Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
662/2002.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: DEPOIMENTO DE PARTE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PROCESSO DE AVERIGUAÇÕES
VALOR PROBATÓRIO
ÓNUS DA PROVA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Os depoimentos produzidos perante alguém contratado por uma seguradora para fazer as averiguações de um acidente de viação, não podem ser invocados num processo judicial, por aplicação, por argumento de maioria de razão, do disposto no art. 522/1 do CPC (e também do disposto nos arts. 520/521, 552 e segs e 619 e segs do CPC). O que a seguradora pode fazer é, com base nesse processo de averiguações, indicar prova testemunhal a ser ouvida, com observância dos formalismos legais, em audiência contraditória.
II – Provada a existência de um contrato de seguro, é à seguradora que cabe alegar e provar factos que permitam concluir pela cessação desse contrato em data anterior ao acidente em causa.
(da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

O Fundo de Garantia Automóvel (= FGA) intentou a presente acção contra “A” (= réu) e “B” (ré), pedindo a condenação dos réus a pagarem-lhe 31.562,42€, acrescidos de juros de mora, além da que se liquidar em execução referente a outras despesas.
Alega para o efeito que um ciclomotor conduzido pelo réu e pertencente à ré, circulava com velocidade excessiva e embateu em “C”, quando esta efectuava a travessia da faixa de rodagem; esta última sofreu diversas lesões e tratamentos que, no total, importaram o valor pedido, quantia que o FGA se viu obrigado a pagar uma vez que o veículo não dispunha de seguro válido.
Na contestação, o réu invocou a sua ilegitimidade, uma vez que na data do acidente existia seguro válido; e, por impugnação, nega a sua culpa no acidente, até porque circulava com velocidade moderada.
Notificado dessa contestação, o FGA veio pedir a intervenção principal da Companhia de Seguros “D” (= seguradora), o que foi admitido, considerado o disposto nos arts. 325 e 31-B, ambos do CPC.
Depois de citada, a seguradora alegou que havia celebrado um contrato de seguro com a proprietária do ciclomotor, a ré, mas que esta efectuou a venda do mesmo em data anterior ao acidente, razão pela qual o seguro cessou os seus efeitos e não estava em vigor na data do acidente.
Quer o FGA quer o réu impugnaram o articulado da seguradora (designadamente os documentos por ela invocados).
Depois do julgamento, foi proferida sentença, absolvendo os réus do pedido e condenando a seguradora a pagar ao FGA 31.562,42€, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até pagamento, absolvendo-se do restante pedido.
A seguradora recorre desta sentença – para que ela seja absolvida do pedido -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
I. A ré não contestou a acção, não impugnou os factos alegados pela interveniente seguradora; não impugnou a letra e a assinatura nem arguiu a falsidade dos documentos ajuizados com o articulado próprio da seguradora (cf. fls. 94 e 95);
II. As respostas aos quesitos 17, 18, 18-A) e 19 padecem de entorse: devem ser alteradas, passando as respectivas respostas a serem: 17, 18 e 19: provado; 18-A): provado que a ré tinha sido dona do ciclomotor até antes de 03/02/1999.
III - Admitindo, sem conceder, que o quesito 17 não deve ser respondido por ser considerado de natureza conclusiva ou ser matéria de direito, então, da prova produzida constante dos autos, onde se inclui necessariamente a que se propugna ser corrigida agora, extrai-se a conclusão que à data do acidente o ciclomotor não tinha seguro válido e eficaz.
IV. Os factos constantes dos quesitos 17 a 19 devem considerar-se admitidos face à conclusão I.
V. Sem prejuízo da conclusão IV, o depoimento de parte da ré, quer o requerido por si quer o determinado oficiosamente pelo Sr. juiz, não pode ser valorado favoravelmente em relação à mesma ré: o depoimento de parte, no nosso direito, não constitui um testemunho de parte.
VI. O depoimento da testemunha “E” – “registado em CD” (cf. acta da audiência de julgamento de 13/12/2010) –, cuja idoneidade não foi posta em causa, é modelar, nomeadamente quanto à questão da data da venda do aludido ciclomotor pela ré; tudo o mais, neste concernente da alienação, depois dos manuscritos de fls. 94, 95 e 96 dos autos, são “histórias” da ré e do “F”.
VII. Da conjugação dos documentos de fls. 94, 95 e 96 e do depoimento da testemunha “E” ressalta que o ciclomotor em causa foi alienado por aquela ré antes de 03/02/1999 pelo que o contrato seguro – referenciado na alínea E) –, em 04/02/1999, já havia cessado.
VIII. Decidindo de forma diversa, a sentença recorrida violou, entre outros, os arts 374/1, 376/1 do Código Civil, 490, 552 e 554 do CPC e 13/1 e 14 do Dec.-Lei 522/85, de 31/12.
Nem o FGA nem os réus contra-alegaram.
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Questões que importa resolver: se a falta de contestação, pela ré, da acção e das afirmações de facto feitas pela seguradora, devia levar à prova dos quesitos 17, 18, 18-A e 19 no sentido apontado pela seguradora (conclusões I, II e IV); se, a entender-se que o quesito 17 não deve ser respondido por ser matéria de direito, os factos provados (incluindo já as alterações das respostas aos quesitos 18, 18-A e 19) devia levar à conclusão de que não existia seguro válido e eficaz (conclusão III); se o depoimento de parte da ré não podia ser valorado favoravelmente em relação à mesma ré (conclusão V); se da conjugação dos documentos de fls. 94, 95 e 96 e do depoimento da testemunha “E” ressalta que o ciclomotor em causa foi alienado pela ré antes de 03/02/1999 (conclusões VI e VII); se, ficando provado este último facto, se pode dizer que, em 04/02/1999, o seguro já havia cessado (conclusão VII).
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Dos factos assentes:
A) No dia 04/02/1999, pelas 14h50, na Rua ..., em ..., ocorreu uma colisão entre o ciclomotor 0-CSC-00-00, conduzido pelo réu, e o peão “C”.
B) O ciclomotor circulava na referida rua, no sentido Norte => Sul.
C) O peão iniciou a travessia daquela rua, no sentido Nascente => Poente, atento o sentido de marcha do ciclomotor.
D) O local é uma recta plana e com boa visibilidade.
E) A seguradora celebrou com a ré um contrato de seguro titulado pela apólice n.º ... onde assumiu a responsabilidade civil decorrente da circulação do ciclomotor acima indicado.
Da resposta aos quesitos:
2. O ciclomotor é uma Yamaha DT 50, com 50 cm3 de cilindrada.
4. O embate verificou-se na metade direita da faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha do ciclomotor.
5. Em consequência do embate, o peão caiu e teve de ser transportado para o Hospital de ....
6. Do embate, resultaram para o peão fractura trimaleolar da tíbio-társica esquerda e fractura exposta da tíbia direita.
7. Dada a complexidade dos tratamentos, foi transportada para o Hospital S. Francisco Xavier, onde recebeu assistência médica.
8. Teve necessidade de ser operada no Hospital da Cuf, com colocação de material de osteosíntese.
9. E esteve internada no mesmo hospital.
10. Recebeu depois tratamento no Centro de Medicina e Reabilitação de Alcoitão em regime ambulatório, entre os dias 18/05/1999 e 14/01/2000.
12. Após a consolidação das lesões, ficou com dismetria de membro inferior (menos 1 cm à direita), amiotrofia e perda de massa muscular.
13. A lesada consegue um andar independente em terrenos regulares, referindo maior dificuldade no exterior e em terrenos irregulares.
16. O FGA pagou 5.805,14€/1.163.826$ à lesada, em 26/06/ /2000, de indemnização pelos danos sofridos com o acidente; ao Hospital da Cuf, em 25/01/2000, 25.547,29€/5.121.771$, de despesas com internamento e tratamentos da sinistrada; ao Centro Médico ..., em 19/05/2000, 34,92€/7.000$, por um relatório médico sobre a sinistrada; 175,08€/35.100$, em 13/05/1999, à sociedade que encarregou de proceder à averiguação sobre o sinistro.
17. Na data do acidente, o prémio do contrato de seguro referido na alínea E) estava pago e nenhuma das suas partes havia comunicado à outra que considerava este, por qualquer motivo, findo ou sem efeito [este ponto é suprimido, por força do que se dirá abaixo].
18A) A ré era dona do ciclomotor, pelo menos até cerca de 1h antes do acidente [este ponto é suprimido, por força do que se dirá abaixo].
19. A ré subscreveu a declaração que consta de fls. 94 e 95, com data de 02/03/1999, entregue à pessoa que a seguradora encarregou de averiguar o sinistro, na qual consta que o ciclomotor acima indicado fora por si vendido a “F” no início do mês de Fevereiro de 1999, em dia anterior ao dia 03.
19 (bis). Bem como a declaração de fls. 311, incluindo o aditamento, entregue à pessoa que procedeu à averiguação do sinistro a pedido do FGA, onde consta que o ciclomotor tinha sido por si emprestado ao “F” para ele o experimentar com vista a uma eventual venda, acrescentando-se que um amigo do “F”, que conduzia o ciclomotor, estava autorizado a fazê-lo.
21. O ciclomotor conduzido pelo réu seguia, pelo menos, a uma velocidade de cerca de 50 km/h.
I
Do recurso quanto aos factos
II
Da (não) admissão por acordo
O primeiro argumento da seguradora quanto à impugnação da resposta aos quesitos 17 a 19 (incluindo o 18-A), que consta das conclusões I e IV, consubstancia apenas uma questão de direito, que é a de saber se quando um de dois réus não contesta afirmações produzidas por uma interveniente principal colocada ao seu lado, os factos constantes dessas afirmações devem ser considerados admitidos por acordo (art. 490/2 do CPC).
Desde logo, não se trata da não impugnação de factos, mas de não contestação. Não se trata só de a ré não ter impugnado determinados factos (art. 490/2 do CPC) mas de a ré não ter contestado de todo (art. 484/1 do CPC)
Ora, vistas as coisas da perspectiva da seguradora – que vê os seus co-réus como sua contra-parte na relação processual - a falta de contestação nunca poderia ter o efeito por si pretendido, nem que mais não fosse porque existe outro réu e ele contestou as afirmações feitas por ela [art. 485a) do CPC].
Mas a verdade é que quem é contra-parte, perante a seguradora, é o FGA, e portanto era ele que tinha que impugnar, como impugnou, as afirmações de facto feitas pela seguradora. Tendo-o feito, nunca estas afirmações poderiam ser tidas como admitidas por acordo ou confessadas.
III
Da matéria do quesito 17
Na conclusão III a seguradora levanta a hipótese de a matéria do quesito 17 ser questão de direito e, nessa hipótese, considera que a constatação de que não existe seguro válido e eficaz pode ser alcançada através dos factos provados (incluindo já as alterações das respostas 18, 18-A e 19)
Quanto à possibilidade de se chegar a esta conclusão, com os factos provados, é questão que se verá na parte do Direito.
Quanto à hipótese de se considerar que o quesito 17 contém matéria de direito, há apenas que reconhecer razão à seguradora.
O quesito 17 tinha o seguinte teor: À data do embate o ciclomotor não tinha seguro válido e eficaz?
Ora, isto consubstancia uma pura questão de direito. A validade e eficácia de contratos dependem de factos subsumidos a regras jurídicas. É da aplicação destas àqueles que resulta a resposta quanto à eficácia e validade de contratos. Sendo uma questão de direito, não pode ser respondida. A resposta que lhe foi dada tem-se por não escrita (art. 646/4 do CPC).
É certo que o juiz pode introduzir factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa, ao abrigo do art. 264/2 do CPC, mas, querendo-o fazer, tem que o fazer explicitamente ao abrigo desta norma, e não a propósito da resposta a quesitos, e muito menos a quesitos que são questões de direito.
Assim, e por força do art. 646/4 do CPC, há que ter como não escrita a resposta ao quesito 17.
IV
Do aproveitamento do depoimento de parte
Na conclusão V, a seguradora põe em causa o aproveitamento do depoimento de parte da ré. Não diz a que propósito. Para o perceber, há que recorrer ao corpo das alegações, onde a seguradora, depois de considerações sobre o depoimento de parte, conclui: “Em suma: consistindo a confissão na declaração da realidade de um facto desfavorável ao declarante, não há a menor dúvida, como veremos infra, que jamais se poderia dar como provado, como fez o Sr. juiz a quo, na resposta ao quesito 18-A), que “A ré era dona do ciclomotor, pelo menos até uma hora antes do acidente”.
Assim, o que está em causa é o quesito 18-A.
O quesito 18-A tinha o seguinte teor: A ré era a proprietária do ciclomotor?
O quesito 18-A consubstancia outra pura questão de direito. Saber se alguém é proprietário de um dado bem, depende de factos subsumidos a regras jurídicas. É da aplicação destas àqueles que resulta a resposta quanto à propriedade de um bem. É-se proprietário se se adquiriu, por alguma das formas de aquisição originária ou derivada, o bem sem causa. São os factos que consubstanciam essa forma de aquisição que têm de ser alegados e provados. Sendo uma questão de direito, não pode ser respondida. A resposta que lhe foi dada tem-se por não escrita (de novo o art. 646/4 do CPC). É certo que, em dadas condições, determinado tipo de afirmações de direito podem ser admitidas por acordo (tem-se aceite, por exemplo, que se dê como assente que A e B são casados, quando não é isso que se discute numa dada acção…). Mas isso não quer dizer que possam ser feitas perguntas sobre elas.
Assim, a resposta ao quesito 18-A tem-se por não escrita. Esta solução prejudica a apreciação dos argumentos da seguradora.
V
Valor do documento de fls. 94 a 96
Diz a seguradora, nas conclusões VI e VII, que da conjugação dos documentos de fls. 94, 95 e 96 e do depoimento da testemunha “E” ressalta que o ciclomotor em causa foi alienado pela ré antes de 03/02/1999.
Esta é a matéria do quesito 18, o qual tinha o seguinte teor: A ré vendeu o ciclomotor a “F” antes de 03/02/1999? A resposta foi de “não provado”.
Os três elementos de prova invocados pela seguradora implicam a resposta de provado a este quesito?
O documento de fls. 94 e 95 é o documento resumido no ponto de facto sob 19. O doc. de fls. 96 é um depoimento de “F” a declarar que comprou o ciclomotor no dia 01/02/1999.
Estes documentos podem ser vistos de duas perspectivas: por um lado, tratam-se de documentos particulares, onde a ré e uma testemunha fazem determinadas afirmações perante alguém que foi contratado pela seguradora para fazer a investigação dos factos.
O que a ré diz nas folhas 94 e 95 é-lhe desfavorável, pois que, como se verá à frente, se ela tiver vendido o ciclomotor antes de 03/02/1999, o seguro já não estava em vigor no dia do acidente e por isso a responsabilidade civil decorrente da circulação do ciclomotor não estaria transferida para a seguradora. Pelo que seria ela a responder, e não a seguradora.
Poderia pois dizer-se que se estaria perante uma confissão da ré e tal teria força probatória plena dos factos por ela declarados (arts. 358/2, 376/1 e 376/2, todos do CC).
Já o que é escrito pelo “F”, a fls. 96, não tem força probatória plena, pois que não se reconduz a factos contrários aos seus interesses (art. 376/2 do CC).
Mas, por outro lado, tais documentos podem ser vistos como prova obtida através de um certo processo.
Ora, enquanto produto de um certo processo, as provas obtidas num processo só podem ser usadas noutros sob certas condições: desde logo, aquele tem de ser um processo contraditório e, depois, tem de ser um processo contra a parte contra a qual são invocadas (art. 522/1, 1ª parte, do CPC).
Assim, por exemplo, depoimentos de uma dada pessoa, produzidos num qualquer processo de averiguações pela polícia, ou num inquérito perante um funcionário ou um magistrado do MP, ou numa instrução, perante um juiz, não devem nem podem ser utilizados – mesmo que às vezes o sejam… - num processo civil, pois que naqueles outros essa pessoa não foi parte, nem, principalmente, houve contraditório…
E se assim é, muito mais o será no caso de averiguações feitas por pessoa contratada por uma parte. Se uma seguradora contrata uma pessoa qualquer para fazer uma averiguação das causas de um acidente, aquilo que for averiguado pode ser utilizado como fonte de indicação de meios de prova - objectos ou testemunhas – a serem produzidos num processo civil, com observância do contraditório. O investigador descobre que uma dada pessoa viu o acidente. Toma-lhe depoimento. Esse depoimento faz parte do processo de averiguações entregues à parte, que por sua vez o entrega ao seu advogado. Este indica a pessoa em causa para ser ouvida como testemunha. Esta é ouvida em tribunal, num julgamento, com observância do contraditório. É este todo o valor daquilo que foi feito pelo investigador.
Ainda um outro modo de ver tudo o que antecede, relativamente à confissão da ré: para que uma parte num processo, produza um depoimento de parte, de modo a levar à confissão de factos que lhe são desfavoráveis, há todo um caminho a seguir, que vai levar à produção desse meio de prova perante o juiz, com um conjunto de garantias, entre elas a de esse meio de prova ser produzido em audiência contraditória, com prestação de juramento, advertências legais, registo do depoimento, etc. (arts. 552 e segs do CPC).
Ora, se uma seguradora conseguisse que uma confissão de uma futura parte fosse obtida por uma pessoa por si contratada (mediante uma remuneração…) antes sequer do processo existir, todas aquelas regras não fariam qualquer sentido.
Procedimento e garantias que ainda têm o sentido de servirem de aval de que a confissão foi obtida de modo regular, por um órgão imparcial, sem pressões indevidas e sem aproveitamento de debilidades das pessoas ouvidas.
E a lógica do sistema reflecte-se ainda noutras objecções à consideração de tal prova: a produção de prova testemunhal é produzida em julgamento (art. 621 do CPC, com determinadas excepções, cujos pressupostos têm de estar preenchidos, o que não é o caso), com observância de todo um formalismo processual, dotado de garantias (arts. 616 e segs do CPC), que obviamente não foi observado na obtenção dos depoimentos pela pessoa contratada pela seguradora.
Para além disso, a obtenção dos depoimentos pela pessoa contratada pela seguradora e a sua invocação em tribunal, seria um modo de contornar as regras da produção antecipada de prova (arts. 520 e 521, ambos do CPC), regras que aliás não fariam sentido – não precisariam de existir – se as coisas se pudessem passar como a seguradora pretende.
Quer isto dizer que os documentos de fls. 94 a 96 são prova que não pode ser invocada neste processo.
VI
Valor do depoimento da testemunha “E”
Quanto ao depoimento da testemunha “E” trata-se da pessoa que tomou o depoimento da ré no processo de averiguações já referido. Ora, se aquilo que foi dito pela ré nesse processo não pode ser utilizado neste processo, não tem sentido estar a admitir um depoimento sobre esse depoimento. Seria a mesma coisa que admitir o próprio depoimento.
Dito de outro modo: se um depoimento prestado perante um funcionário do MP, perante o MP ou perante o juiz numa instrução, não pode ser utilizado como meio de prova em processo civil, não faz sentido admitir o depoimento do funcionário do MP, ou do MP ou do juiz, sobre tal depoimento. E o mesmo vale para o depoimento da pessoa contratada pela seguradora para fazer o processo de averiguações do acidente de viação.
Em suma: quer os documentos de fls. 94/95 e 96 quer o depoimento da pessoa contratada pela seguradora para os obter, não são elementos de prova que possam ser invocados neste processo e, por isso, não podiam ser servir para prova do quesito 18.
Assim, não há razão para alterar a resposta dada ao quesito.
VII
Da alteração da resposta ao quesito 19
A seguradora nas conclusões sugere que a resposta ao quesito 19 deve ser alterada. A alteração que propõe tem apenas a ver com a supressão da 2ª parte da resposta, aquela que se autonomizou sob o nº. 19 (bis). A seguradora não indica qualquer razão para a alteração pretendida e, por isso, tal pretensão deve ser rejeitada desde logo [art. 690-A/1b) do CPC].
VIII
Recurso de direito
Se os factos provados permitem a conclusão de que à data do acidente não existia seguro válido e eficaz.
Celebrado um contrato [como o prova o facto sob E)], o mesmo presume-se válido e eficaz. Cabe àquele que diz que o contrato é inválido ou ineficaz alegar os factos necessários à conclusão de que assim é. Ou seja, as circunstâncias que levam à invalidade ou ineficácia de um contrato têm de ser alegadas e provadas por aquele que as invoca: ora como factos impeditivos ou extintivos do direito da outra parte (art. 342/2 do CC) ora como factos constitutivos do direito à declaração de nulidade ou à anulação do contrato (art. 342/1 do CC).
Como diz Lebre de Freitas, A acção declarativa comum à luz do código revisto, Coimbra Editora, 2000, pág. 102: “[…] a concordância entre a vontade real e a vontade declarada e a ausência de vícios na formação da vontade real constituem a regra, constituindo excepção, como algo de patológico, os casos de discordância entre ambas e os de formação viciada da primeira; a quem se queira prevalecer da validade da declaração de vontade basta, pois, alegar e provar o facto constitutivo de ter sido feita a declaração de que se quis o efeito prático geral do acto […]; à parte contrária caberá alegar e provar o facto impeditivo (dos efeitos da declaração) que traduza a falta ou um vício relevante da vontade real […]”.
No caso dos autos, o único facto que tem a ver com isto, é o facto sob 19. Aí consta, como já se disse, a confissão da ré de que tinha vendido o ciclomotor antes de 03/02/1999. Ora, nos termos do art. 13/1 do Dec. Lei 522/85, de 31/12, o contrato de seguro cessa os seus efeitos às 24h do dia da alienação. Tendo o ciclomotor sido vendido antes de 03/02/1999, pelo menos às 24h do dia 02/02/1999 o contrato teria cessado a sua vigência.
Assim, coloca-se de novo a questão do valor da confissão que a ré fez da venda do ciclomotor.
Questão que já teve a resposta dada acima: a confissão da ré não podia ser invocada neste processo. Isso pelas razões já referidas acima, ou seja, de que não se verificam os pressupostos da possibilidade da invocação de tal prova previstos no art. 522/1 do CPC.
IX
Da improcedência do recurso
Visto que a sentença demonstra que a ré, como dona do veículo, sempre teria responsabilidade objectiva pelos danos decorrentes da circulação (art. 503/1 do CC) e que, por força do seguro celebrado, a seguradora cobria essa responsabilidade, e que, por fim, a seguradora não provou os factos conducentes à conclusão de que o seguro tinha cessado a sua vigência antes do dia do acidente, cabe apenas concluir, tal como o fez a sentença, que a seguradora deve responder perante o FGA, pagando-lhe o que este pede (art 25/1 do 522/85). É que, como se diz na sentença recorrida, “a seguir ao acidente, foi considerado não existir o seguro obrigatório de responsabilidade civil a cobrir os riscos derivados da circulação do ciclomotor. Nessas condições, ou em caso de dúvida sobre a existência de seguro válido, cabia ao FGA assegurar o pagamento das indemnizações devidas à sinistrada [art. 21, nºs 1, 2 b) e 5, do DL 522/85 – consultou-se o DL 522/85, nas suas 21 versões – no caso a que importava era a 15ª, dada a data do acidente -, no sítio da internet da PG Distrital de Lisboa].
E, assim, improcede o recurso.
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(…)
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pela seguradora.

Lisboa, 15 de Março de 2012.

Pedro Martins
Sérgio Silva Almeida
Lúcia Sousa