sob destaque, porque outorgado em 02/08/1994, está abrangido pelo respetivo regime jurídico.
Como é sabido, a prestação é exigível quando a obrigação se encontra vencida ou o seu vencimento depende, de acordo com estipulação expressa ou com a norma geral supletiva do artigo 777º/1 do Código Civil, de simples interpelação ao devedor. Não tendo a devedora cumprido a sua prestação – solvência do saldo do cartão de crédito no prazo convencionado , como a obrigação tinha prazo certo venceu-se a mesma nessa data e é, desde então, exigível pela credora. Está provado que a Recorrente foi recebendo da credora a emissão dos extratos com a especificação dos bens e serviços por si adquiridos e por ela pagos sem que tenha restituído o valor mutuado.
No tocante aos juros, a sentença limitou-se a condenar a devedora nos juros que esta convencionou com a credora. A Recorrente parece defender estar em causa um mútuo liquidável em prestações e que, por isso, o seu vencimento imediato não implica o pagamento dos juros remuneratórios. É verdade que essa matéria, no âmbito da interpretação do artigo 781º do Código Civil, sobre as dívidas liquidáveis em prestações, deu azo ao proferimento do Acórdão Uniformizador Jurisprudência de 25 de março de 2009[1], no qual se consignou: “No contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas prestações ao abrigo da cláusula de redação conforme ao art.º 781 do CC, não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados.” Só nessas circunstâncias contratuais, quando ocorre o vencimento antecipado das prestações vincendas se deverão restringir os juros remuneratórios à parcela de capital ainda por satisfazer, ficando necessariamente excluído o demais que apenas seria devido se fosse mantido o prazo de vencimento das restantes prestações[2]. No caso, o valor mutuado no período convencionado não foi pago pela devedora na data acordada, verificando-se o incumprimento do contrato, vencendo-se a dívida, independentemente da possibilidade de eventual acordo para ulterior amortização em prestações, o que nem sequer foi alegado[3]. Não revertendo a situação dos autos a uma dívida liquidável em prestações, não houve vencimento antecipado de prestações vincendas e isso é que justificaria a restrição dos juros remuneratórios à parcela de capital ainda por satisfazer.
No tocante aos juros moratórios, defende que é devida apenas a taxa legal prevista para os juros comerciais por a mutuante ser uma empresa comercial. Não lhe assiste razão, porque essa taxa só é devida quando as partes não convencionem, por escrito, uma taxa de juro diferente[4]. Ora, o contrato de atribuição de cartão de crédito a que a Recorrente se vinculou foi reduzido a escrito e é expresso quanto à taxa de juro convencionada, pelo que é essa a aplicável.
O regime jurídico do crédito ao consumo não prevê qualquer taxa para os juros contratuais, remuneratórios ou moratórios, e nem sequer uma taxa máxima, deixando à liberdade contratual das partes a sua fixação. Posição que a jurisprudência vem adotando nos casos em que o concedente do crédito é uma instituição de crédito ou sociedade financeira, sujeitas à supervisão do Banco de Portugal, no entendimento de que se encontram liberalizadas as taxas de juro nas operações ativas daquelas entidades, pelo menos desde 1993, face ao disposto no Aviso do Banco de Portugal n.º 3/1993, de 20 de maio. Efetivamente, o crédito bancário e para-bancário está submetido a legislação especial, com a concessão ao Banco de Portugal de latos poderes na fixação das taxas de juros, qualquer que seja a natureza e a forma de titulação do crédito, não conhecendo limites, designadamente os derivados do artigo 1146º do Código Civil[5]. Asserção que enjeita o aduzido argumento do limite derivado desse preceito, por força da sua imperatividade, e que, a ser assim, limitaria gravosamente o funcionamento do mercado bancário. Numa economia de mercado, como a nossa, as taxas de juros bancárias estão liberalizadas, tal como o evidencia o nº. 2 do referido Aviso 3/93 do Banco de Portugal, ao dispor que “são livremente estabelecidas pelas instituições de crédito e sociedades financeiras as taxas de juro das suas operações, salvo nos casos em que sejam fixadas por diploma legal”. Logo, carece de densidade jurídica a adução da Recorrente na invocação da imperatividade do artigo 1146º do Código Civil para alcançar a pretendida redução da taxa de juros, pois não tem aplicação à situação contratual que apreciamos[6].
Na doutrina não encontramos a unanimidade da jurisprudência. Embora havendo quem defenda a liberalização das taxas de juro nos créditos bancários e parabancários[7], alguns autores entendem que a liberalização das taxas de juro nas operações ativas levadas a cabo por instituições de crédito e sociedades financeiras resulta de um diploma regulamentar, emitido depois da revogação da norma habilitante (a Lei Orgânica do Banco de Portugal de 1975), que não tem a virtualidade de derrogar normas legais de natureza claramente imperativa, como são os citados artigos 102.º do Código Comercial e 1146.º do Código Civil. Medida em que entendem que, face à hierarquia das fontes, o referido Aviso do Banco de Portugal não obsta, por si só, à aplicação dos limites impostos pelas identificadas normas às operações de crédito ativas das instituições de crédito e sociedades financeiras[8]. Afirmam que “Da comparação dos três regimes legais, da LOBP 75, da LOBP 90 e da LOBP 98, resulta com clareza a perda pelo Banco de Portugal da competência para fixar os limites de taxas de juro das operações ativas bancárias. Logo na LOBP 90 deixou de haver qualquer preceito que atribuísse ao Banco Central essa competência, e assim se manteve na LOBP 98. E, no entanto, os Avisos emitidos pelo Banco de Portugal em que regeu sobre taxas de juro TAEG continuam a referir como normas habilitantes o artigo 17º da LOBP 98, além do artigo 28º do Decreto-Lei nº 133/09, de 2 de junho (que rege atualmente o crédito ao consumo)”[9].
No fundo, a divergência destes autores redunda apenas de um argumento formal: a falta de lei habilitante para o Banco de Portugal fixar os limites de taxas de juro das operações ativas bancárias. É certo que os avisos e instruções do Banco de Portugal constituem regulamentos e situam-se num nível hierarquicamente inferior às fontes de direito administrativo e bancário. Donde a sua subordinação à lei e dependência de lei habilitante, não podendo inovar mas apenas executar[10]. O decreto-lei 644/75, de 15 de novembro, que aprovou a Lei Orgânica do Banco de Portugal (LOBP) de 1975, com vista à orientação e controlo das instituições de crédito, dentre as suas competências previa a fixação do regime das taxas de juros, comissões e quaisquer outras formas de remuneração para as operações efetuadas pelas instituições de crédito ou por quaisquer outras entidades que atuem nos mercados monetário e financeiro [artigo 28º/1, b)]. A LOBP de 1990, aprovada pelo decreto-lei 337/90, de 30 de outubro, vigente à data da outorga do contrato em causa, não manteve essa expressa estatuição, mas não deixou de preceituar que, para orientar e fiscalizar os mercados monetário, financeiro e cambial, cabe ao Banco de Portugal, além do mais, “[R]egular o funcionamento desses mercados, adotando providências genéricas ou intervindo, sempre que necessário, para garantir o cumprimento dos objetivos da política económica, em particular no que se refere ao comportamento das taxas de juro e de câmbio [artigo 22º/1, a)] . Prescrição que contém, na nossa ótica, a competência da fixação das taxas de juros. De todo o modo, a livre fixação das taxas de juro não pode distanciar-se da lei material que, à data, se encontrava em vigor no regime dos contratos de crédito ao consumo (RCC) e ela não estabelecia qualquer teto para a taxa de juros estipulado em contratos de crédito ao consumo, não obstante as evidentes preocupações legislativas de proteção ao consumidor. Inexistindo normas específicas sobre a taxa aplicável aos juros, remuneratórios ou moratórios, a mesma fica na disponibilidade das próprias partes, numa manifestação natural decorrente do amplo princípio da liberdade contratual e da autonomia da vontade. A Ré aceitou as condições de utilização e pagamento do saldo do cartão de crédito, efetuou com ele compras de bens e serviços em estabelecimentos comerciais, suportados pela Autora, e não procedeu ao pagamento convencionado.
Ademais, o Banco de Portugal tem reconhecimento constitucional (artigo 102.º da CRP) e cabe-lhe exercer a supervisão dos comportamentos e práticas das instituições de crédito e sociedades financeiras, instituições de pagamento e instituições de moeda eletrónica, incluindo estabelecendo regras de conduta no relacionamento destas com os clientes[11]. É nesse contexto que o Banco de Portugal está legitimado a emitir regras, apresentadas sob a forma de avisos publicados na II Série do Diário da República, e que contêm normas jurídicas que se impõem às instituições financeiras em geral.
Do expendido resulta que a demandante estava legitimada a contratualizar os juros à taxa convencionada, sendo a Recorrente responsável pelo pagamento dos juros convencionados. Vinculou-se ao pagamento da quantia do saldo devedor até certa data limite (02/04/2015), e o não o tendo feito, são devidos desde então juros moratórios à taxa convencionada [artigo 805º/1 e 2, a), do Código Civil][12].
Consabido que a fixação de uma taxa de juro muito elevada é tradicionalmente tratada em sede de usura, o Aviso n.º 3/93 não impede a convocação dos artigos 282.º a 284.º do Código Civil, quando se verifiquem os respetivos requisitos[13].
O decreto-lei n.º 133/2009, de 2 de junho, regulou a matéria da usura no contrato de crédito ao consumo (artigo 28º) e o decreto-lei n.º 42-A/2013, de 28 de março, introduziu profunda alteração nesse regime, consagrando um duplo limite, bastando que um dos valores máximos relativos à taxa de juro seja ultrapassado para se considerar o contrato de crédito como usurário (artigo 28º). Não foi, no entanto, alegada e provada matéria de facto reconduzível à usura.
Pugna a Recorrente que o cancelamento do cartão de crédito revoga automaticamente todas as cláusulas do contrato, designadamente as convencionadas sobre agravamento das taxas de juros. Afirmação que carece de total fundamento, porquanto a sua vinculação às consequências do seu incumprimento deriva do período de valimento do contrato. A solução que sufraga retiraria sentido prático às cláusulas de um qualquer contrato que, por qualquer razão, se extinguisse, bastando a cessação contratual para o devedor se eximir ao seu cumprimento. Como resulta dos princípios gerais dos contratos, os mesmos vinculam as partes nos precisos termos em que elas se obrigaram e, não obstante a sua cessação, salvo as especificidades da invalidade, continuam sujeitas ao dever de prestar o que dele dimana.

Como decaiu na apelação, cabe à Recorrente suportar as respetivas custas (artigo 527º/1 do CPC).

V. Dispositivo
Perante o relatado, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e confirmar, por conseguinte, a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante.
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Porto, 11 de abril de 2018.
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
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[1] Publicado no Diário da República, 1ª série, de 5 de maio de 2009.
[2] In www.dgsi.pt: Ac. RL de 23/04/2013, processo 2552/12.3TJLSB.L1-7.
[3] In www.dgsi.pt: Ac. RC de 20-09-2016, processo 183554/14.0YIPRT.C1.
[4] In www.dgsi.pt: Ac. RL de 17/01/2012, processo 1833/10.5TJLSB.L1-1.
[5] Simões Patrício, in R.T. - ano 95, pág. 341.
[6] In www.dgsi-pt: Acs. STJ de 27/05/2003, processo 03A1017; RL de 11/02/2010, processo 24936/03.8YXLSB.L1-8; RG de 19/06/2012, processo 74/08.7TBVVD-A.G1; RC de 11/03/2014, processo 892/09.4T2AGD-A.C1; RP de 14/11/2017, processo 474/15.5T8ESP.P1 (acórdão seguido de perto, por nele ter adjunta a presente relatora).
[7] Simões Patrício e Augusto Athayde, citados nos indicados acórdãos.
[8] Carlos Gabriel da Silva Loureiro, in Revista de Estudos Politécnicos 2007, Vol V, nº 8, págs. 265-280; Pedro Pais de Vasconcelos, Taxas de Juro do Crédito ao Consumo – Limites Legais, ebook direito bancário- CEJ.
[9] Pedro Pais Vasconcelos, ob. e loc. citados.
[10] In www.dgsi.pt: Ac. RL de 6-12-2017, processo 56086/14.6YIPRT.L1-2.
[11] In www-dgsi.pt: Ac. RL de 06-12-2017, processo 56086/14.6YIPRT.L1-2.
[12] In www-dgsi.pt: Ac. RL de 17-01-2012, 1833/10.5TJLSB.L1-1.
[13] Jorge Morais Carvalho, E-Book do CEJ, dezembro de 2014, Direito do Consumo, pág. 193; in www.dgsi.pt: Ac. STJ de 13/12/2001, processo n.º 01B3590.