Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
282/09.2SILSB.L1-5
Relator: ALDA TOMÉ CASIMIRO
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
REVOGAÇÃO
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULO MOTORIZADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Determinada a suspensão provisória do processo, mediante as injunções de trabalho socialmente útil fixado em 40 horas e abstenção de conduzir veículos motorizados pelo período de 2 meses, tendo o arguido logo entregue a carta de condução, sendo revogada a suspensão provisória do processo, por falta de cumprimento da injunção de trabalho, prosseguindo os autos sob a forma de processo comum, não tem o arguido direito a desconto, dos dois meses em que se absteve de conduzir, na pena acessória de proibição de conduzir;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

Relatório
No âmbito do processo comum (singular), nº 282/09.2SILSB, que corre termos na 2ª Secção do 2º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, foi o arguido, A... condenado, como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292º nº 1 e 69º nº 1 a) do Cód. Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à razão diária de 5,00 € (cinco euros) e na proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 3 (três) meses.
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Não se conformando com a decisão, o arguido interpôs o presente recurso pedindo que seja corrigida a sentença, considerando-se o período de tempo já cumprido pelo arguido a título de sanção acessória de inibição de conduzir.
Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:
1. Por douta sentença proferida em 18.10.2011, foi o arguido condenado na pena de multa de 50 dias à taxa diária de 5,00 € e na sanção acessória de inibição de condução pelo período de 3 meses.
2. Sucede que o arguido entregou à ordem dos presentes autos a carta de condução de que é titular a fim de cumprir sanção acessória, conforme consta do termo de entrega de fls. 21,
3. A douta sentença proferida nada refere a propósito da sanção já cumprida pelo arguido.
4. Os factos em causa nos presentes autos são os mesmos e o ilícito apenas um só.
5. O arguido já cumpriu sanção acessória de inibição de condução pelo período total de 72 dias pelos mesmos factos
6. Salvo melhor opinião, entende o recorrente que a douta sentença deveria considerar o período de tempo em que o arguido esteve privado do título de condução
7. E deveria ter considerado que o arguido cumpriu à ordem dos autos sanção acessória de inibição de condução, deduzindo do período em que condenou o arguido os dias já cumpridos.
8. Entendimento diverso atenta, salvo o devido respeito, contra o princípio “ne bis in idem”.
9. Pois, como consequência lógica deste princípio, ninguém pode ser sancionado duas vezes pelo mesmo facto, nem mesmo a título acessório, sob pena de violação de direito constitucionalmente garantido.
10. A douta sentença deveria ter sido corrigida, o que foi requerido e não sucedeu.
11. Ao não considerar que o arguido cumpriu período de sanção acessória de inibição de conduzir e ao não operar a dedução desse período à condenação, o Tribunal a quo violou o princípio “ne bis in idem”.
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A Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância propugnou porque o recurso fosse julgado improcedente, alegando em síntese que:
- o arguido aceitou, numa fase inicial, a suspensão provisória do processo mediante, além do mais, da abstenção de conduzir veículos automóveis por dois meses, mas porque não cumpriu outras injunções, o processo viria a ser devolvido à forma comum, ocorrendo então o julgamento.
- não assiste razão ao arguido pois, nos termos do nº 4 do art. 282º do Cód. Proc. Penal, as prestações feitas não podem ser repetidas no caso de incumprimento das condições de suspensão do processo.
- a abstenção de conduzir a que o arguido voluntariamente se sujeitou não teve a natureza de pena acessória.

Nesta Relação, a Digna Procuradora-geral Adjunta emitiu douto Parecer em que afirmou que não obstante o recurso ter sido interposto da sentença, trata-se de um recurso sobre a sua execução, acabando por incidir sobre despacho que só com a admissão do recurso se pronunciou sobre a requerida correcção da sentença. Defende, assim, que o recurso deve ser rejeitado por falta de objecto, embora concorde com a resposta apresentada pelo Ministério Público junto da primeira instância.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação
Compulsados os autos, verificamos que o Ministério Público, depois de afirmar que o arguido incorreu na prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292º nº 1 e 69º nº 1 a) e 101º do Cód. Penal, entendeu ser de aplicar ao caso o instituto da suspensão provisória do processo, previsto no art. 281º do Cód. Proc. Penal, com a concordância do arguido, e nos seguintes termos:
- fixar-se em 4 meses o período de suspensão provisória do processo
- cumprir o arguido a injunção de trabalho socialmente útil fixado em 40 horas, em entidade, nos termos e sob a orientação definidos pela DGRS
- abster-se o arguido de conduzir veículos motorizados pelo período de 2 meses.
Foi proferido despacho judicial de concordância e o arguido entregou a carta de condução em 2.03.2009, vindo a receber a mesma em 12.05.2009.
Porém, não cumpriu a injunção de trabalho, pelo que veio a ser revogada a suspensão provisória do processo.
Os autos prosseguiram sob a forma comum e o arguido veio a ser condenado como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292º nº 1 e 69º nº 1 a) do Cód. Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à razão diária de 5,00 € (cinco euros) e na proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 3 (três) meses.
Proferida a sentença, veio o arguido interpor requerimento em que solicitava a correcção desta, nos termos do art. 380º do Cód. Proc. Penal, por já ter cumprido “por este crime 72 dias de sanção acessória de inibição de conduzir”.
Como sobre este requerimento não recaísse qualquer despacho, veio o arguido apresentar o recurso em análise (o requerimento viria a ser indeferido “por inexistirem pressupostos para a correcção da sentença”, na mesma altura em que foi admitido o recurso).
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Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Assim, o recorrente pretende que lhe seja possível deduzir, na pena acessória de inibição de conduzir em que foi condenado, o tempo que em que se absteve de conduzir em cumprimento de injunção fixada durante a suspensão do processo, suspensão esta que veio a ser revogada. Alega que a circunstância de não se proceder ao desconto acarreta uma violação do princípio “ne bis in idem”.

Questão prévia
Veio a Digna Procuradora-geral Adjunta defender que o recurso deve ser rejeitado por falta de objecto uma vez que, não obstante ter sido interposto da sentença, trata-se de um recurso sobre a sua execução, acabando por incidir sobre despacho que só com a admissão do recurso se pronunciou sobre a requerida correcção da sentença.
Efectivamente o recurso em causa não incide sobre questão que tenha sido decidida na sentença, mas é interposto desta por entender que a sentença se devia ter pronunciado sobre a questão levantada.
Ou seja, tendo o recurso sido interposto da sentença, sempre deverá ser admitido.

Da dedução, na pena acessória de inibição de conduzir, do tempo em que se absteve de conduzir em cumprimento de injunção fixada durante a suspensão do processo
Vem o recorrente alegar que a sentença recorrida não se pronunciou sobre a dedução, na pena acessória de inibição de conduzir em que foi condenado, do tempo que em que se absteve de conduzir em cumprimento de injunção fixada durante a suspensão provisória do processo.
Antes de mais se dirá que a sentença recorrida não se pronunciou sobre tal questão, nem sobre ela se tinha que pronunciar, já que se trata de matéria do âmbito da execução da pena acessória.
Também por isso, e porque o caso não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas no art. 380º do Cód. Proc. Penal, não seria caso de correcção da sentença.
No entanto, sendo a questão levantada em sede de recurso, sobre ela nos pronunciaremos.
Como resulta da análise dos autos, recebida a notícia do crime, o Ministério Público entendeu ser de aplicar ao caso o instituto da suspensão provisória do processo, previsto no art. 281º do Cód. Proc. Penal, com a concordância do arguido, mediante, para além do cumprimento da injunção de trabalho socialmente útil fixado em 40 horas, da de se abster de conduzir veículos motorizados pelo período de 2 meses.
Proferido despacho judicial de concordância, o recorrente entregou a carta de condução em 2.03.2009, recebendo-a em 12.05.2009, mas, como não cumpriu a injunção de trabalho, veio a ser revogada a suspensão provisória do processo, prosseguindo os autos sob a forma de processo comum.
Julgado, o recorrente foi condenado em pena acessória de inibição de conduzir.

A pena acessória de proibição de conduzir assenta no pressuposto formal de uma condenação do agente numa pena principal (nos termos elencados nas diversas alíneas do nº 1 do art. 69º, do Cód. Penal) e no pressuposto material de (em face das circunstâncias do facto e da personalidade do agente), o exercício da condução se revelar especialmente censurável, censurabilidade esta que, dentro do limite da culpa, responde às necessidades de prevenção geral de intimidação e de prevenção especial para emenda cívica do condutor imprudente ou leviano. De facto, é o conteúdo do facto de natureza ilícita que justifica a censura adicional dirigida ao arguido em função de razões de prevenção geral e especial e que constituem a razão de ser de aplicação da pena acessória
Neste sentido defendia Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, p. 164 e 165) “a necessidade e a urgência político-criminais de que o sistema sancionatório português passe a dispor – em termos de direito penal geral e não somente de direito penal da circulação rodoviária – de uma verdadeira pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados. Uma tal pena deveria ter como pressuposto formal a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução, ou com utilização de veículo, ou cuja execução tivesse sido por este facilitada de forma relevante; e por pressuposto material a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável”. E, quanto às finalidades desta pena acessória, dizia o mesmo autor que, “se (…) o pressuposto material de aplicação desta pena deve ser que o exercício da condução se tenha revelado, no caso, especialmente censurável, então essa circunstância vai elevar o limite da culpa do (ou pelo) facto. Por isso à proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir-se) um efeito de prevenção geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa. Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano”.
As penas acessórias cumprem, assim, uma função preventiva adjuvante da pena principal.

Por outro lado a injunção a que o recorrente se obrigou, não lhe foi imposta, nem assumiu o carácter de pena ou sequer de sanção acessória. De facto, o recorrente quando entregou a carta de condução fê-lo voluntariamente, no âmbito do cumprimento de uma injunção com que concordou (a de abster-se de conduzir por 2 meses) e que visava a suspensão provisória do processo, nos termos do art. 281º do Cód. Proc. Penal.
Ora de acordo com o nº 4, alínea a) do art. 282º do Cód. Proc. Penal, se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas.
E por prestações, nos termos deste normativo, devem entender-se não apenas as dádivas ou doações pecuniárias mas também outras prestações, como as de abster-se de certas actividades (como a de conduzir) ou mesmo as de efectuar serviço de interesse público (será que se o recorrente tivesse efectuado o serviço de interesse público, também pretenderia agora que o tempo dispendido equivalesse a trabalho a favor da comunidade?).
Quanto a uma eventual violação do princípio “ne bis in idem”…
O princípio “ne bis in idem” está consagrado no nº 5 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa.
Nos termos deste normativo, “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, ou seja, não pode haver novo julgamento da mesma questão (é o chamado “efeito negativo do caso julgado”).
Visa este preceito constitucional, “impedir novo julgamento sobre o mesmo crime” (vide Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª Ed., 2000, Vol. III, p. 38/39).
Ora, no caso, o despacho de suspensão provisória do processo não envolve qualquer julgamento sobre o mérito da questão. Trata-se de um despacho proferido numa fase inicial do inquérito e necessita da concordância, além do mais, do arguido. Acresce que (e sobretudo) é, como o nome indica, uma decisão provisória, que não põe fim ao processo – o fim do processo só ocorrerá, eventualmente, no final do decurso do prazo de suspensão, caso as injunções e regras de conduta se mostrem cumpridas; caso isso não aconteça, o processo prossegue (cfr. os nºs 3 e 4 do art. 282º do Cód. Proc. Penal).
Desta forma, não pode entender-se que a condenação, em julgamento, em pena acessória de inibição de conduzir, depois de ter sido cumprida injunção de abstenção de conduzir, em suspensão provisória do processo, configura uma violação do princípio “ne bis in idem”.
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Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso, declarando-o totalmente improcedente, e confirmam a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em cinco (5) UCs.

Lisboa, 6 de Março de 2012

Relatora: Alda Tomé Casimiro;
Adjunto: Paulo Barreto;