Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7514/11.5T2SNT-C.L1-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
RETRIBUIÇÃO
APREENSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Estando definido nos autos o critério abstrato para a fixação da parte do vencimento a apreender para a massa insolvente, por decisão transitada em julgado, não pode voltar a discutir-se a mesma questão, sob pena de ofensa à força e autoridade do caso julgado.
II. Não deixa de acatar a decisão de tribunal superior, a decisão que, realizando a avaliação concreta da situação pessoal e financeira do insolvente, mantém o valor da apreensão do vencimento.
III. O valor concreto da apreensão do vencimento obtém-se mediante o justo equilíbrio entre os interesses dos credores, com expetativa na satisfação, ainda que parcial, dos seus créditos, e as necessidades básicas do devedor, salvaguardadas em termos condignos.
( Da Responsabilidade do Relator )
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
A requereu, no Juízo do Comércio de Sintra da Comarca da Grande Lisboa-Noroeste, a sua insolvência, pedindo também a exoneração do passivo restante.
Durante a assembleia de credores, foi determinada a apreensão de um terço do vencimento do Insolvente.
Inconformado com essa decisão, recorreu o Insolvente, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 18 de outubro de 2011, revogado a mesma, para que se procedesse à apreciação da factualidade alegada e se avaliasse a concreta situação pessoal e financeira do Insolvente, de modo a aquilatar se a apreensão do vencimento colocava em causa o sustento minimamente digno do Insolvente (fls. 72 a 76).
Na sequência do referido acórdão foi proferido despacho, que, após concluir que as despesas comprovadas são de valor inferior ao rendimento que resulta para o Insolvente depois de deduzido 1/3 do seu rendimento, manteve a apreensão de 1/3 do vencimento (fls. 77/78).
Não se conformando com essa decisão, de novo recorreu o Insolvente e, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:
a) Foi preterido o dever de administrar justiça, tal como é legalmente imposta e nos termos dos artigos 156.º, n.º 1, do CPC, e 4.º, n.º 2, da LOFTJ.
b) O incumprimento de tais injunções legais determina a nulidade insanável do ato praticado.
c) Enferma ainda de inconstitucionalidade, por violação do princípio geral ínsito no artigo 202.º, n.º 2, da CRP.
d) O montante dos salários a apreender, no processo de insolvência, deve respeitar o conceito legal de rendimento disponível, definido no n.º 3 do art. 239.º do CIRE.
e) Mostra-se provado que o Insolvente apresenta necessidades básicas mensais da ordem dos € 898,00, para um rendimento líquido de € 1 000,00.
f) Se ao Insolvente vier a ser apreendido 1/3 do salário, deverá ser a massa insolvente a providenciar pelo seu sustento condigno (art. 84.º do CIRE).
Pretende, com o provimento do recurso, a declaração de nulidade do despacho recorrido, com as demais consequências legais.
Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
O Tribunal a quo pronunciou-se ainda no sentido da inexistência de qualquer violação da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa (fls. 79).
Cumpre, desde já, apreciar e decidir.
Neste recurso, está em discussão, essencialmente, o incumprimento da decisão proferida em recurso por tribunal superior e a apreensão do salário do devedor, no processo de insolvência.

II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Para além da dinâmica processual descrita, está provado que:
1. O Insolvente paga mensalmente o valor de € 468,00, de renda de casa, e € 20,00, de água.
2. O Insolvente tem despesas com eletricidade, gás, alimentação, transportes e saúde.
3. O Insolvente aufere, em média, a quantia mensal líquida de € 1 000,00.
***
2.2. Descrita a matéria de facto relevante provada, importa então conhecer do objeto do recurso, delimitado pelas respetivas conclusões, e cuja questão jurídica emergente foi já especificada.
No acórdão desta Relação, proferido antes nos autos, concluiu-se que o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) não contém a definição sobre o montante exato que é possível apreender nos salários futuros do insolvente para satisfação dos credores, antes deixando ao prudente arbítrio do julgador tal tarefa, pelo que, revogando a decisão recorrida, determinou, para se saber o que seria indispensável para o Insolvente conseguir manter um mínimo de dignidade humana ou de existência condiga, a avaliação concreta da sua situação pessoal e financeira, face à factualidade alegada.
Deste modo, tal decisão definiu, definitivamente nestes autos, o critério abstrato para se proceder à fixação da parte do salário a apreender para a massa insolvente, nos termos do art. 46.º, n.º 2, do CIRE, com referência ao disposto no art. 824.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), não podendo, por isso, voltar a discutir-se a mesma questão, sob pena de ofensa à força e autoridade do caso julgado, entretanto, formado pela decisão da Relação.
O que agora verdadeiramente interessa, e é possível discutir, é saber se a decisão ora impugnada obedeceu a tal critério, o qual está, de algum modo, também subjacente no disposto no n.º 6 do art. 824.º do CPC, nomeadamente quando neste se faz referência às “necessidades do executado”, para justificar a redução da parte penhorável do salário.
Examinando a decisão recorrida, verifica-se que na mesma se procedeu à avaliação concreta da situação financeira do Insolvente, ponderando as despesas comprovadas (renda de casa e consumo de água), para depois se concluir que tais despesas eram de “valor bem inferior ao rendimento que resulta para o Insolvente depois de deduzido 1/3 do rendimento”, e, nesse contexto, decidiu manter a apreensão de 1/3 do vencimento.
Apesar da manutenção dessa apreensão para a massa insolvente, a decisão recorrida não deixou de acatar a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, realizando a avaliação concreta da situação pessoal e financeira do Insolvente. O Tribunal a quo, em obediência à decisão da Relação, estava obrigado a realizar tal avaliação, mas não estava obrigado a decidir de modo diferente ao que antes tinha decidido, quanto à apreensão do salário do Insolvente, se o seu julgamento fosse no sentido de que a parte não apreendida era suficiente para aquele manter “um mínimo de dignidade humana ou de existência condigna”, o que concluiu, ao verificar que tal parte do salário era superior ao valor das despesas comprovadas.
Por isso, não é possível surpreender, na decisão recorrida, qualquer violação do dever de acatamento da decisão proferida em via de recurso por um tribunal superior, inexistindo uma situação de incumprimento.
Por outro lado, carece também de fundamento a alegada violação do disposto no art. 202.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, porquanto o Tribunal a quo, decidindo, nomeadamente no âmbito de um conflito de interesses privados, exerceu a função jurisdicional de que está legalmente incumbido, afastando qualquer caso tipificável como de denegação de justiça.
Na decisão recorrida, ficou apenas provado aquilo que o Insolvente despende com a renda de casa (€ 468,00) e com consumo de água (€ 20,00), não se provando o montante das outras despesas alegadas. Tal materialidade, não tendo sido impugnada no recurso, mantém-se inalterada, e, nessa medida, não pode ser olvidada em favor da matéria alegada, ao contrário do que sustenta o Insolvente.
Embora não tivesse ficado provada a quantificação das restantes despesas, como as respeitantes a eletricidade, gás, alimentação, transportes e saúde, isso não pode significar, de modo algum, que não acarretam dispêndio pecuniário na sua satisfação. Por isso, não obstante não se encontrarem quantificadas, importa considerá-las, atendendo à condição social do Insolvente, no âmbito das suas necessidades básicas, que não podem ser ignoradas ou desprezadas, sob pena de se afetar, irremediavelmente, o respeito pela dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da Constituição da República Portuguesa (art. 1.º).
Neste contexto, ponderando o valor das despesas provadas e ainda o valor mínimo previsível para as restantes despesas, nas quais sobressai a da alimentação, afigura-se, num juízo de equidade, que a apreensão do vencimento, para a massa insolvente, deve ser reduzida a um quarto do seu montante. Deste modo, obtém-se, em concreto, um justo equilíbrio entre os interesses dos credores, com expetativa na satisfação, ainda que parcial, dos seus créditos, e as necessidades básicas do devedor, ficando estas salvaguardadas, em termos condignos.
Nestas condições, procede o recurso, o que importa a alteração da decisão recorrida, no sentido da apreensão de um quarto (1/4) do vencimento do Insolvente para a massa insolvente.
2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:
I. Estando definido nos autos o critério abstrato para a fixação da parte do vencimento a apreender para a massa insolvente, por decisão transitada em julgado, não pode voltar a discutir-se a mesma questão, sob pena de ofensa à força e autoridade do caso julgado.
II. Não deixa de acatar a decisão de tribunal superior, a decisão que, realizando a avaliação concreta da situação pessoal e financeira do insolvente, mantém o valor da apreensão do vencimento.
III. O valor concreto da apreensão do vencimento obtém-se mediante o justo equilíbrio entre os interesses dos credores, com expetativa na satisfação, ainda que parcial, dos seus créditos, e as necessidades básicas do devedor, salvaguardadas em termos condignos.
2.4. A massa insolvente, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas do recurso, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 446.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III – DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Conceder provimento ao recurso e, alterando a decisão recorrida, determinar a apreensão de um quarto do vencimento do Insolvente.
2) Condenar a massa insolvente no pagamento das custas.

Lisboa, 23 de fevereiro de 2012

Olindo dos Santos Geraldes
Fátima Galante
Manuel José Aguiar Pereira