Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
111/11.7SWLSB – 3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: INTERROGATóRIO DO ARGUIDO
GRAVAÇÃO LÍCITA
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECUSRSO PENAL
Decisão: IMPROVIDO
Sumário: I — O 1.º interrogatório judicial de arguido detido, sendo uma das diligências previstas no art. 268.º do CPP, é, nos termos do art. 275.º, n.º 1, do mesmo Corpo de leis, obrigatoriamente reduzido a auto. O que importa determinar são os termos em que esse auto deve ser elaborado.
II — Há que aplicar ao caso o regime geral da documentação dos actos processuais contido nos arts. 99.º a 101.º, do CPP.
III — A documentação das declarações oralmente prestadas é efectuada preferencialmente de forma a possibilitar a sua reprodução integral, constituindo a redacção por súmula uma solução a adoptar quando a reprodução integral não seja possível.
IV — Para permitir essa reprodução integral, o funcionário que elabora o auto pode redigi-lo empregando «meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, bem como socorrer-se de gravação magnetofónica ou audiovisual» (cf. art. 101.º, n.º 1 do CPP).
V — Quando utilizar meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, o funcionário faz a transcrição para a acta das declarações assim registadas (cf. art. 101.º, n.º 2 do CPP).
VI — Se tiver procedido à gravação magnetofónica ou audiovisual, o funcionário apenas deve conservar as gravações efectuadas e, em determinadas situações, fornecer cópia delas a quem, tendo legitimidade, o solicitar e fornecer um suporte técnico para o efeito (cf. art. 101.º, n.º 3 do CPP).
VII — A documentação de um acto com o registo integral das declarações oralmente prestadas pode, assim, assumir duas modalidades diferentes:
a) Aquela em que o próprio auto contém a sua transcrição integral;
b) Aquela em que o auto contém uma sinopse das diligências efectuadas, sendo o seu conteúdo rematado, no que às declarações prestadas oralmente se refere, pela gravação realizada.
VIII — A obrigação de documentar o 1.º interrogatório judicial de arguido detido, prevista no art. 275.º do CPP, não impõe que do respectivo auto constem as declarações prestadas oralmente.
IX — Tem agasalho na lei adjectiva penal portuguesa positivada a ordem dada pelo Senhor Juiz de Instrução Criminal de que a documentação das declarações prestadas no 1.º interrogatório judicial de arguido detido se faça através de gravação magnetofónica sem que isso acarrete necessariamente a sua transcrição no auto que é obrigatoriamente elaborado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO

1 – O Ministério Público, no termo do 1.º interrogatório judicial do arguido D…, cujas declarações haviam sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal, ditou para o auto o seguinte requerimento:

Na sequência da recomendação n.º 2/2010 de 2/11/10, emitida pela Sra. Directora do DIAP, requeiro o seguinte:

As declarações do arguido prestadas neste interrogatório foram registadas através de gravação magnetofónica.

A gravação das declarações do arguido em sede de primeiro interrogatório judicial não é permitida pelo Código de Processo Penal.

O art. 275.º, n.º 1, do C.P.P. refere que as diligências de prova realizadas no decurso do inquérito são reduzidas a auto, que pode ser redigido por súmula,

O art. 99.º refere que o auto deve conter determinados requisitos, designadamente a descrição das declarações prestadas.

Ao contrário do que acontece na instrução e no julgamento (vide artigos 296.º e 364.º), onde se prevê a possibilidade de gravação, as diligências de prova realizadas no inquérito devem ficar escritas.

A omissão deste formalismo constitui insuficiência de inquérito por não ter sido praticado acto legalmente obrigatório, nulidade prevista no art. 120.º, n.º 2, al. d), do C.P.P., que desde já se invoca.

Caso assim não se entenda, sempre deverá entender-se que a referida omissão constitui uma irregularidade, nos termos do art. 123.º do C.P.P., cuja reparação desde já se requer.

Depois de ter sido garantido o contraditório, o Sr. juiz proferiu o despacho que, na parte para este efeito relevante, se transcreve:

Não existe qualquer vício decorrente da não transcrição escrita das declarações do arguido em interrogatório ou da não existência de súmula dessas declarações.

Na realidade, tais declarações foram gravadas em suporte magnetofónico ao abrigo do disposto no art. 101.º do Código de Processo Penal, não havendo lugar a qualquer transcrição de acordo com o disposto no art. 101.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, desde a alteração operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.

Foram expressamente informados os sujeitos processuais dessa utilização aquando da realização do interrogatório, tendo sido disponibilizado o respectivo suporte digital nos termos gerais de processo.

A utilização desses meios não só se mostra mais útil para o Tribunal (designadamente de Julgamento, mas também de Instrução Criminal), pela melhor percepção das declarações do arguido, da sua atitude e credibilidade (pelo momento em que ocorrem), como se mostra mais fiável quanto ao próprio teor dessas declarações (as súmulas escritas, de acordo com o disposto no art. 100.º, n.º 2, do CPP, apenas devem corresponder ao essencial das declarações).

Não existe qualquer interesse, com relevância jurídica, na redacção por súmula de tais declarações, sendo até de duvidosa constitucionalidade (atendendo ao disposto no art. 32.º, n.º 1, da Constituição) a possibilidade de redacção do auto com uma súmula das declarações quando se encontram disponíveis, em concreto, meios que possibilitam a gravação de tais declarações por via magnetofónica, salvo em situações de manifesta simplicidade da imputação factual e do teor das declarações, porque tal meio de prova é muito menos sindicável, em recurso ou noutras fases do processo.

Por isso, em julgamento, com a introdução das sucessivas revisões do CPP, foi expressamente eliminada a possibilidade de qualquer declaração que deva constituir meio de prova ser redigida por súmula.

Não é apresentado um qualquer fundamento ou valor que suporte posição diversa (desconsiderando-se, por não ser atendível, nem ter qualquer suporte jurídico, o interesse do Ministério Público não participante do interrogatório em saber da posição do arguido sem ter de ouvir a gravação em causa).

E, note-se, o 1.º interrogatório judicial de arguido detido não constitui essencialmente uma diligência de investigação, antes mostra ser um acto judicial com vista à determinação ou aplicação de medidas de coacção, ou seja, um acto de garantia da posição processual do arguido que pode ocorrer em qualquer fase do processo (designadamente no caso dos arguidos contumazes).

No sentido ora sustentado, considerando a ausência de jurisprudência uniforme, veja-se a decisão de TRL de 10.10.2011 proferido no processo n.º 344/11.6PFLSB-B.L1, de 15/2011, e a decisão de STJ proferido no processo 2443/10.1TASTB-A de 5/05/2011.

Pelo exposto, improcede o promovido.

2 – O Ministério Público interpôs recurso desse despacho.

A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:

1. O despacho exarado pelo Mm.º JIC a fls. 32 e 33 violou por erro de interpretação e subsunção jurídica o disposto nos artigos 89.º, n.º 3, 94.º, 95.º, 99.º, n.ºs 1 e 3, al.) c), 100.º, 101.º, 120.º, n.º 2, al. d), 122.º, 123.º, 141.º, 275.º e 296.º (à contrario), todos do CPP.

2. De facto, através do aludido despacho, determinou aquele Magistrado que as declarações do arguido detido que lhe foi presente para primeiro interrogatório judicial, em sede de inquérito, fossem gravadas através do sistema de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso naquele Tribunal em vez de, tal como foi requerido e decorre da lei, serem reproduzidas por escrito no pertinente auto.

3. O Mm.º JIC interpretou aqueles normativos, mormente o art. 101.º do CPP, no sentido de permitir a substituição da redução a escrito das declarações prestadas pelo arguido, no decurso do primeiro interrogatório judicial, pela gravação das mesmas.

Para tanto, salientou que as declarações foram gravadas em suportes magnetofónicos ao abrigo do disposto no art. 101.º do CPP, não havendo lugar a qualquer transcrição de acordo com o disposto no art. 101.º, n.ºs 1 a 3, do CPP.

4. Interpelação que não tem qualquer apoio na letra da lei ou no espírito do legislador.

5. Na verdade, o legislador apenas previu e permite que as diligências orais de prova sejam gravadas, nos moldes em que o Mm.º JIC ordenou, na Audiência de julgamento, na instrução e, em sede inquérito, nas declarações para memória futura, estabelecendo pois, de certa forma, uma tipicidade para as fases processuais em que a gravação pode ser utilizada – cf. arts. 271.º, 296.º e 364.º do CPP.

6. O que se compreende se tivermos presente que a CRP actual apenas impõe o princípio da imediação e do contraditório na produção e valoração da prova em audiência de julgamento, tendo deixado à lei ordinária a faculdade de determinar quais os actos instrutórios que ficam subordinados a esse princípio.

7. Ora, se tivesse perfilhado o entendimento sustentado pelo Mm.º JIC e quisesse que a mesma (gravação) fosse utilizada no inquérito mormente no interrogatório do arguido nos mesmos moldes em que é utilizada em audiência de julgamento tinha-o dito claramente tal como o fez nos casos antes mencionado. Se o não fez é porque o não quis.

8. Facto que se torna por demais evidente se tivermos presente que, tal como decorre do art. 89.º, n.º 3, do CPP, na redacção que lhe foi dada precisamente pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto, o arguido, terminado o primeiro interrogatório judicial a que foi submetido, tem direito a consultar as peças processuais referidas neste normativo mormente as declarações prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial.

9. Devendo para o efeito (...) "os autos ou as partes dos autos a que o arguido, o assistente, o ofendido, o lesado e o responsável civil devam ter acesso serem depositados na secretaria, por fotocópia e em avulso, sem prejuízo do andamento do processo, e persistindo para todos o dever de guardar segredo de justiça”.

10. É evidente que, para tanto, necessário se torna que as declarações do arguido constem, por escrito, do aludido auto, já que, só assim, se pode extrair fotocópia das mesmas a fim de serem depositadas na secretaria por fotocópia e em avulso.

11. Aliás, basta consultar, quer as Autorizações legislativas em matéria de processo penal concedida nas Leis:

43/86, de 26 de Setembro (através da qual se fixou o sentido e alcance concedido ao Governo para aprovar o novo CPP) – cf. art. 2.º, n.ºs 19, 60, 76 e 77;

90-B/95, de 1 de Setembro;

27-A/2000, de 17 de Novembro, quer a Exposição de Motivos correspondente à proposta de Lei 109-X que esteve subjacente à actual redacção dos normativos em apreço introduzido pela Lei 48/2007, de 28 de Agosto, para se chegar àquela conclusão.

12. Impondo-se ainda ter presente que, tal como decorre do n.º 3 do art. 9.º do Código Civil:

"Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados."

13. Assim, tendo presente, o teor literal dos normativos em apreço, as Leis de autorização legislativa que fixaram o sentido e alcance concedido ao Governo para aprovar o novo CPP e a unidade do sistema jurídico, forçoso é concluir que o entendimento perfilhado pelo Mm.º JIC carece de qualquer fundamento legal, sendo contrário à lei.

14. De facto, o art. 101.º do CPP só permite ao funcionário de justiça ou ao funcionário de polícia criminal que redige o auto que se socorra, como meio auxiliar para o fazer (leia-se escrever), de meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, ou ainda de gravação magnetofónica ou audiovisual.

15. Em qualquer dos casos, o funcionário que tenha sido autorizado a utilizar os aludidos meios deve efectuar a transcrição para escrita comum.

16. O que aquele normativo não diz nem permite (ao contrário do decidido pelo Mm.º JIC) é que, no decurso do inquérito, a gravação, magnetofónica ou audiovisual, possa substituir a escrita comum como meio de elaboração de um auto.

17. Na verdade, tal como refere o Prof. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal II vol págs. 50 a 53, edição de 2008 da Editorial Verbo, a Lei 48/2007 introduziu no art. 101.º uma alteração aparentemente sem muita importância, mas que nos parece poder facilitar a prática de actos processuais que decorram oralmente. A saber:

A) ... "O n.º 3 do citado art. 101.º do CPP, aditado pela Lei 48/2007 dispõe que sempre que for realizada gravação, o funcionário entrega no prazo de quarenta e oito horas uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira e forneça ao tribunal o suporte técnico necessário. Cremos que esta faculdade tem de ser interpretado com as limitações decorrentes do art. 89.º, ou seja, conforme o processo se encontre ou não em segredo de justiça.

B) A lei refere-se ao tribunal, mas deve entender-se que abrange também o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal já que também na fase de Inquérito os sujeitos processuais indicados no art. 89.º podem consultar e obter certidões. "

C) Ou seja, de acordo com o Autor o significado útil desta alteração reside no seguinte:

"Não havendo ainda transcrição devem poder ouvir as gravações e obter cópia".

18. Logo, a omissão da redução por escrito, no auto, das declarações do arguido prestadas em primeiro interrogatório judicial, com observância do disposto nos artigos 94.º, 99.º e 100.º, viola os normativos referidos em 1;

19. Já que a omissão daquele formalismo terá de ser considerada como a ausência da prática de acto legalmente obrigatório integrador da nulidade prevista no art. 120.º, n.º 2, al. d), e 122.º do CPP;

20. Caso assim não se entenda, sempre a omissão daquele formalismo integra a irregularidade prevista no art. 123.º do CPP;

21. Devendo, em qualquer dos casos, revogar-se aquela decisão e, em consequência, ordenar-se a imediata elaboração do pertinente auto, a efectuar no TIC com base na aludida gravação, contendo, por escrito, a transcrição das declarações prestadas pelo arguido no decurso do primeiro interrogatório judicial.

3 – Não foi apresentada qualquer resposta à motivação do recorrente.

4 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 48.

II – FUNDAMENTAÇÃO

5 – A única questão que o presente recurso coloca é a de saber se a documentação das declarações prestadas no 1.º interrogatório judicial de arguido detido perante o juiz pode ser exclusivamente realizada através de gravação magnetofónica, sem que o seu conteúdo, integral ou por súmula, conste do auto que simultaneamente deve ser redigido, ou se, pelo contrário, a lei hoje vigente exige a transcrição dessas declarações prestadas naquele auto.

O 1.º interrogatório judicial de arguido detido decorre, normal mas não necessariamente, no decurso do inquérito, sendo esporádicos os casos em que ele tem lugar nas fases de instrução ou de julgamento.

Por essa razão e porque é precisamente isso que ocorre neste caso, debruçar-nos-emos exclusivamente sobre o 1.º interrogatório de arguido detido realizado no inquérito pelo juiz de instrução, o que não significa que a solução a que chegarmos não se possa aplicar aos interrogatórios realizados noutras fases processuais.

6 – De acordo com o n.º 1 do art. 275.º do Código de Processo Penal, «[a]s diligências de prova realizadas no decurso do inquérito são reduzidas a auto, que pode ser redigido por súmula, salvo aquelas cuja documentação o Ministério Público entender desnecessário».

Acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito legal que «[é] obrigatoriamente reduzida a auto a denúncia, quando feita oralmente, bem como os actos a que se referem os artigos 268.º, 269.º e 271.º».

Uma vez que o 1.º interrogatório judicial de arguido detido é uma das diligências previstas no art. 268.º, torna-se, portanto, obrigatória a redacção de um auto.

O que importa então determinar são os termos em que esse auto deve ser elaborado.

O art. 141.º do Código, disposição que regula o formalismo dessa diligência, nada contém quanto à sua documentação [O facto de as informações prestadas pelo juiz ao arguido deverem constar do auto (parte final do n.º 4 do art. 141.º) não implica que as declarações oralmente prestadas pelo arguido devam nele ser transcritas.].

Daí que, a nosso ver, tenhamos que aplicar ao caso o regime geral da documentação dos actos processuais contido nos artigos 99.º a 101.º do Código.

De acordo com o n.º 1 da primeira destas disposições, «[o] auto é o instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos processuais a cuja documentação a lei obrigar e aos quais tiver assistido quem o redige, bem como a recolher as declarações, requerimentos, promoções e actos decisórios orais que tiverem ocorrido perante aquele».

Nos termos do corpo e da alínea c) do n.º 3 desse mesmo preceito, o auto contém, nomeadamente, além dos requisitos previstos para os actos escritos, a «[d]escrição especificada das operações praticadas, da intervenção de cada um dos participantes processuais, das declarações prestadas, do modo como o foram e das circunstâncias em que o foram, dos documentos apresentados ou recebidos e dos resultados alcançados, de modo a garantir a genuína expressão da ocorrência».

A documentação das declarações oralmente prestadas é efectuada preferencialmente de forma a permitir a sua reprodução integral, constituindo a redacção por súmula uma solução a adoptar quando a reprodução integral não seja possível.

Para permitir esse registo integral, o funcionário que elabora o auto pode redigi-lo utilizando «meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, bem como socorrer-se de gravação magnetofónica ou audiovisual» – art. 101.º, n.º 1.

Nos três primeiros casos, ou seja, quando utilizar meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, o funcionário faz a transcrição para a acta das declarações assim registadas – art. 101.º, n.º 2.

Semelhante obrigação não existe se tiver procedido à gravação magnetofónica ou audiovisual. Nesse caso, o funcionário apenas deve conservar as gravações efectuadas e, em determinadas situações, fornecer cópia delas a quem, tendo legitimidade, o solicitar e fornecer um suporte técnico para o efeito [Direito que, com vantagem, substitui o de «consultar as peças processuais referidas neste normativo [art. 89.º, n.º 3, do Código de Processo Penal], mormente as declarações prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial», que o Ministério Público invoca.] – art. 101.º, n.º 3.

A documentação de um acto com o registo integral das declarações oralmente prestadas pode, portanto, assumir duas modalidades diferentes [Na doutrina italiana distingue-se o «verbale in forma integrale» do «verbale in forma riassuntiva con riproduzione fonográfica», o que corresponde ao regime que acabou por ser consagrado em 2007 (ver, por todos, TONINI, Paolo, in «Manuale di Procedura Penale», Ottava Edizione, Giuffrè Editore, Milano, 2007, p. 156 e 157.].

Numa, o próprio auto contém a sua transcrição integral. Trata-se de um procedimento moroso e dispendioso que o legislador de 2007 pretendeu evitar – ver art. 412.º, n.º 6, do CPP.

Na outra, o auto contém uma recapitulação das diligências efectuadas, sendo o seu conteúdo completado, no que às declarações prestadas oralmente se refere, pela gravação efectuada.

Esta última situação é a que normalmente ocorre com a acta da audiência de julgamento. Ela apenas contém a indicação dos actos praticados e da gravação efectuada, não comportando a transcrição das declarações prestadas oralmente.

De tudo isto se conclui que a obrigação de documentar o 1.º interrogatório judicial de arguido detido, prevista no art. 275.º do CPP, não impõe que do respectivo auto constem as declarações prestadas oralmente.

Não existe, por isso, a nosso ver, qualquer obstáculo a que o juiz de instrução ordene que a documentação das declarações prestadas no 1.º interrogatório judicial de arguido detido se faça através de gravação magnetofónica sem que isso implique a sua transcrição no auto que é obrigatoriamente elaborado [Só a força da tradição permite compreender que a redacção de um auto contendo apenas uma súmula das declarações, modo de proceder que apresenta tantas deficiências e insuficiências, possa ainda hoje ser adoptado quando o tribunal, para além do auto em que descreve os actos praticados e os incidentes ocorridos, pode dispor da gravação das declarações prestadas.].

7 – Um tal procedimento, para além de, indiscutivelmente, garantir maior fiabilidade à documentação e aos termos em que as declarações foram prestadas [Para além do empobrecimento a que a súmula inevitavelmente conduzia, a sua redacção representava uma reinterpretação feita pelo juiz das declarações prestadas pelo arguido, o que podia, em maior ou menor grau, colidir com a fiabilidade do que constava do auto e era atribuído ao arguido.] e de permitir a realização do interrogatório de uma forma contínua e sem interrupções, agiliza sobremaneira a diligência, com o que também se economiza tempo e esforço completamente desnecessários [Vantagens que o crescente desenvolvimento tecnológico vem propiciando, ao qual o legislador tem prestado atenção, como uma análise da versão originária do Código de Processo Penal e das suas revisões ao longo dos últimos 23 anos bem demonstra. Na interpretação dos preceitos hoje vigentes não se pode ignorar que essa evolução foi sendo feita progressivamente, não existindo uma harmonia perfeita entre as diferentes disposições que ao longo do tempo a corporizaram.].

Se e quando, no decurso do processo, for necessário tomar conhecimento do teor das declarações prestadas no 1.º interrogatório judicial por um arguido adoptar-se-á o procedimento que já hoje é usual quando alguém pretende (ou tem necessidade de) tomar conhecimento de diligências de prova realizadas na instrução (art. 296.º), de declarações orais prestadas na audiência de julgamento (art. 364.º [A acta rege-se pelas disposições próprias e, complementarmente, pelas disposições legais estabelecidas para a elaboração dos autos – n.º 2 do art. 99.º do Código de Processo Penal.]) e mesmo de sentenças proferidas em determinadas formas simplificadas de processo (artigos 389.º-A e 391.º-F).

Ouvir-se-á a gravação efectuada.

Resta dizer que do facto de, na reforma de 2007 [Salvo o devido respeito, não encontramos na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X qualquer justificação da alteração da redacção do art. 296.º do Código de Processo Penal, nem vemos que, neste contexto, os preâmbulos dos diversos diplomas que anteriormente alteraram este diploma sejam para este efeito relevantes.], se ter previsto expressamente, no art. 296.º [A falta de rigor técnico do legislador, que aparentemente contrapõe a gravação à elaboração de auto, esquecendo que, nos termos do art. 99.º, n.º 1, é este e não o processo que deve recolher os requerimentos formulados e os documentos apresentados, não passa disso mesmo. Como antes se disse, a gravação não dispensa a redacção do auto ou da acta. Apenas complementa esses actos processuais, dispensando a transcrição das declarações oralmente prestadas. Essa mesma falta de rigor, generalizadamente reconhecida, e o facto de o Código de Processo Penal ter sido sujeito, ao longo dos seus anos de vigência, a numerosas alterações enfraquece decisivamente a força interpretativa de qualquer argumento sistemático que se pretendesse utilizar.], a possibilidade de documentação das diligências de instrução mediante gravação sem que se tenha alterado simultaneamente o teor do art. 275.º não se pode extrair que este preceito consagre uma solução contrária àquela outra porque, tal como antes se explanou, as normas gerais sobre a documentação dos actos prevêem para todos esses actos um regime idêntico.

No que ao 1.º interrogatório judicial de arguido detido diz respeito ficaria mesmo por explicar o motivo pelo qual a prática deste acto durante o inquérito pelo juiz de instrução ficava sujeito a um regime diferente do que rege a sua realização por um qualquer juiz nas fases de instrução e de julgamento.

III – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público.

Sem custas.

Lisboa, 08-02-2012

(Carlos Rodrigues de Almeida)

(Horácio Telo Lucas)