Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
350371/09.7YIPRT.L1-8
Relator: MARIA AMÉLIA AMEIXOEIRA
Descritores: CONTRATO MISTO
CONTRATO DE DEPÓSITO
CONTRATO DE EMPREITADA
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Decorre do acordado entre as partes que a empreitada em causa era de execução continuada, mas que a mesma gerava obrigações autónomas individualizáveis de per si, uma vez que após (cada) operação de transformação do produto pela ré, as autoras deviam proceder ao levantamento do produto transformado nas instalações da ré e proceder ao respectivo pagamento no prazo de 30 dias após serem informadas de que a transformação estava efectuada.
II - Todo este percurso factual está inserido nos elementos do contrato de empreitada, já que o material entregue pela Autora se destinava à realização da obra a efectuar pela Ré, com a transformação do produto.
III - Não se vislumbra qualquer elemento autónomo do contrato de depósito, nos moldes definidos no art.1185º do CC, a não ser que a Autora não levantasse o produto aquando da sua conclusão, e depois de informada pela Ré, com o que geraria um quadro negocial distinto, já com contornos nítidos de contrato de depósito, o que não corresponde à situação configurada nos autos.
IV - Não havendo qualquer conexão causal entre o crédito e a coisa, não é lícito falar em direito de retenção por parte da R., pelo que a sua conduta surge, pois, aos olhos da lei como sendo contrária ao Direito, por ilícita.
(ISM)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO:
A.., LDA., e B… LDA., instauraram procedimento de injunção, de obrigação emergente de transacção comercial, contra a requerida C…, LDA., solicitando que fosse notificada a requerida, no sentido de lhes ser paga a quantia de € 53.189,84, conforme a seguinte discriminação: capital € 50.657,83; juros de mora € 2.455,51 até à data da apresentação do requerimento de injunção; taxa de justiça paga € 76,50; sendo que destes valores, respeitam à 1.ª requerente € 47.210,47 de capital e € 2.302,22 de juros, o que perfaz o total de € 49.512,69, e respeitam à 2.ª requerente € 3.447,36 de capital e € 153,23 de juros, o que perfaz o total de € 3.600,65.
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Notificada a requerida, veio esta apresentar oposição ao requerimento de injunção, que concluiu pugnando que deveria a presente oposição ser julgada procedente, e, em consequência a requerida ser absolvida do pedido deduzido na injunção (e não “oposição”, como por manifesto lapso se escreveu), com as legais consequências.
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Os autos foram remetidos à distribuição e passaram a tramitar sob a forma do processo comum ordinário.
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Após, as autoras/requerentes apresentaram “réplica”, que concluíram pugnando que deveria a excepção deduzida pela ré ser julgada improcedente por não provada, e em consequência ser a ré condenada a pagar às autoras de acordo com o peticionado no requerimento de injunção, tudo acrescido de juros de mora vincendos à taxa legal em vigor até efectivo e integral pagamento.
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A ré/requerida respondeu à “réplica”, terminando esta resposta requerendo que deveria ser ordenado o desentranhamento da “réplica”, com as legais consequências, ou, se assim não se atendesse, julgar a oposição procedente, também com as legais consequências, o que se reiterou.
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Foi proferido despacho saneador, em que:
- Num princípio de aproveitamento de actos processuais foi decidido que a denominada “réplica” e o articulado da ré que se lhe seguiu seriam atendidos considerando que o primeiro é um aperfeiçoamento e o segundo a resposta esse aperfeiçoamento;
- Foi dispensada a audiência preliminar;
- Foi declarada de forma tabelar a validade e a regularidade formais da instância;
- Foi elaborada a selecção da matéria de facto relevante para a decisão da causa.
Esta selecção foi objecto de reclamação das autoras, que foi indeferida.
Decorreu a fase de instrução do processo, no decurso da qual a ré apresentou articulado superveniente, que foi admitido e em consequência do qual foi determinado o aditamento à base instrutória (em sentido amplo) de diversa factualidade, através da alteração de redacção da alínea D) dos factos assentes e da inclusão de dois novos quesitos na base instrutória (em sentido restrito).
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, que decorreu com a observância do legal formalismo. Finda a produção de prova, foi proferida decisão de julgamento da matéria de facto, contra a qual foi deduzida reclamação pelas autoras, que foi indeferida.
As partes não acordaram na discussão oral do aspecto jurídico da causa nem prescindiram da sua discussão por escrito, sendo que, findo o respectivo prazo, ambas apresentaram alegações de direito por escrito.
Assim, as autoras terminaram as suas alegações pugnando que deveria a acção ser julgada procedente por provada, e em consequência ser a ré condenada a pagar às autoras de acordo com o peticionado no requerimento de injunção, tudo acrescido de juros de mora vincendos à taxa legal em vigor até efectivo e integral pagamento.
Quanto a ré, terminou as suas alegações (que apresentou duas vezes, sendo as segundas a repetição das primeiras) aduzindo que reiterava o seu pedido para que a oposição fosse julgada procedente, devendo, assim, ser absolvida do pedido.
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A final, foi proferida sentença que decidiu julgar a acção parcialmente procedente, pelo que:
1.º Condenou a ré C…, LDA. a pagar à autora A… LDA., a título de capital, a quantia de € 46.308,03 (quarenta e seis mil, trezentos e oito euros e três cêntimos), a que acrescem os respectivos juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos, contados desde 30/12/2009 e até efectivo e integral pagamento;
2.º No mais, julgar a acção improcedente, pelo que se absolveu a ré C…, LDA. do restante pedido da autora A…., LDA. e da totalidade do pedido da autora B…. LDA.;
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Inconformada com o teor de tal decisão, dela interpôs recurso a Ré C…, LDA, concluindo as suas alegações da forma seguinte:
1ª– Recorrente e Recorridas celebraram ente si contratos mistos, i.é., contratos de empreitada que envolviam o depósito das mercadorias colocadas pelas Recorrentes nas instalações da Recorrente, a fim de esta proceder à sua transformação e embalagem;
2ª– A relação estabelecida entre a Recorrente e as Recorridas dispunha de uma mescla de, pelo menos dois tipos contratuais –a empreitada e o depósito– pelo que, podemos dizer, que estamos em presença de um contrato misto;
3ª– Os contratos tinham em vista um procedimento contínuo, em que à medida que a matéria prima chegava às instalações da Recorrente era transformada e embalada.
4ª- Os contratos celebrados são de execução contínua, i. é., trata-se de contratos em que a sua “execução acompanha o contrato através de toda a sua vida”;
5ª– Atendendo ao “continuus” que caracteriza os contratos celebrados, a “certa coisa”, a que alude o art. 754º do Código Civil, corresponde, na presente acção, aos produtos que se encontravam nas câmaras frigoríficas e sobre os quais a Recorrente exerceu o direito de retenção;
6ª– Além de que, parafraseando o Prof. Menezes Leitão, existe uma conexão causal entre a coisa e o crédito resultante da relação contratual estabelecida entre as partes;
7ª– Por outro lado, o direito de retenção emerge igualmente do depósito, i.é. da armazenagem em câmaras frigoríficas dos próprios produtos, ou seja, das despesas que a Recorrente teve de suportar com esses produtos;
8ª– Existe direito de retenção, directamente a partir:
a)-do art. 754º do Código Civil;
b)-da empreitada;
c)-e através do depósito (755, nº 1, e)
9ª– Tendo a matéria prima ficado imprópria para consumo, durante o exercício do direito de retenção, a Recorrente procedeu à sua venda como isco de pesca (Arts. 758º e 674º do Código Civil);
10ª– A deterioração da matéria prima foi da inteira responsabilidade das Recorridas que não procederam ao pagamento de dívidas relacionadas com a empreitada, que tinham para com a Recorrente;
11ª–A douta sentença recorrida não teve em consideração a dinâmica dos acordos celebrados e não atendeu aos preceitos legais a que a Recorrente vem aludindo;
12ª- Por todo o exposto, vem a Recorrente pedir a alteração da douta sentença sob recurso, no sentido de que a Recorrente deverá ser absolvida da totalidade do pedido.
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Não houve contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
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QUESTÕES A DECIDIR:
As questões de direito essenciais a decidir neste processo são as seguintes:
- Qualificação jurídica da relação negocial existente entre as autoras e a ré;
- Direito de retenção pela ré das mercadorias da autora N....
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II - FUNDAMENTAÇÃO
A) FACTOS PROVADOS
Discutida a causa são os seguintes os factos considerados provados:
1. As autoras e a ré acordaram o seguinte:
- As autoras colocavam o pescado congelado em …;
- A ré procedia à transformação do produto, que consistia na reembalagem do produto em embalagens comerciais, fornecidas pelas autoras, podendo haver vidragem ou não;
- Finda a transformação, a ré comunicava às autoras que o produto estava reembalado;
- As autoras procediam ao levantamento dos produtos nas instalações da ré;
- Após serem informadas de que a transformação estava efectuada as autoras deveriam proceder ao pagamento em 30 dias (A).
2. A autora A…LDAdeve à ré € 5.859,83 referentes a documentos números 100528 (fls. 66), 100569 (fls. 67), 100600 (fls. 68) e 100101 (fls. 69) (B).
3. A autora B…LDA deve à ré € 4.832,66 referente à factura n.º 10003 (C). 4. A ré teve armazenado um carregamento de potas remetido pela A…LDA, o qual, em 03/05/2010, vendeu para isco de pesca à sociedade I…, Lda. (D).
5. A autora A…LDA emitiu à ré a factura n.° 80001723, constante de fls. 88, no valor de € 87,60, com data do documento de 23/12/2008 e data de vencimento de 22/01/2009 (1.º).
6. A autora A…LDA pretendeu, em 07/11/2008, entregar à ré, para transformação por esta nos termos do acordo mencionado em 1, filete red fish para posterior exportação pela autora para a Polónia, depois de efectuada a transformação pela ré (2.º).
7. A ré não aceitou esta mercadoria, devido a entender estarem-lhe em dívida pelas autoras quantias referentes a tal acordo (2.º).
8. Na sequência desta não-aceitação da mercadoria pela ré, a autora A…LDA determinou o reencaminhamento desta mercadoria para outra empresa, o que ocorreu no dia 08/11/2008 (2.º).
9. Após, por considerar que não deveria ter acontecido essa não aceitação da mercadoria pela ré, a autora A…LDA emitiu à ré a nota de débito n.º 90000019, constante de fls. 91, no valor de € 471,60, com data do documento de 31/03/2009 e com data de vencimento de 30/04/2009, valor esse correspondente ao custo de transporte da mercadoria não recepcionada pela ré (2.º).
10. Em 06/04/2009 a autora A…LDA pretendeu entregar à ré mais mercadoria, para transformação por esta nos termos do acordo mencionado em 1 (3.º).
11. A ré voltou a não aceitar esta mercadoria, devido a entender estarem-lhe em dívida pelas autoras quantias referentes a tal acordo (3.º).
12. Por também aqui considerar que não deveria ter acontecido essa não-aceitação da mercadoria pela ré, a autora A…LDA emitiu à ré a nota de débito n.º 30000025, constante de fls. 95, no valor de € 343,24, com data do documento de 30/04/2009 e com data de vencimento de 30/05/2009, valor esse correspondente ao custo de transporte da mercadoria não recepcionada pela ré (3.º).
13. Em 20/03/2009 a autora A…LDA entregou à ré, para transformação por esta nos termos do acordo mencionado em 1, argolas de pota 6572 pack (4.º a 7.º).
14. Em 06/04/2009 a autora A…LDA voltou a entregar à ré, para transformação por esta nos termos do acordo mencionado em 1, argolas de pota 2820 pack (4.º a 7.º).
15. A ré não procedeu à transformação desta mercadoria devido ao mencionado em 2 e 3, ficando a mesma a aguardar que fosse efectuado pelas autoras o pagamento das quantias aí referidas, só estando a ré na disposição de efectuar essa transformação depois de ser paga de tais quantias pelas autoras (4.º a 7.º).
16. Por outro lado, a ré não permitiu que a autora A…LDA levantasse e levasse tais mercadorias, nem em 17/04/2009, nem em 02/05/2009, nem posteriormente, dado que a ré só estava disposta a permitir que a autora levasse tais mercadorias depois das autoras lhe pagarem as quantias referidas em 2 e 3 (4.º a 7.º).
17. Face à situação atrás relatada e não tendo também entretanto as autoras pago à ré as quantias referidas em 2 e 3, a autora A…LDA emitiu à ré a nota de débito n.º 90000051, constante de fls. 73, com data do documento de 30/11/2009, com data de vencimento de 30/12/2009 e no valor de € 52.167,86, valor este correspondente àquele pelo qual a autora A…LDA adquiriu as mercadorias atrás mencionadas em 13 e 14 (4.º a 7.º).
18. Em 26/03/2009 a autora B…LDA pretendeu recolher das instalações da ré a mercadoria mencionada no documento de fls. 78, que a ré havia previamente recebido daquela autora para transformação nos termos do acordo mencionado em 1 e que a ré já havia transformado nos termos desse mesmo acordo (8.º).
19. A ré não permitiu a recolha dessa mercadoria pela autora B…LDA, por só estar disposta a permitir tal recolha depois das autoras lhe pagarem as quantias referidas em 2 e 3 (8.º).
20. Face à situação atrás relatada e não tendo também entretanto as autoras pago à ré as quantias referidas em 2 e 3, a autora B…LDA emitiu à ré a nota de débito n.º 90000003, constante de fls. 78, com data do documento e de vencimento de 17/04/2009, no valor de € 8.280,02, correspondendo este valor àquele pelo qual esta autora avaliou tal mercadoria (8.º).
21. A ré comunicou àquela autora A…LDA que não faria qualquer transformação nas potas sem que primeiro fossem regularizadas as contas, sendo que a correspondência trocada entre as autoras e a ré a propósito deste assunto é a que consta de fls. 16 a 21, 79 a 87 e 94 (10.º).
22. Pretendia a autora A…LDA que as mercadorias mencionadas em 13 e 14 fossem transformadas pela ré nos termos do acordo referido em 1 (12.º).
23. O custo de armazenagem no frio das mercadorias referidas em 13 e 14 depende de essa armazenagem ser efectuada nas instalações do próprio detentor das mercadorias ou em instalações de terceiro não detentor das mercadorias que irá assim fornecer o serviço de armazenagem no frio, valores esses que são os seguintes:
a) A mercadoria em causa ocupa cerca de 18 paletes, sendo o custo de cada palete de cerca de 40 a 45 cêntimos por dia (preço de mercado corrente), caso a armazenagem seja efectuada por terceiro, prestador desses serviços de armazenamento;
b) O custo de armazenagem no frio desse mesmo número de paletes, caso se trate de armazenagem efectuada em instalações do próprio detentor das mercadorias, é de cerca de 20 cêntimos por dia cada palete (13.º).
24. A venda mencionada em 4 ocorreu em virtude de o produto em causa estar oxidado e impróprio para consumo (14.º).
25. Tendo a ré informado as autoras, por diversas vezes, da necessidade de procederem ao pagamento dos valores referidos em 2 e 3 dos, sendo que o prazo de validade das argolas de pota iria expirar (15.º).
DE DIREITO:
-Da Natureza do Contrato:
Através do presente recurso pretende a Recorrente levar este tribunal a concluir que o caso dos autos configura a existência de um contrato misto de empreitada e depósito e, em função disso, por entender tratar-se de um contrato de execução continuada, gozava de direito de retenção sobre as mercadorias colocadas nas suas instalações pela Autora, mesmo aquelas que ai entraram em momento posterior ao vencimento das facturas não pagas, relativamente a fornecimentos anteriores.
Entende-se ser a posição da Ré totalmente destituída de fundamento, aderindo-se na íntegra à fundamentação exposta na sentença proferida pela 1ª instância.
Na verdade, a materialidade fáctica descrita no ponto 1 dos factos provados, permite concluir que se está em presença de um contrato de prestação de serviço, definido pelo artigo 1154.º do Código Civil, como o contrato em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.
De entre as modalidades do contrato de prestação de serviço referidas no artigo 1155.º do Código Civil, estamos em presença de um contrato em empreitada, já que a ré se obrigou perante as autoras, a realizar uma obra, consistente na transformação de pescado congelado, através da reembalagem do produto em embalagens comerciais, podendo haver vidragem ou não, mediante o pagamento de um preço.
Com efeito, segundo o artigo 1207.º do Código Civil empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço.
Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela, essencial “para que haja empreitada é que o contrato tenha por objecto a realização duma obra (a construção de um edifício, de um barco ou de um simples andar, a terraplanagem de uma zona, a abertura de um poço, a dragagem de um porto, etc.) e não um serviço pessoal” – Código Civil Anotado, volume II, 4.ª edição, 1997, página 864.
A palavra “obra” tanto abrange a construção como a reparação ou a demolição de uma coisa – Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, volume IV, 1995, página 308.
Tal como Pedro Romano Martinez, acerca do conceito de “obra”, nomeadamente sobre se a mesma poderá ou não ter por objecto tão só coisas corpóreas ou também coisas incorpóreas, é de “concluir que perante a definição restrita do artº 1207º, o contrato de empreitada poderá ter por objecto a realização de coisas corpóreas, materiais (p. ex., construir uma casa) ou imateriais (p. ex., reparar um automóvel), mas não de coisas incorpóreas, mesmo que materializáveis” – Contrato de Empreitada, 1994, página 102.
No caso em apreço, os materiais e utensílios necessários à execução da obra eram em parte fornecidas pelas autoras donos da obra, pois que a estas cabia entregar à ré empreiteira o produto (pescado congelado) que ia ser transformado, bem como as embalagens comerciais em que o produto transformado iria ser embalado.
Tal fornecimento de materiais e utensílios necessários à execução da obra é admitido por convenção das partes, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 1210.º do Código Civil.
Decorre ainda do acordado entre as partes que a empreitada em causa era de execução continuada, mas que a mesma gerava obrigações autónomas individualizáveis de per si, uma vez que após (cada) operação de transformação do produto pela ré, as autoras deviam proceder ao levantamento do produto transformado nas instalações da ré e proceder ao respectivo pagamento no prazo de 30 dias após serem informadas de que a transformação estava efectuada.
Todo este percurso factual está inserido nos elementos do contrato de empreitada, já que o material entregue pela Autora se destinava à realização da obra a efectuar pela Ré, com a transformação do produto.
Não se vislumbra qualquer elemento autónomo do contrato de depósito, nos moldes definidos no art.1185º do CC, como pretende a Recorrente, a não ser que a Autora não levantasse o produto aquando da sua conclusão, e depois de informada pela Recorrente, com o que geraria um quadro negocial distinto, já com contornos nítidos de contrato de depósito, o que não corresponde à situação configurada nos autos.
Afastada a existência de contrato de depósito, a questão essencial de direito que se discute nos presentes autos é a de saber se a ré empreiteira tinha ou não o direito de retenção sobre o pescado que lhe foi entregue pela autora N..., ainda por transformar e referido nos factos provados n.ºs 13 e 14.
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Do Direito de Retenção:
Dispõe o artigo 754.º do Código Civil que o devedor que disponha de um direito contra o seu credor goza do direito de retenção se estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.
O direito de retenção surge consagrado no Código Civil de 1966 como um verdadeiro direito real de garantia, podendo ser definido como o “direito conferido ao credor, que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores” (João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em geral, Vol. II, 6ª edição, páginas 572 e 573).
Uma simples leitura do artigo 754º do Código Civil – “o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou por danos por ela causados” – permite chegar à conclusão de que não existe conexão entre a dívida da A. N... e a retenção por parte da R.
Usando as palavras de Salvador da Costa, diremos que “é pressuposto da existência deste direito real de garantia que o titular do direito à entrega da coisa seja sujeito passivo da relação creditícia cujo credor é obrigado à entrega da coisa, e que o crédito deste seja conexo com a referida coisa em termos de resultar de despesas com ela realizadas sobre prejuízos por ela causados”.
É pressuposto da existência deste direito, que o titular do direito à entrega da coisa seja sujeito passivo da relação creditícia cujo credor é obrigado à entrega da coisa, e que o crédito deste seja conexo com a referida coisa, em termos de resultar de despesas com ela realizadas ou sobre prejuízos por ela causados.
Como resulta do citado artigo 754.º, o direito de retenção é um direito real de garantia que confere ao devedor que se encontra adstrito a entregar uma certa coisa e que disponha de um crédito sobre o seu credor, de não efectuar a prestação, mantendo a coisa que deveria entregar em seu poder.
Como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/05/2010 Processo: 5780/04.1TVLSB.L1.S1, disponível na Internet no sítio www.dgsi.pt, são requisitos do direito de retenção:
a) A detenção lícita de uma coisa que deve ser entregue a outrem;
b) Que o detentor seja, por sua vez, credor da pessoa com direito à restituição;
c) Que entre os dois créditos exista um nexo: tratar-se de despesas feitas por causa dessa coisa ou de danos por ela causados.
Ainda como se menciona no citado acórdão, o artigo 755.° do Código Civil referencia casos em que o credor goza de direito de retenção, neles não se englobando directamente o caso do em­­­­preiteiro sobre a obra contratada, porém, tem-se vindo a aceitar que o crédito do empreiteiro beneficia do direito de retenção relativo ao custo da empreitada.
Assim colocadas as coisas nestes termos, verifica-se ser indiscutível que no caso dos autos se verificam os dois primeiros requisitos do direito de retenção acima aludidos:
a) A detenção lícita pela ré de uma coisa (pescado) que devia ser entregue às rés depois de transformada;
b) A ré, detentora, era, por sua vez, credora das pessoas (autoras) com direito à restituição, como resulta dos factos provados n.ºs 2 e 3.
A questão está pois em saber se entre os dois créditos existe um nexo: tratar-se de despesas feitas por causa da coisa retida ou de danos por ela causados.
No caso referido nos pontos 13 e 14 dos factos provados, o pescado foi entregue à Recorrente, pela autora N..., para transformação.
Por ser assim, o crédito da ré, relativamente a tal pescado, só existiria depois de o mesmo ser transformado pela ré nos termos do acordo firmado entre ambas.
Transformado pela ré o pescado a que aludem os factos provados n.ºs 13 e 14, teria então a mesma direito de retenção sobre esse pescado, por se tratar de despesas feitas por causa dessa coisa (o pescado).
A Recorrente invoca, que face aos elementos dos autos, ressalta a existência de um processo contínuo (do latim continuus), expressão esta que tem o sentido de unitário, sequencial e seguido, e que por via dessa existência do elemento de continuidade, estaria preenchido o referido terceiro requisito do direito de retenção.
Porém, tal argumentação contende com o sentido do preceituado no artigo 754.º do Código Civil, que apenas confere o direito de retenção da coisa a entregar quando o crédito do obrigado à restituição resultar de “despesas feitas por causa” da coisa a entregar.
No caso dos autos, a ré não fez quaisquer despesas nas mercadorias mencionadas nos factos provados n.ºs 13 e 14 que lhe foram entregues pela autora N..., antes o crédito da ré resultava de despesas feitas em anteriores coisas (pescado) que a autora lhe tinha entregue para transformação.
Daí que só sobre essas coisas transformadas tivesse a ré direito de retenção.
A Ré, invocando a excepção de não cumprimento do contrato prevista no artigo 428.º do Código Civil, poderia recusar à autora receber mais pescado para transformação, enquanto esta não lhe pagasse o que já lhe era devido. Ou poderia ter optado por, depois de transformar o pescado nos termos contratuais, invocar legitimamente o direito de retenção sobre esse pescado transformado, pois que aí o seu crédito já resultaria de despesas feitas com o mesmo.
Porém, são realidades jurídicas diversas a excepção de não cumprimento do contrato e o direito de retenção, sendo que, quanto a este, repete-se, o mesmo só pode operar relativamente a despesas (créditos) tidas com a própria coisa retida, não com coisas anteriores que não foram retidas, quando o poderiam ter sido, no tempo devido.
A Recorrente, mesmo em sede de recurso, pretende fazer operar retroactivamente o direito de retenção sobre coisas que já não detinha, mas incidindo sobre coisas que passou a deter, e que em rigor e de acordo com as regras da boa fé, não deveria ter recebido, pois que por força do contrato, estaria obrigada a transformar o pescado, o que manifestamente não fez.
No caso, não era exigível à ré receber mais pescado da autora, como de facto não recebeu anteriormente, por estarem facturas em dívida e a modalidade de pagamento acordada, reportava-se às tranches que ia transformando e facturando e não a um preço global final, qualquer, pelo que, tendo optado a ré por recebê-lo, mais se reforça o entendimento de que é ilegítimo o exercício do direito de retenção.
Na verdade, se a ré não pretendia transformar o pescado recebido, como efectivamente não transformou e contrariamente ao que estava previsto no acordo celebrado com a autora, então não se percebe para que é que a ré aceitou o pescado, a não ser, como parece ter sido o caso, para vir depois invocar o direito de retenção sobre o pescado que recebeu enquanto não fosse paga da dívida anterior.
Em suma, a ré empreiteira poderia gozar legitimamente do direito de retenção relativamente ao seu direito de crédito mas tão-somente referente ao preço da obra consistente na transformação do pescado e incidindo essa retenção só sobre esse pescado já transformado.
No mesmo sentido, para o caso da retenção referente ao preço de construção de coisa retida, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/12/1994, Processo: 086552, Nº Convencional JSTJ00026340, disponível na Internet no sítio www.dgsi.pt, com o seguinte sumário, na parte que agora releva: “O empreiteiro goza do direito de retenção relativamente ao seu direito de crédito referente ao preço de construção da coisa retida”.
Porém, a ré não fez isto, antes optou por pretender exercer o direito de retenção sobre coisa a que não tinha esse direito, provocando desta forma um dano à autora N... no valor de € 52.167,86 (vide facto provado n.º 17).
Conclui-se assim, que a mercadoria retida pela R. nas suas instalações, mormente a que resultou provada e constante da resposta aos quesitos de 4.º a 7.º da base instrutória, (factos 13 e 14 atrás descritos no presente Acórdão), não decorreu de quaisquer despesas com as mesmas, nem tão pouco por danos por elas causados, mas sim, devido ao mencionado em B) e C) dos Factos Assentes. (ora factos 2 e 3), pelo que, a relação de conexão funcional exigida pela lei não se verifica no caso presente.
Reitera-se que, aquando da prestação de serviços e posterior crédito por parte da R. por via dos seus préstimos, ainda a R. não tinha em seu poder a mercadoria que veio a reter.
Efectivamente, podia muito bem a Ré ter feito valer o direito real de garantia, retendo a mercadoria que esteve na base do serviço prestado.
Ora, não o tendo feito, o “potencial” direito real de garantia, sobre aquelas concretas mercadorias, acabou por se extinguir, vide artigo 761º do Código Civil.
Entregue que foi a mercadoria que motivou a dívida, a R. perdeu o direito de retenção sobre a mesma (e só em relação a ela, em concreto, o podia fazer).
O direito de retenção extinguiu-se por entrega da coisa, nos termos do supra citado artigo 761º do C.C.
Em suma, não havendo no caso presente, como, efectivamente, não há, qualquer conexão causal entre o crédito e a coisa, não é lícito falar em direito de retenção por parte da R., pelo que a sua conduta surge, pois, aos olhos da lei como sendo contrária ao Direito, por ilícita.
Afigura-se ser patente a má fé da R. que só autorizou a entrada desta mercadoria para a reter nos seus armazéns.
Apraz ainda referir o excessivo direito de retenção operado pela R., na medida em que reteve uma mercadoria no valor de € 52.167,86 referente à A…LDA valor este muito superior às quantias que a A. ficou a dever.
A Recorrente usou de meios ilícitos, para fazer cobrar uma divida, ao invés de ter optado pelas vias legais.
Sendo consequentemente ilegítimo o direito de retenção da ré sobre tal pescado, não pode a mesma invocar perante a autora A…LDA o custo de armazenamento de tal pescado a que se refere o facto provado n.º 23, uma vez que tal custo apenas à ré é imputável, devido ao exercício ilegítimo do direito de retenção.
Mesmo que, por hipótese de raciocínio, se considerasse que no caso concreto a ré teria direito de retenção sobre o pescado que recebeu da autora A…LDA, então ter-se-ia de considerar que o exercício desse direito seria ilegítimo, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim social ou económico desse direito – ou seja, haveria abuso do direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil – e isto atenta a manifesta desproporção, da ordem de grandeza de cerca de 1 para 9, entre o direito que se pretendia acautelar – um crédito no valor de € 5.859,83 - e o dano que para esse efeito se teria que provocar – a inutilização de uma mercadoria no valor de € 52.167,86.
Uma vez que a autora A…LDA, no requerimento de injunção que apresentou, subtraiu ao valor do seu pedido a quantia por si devida à ré, no valor de € 5.859,83 (que é aquele referido no facto provado n.º 2), deve também este tribunal fazer esta subtracção, pelo que se conclui, como se concluiu na sentença proferida em sede de 1ª instância, que a ré deve ser condenada a pagar à autora, por conta do pescado por si recebido a que aludem os factos provados n.ºs 13 e 14, a quantia de € 46.308,03 (€ 52.167,86 - € 5.859,83).
Pelas razões expostas, improcede o recurso na íntegra, sendo de manter a sentença proferida nos autos.

DECISÃO:
Nos termos expostos, Acordam os Juízes da 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação, mantendo na íntegra a sentença objecto de recurso.
Custas a cargo da Apelante.

Lisboa, 26 de Janeiro de 2012

Maria Amélia Ameixoeira
Caetano Duarte
Ferreira de Almeida