Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1699/10.5YXLSB.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: CONTA BANCÁRIA
AUTORIZAÇÃO PARA MOVIMENTAR CONTA
HERANÇA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
HERDEIRO
ILEGITIMIDADE
CUSTAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/16/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Da autorização para movimentar uma conta bancária não se pode extrair a autorização para actos de disposição dos valores nela depositados.
II – Essa autorização (que não se prova existir também no interesse do autorizado) caduca com a morte do autorizante a partir do conhecimento dessa morte pelo autorizado.
III – No enriquecimento sem causa por intervenção, ao contrário do que se passa no enriquecimento por prestação, cabe ao enriquecido o ónus da prova da existência de causa jurídica para o enriquecimento.
IV – Se o autorizado levanta o dinheiro depositado na conta bancária e passa a tratar de tal quantia como se fosse sua, dá origem à extinção do crédito da herança sobre o banco, ficando o banco exonerado perante a herança, cujos titulares terão que pedir a restituição ao enriquecido.
V – Se um dos herdeiros pede a condenação da autorizada a pagar-lhe (a ele) o valor que levantou, em vez de pedir a restituição do enriquecimento (para a herança), há ilegitimidade material do autor a conduzir à inevitável improcedência do pedido (e não se pode levantar, na fase do recurso da sentença a questão da ineptidão da petição inicial, por força da preclusão decorrente do art. 206/2 do CPC).
VI – As custas da reconvenção subsidiária e do recurso subsidiário (isto é, de um reconvenção ou recurso que só serão apreciados se o pedido ou o recurso formulado pela autora forem julgados procedentes) devem ficar a cargo da ré, se não chegarem a ser conhecidos por não se ter cumprido a condição da qual dependia a sua apreciação pelo tribunal (art. 447º do CPC).
(da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

“A”, intentou a presente acção, contra “B”, pedindo a condenação desta a pagar-lhe 10.000€, acrescida de 1.691,40€ de juros vencidos e ainda dos vincendos até integral pagamento.
Para tal alegou - em síntese mas com a utilização da construção e termos da autora - que em 22/05/2006 faleceu “C” de quem a autora e o irmão são os únicos herdeiros; a falecida era titular de duas contas bancárias; no dia do falecimento a ré, tendo conhecimento do falecimento, levantou 10.000€ das contas da falecida; a ré alega que tal quantia se destinou ao pagamento do funeral da falecida, mas tal não corresponde à verdade já que o custo do funeral importou em 3.745,69€, tendo a ré recebido do Centro Nacional de Pensões 2.315,40€ e nada restituiu à autora ou ao irmão desta, apesar de instada para o fazer; a ré tem a obrigação de pagar à autora e a autora o direito de receber os 10.000€, até porque, ao não entregar tal quantia, a ré coloca-se inclusivamente numa situação de enriquecimento sem causa, com as consequentes obrigações que de tal facto advêm (art. 473º do Código Civil); tal quantia nunca deveria ter sido levantada pela ré, pelo que à mesma acrescem juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal.
A ré contestou: a título de impugnação diz - sempre em resumo -, que, ao contrário do alegado pela autora, o saldo das contas da falecida não pertence automaticamente aos seus herdeiros, porque a herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido (art. 2068º do CC) pelo que os herdeiros só teriam direito ao que sobrasse da herança depois de pagos os encargos da mesma; a título de excepção, acrescenta que no dia do falecimento procedeu ao levantamento de 10.000€ das contas da falecida porque a) estava autorizada a movimentar as contas, b) os 10.000€ levantados destinavam-se (segundo instruções da falecida) ao pagamento do funeral da falecida (que podia atingir uma quantia elevada e a ré tinha de estar preparada para tal) e c) a verba restante pertencia-lhe porque lhe foi oferecida (= ficaria para ela, diz mais à frente) pela falecida em pagamento dos muitos serviços que lhe prestou; conclui pela improcedência do pedido.
E deduziu reconvenção subsidiária (pois que a antecede da expressão: “quando assim se não entenda”) contra a autora, com base no seguinte: tendo em conta os serviços acabados de referir, que valoriza em 19.500€, diz que tem direito à diferença entre eles e os 10.000€, mais a diferença entre o custo do funeral (3.745,69€) e o que recebeu do CNP (2.315,40€), no total de 10.930€.
A autora respondeu à excepção e à reconvenção, impugnando os factos respectivos e concluindo no sentido da sua improcedência.
*
Realizado julgamento, foi proferida sentença julgando a acção improcedente e absolvendo a ré do pedido. Nada se disse, na decisão, quan-to à reconvenção, mas na fundamentação conclui-se pela improcedência da reconvenção, por não provada, e diz-se que a ré decaiu na reconvenção pelo que foi condenada em metade das custas devidas em juízo.
A autora interpôs recurso desta sentença, - para que seja revogada e substituída por outra que julgue a acção procedente -, terminan-do as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. A autora fundamenta a sua pretensão no facto de ter havido um enriquecimento sem causa por parte da ré à custa dos herdeiros da falecida, nomeadamente da autora.
2. A ré assume o seu enriquecimento, mas baseia-se para o ter feito, por um lado, numa autorização bancária supostamente assinada pela falecida, cinco dias antes do falecimento e durante o seu internamento hospitalar de mais de três meses, numa altura em que já não falava, nem comia sem auxilio, e
3. Por outro lado, dizendo que efectuou tal levantamento para custear o funeral (art. 5º da contestação da ré).
4. “C”, faleceu no dia 02/05/2006, às 10h (facto 1 da sentença e assento de óbito de fls. 7 aí referido).
5. No dia do falecimento, às 10h58m (ou seja após o faleci-mento ter ocorrido) a ré procedeu ao levantamento de 10.000€ das contas da falecida (facto 4 da sentença).
6. Sem que os herdeiros desta lhe tivessem dado autorização para tal.
7. De acordo com o alegado pela própria ré, no art. 5 da sua contestação, tal quantia destinava-se ao pagamento do funeral da falecida.
8. O funeral teve o custo de 3.745,60€ (facto 6 da sentença).
9. A ré recebeu do Centro Nacional de Pensões, referente ao funeral da falecida, a quantia de 2.315,40€ (facto 7 da sentença e art. 16 da contestação da ré).
10. Pelo que, efectivamente, a ré apenas despendeu 1.430,20€ com o funeral.
11. Nunca tendo devolvido qualquer quantia à autora ou ao irmão desta, únicos herdeiros da falecida.
12. Na altura do levantamento efectuado pela ré, as contas bancárias da falecida pertenciam já à herança, uma vez que a sucessão se abre no momento da morte do seu autor – cfr. art. 2031º do CC.
13. Assim sendo, perante a prova apresentada, estão reunidos os três requisitos necessários para que haja um enriquecimento sem causa por parte da ré, ou seja, houve um enriquecimento (a ré obteve uma vantagem de carácter patrimonial), tal enriquecimento careceu de causa justificativa (o levantamento foi efectuado após a morte da titular das contas, facto do qual a ré assume ter conhecimento, pois diz que o dinheiro levantado se destinava ao funeral, sem que os herdeiros dessem autorização para tal) e foi obtido à custa do património hereditário da autora.
14. Encontrando-se assim verificados os requisitos do art. 473º do CC.
A ré apresentou contra-alegações defendendo a improcedência do recurso. No essencial, segue a argumentação da sentença recorrida e dá uma outra forma ao argumento que tinha utilizado na contestação: quando levanta o dinheiro das contas da falecida, paga o funeral e fica com o restante, não está a enriquecer, mas apenas a cobrar dívidas da falecida pelas quais a herança responde (art. 2068º do CC).
Para além disso, também recorreu da sentença – para que, no caso de se considerar procedente o recurso da autora, seja revogada a decisão quanto à reconvenção, substituindo-se tal decisão por uma outra que julgue procedente a reconvenção – dedicando, no meio do corpo das contra-alegações, uma parte delas à reconvenção, com o seguinte teor:
7. Como já vai dito e está provado por testemunhas (vide nºs. 9 a 12 da sentença), a ré/recorrida prestou serviços à falecida de Janeiro de 2001 a Maio de 2006, num total de 65 meses ou 1950 dias.
8. A ré/recorrida trabalhava em média duas horas por dia para a falecida, pelo que teremos 1950 x 2 = 3.900 h x 5€ = 19.500€.
9. Infelizmente, a Srª juíza a quo entendeu que o pedido reconvencional não pode proceder por falta de prova da quantidade de horas trabalhadas e do custo desse trabalho.
10. Com o devido respeito, a ré/nesta parte recorrente, não concorda com a Srª juíza a quo porquanto as testemunhas comprovaram esse trabalho e porquanto o valor de 5€/h é habitual no serviço doméstico (e havia trabalhadores domésticas que já ganhavam mais).
Não apresenta conclusão propriamente dita quanto a tal recurso, pois que aquilo que apresenta sob forma de conclusão tem o conteúdo, já referido acima, de pedir a procedência da reconvenção, por provada.
A autora não contra-alegou
*
Em cumprimento do disposto no art. 3º/3 do CPC, ouviram-se as partes sobre a possível verificação da excepção dilatória da ineptidão da petição inicial.
A autora veio, para além do mais (o mais que ela diz será considerado abaixo, a outro propósito), lembrar que, como resulta do disposto no art. 206/2 do CPC, a ineptidão da petição inicial só pode ser conhecida no despacho saneador ou, não havendo este, na sentença final, ficando, depois disso, precludida a possibilidade do conhecimento da mesma [cita o ac. do TRL de 11/02/2003 (188/2003-7) que invoca no mesmo sentido, o ac. do STJ de 29/06/1995, na CJSTJ.II, pág. 144, o ac. do STJ de 15/04/1993, na CJSTJ.II, pág. 62, e o ac. do STJ, de 02/04/1992, no BMJ 416°/642; Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3ª ed., 1998, pág. 269, Lebre de Freitas, no CPC anot., vol. I, 1ª edição, pág. 357; ac. do STJ de 18/02/1999, na CJSTJ.I, pág. 114].
Por sua vez, a ré veio sugerir que seria possível suprir a referida contradição, atribuindo-a a lapsus linguae ou calami, tendo em conta que a ré foi absolvida do pedido e que a anulação de todo o processado e consequente novo processamento iria implicar gasto de tempo a toda a má-quina judicial.
*
Questões que cumpre solucionar: se, ao contrário do que se entendeu na sentença, também se verifica o requisito da falta de causa para o enriquecimento da ré e se isso implica uma decisão em sentido contrário a à recorrida. As questões quanto ao recurso da ré serão desenvolvidas adiante se tal se tornar necessário atenta a subsidiariedade do recurso da ré.
*
Os factos dados como provados são os seguintes:
1. No dia 22/05/2006, faleceu, sem deixar testamento, “C” – cfr. assento de óbito de fls. 7.
2. Deixou como herdeiros a autora e o irmão desta, “D”.
3. “C” era titular de duas contas bancárias na Caixa Geral de Depósitos: a de depósitos à ordem n.º .../.../..0 e a poupança reformado n.º .../.../..5.
4. No dia do falecimento, a ré, às 10h58m, procedeu ao levantamento de 10.000€, das contas da falecida.
5. Correu termos no DIAP de Lisboa o inquérito crime 635/06.8PKLSB, no qual a ré foi arguida, que mereceu o seguinte despacho de arquivamento, já transitado em julgado: «assim e face ao exposto, por falta de indiciação, determino o arquivamento dos autos nos termos do art. 277º/2 do Código de Processo Penal.»
6. A “E” – Agências Funerárias emitiu em nome da ré o recibo com data de 24/05/2006 com a seguinte descrição e montante: funeral realizado a 23/05/2006 da Exma. Sra. D. “C”, que saiu do Hospital de São José para a Igreja de São Francisco de Assis e desta para o Cemitério do Alto de São João, no total de 3.745,69€.
7. O Centro Nacional de Pensões emitiu em nome da ré, e esta recebeu, o documento que consta de fls. 16 com a identificação “pagamentos por uma só vez” no valor de 2.315,40€.
8. O documento de fls. 67 é a cópia da “ficha de autorizados” emitida pela CGD, está datado de 17/05/2006, assinado, no campo “dos titulares”, com o nome “C” e, no campo “Do(s) Proc/Aut.”, com o nome da ré e tem o seguinte conteúdo, além do mais que aqui se dá por reproduzido: «autorização – restrições ‘nenhumas’ – declaro(amos) conceder a ‘“B”’ (…), na qualidade de meu (nosso) representante, todos os poderes de que disponho(mos) como titular(es) desta conta com as restrições assinaladas» – cfr. doc. de fls. 66-67.
9. A falecida era frequentadora da Pastelaria “F”, onde a Ré trabalhava como empregada de balcão.
10. A ré deslocava-se a casa da falecida diariamente, com excepção do dia de folga daquela, para lhe levar o pequeno-almoço e o lanche.
11. A ré passava frequentemente horas em casa da falecida.
12. Em ocasiões não concretamente determinadas, a ré levou a falecida ao médico ou ao hospital, fez compras por conta desta, desempenhou trabalhos de higiene pessoal e praticou tarefas de serviço doméstico em casa desta.
13. A falecida manteve ao seu serviço três senhoras, alternadamente, de nome ““G””, ““H”” e ““I””, desde, pelo menos, Março de 2005 até Fevereiro de 2006.
14. A falecida esteve internada no Hospital de S. José entre 06/02/2006 e 22/05/2006.
15. A ré usou parte do montante referido em 4, para custear o funeral da falecida.
*
Da fundamentação da sentença
A sentença, seguindo o ensinamento de Antunes Varela (Obriga-ções em Geral, Almedina, vol. I, 8ª ed., págs. 484 e segs), enumera três requisitos da obrigação de restituir: i) que haja um enriquecimento de alguém; ii) que o enriquecimento careça de causa justificativa; iii) que ele tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição (ou do seu antecessor).
E depois de dizer (e fundamentar) que “[n]o caso sub judice, não se colocam dúvidas de particular relevância quanto ao 1º e 3º requisitos [sendo que em relação a este entendeu que o enriquecimento aconteceu à custa do património hereditário na qual a ora autora seria sucessora]”, passou a discutir a verificação do 2º requisito, isto é, “se o enriquecimento, contra o qual a autora reage, tem ou não causa justificativa”.
E quanto a isto diz:
“[…] Na situação dos autos, a situação de enriquecimento não provém de uma prestação do empobrecido ou de terceiro, nem de uma obrigação assumida por um ou outro, mas de um acto de intromissão do enriquecido em direitos ou bens jurídicos alheios – a transferência bancária de uma dada quantia de uma conta da falecida para uma sua própria [da ré]”.
E continua:
“Está provado que a ré dispunha de uma autorização, emitida pela falecida, para movimentar as contas desta última (ponto 8 dos factos provados). Demonstrou-se, ainda, que a ré manteve um relacionamento estreito com aquela falecida, tendo-lhe prestado um conjunto de serviços, e, ainda, que usou parte do dinheiro proveniente da transferência bancária para custear o funeral da decessa (pontos 10 a 12 e 15).
Ora, este conjunto de elementos – em particular, a autoriza-ção bancária – inculca a conclusão de que a ré teve o assentimento da falecida – a original proprietária do património – para praticar actos de disposição (de teor não concretizado, é certo) sobre esse mesmo património, no caso, os valores monetários depositados na conta bancária identificada na “ficha de autorizados”. […]
Assim sendo, há uma causa justificativa – ainda que não cabalmente esclarecida – para a ré ter beneficiado desta atribuição patrimonial à custa do acervo hereditário da falecida. Sendo que, de acordo com o princípio geral de repartição do ónus da prova, estabelecido no art. 342º do CC, a prova da falta de causa da atribuição patrimonial sempre teria de ser alegada e provada por quem pede a restituição do indevido.
Como salienta, mais uma vez, o Prof. Antunes Varela (ob. cit., pág. 492), não bastará para esse efeito que não se prove a existência de uma causa de atribuição; “é preciso convencer o tribunal da falta de causa”.
Por tudo o exposto, é de concluir que falhou a prova de um dos fundamentais requisitos da existência de enriquecimento sem causa, sendo a acção de improceder.”
*
Quer isto dizer que a sentença fundamenta a não verificação de um dos requisitos do enriquecimento sem causa – conclusão que a autora põe em causa no seu recurso -, por duas vias alternativas:
- uma, a de que ficou provada uma causa justificativa para o enriquecimento.
- outra, a de que não ficou provada a falta de causa justificativa.
*
Da existência de causa para o enriquecimento
Quanto à primeira via, a construção falha ao concluir, a partir de um conjunto de factos provados (8, 10 a 12 e 15), por um outro. É que, ao contrário do que se diz, da prova daqueles factos (que, no essencial, se traduzem numa autorização para movimentação de contas bancárias) não se pode concluir este último (o de que: “a ré teve o assentimento da falecida […] para praticar actos de disposição […] sobre esse mesmo património). Ou seja, daquela autorização, mesmo tendo em conta os outros factos invocados, não decorre qualquer autorização para proceder a actos de disposição do dinheiro que estava naquelas contas. Para que aquela (autorização) incluísse estes (actos de disposição), teria de ter sido alegado e provado algo mais do que o que ficou provado. E por isso é que a ré, para além da autorização, alegava instruções da falecida (instruções que não ficaram provadas…).
Um exemplo tornará mais claro o que antecede: se A dá autorização ao gestor da sua conta bancária para a movimentar, não lhe está a dar autorização para dispôr do dinheiro que lá está. Está sim, como a própria ré o entendeu, a dar-lhe autorização para movimentar a conta de acordo com instruções que lhe dê, simultânea ou posteriormente. Ora, a sentença recorrida por um lado não toma em consideração que não deu como provada a existência de instruções e, por outro lado, conclui por um facto que não estava alegado pela ré nem consta dos factos provados (autorização para a prática de actos de disposição).
A comparação com a situação da procuração (relevante porque, como se vê do documento em causa – facto 8 –, a ré é considerada representante), também ilustra a situação: se A dá a B poderes para agir em seu nome, nada mais existe do que uma legitimação de B para actuar em nome de A perante terceiros e a autorização do mesmo para a “intromissão” gestória na esfera do representado. A actuação concreta de B, ao gerir os interesses de A, terá depois de ser feita de acordo com a relação gestória, ou seja, a relação que determina a ou serve de base à procuração (arts. 264º/1 e 265º/1, ambos do CC). Daí que se diga que, se a relação gestória derivar de um mandato, “a gestão do mandatário desenrola-se de acordo com as instruções do mandante, de acordo com o ‘querido e programado’ por este, o qual manifesta e revela, assim, o seu interesse” (Januário Gomes, Contrato de Mandato, AAFDL, 1991, pág. 279; de forma mais desenvolvida, veja-se, do mesmo autor, em Tema de revogação do mandato civil, Almedina, 1989, págs. 237 a 243; no mesmo sentido, Menezes Cordeiro, Direito Civil Português, Tomo III; 2001, Almedina, págs. 179/180: “[…A] lei pressupõe que, sob a procuração, exista uma relação entre o representante e o representado, em cujos termos os poderes devem ser exercidos […]. A efectiva concretização dos poderes implicados por uma procuração pressupõe, assim, um negócio nos termos do qual eles sejam exercidos: o negócio base.”
Ora, perante os factos provados não é possível retirar qualquer relação gestória que desse à ré poderes de disposição sobre o património da falecida.
Com isto afasta-se a primeira via de fundamentação da sentença, ou seja, conclui-se que não se pode dizer que existisse uma causa jurídica para o enriquecimento.
*
Da argumentação da autora contra a fundamentação da sentença
A argumentação da autora, tendo agora em conta tudo o que antece-de, também poderia, com adaptações, afastar esta via de fundamentação da sentença… com uma ressalva.
Veja-se:
A autora diz que quando a ré levantou o dinheiro das contas da falecida, já o óbito tinha ocorrido e por isso já o dinheiro não pertencia àquela, mas sim à herança, de que eram titulares os herdeiros da falecida. Pelo que, uma autorização da falecida já não seria relevante, sendo antes necessária uma autorização dos herdeiros.
Ora, aceitando-se que os factos se passaram como a autora diz – isto é, que o óbito ocorreu antes do levantamento, para o que também se teria que levar aos factos provados a hora da morte da falecida, com recurso àquilo que consta da certidão de óbito junta aos autos, se tal fosse possível, o que agora não interessa discutir –, com a morte da titular das contas, o sujeito interessado no acto (a autorizante/representada) tinha deixado de existir, o que levaria à caducidade da relação gestória que estivesse na base da autorização, pois que nada se prova que permitisse concluir que a relação gestória também existisse no interesse da ré (neste sentido, com referência ao mandato, veja-se Januário Gomes, Contrato de mandato, pág. 391: “devendo a caducidade do morte do principal ser fundamentalmente explicada pelo facto de desaparecer o sujeito interessado no acto, não se justificando que o mandatário continue a gestão vinculando os herdeiros do mandante que podem preferir uma nova orientação gestória ou assumir a gestão […]”.
Caducidade que ocorreria a partir do momento em que a morte fosse conhecida da ré.
Tudo isto com base na aplicação – directa ou analógica - da regra do art. 1175º do CC (:“a morte […] do mandante […] faz caducar o mandato […] a partir do momento em que seja conhecida do mandatário […]”).
Só que aqui funcionaria a ressalva anunciada: com os dados provados não é possível dizer que quando a ré levantou o dinheiro já tinha conhecimento do falecimento da titular das contas. E a autora não recorreu da decisão da matéria de facto para tentar que fosse dado como provado esse facto por ela alegado mas que foi dado como não provado.
*
Quanto à objecção da ré - de que quando levanta o dinheiro das contas da falecida, paga o funeral e fica com o restante, não está a enriquecer, mas apenas a cobrar [a ré deve ter querido dizer ‘pagar’] dívidas da falecida pelas quais a herança responde (art. 2068º do CC) - seria evidente a improcedência da mesma, nem que mais não fosse porque a ré não invoca quaisquer poderes para actuar em nome da herança.
*
Da causa jurídica e do ónus da prova
Quanto à segunda via da fundamentação da sentença ela é, como se disse, a seguinte: o ónus da prova dos requisitos do enriquecimento sem causa cabe à autora (art. 342º/1 do CC). Um dos requisitos é a falta de causa. A autora não provou a falta de causa. Logo a pretensão da autora improcede.
Só que, como a sentença também diz, “[…] Na situação dos autos, a situação de enriquecimento não provém de uma prestação […], mas de um acto de intromissão d[a] enriquecid[a] em direitos ou bens jurídicos alheios – a transferência bancária de uma dada quantia de uma conta da falecida para uma sua própria [da ré]”.
Ora, como lembra Antunes Varela, obra citada na sentença, na 9ª edição, Almedina, 1998, págs. 498 a 503, “a causa varia consoante a natureza jurídica que lhe serve de fonte”. E, nos casos em que “a situação de enriquecimento […] provém […] de um acto de intromissão do enriquecido em direitos ou bens jurídicos alheios […]” “saber se o enriquecimento criado […] assenta ou não numa causa justificativa […t]rata-se de um puro problema de interpretação e integração da lei, tendente a fixar a correcta ordenação dos bens à luz do direito vigente. Quando o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa; se, pelo contrário, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa” E em nota (2 da pág. 502) Antunes Varela também lembra que “é de facto para a correcta ordenação jurídica dos bens […] que Larenz […] e outros autores alemães apelam nos casos do tipo considerado […]”.
Quase no mesmo sentido, nesta parte, vai Menezes Leitão (O enriquecimento sem causa no direito civil, Cadernos de ciência e técnica fiscal, Lisboa, 1996, págs. 893 a 896): “Parece claro, no entanto, que o conceito de ausência de causa justificativa não pode ser entendido de forma idêntica no âmbito do enriquecimento por prestação e nas outras categorias de enriquecimento sem causa. […] No âmbito do enriquecimento por intervenção […] parece produtivo o recurso ao conceito de conteúdo da destinação dos direitos, considerando-se que uma obrigação não tem, em princípio, causa jurídica quando resulta na apropriação de bens ou utilidades destinadas a outrem através de um direito subjectivo ou de uma norma de protecção com um conteúdo patrimonial. Simplesmente, uma conclusão desse tipo implica fazer resultar automaticamente a ausência de causa jurídica a partir do requisito da obtenção do enriquecimento à custa de outrem no âmbito do enriquecimento por intervenção, o que implica deixar de atribuir relevo dogmático a este conceito nesta categoria de enriquecimento sem causa. É, efectivamente, preciso reconhecer que o elemento central no âmbito do enriquecimento por intervenção reside antes na obtenção do enriquecimento à custa de outrem, o que atribui ao conceito de ausência de causa jurídica um significado mais rudimentar, pelo que, demonstrado que alguém se ingeriu no conteúdo da destinação de uma posição juridicamente protegida do empobrecido, há apenas que averiguar se no âmbito das relações jurídicas entre enriquecido e empobrecido, existe alguma situação que legitime a manutenção do enriquecimento na esfera do enriquecido, como, por exemplo, um contrato celebrado, a posterior aprovação da conduta, ou uma permissão legal de ingerência. Essa relevância meramente excepcional da ausência de causa justificativa também se verifica no enriquecimento por despesas efectuadas, já que verificando-se a hipótese de alguém ter obtido um incremento no seu património em virtude de uma despesa que outrem suportou, esse incremento deverá ser restituído a quem suportou essa despesa, salvo se existir uma razão excepcional para a sua conservação. Daí que também neste caso se deva atribuir à ausência de causa justificativa um significado mais rudimentar, baseado apenas na inexistência de normas que autorizem a conservação excepcional do enriquecimento.” E em nota (13 da pág. 895) lembra: “Assim, Werner Lorenz […] refere que no âmbito do enriquecimento por intervenção os requisitos “à custa de outrem” e “ausência de causa jurídica” podem ser definidos em comum, no sentido de que é a não permitida utilização de bens alheios, o que determina que as aquisições dela resultantes devam ser restituídas” (a posição deste autor manteve-se nos subsequentes: O enriquecimento sem causa no Código Civil de 1966, Comemorações dos 35 anos do CC e dos 25 anos da reforma de 1977, Vol. III Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 2007, e Direito das Obrigações, Almedina, 2010).
E, nesta sequência, compreende-se que Júlio Manuel Vieira Gomes, (O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa, Teses, Universidade Católica Portuguesa, Porto, 1998, págs. 475 e 476), depois de dizer que o regime probatório das causas de enriquecimento é o de que cabe ao autor alegar e provar a falta de causa do [enriquecimento do] réu, acrescente que: “esta doutrina parece-nos exacta, no essencial, muito embora se pudesse sustentar tese oposta numa situação, a saber, quando o enriquecimento resulta da ingerência ou da interferência ilícita na esfera jurídica alheia. Nesta hipótese, poder-se-ia sustentar que o titular de tal esfera teria apenas que demonstrar a referida ingerência, além da existência do enriquecimento, cabendo ao interventor o ónus de alegar e provar uma justificação para a sua conduta (por exemplo, o válido consentimento do titular).”
Aproveitando-se todas estas posições, pode-se dizer que provada a ingerência na esfera jurídica alheia e o enriquecimento à custa desta (a apropriação de bens ou utilidades destinadas a outrem) pode-se concluir pela falta de causa justificativa, a não ser que o enriquecido alegue e demonstre a existência de uma causa para a manutenção do enriquecimento.
Ou seja, no enriquecimento por intervenção (art. 473º/1 do CC) é ao enriquecido que cabe alegar e provar alguma situação que justifique o enriquecimento obtido à custa da ingerência na esfera jurídica alheia.
*
Do enriquecimento à custa da herança
Assim sendo, tem necessariamente que ser outra a solução para a questão.
Os factos provados têm o seguinte enquadramento jurídico: a ré munida de uma autorização que se consubstancia numa procuração, agindo pois como representante de falecida, procedeu ao levantamento de 10.000€ das contas bancárias da herança. E passou a tratar tal quantia como se fosse dela, pois que com a mesma fez pagamentos de serviços (a terceiros) e recusa a restituição da parte restante de tal quantia (como decorre da contestação da pretensão da autora).
Com aquele levantamento, a ré deu origem à extinção (na medida desse levantamento) de um crédito da herança sobre o banco onde estava feito o depósito da quantia levantada. Com efeito, em consequência do depósito ou dos depósitos que foram feitos pela falecida, a propriedade do/s dinheiro/s depositado/s foram-se transferindo para o banco e a falecida, em vez deles, passou a ter um crédito sobre o banco no valor correspondente (Calvão da Silva, Direito Bancário, Almedina, 2001, pág. 348: “art. 1144º [por reenvio do art. 1206º]: as coisas mutuadas tornam-se propriedade do mutuário pelo facto da entrega, o que desnuda o depósito bancário como contrato real quoad effectum, sem deixar de ser simultaneamente contrato obrigacional quoad effectum, com o depositante a gozar do direito de crédito à restituição de tantundem eiusdem generis (crédito de valuta a que se aplica o princípio do nominalismo – art. 550º); desta sorte, o depositante troca a propriedade da soma depositada por um direito de crédito à restituição de outro tanto […]”; no mesmo sentido vai Menezes Cordeiro, Manuel de Direito Bancário, Almedina, 1998, págs. 467 a 480, especialmente págs. 472 a 480). Ora, devido à conduta da ré, a herança ficou desfalcada daquele crédito e o valor correspondente passou para o património da ré.
Como a ré estava munida de poderes para fazer aquele levantamento (embora não para extinguir o crédito), o banco, devedor, ao cumprir a sua obrigação perante o representante do titular da conta, fez o que devia (arts. 268º, 269º e 769º, todos do CC). Assim, aquela extinção do crédito é eficaz face à herança e por isso o banco está exonerado do débito na medida corresponde.
Pelo que se conclui que se prova a ingerência em património alheio e que o enriquecimento decorre dessa ingerência. Pelo que cabia agora à ré invocar e provar uma causa que justificasse que ela mantivesse no seu património a quantia levantada. A ré assim o entendeu (ou seja, que tinha que justificar a manutenção do dinheiro em seu poder) e por isso alegou os factos necessários para o efeito. Só que não os provou.
Pelo que deve ser satisfeita a pretensão da autora à restituição do enriquecimento obtido pela ré à custa do património hereditário.
Neste sentido, veja-se Menezes Leitão, obra citada, págs. 788 a 790:
“N[o] caso [do representante que efectua a cobrança do crédito ou celebra qualquer negócio em relação a ele, abusando dos seus poderes de representação], a lei faz depender a ineficácia do negócio em relação ao representado da situação do devedor conhecer ou dever conhecer o abuso da representação (art. 269º). Em consequência, o pagamento ou o negócio que ele celebre serão eficazes em relação ao credor (art. 769º), cabendo-lhe [ao representado] desencadear contra o representante a acção de enriquecimento sem causa. […]”
E mais à frente:
“as hipóteses em que o legislador considera excepcional-mente eficaz o pagamento efectuado a terceiro por razões de tutela da confiança do devedor, fazendo o terceiro responder perante o verdadeiro credor com fundamento no enriquecimento sem causa não podem ser qualificadas como hipótese de enriquecimento por prestação, não se adequando a nenhum dos casos previstos no art. 473º/2. Efectivamente, de acordo com a conclusão a que chegámos anteriormente só existe um enriquecimento por prestação quando se dá um incremento consciente e finalisticamente orientado do património alheio, realizado pelo autor da prestação.
Ora, nas hipóteses atrás enunciadas o enriquecimento realiza-se à custa de quem não realizou qualquer prestação, mas antes viu extinto o seu direito de crédito, em virtude de este ter sido usurpado por outrem. A hipótese deve, por isso, ser juridicamente qualificada como um caso de enriquecimento por intervenção. Não deve impressionar a circunstância de o enriquecimento depender da realização de uma prestação pelo devedor a terceiro, uma vez que a prestação neste caso é definida em conformidade com o programa obrigacional existente, segundo a teoria da realização real da prestação, prevista no art. 762º/1, abrangendo qualquer comporta-mento do devedor coincidente com esse programa, ao passo que o conceito de prestação no âmbito do enriquecimento sem causa é distinto […]. Por outro lado, no âmbito do enriquecimento por prestação o que determina a restituição é a frustração do fim da prestação, situação que neste caso não se verifica, uma vez que a prestação realiza-se com fundamento numa causa solvendi e a sua eficácia liberatória é plena. O que está, por isso, em causa é antes uma intervenção num direito de crédito que pertence a outrem, obtendo o interventor através do pagamento um bem jurídico (a prestação), reservado pela ordem jurídica ao verdadeiro titular do direito. Esta hipótese de enriquecimento sem causa integra-se, por isso, plenamente no âmbito do enriquecimento por intervenção.”
E nota 171, depois de referir a posição contrária de Antunes Varela (para quem o caso seria de enriquecimento por prestação) diz:
“valorativamente o relevante não é o acto do solvens, mas sim a circunstância de o cumprimento a terceiro provocar a extinção do crédito, devendo qualificar-se a recepção pelo terceiro como disposição do crédito alheio e consequentemente como enriquecimento por intervenção)”.
*
Da ilegitimidade material da autora
Chegados aqui e estando agora precisada a causa de pedir, tudo isto levanta uma outra questão, que é a de que o direito que a autora pretende exercer não lhe pertence a ela, mas sim à herança de que ela é apenas um dos dois interessados.
O crédito extinguido fazia parte do património da falecida. Com a morte (art. 2031º do CC), passou a fazer parte da herança desta, património de mão comum ou propriedade colectiva (veja-se por exemplo o artigo de J Martins da Fonseca, Herança indivisa, Sua natureza jurídica, Responsabilidade dos herdeiros pelas dívidas da herança, publicado na ROA 1986/II/567), da titularidade dos herdeiros, adquirida com a abertura da sucessão (arts. 1316º, 1317º e 2050º do CC). Sendo um património de mão comum, cada um dos herdeiros tem apenas uma parte indeterminada no mesmo património, não a titularidade de cada um dos bens que fazem parte da herança. Só com a partilha, é que cada herdeiro passa a ser considerado (embora reportadamente à abertura da herança), sucessor único dos bens que lhe forem atribuídos (art. 2119º do CC).
Dito por Antunes Varela: “Um negócio de partilha não constitui modo de aquisição da propriedade, visando apenas concretizar em bens certos e determinados o direito (anterior) do herdeiro a uma quota ideal da herança. O modo de aquisição é a sucessão por morte, tendo a partilha uma função meramente declarativa ou certificativa. Por isso, o art. 2119º estabelece que, «feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos»”.
No caso dos autos, a autora não invocou qualquer partilha dos bens da herança, pelo que, para já, não se pode dizer que o crédito extinguido pela ré, seja da autora, mas antes do património comum em que os herdeiros da falecida se limitam a ter parte ideal.
Sendo desse património, o pedido de restituição relacionado com o enriquecimento sem causa, teria que ser feito em benefício dele. Ora, a autora pede a condenação da ré a pagar-lhe a ela, autora, os 10.000€ em causa.
Há, pois, desde logo, uma notória falta de legitimidade material da autora para o pedido: não sendo dela o crédito extinguido, não tendo, por isso, o direito à restituição relacionado com a extinção do crédito nascido na sua esfera jurídica, pertencendo antes a um património pertencente a um conjunto de pessoas de que ela é apenas uma delas, a autora não podia pedir que a condenação da ré fosse a pagar-lhe a ela os 10.000€.
Como não é possível considerar, nesta fase processual, a questão da ineptidão da petição inicial - a autora, ao pronunciar-se sobre a questão levantada pelo relator deste acórdão, demonstrou, de forma suficiente, o erro do relator ao ponderar considerar, nesta fase processual, a questão da ineptidão -, resta tirar da notória falta de legitimidade material da autora para o pedido a devida consequência, que é a necessária improcedência do pedido, pois que a autora não tem o direito cuja satisfação visava com o pedido.
*
Não se trata de uma ilegitimidade processual, porque, tendo em conta a pretensão formulada pela autora (a condenação da ré a pagar-lhe a ela), ela tem interesse directo no litígio (art. 26º/1 e 2 do CPC), ou, dito de outro modo, ela é a credora na relação material controvertida por ela confi-gurada (art. 26º/3 do CPC – neste sentido, veja-se Castro Mendes, Direito Pro-cessual Civil, AAFDL, Vol. II, págs. 151 a 186, especialmente págs. 163 e 173).
*
Poderia discutir-se se a autora terá baseado a acção no enriqueci-mento sem causa, dada a forma como está redigida a sua petição (sinteti-zada no relatório supra de modo a tornar claro o invocado pela autora). Assim, quando a autora diz: “até porque, ao não entregar tal quantia, a ré coloca-se inclusivamente numa situação de enriquecimento sem causa, com as consequentes obrigações que de tal facto advêm”, parece que a autora entende que já invocou a causa de pedir e que está a invocar uma outra causa de pedir, alternativa, que é a do enriquecimento sem causa. No entanto, não diz qual seja a outra. Seja como for, se não é claro que assim seja na petição, é-o pelo menos nas alegações, em que ela apenas discute a verificação de um dos três requisitos do enriquecimento sem causa. Mas mesmo que a causa de pedir da autora não fosse o enriquecimento, a verdade é que, na construção da autora, seja ela qual for, o direito pertence sempre à herança e não à autora, pelo que o pedido de condenação da ré a restituir à autora não pode proceder.
*
Poderia, por outro lado, pensar-se que a autora estava a agir como herdeira (o pedido de reconhecimento da qualidade da autora como herdeira pode ser só implícito - ac. do TRC de 18/05/2010, 8/06.2TBTMR.C1) e a peticionar uma parte dos bens da herança (art. 2075º do CC - e teria legitimidade para agir sozinha: art. 2078º do CC). Mas então o pedido teria que ter sido de restitui-ção do enriquecimento (à herança) e não de condenação da ré a pagar algo à autora. Para além de que o tipo de pedido que tem a ver com a petição de herança não é o de restituição do enriquecimento (salvo a hipótese do art. 2076/2 do CC, que tem já a ver com situações subsequentes de alienação de bens a terceiros…).
*
Outra hipótese imaginável seria a de considerar que a autora estava a agir como cabeça-de-casal e a cobrar uma dívida activa da herança (art. 2089º do CC). Mas a resposta seria a mesma: não é possível transformar um pedido de condenação da ré a pagar algo à autora, em pedido de restituição do enriquecimento à herança. Para além de que a autora não invoca a qualidade de cabeça-de-casal, nem aliás a será (dado que na escritura de habilitação de herdeiros junta aos autos consta, como tal, o irmão…). E faltaria integrar a restituição do enriquecimento sem causa no conceito de dívida activa da herança.
*
A autora, ao pronunciar-se sobre a questão levantada oficiosamente pelo relator do acórdão, veio dizer que embora o pedido seja de pagamento à autora, está implícito que a quantia reclamada irá ser integrada na herança e repartida entre os herdeiros, pois que no art. 14 da petição inicial refere-se que a ré devia ter restituído à autora e ao irmão desta a quantia que sabia não lhe pertencer e no art. 2 da petição é referido que os únicos herdeiros da falecida eram a autora e o irmão desta.
Mas os factos alegados nos artigos 14 e 2 da petição não alteram o que consta do pedido, nem são um pedido formulado no meio dos articulados, nem permitem concluir que o pedido feito é para restituição à herança e não para pagamento à autora.
Por outro lado, afastada que foi, acima, a possibilidade de configurar esta acção como uma petição de herança, para que o pedido fosse feito para a herança, a autora teria que ter alegado que era a cabeça-de-casal da herança, ou que estava mandatada pelo cabeça-de-casal da herança para deduzir pedidos em nome desta.
E o mesmo se diga em relação ao irmão da autora. A autora não pode dizer que está a fazer o pedido também em nome do irmão, porque não invoca qualquer procuração em nome dele e ele nem sequer é parte neste processo.
E tudo isto também afasta a possibilidade de se seguir a sugestão da ré, de suprir o lapso - de se pedir para a autora aquilo que se diz ser da herança -, o que pode ser visto agora noutra perspectiva: a ré não pode invocar qualquer caso julgado em eventual acção que mais tarde venha a ser intentada contra si pela herança ou para a herança, pois que esta não é parte nesta acção e por isso a sentença não faz caso julgado contra ela.
*
Conclui-se por tudo o que antecede, que a autora não tem o direito que pretendeu exercer nesta acção (um crédito seu contra a ré) pelo que, embora por outros fundamentos, a sentença recorrida deve ser mantida.
*
Dada a subsidiariedade do recurso interposto pela ré – só para o caso do recurso interposto pela autora proceder – não há que conhecer do mesmo.
*
As custas, relativas ao pedido da autora e ao recurso desta, ficam a cargo da autora, porque foi ela que lhes deu causa (art. 446º/1 do CPC).
As custas, relativas ao pedido reconvencional e ao recurso subsidiário ficam a cargo da ré (art. 447º do CPC – aqui as razões são as mesmas das que são adiantadas para as custas da reconvenção subsidiária por Miguel Teixeira de Sousa, Reconvenção subsidiária, valor da causa e responsabilidade pelas custas, Cadernos de Direito Privado, nº. 7 Julho/Setembro 2004, págs. 15 a 17, que se parafraseiam assim, na parte que importa aos autos: entender que a autora seria responsável pelas custas relativas a uma reconvenção ou a um recurso da ré que, por serem subsidiários, não chegaram a ser conhecidos, seria colocá-la exactamente na situação que se verificaria se o pedido reconvencional e o recurso tivessem sido julgados procedentes contra ela. Ora, não parece admissível entender que basta que seja formulado um pedido reconvencional subsidiário ou que a ré interponha um recurso subsidiário para que a autora fique responsável pelas custas respectivas, quer esse pedido e recurso venham a ser julgados procedentes, quer não cheguem a ser apreciados. Essa responsabilidade seria uma responsabilidade objectiva e contrária à regra do art. 446º/1 do CPC. Se o pedido reconvencional subsidiário ou o recurso subsidiário da ré não chegaram a ser conhecidos pelo tribunal, porque não se cumpriu a condição (de procedência do pedido ou do recurso da autora) da qual dependia a sua apreciação pelo tribunal, não se pode dizer que a autora tenha ficado vencida no pedido reconvencional ou no recurso subsidiário e deva, por isso, responder pelas custas relativas à reconvenção ou ao recurso subsidiário. É a ré reconvinte ou recorrente subsidiária que, ao assumir o risco inerente à dedução de uma reconvenção ou recurso subsidiário (isto é, de um reconvenção ou recurso que só serão apreciados se o pedido ou o recurso formulado pela autora forem julgados procedentes), deve suportar as respectivas custas no caso de a reconvenção ou o recurso não chegarem a ser apreciados por não se preencher aquela condição. Por fim, a solução defendida favorece a rectidão da conduta do réu na dedução da reconvenção ou recurso subsidiários, pois que permite combater qualquer propósito de dedução de uma reconvenção ou recurso com o exclusivo intuito de vir a imputar ao autor da acção ou do recurso as respectivas custas, mesmo que o tribunal não venha a pronunciar-se sobre esse pedido ou recurso).
*
(...)

*
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso da autora, embora com fundamentação diversa da apresentada pela sentença recorrida, e prejudicado o conhecimento do recurso da ré.
As custas relativas à acção e ao recurso da autora ficam a cargo da autora, sem prejuízo do concedido apoio judiciário.
As custas relativas à reconvenção e ao recurso subsidiário ficam a cargo da ré, sem prejuízo do concedido apoio judiciário.

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2012.

Pedro Martins
Sérgio Almeida
Lúcia Sousa