Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2606/09.3TTLSB.L1-4
Relator: PAULA SÁ FERNANDES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: 1. Nos termos do art.º7 da Lei.º100/97, de 13 de Setembro, não dá direito a reparação do acidente, nos termos da sua alínea a) quando for dolosamente provocado pelo sinistrado, ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei; e nos termos da alínea b) que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.
2. O acidente dolosamente provocado pela vítima é aquele em que a vítima pratica não só o acto determinante do acidente mas em que também o deseja ou se conforma com todas as suas consequências. Ora, ainda que da matéria de facto apurada se possa retirar que foi o carregar no botão de arranque do motor do elevador de automóveis, pelo autor, que lhe provocou o corte no dedo, não resulta apurado qualquer facto que indicie que o mesmo queria tal consequência.
3. A lei ao exigir a negligência grosseira na descaracterização do acidente, pretendeu afastar a simples imprudência, irreflexão, imperícia ou erro profissional, pois a negligência grosseira corresponde à culpa grave que pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável à luz do mais elementar senso comum.
4. O acidente em causa ocorreu por iniciativa do autor, que subiu ao motor do elevador de automóveis, carregou no seu botão de arranque e cortou o dedo indicador da mão esquerda.
5. No momento do acidente, o autor extravasava as suas funções e competências porque entendeu substituir as correias do elevador dos automóveis, que era um trabalho que a ré sempre encomendava aos serviços técnicos da marca, externos à empresa, sabendo que só esses técnicos deviam substituir as ditas correias, face à preparação técnica que para o efeito é necessária. Foi o autor quem tomou a iniciativa desse acto, que não tinha que ver com as suas funções e que não era necessário fazê-lo, porquanto nenhuma avaria existia no elevador de automóveis que, como se apurou, estava funcionar normalmente.
6. No caso, o autor assumiu um comportamento temerário porque gratuito e de todo infundado, altamente reprovável à luz de um elementar sentido de prudência e senso comum, configurando-se que o autor agiu com culpa grave e exclusiva na ocorrência do acidente, pelo que o acidente de que o autor foi vítima deveu-se exclusivamente a um comportamento seu, grosseiramente negligente. que descaracteriza o acidente in casu, ao abrigo da b) do art.º 7 da Lei n.º100/97, de 13 de Setembro.
(Elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

AA intentou a presente acção, com processo especial, emergente de acidente de trabalho (fase contenciosa), contra:
AUTO BB, LDA,” pedindo, que o acidente em causa nos autos seja declarado como acidente de trabalho e, em consequência, a condenação do réu a pagar-lhe o capital de remição da pensão anual de € 1.185,80, devida desde 19/01/2005, acrescida de juros legais.

Na contestação a ré alega que o acidente foi dolosamente provocado pelo autor, pelo que, nos termos do art. 7º, nº 1, al. a), da Lei nº 100/97 de 13/09, pede que seja absolvida do pedido e o autor condenado por litigância de má-fé.

Foi proferido despacho saneador onde se procedeu à selecção da matéria de facto, com a especificação dos factos assentes e a organização da base instrutória. Sem que tivesse havido qualquer reclamação

Após a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos: “ Pelo exposto, julgo procedente a presente acção e, em consequência, condeno a ré a pagar ao autor o capital de remição da pensão anual de € 1.185,80, devida desde 19/01/2005, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde aquela data e das subsequentes datas de vencimento, até efectivo pagamento.”

A ré, inconformada, interpôs recurso, tendo nas respectivas alegações elaborado as a seguir transcritas,
Conclusões:
(…)

Nas contra-alegações, o MP em representação do sinistrado pugnou pela confirmação da decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir

I. Tal como resulta das conclusões do recurso interposto, que delimitam o seu objecto, as questões suscitadas são relativas à ampliação da base instrutória, à alteração das respostas aos quesitos 7º e 9º e à descaracterização do acidente

II. Fundamentos de facto
Resultaram apurados os seguintes factos:
A) - No dia 15/11/2004, pelas 09:00horas, em Lisboa, o autor foi vítima de um acidente. (alínea A) dos factos assentes.)
B) - Na data referida em A), o autor exercia funções de mecânico auto, ao serviço da ré “Auto BB, Lda.”. (alínea B) dos factos assentes.
C) - O autor foi conduzido ao Hospital de Santa Maria, onde recebeu tratamento. (alínea C) dos factos assentes.)
D) - A ré, na data referida em A), não tinha a responsabilidade emergente de acidente de trabalho transferida para qualquer seguradora. (alínea D) dos factos assentes.)
E) - Em exame médico realizado no INML, cujo relatório consta de fls. 26 a 28 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido, o Sr. Perito Médico atribuiu ao sinistrado, ora autor, uma IPP de 11% desde 18/01/2005. Para além disso, confirmou o período de incapacidade temporária absoluta de 15/11/2004 a 18/01/2005. (alínea E) dos factos assentes.)
F) - A ré pagou ao autor todas as despesas com assistência médica e medicamentosa e € 2.000, a título de indemnização devida pelo período de incapacidade temporária, referido em E). (alínea F) dos factos assentes.)
G) - O autor subscreveu a declaração cuja cópia consta de fls. 10 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, datada de 06/03/2005. (alínea G) dos factos assentes.)
H) - Na tentativa de conciliação, cujo auto consta de fls. 36 e 37 e que aqui se dá por integralmente reproduzido, a ré aceitou:
- Que à data do acidente o autor era seu trabalhador;
- O nexo causal entre o acidente e as lesões descritas no relatório médico, referido em E);
- A avaliação da incapacidade feita, referida em E). (alínea H) dos factos assentes.)
I) - No dia 15/11/2004, o autor entrou ao serviço às 08:00horas. (resposta ao quesito 1.º)
J) - O autor chamou o colega CC para o auxiliar a mudar as correias do motor eléctrico do elevador de automóveis. (resposta ao quesito 2º.)
K) - O seu colega CC foi buscar uma chave de fendas que ajudasse o autor na colocação da correia. (resposta ao quesito 4º.)
L) - Por volta das 09:00horas, o autor, por sua iniciativa, subiu ao motor do elevador de automóveis, carregou no botão de arranque e cortou o dedo indicador da mão esquerda. (resposta ao quesito 7º.)
M) - Quem substitui as correias do elevador de automóveis são sempre os técnicos da marca, externos à empresa, não fazendo tal tarefa parte das funções do autor nem de qualquer outro trabalhador da ré. (resposta ao quesito 8º.)
N) - Na altura do acidente, não se verificava qualquer avaria mecânica no elevador de automóveis. (resposta ao quesito 9º.)
O) - A ré, como contrapartida pelo trabalho prestado, pagava ao autor a retribuição mensal de € 1.100,00. (resposta ao quesito 11º.)

III. Fundamentos direito
Como acima se referiu, a 1ª questão suscitada pelo recorrente é relativa à ampliação da matéria da base instrutória. Afigura-se-nos, porém, que esta questão não pode ser apreciada no presente recurso pois, nos termos do art.º511 n.º2 do CPC, as partes podem reclamar contra a selecção da matéria de facto, incluída na base instrutória, mas é só sobre o despacho proferido sobre essas reclamações que pode haver recurso, ainda que interposto da decisão final, como decorre do n.º3 do mesmo dispositivo legal.
No caso, o recorrente não deduziu qualquer reclamação sobre a base instrutória elaborada pelo tribunal recorrido, pelo que não cabe recurso do despacho que a elaborou, improcedendo, por isso, este 1º fundamento do recurso interposto.

A 2ª questão é relativa à impugnação dos factos dados como provados nos quesitos 7º e 9º, a que correspondem os factos constantes nas alienas L) e N) da matéria de facto dada como provada.
(…)
Assim, como pretende o recorrente, deve ser adicionado ao facto provado na al. N), que na altura do acidente o elevador “encontrava-se a funcionar normalmente.”
No entanto, mesmo com este aditamento, não resulta da factualidade apurada que o autor tivesse intuito doloso, ou seja, que tivesse querido dar causa ao acidente, designadamente, porque precisava de dinheiro, como invocou a ré, pois a matéria alegada, relativa a essa intencionalidade do sinistrado, não foi provada.
A recorrente pretende a descaracterização do acidente competindo-lhe a prova da materialidade integradora, por constituir um facto impeditivo do direito reclamado pelo sinistrado. Nos termos do art.º 7 da Lei.º100/97, de 13 de Setembro, não dá direito a reparação do acidente, nos termos da sua alínea a) quando for dolosamente provocado pelo sinistrado, ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei, e nos termos da alínea b) que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.
O acidente dolosamente provocado pela vítima, como pretende a recorrente que seja o caso, é aquele em que a vítima pratica não só o acto determinante do acidente mas em que também o deseja ou se conforma com todas as suas consequências. Ora, ainda que da matéria de facto apurada se possa retirar que foi o carregar no botão de arranque do motor do elevador de automóveis, pelo autor, que lhe provocou o corte do dedo, não resulta apurado qualquer facto que indicie que o mesmo queria tal consequência, sendo certo que a quantia auferida a título de indemnização por ITA é inferior à que receberia se continuasse a desempenhar normalmente as sua funções.
Na verdade, da factualidade adquirida nos autos, a ré não logrou provar factos que consubstanciassem a provocação, por parte do autor, do acidente em causa nos autos, de modo a poder integrar-se a situação na previsão do art. 7º, nº 1, al. a), da Lei nº 100/97 de 13/09, sendo insuficiente, para o cumprimento de tal ónus, o que ficou consignado na alínea L) da matéria dada como provada.
Mas, a recorrente alegou ainda que se não procedesse a alteração da decisão da matéria de facto, nos termos peticionados, ainda assim haveria que descaracterizar o acidente dos autos porque, em face dos factos que ficaram provados tal qual enunciados na sentença recorrida, é possível concluir que o autor actuou, pelo menos, com grosseira negligência, cf. alínea b) do n.º1 do artigo 7º da Lei n.º 100/97 de 13/09.
A recorrente, só no recurso de apelação, invoca, subsidiariamente, que o acidente ocorreu por negligência grosseira do sinistrado. No entanto, não se nos afigura que este tribunal não deva conhecer tal questão, face ao disposto no art.º664 do CPC, uma vez que apenas apreciará a matéria de facto dada como provada, tendo o sinistrado tido a oportunidade de se pronunciar sobre a referida questão nas suas contra-alegações.
Vejamos então
Nos termos do art.º 7.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 100/97, não dá direito a reparação o acidente “que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado” e, nos termos do art.º 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/4, “entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão”.
Assim, a negligência grosseira corresponde, na terminologia clássica, à culpa grave, a qual pressupõe a omissão pelo agente de um dever de cuidado que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta teria deixado de observar, o que vale por dizer que corresponde ao conceito que a doutrina e a jurisprudência haviam construído acerca da “falta grave e indesculpável da vítima” contida na Base VI, n.º 1, al. b), da anterior lei dos acidentes de trabalho, a Lei n.º 2.127, de 3/8/1965, que consensualmente era entendida como um comportamento temerário, reprovado pelo mais elementar sentido de prudência, uma imprudência e temeridade inútil e indesculpável, mas voluntária, embora não intencional, vide, sobre esta matéria, a título de exemplo, acórdãos do STJ de 14.2.2007 e 18.4.2007, 9.6.2010 in dgsi.pt
Da materialidade apurada resulta que:
- No dia do acidente, o autor, por sua iniciativa, subiu ao motor do elevador de automóveis, carregou no botão de arranque e cortou o dedo indicador da mão esquerda;
- Quem substitui as correias do elevador de automóveis são sempre os técnicos da marca, externos à empresa, não fazendo tal tarefa parte das funções do autor nem de qualquer outro trabalhador da ré.
- Na altura do acidente, não se verificava qualquer avaria mecânica no elevador de automóveis, que se encontrava a funcionar normalmente.
Da análise destes factos decorre que o acidente se desenvolveu exclusivamente por iniciativa do autor, pois não foi a ré, nem mais ninguém que lhe deu ordens para intervir no elevador de automóveis. Com efeito, no momento do acidente, o autor extravasava as suas funções e competências porque entendeu substituir as correias do elevador dos automóveis, que era um trabalho que a ré sempre encomendava aos serviços técnicos da marca, externos à empresa, sabendo que só esses técnicos deviam substituir as ditas correias, face à preparação técnica que para o efeito é necessária.
Como se referiu, a negligência sendo fundamentalmente a falta de diligência e atenção, traduz-se na omissão de um dever objectivo de cuidado ou diligência adequado, segundo as circunstâncias concretas de cada caso e em cada momento, a evitar a produção de um dado evento. No entanto, a lei ao exigir a negligência grosseira na descaracterização do acidente, pretendeu a afastar a simples imprudência, irreflexão, imperícia ou erro profissional, pois a negligência grosseira corresponde à culpa grave que pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável à luz do mais elementar senso comum.
Ora, afigura-se-nos que, no caso, o autor teve um comportamento temerário, agindo com evidente falta de cuidado e inutilidade, de modo indesculpável e só a si imputável. Seria diferente e justificado se, por exemplo, o autor para executar as suas funções se tivesse deparado com uma avaria no elevador de automóveis que lhe impedia ou dificultasse o prosseguimento da sua actividade e decidisse intervir no elevador a fim de o reparar. Contudo, não foi isso que se apurou ter sucedido mas, antes, foi o autor quem tomou a iniciativa desse acto, que não tinha que ver com as suas funções mas, sobretudo, quando não era necessário fazê-lo, porquanto nenhuma avaria existia no elevador de automóveis que, como se apurou, estava funcionar normalmente. Com efeito, o autor intrometeu-se numa tarefa de que não tinha sido incumbido, sem que a ré lhe tivesse dado ordens para o fazer, sabendo que quem substituía as correias eram sempre técnicos da marca, externos à empresa e que o mesmo não apresentava na altura qualquer avaria.
Em síntese, concluímos que o autor assumiu um comportamento temerário porque gratuito e de todo infundado, altamente reprovável à luz de um elementar sentido de prudência e senso comum, configurando-se que o autor agiu com culpa grave e exclusiva na ocorrência do acidente. Deste modo, o acidente de que o autor foi vítima deveu-se exclusivamente a um comportamento seu, grosseiramente negligente, que descaracteriza o acidente in casu, ao abrigo da b) do art.º 7 da Lei n.º100/97, de 13 de Setembro, concedendo-se, nestes termos, razão ao recorrente no fundamento do recurso

IV. Decisão
Face ao exposto, julga-se procedente o recurso interposto, revoga-se a sentença recorrida, absolvendo-se a ré da quantia em que nela foi condenado.
Sem custas.

Lisboa, 7 de Março de 2012

Paula Sá Fernandes
José Feteira
Filomena de Carvalho
Decisão Texto Integral: