Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1524/11.0TVLSB.L1-1
Relator: MANUEL MARQUES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
RESPONSABILIDADE CIVIL DE ENTES PÚBLICOS
MÉDICO
INTERVENÇÃO MÉDICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Fundando-se a acção no instituto da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, com base num alegado erro médico cometido por uma médica durante uma intervenção cirúrgica realizada num estabelecimento público de saúde, e tendo sido demandados ambos (a médica e o hospital público), são materialmente competentes para a sua apreciação os tribunais administrativos, nos termos do art. 4º n° 1 alíneas g) e h) do ETAF;
2. A circunstância da ré médica ter transferido para uma companhia de Seguros a sua responsabilidade civil decorrente da actividade profissional através de contrato de seguro e de ter sido requerida a intervenção acessória da seguradora, não é obstáculo à atribuição do conhecimento do litígio aos tribunais da jurisdição administrativa, pois os particulares podem ser demandados nos processos do contencioso administrativo no âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares (art. 10.º, n.º 7, do C.PTA).
( Da responsabilidade do Relator )
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. A propôs a presente acção declarativa, sob a forma do processo comum ordinário, contra B ( …..Maternidade ... ) e C , peticionando a condenação solidária destas no pagamento à autora:
a) uma indemnização por danos morais nunca inferior a €50.000,00;
b) uma indemnização por danos patrimoniais de €58,79 e as despesas que ainda venham a vencer-se;
c) e ainda uma quantia do montante de €485,00, a liquidar mensalmente, desde a citação, para a autora fazer face às suas despesas mensais, em virtude de não poder laborar.
Alegou, em síntese, ter no dia 4 de Fevereiro de 2011 realizado cesariana electiva na B, tendo a anestesia sido ministrada pela ré C ; que a epidoral foi administrada quando a autora se encontrava deitada e não com as costas arqueadas, como se impunha; que seis horas após o nascimento de sua filha sentiu-se tonta e em desequilíbrio e com fortes dores de cabeça; que apesar das suas queixas, as mesmas foram ignoradas; que no dia 9/02/2011 foi observada por diversos médicos e foi transferida para o Hospital S. José, onde efectuou um TAC craneo-encefálico e onde lhe foi explicado que tinha sido afectada a nível da coluna devido à administração da anestesia epidoral; que após foi de novo transferida para a B ; que aí foi observada pela Dra. …. que referiu à autora que “estava com dores de cabeça fortes, porque necessitava de uma ganza”; que tal a deixou perturbada a nível psicológico, tendo-lhe causado nervos, preocupação e choro; que teve alta clínica a 11/02/2011 mas não se conseguia locomover adequadamente, não conseguindo pegar na sua filha ao colo; que em consequência da má administração da epidoral continua com frequentes dores de cabeça e dificuldades de marcha; e que tem tido despesas com a respectiva medicação e encontra-se impossibilitada de laborar.
As rés contestaram, tendo, além do mais, arguido a excepção de incompetência material do tribunal para conhecer do presente pleito, sustentando encontrar-se atribuída essa competência aos tribunais administrativos.
Relativamente à matéria da excepção, alegaram, em suma, que a ré B é um hospital integrado na rede de prestação de cuidados de saúde, com a natureza de estabelecimento público, dotado de personalidade jurídica, autonomia administrativa, financeira e patrimonial; que prossegue a sua actividade com recurso a funcionários com os quais detém um vínculo jurídico, o que se verifica quanto à sua relação jurídica com a ré médica; que o ETAF determina no artigo 4.º, n. ° 1, alínea g) competir aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público: e que o tribunal é absolutamente incompetente para conhecer do pedido de indemnização civil (artigo 101° do C.P.C.).
Na réplica a autora sustenta que, no âmbito do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e respectivos agentes, fixado pelo Decreto Lei 48 051, de 21/11/1967, e ponderando o disposto no artigo 4°, n° 1, alínea h), do ETAF, os tribunais comuns são materialmente competentes para processar e julgar acções que visem a condenação de um médico no pagamento de indemnização, por prejuízos causados por actuação ilícita na prestação dos cuidados de saúde ao lesado.
Nesse articulado a autora diz ainda que, caso a responsabilidade da médica esteja assegurada por uma apólice de seguro, deverá a respectiva Companhia de Seguros ser chamada a intervir, nos termos do art. 330º do CPC, havendo lugar à intervenção acessória provocada da seguradora que as rés indicarem.
Termina pedindo a que se declare a improcedência da excepção da incompetência e seja chamada a intervir na presente acção a companhia de seguros que assegura a responsabilidade dos serviços prestados pelas Rés, ao abrigo do artigo 331º do Código de Processo Civil.
Através do articulado de fls. 156 e segs. as rés informaram que a ré médica celebrou com a …..-Companhia de Seguros, SA, um contrato de seguro de responsabilidade profissional.
Pelo despacho de fls. 203/207 decidiu-se declarar a incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, absolver as rés da instância e, em função dessa decisão, não conhecer do pedido de intervenção acessória da companhia de seguros.
Essa decisão fundou-se, essencialmente, na seguinte fundamentação:
“A questão a apreciar é se o litígio supra descrito se inscreve na área de competência dos tribunais judiciais ou, pelo contrário, dos tribunais administrativos.
(…)
Nos termos do artigo 13° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei n.º 1512002, de 19 de Fevereiro, alterada pela Lei n° 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, "o âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria".
Preceitua o artigo 4°, n° 1, alínea g), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, alterada pelas Leis nºs 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, e 107-0/2003, de 31 de Dezembro, que é da competência da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto "Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional ( ... )".
Revertendo ao caso concreto, a Ré B é um hospital integrado na rede de prestação de cuidados de saúde, com a natureza de estabelecimento público, dotado de personalidade jurídica, autonomia administrativa, financeira e patrimonial, em conformidade com o previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2° do Regime Jurídico da Gestão Hospitalar aprovado pela Lei n.º 27/2002, de 8 de Novembro e, bem assim, no artigo 2° do Decreto-Lei n.° 188/2003, de 20 de Agosto, que integra o Grupo Hospitalar dos Hospitais Civis de Lisboa, no qual foi inserida pela Portaria n. ° 147/2001, de 2 de Março.
Estamos perante um estabelecimento público de saúde integrado no Serviço Nacional de Saúde, que presta cuidados de saúde no âmbito da rede de prestadores de cuidados de saúde, isto é, um serviço público.
Enquanto serviço público, a Ré Maternidade prossegue a sua actividade com recurso a funcionários com os quais detém um vínculo jurídico, o que se verifica quanto à sua relação jurídica com a Ré Médica.
A causa de pedir configura uma situação de responsabilidade civil extracontratual, a qual se rege pela Lei n.° 67/2007, de 31 de Dezembro.
A obrigação de indemnização decorrente do acto médico pode ter por fonte uma relação contratual, uma relação extracontratual ou a ofensa de um direito de personalidade.
A vinculação do hospital público, perante utentes ou terceiros, assume, necessariamente, carácter excepcional.
"Trata-se, com efeito, de uma responsabilidade de natureza extracontratual, em que a obrigação de indemnizar nasce da violação de uma disposição legal ou de um direito absoluto, sendo esta, também, a concepção que melhor se adapta à essência dos serviços públicos ou de interesse público, porquanto qualquer pessoa, indistintamente, pode utilizá-los, nas condições gerais e impessoais dos respectivos estatutos e regulamentos, sem possibilidade da sua recusa ou da negociação de cláusulas particulares (Vaz Serra, Responsabilidade Civil do Estado e dos seus Órgãos ou Agentes, BMJ, n.º 85, 476 a 497; Joaquim Silva Carneiro, Responsabilidade da Administração Hospitalar, RDES, Ano XIX, 123 e ss.; STJ, de 7.5.74, BMJ n.º 237, 196; RT, Ano 93°, 282) " - acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo n° 1422/04.3TBCVL- A.C1, disponível in www.dgsi.pt.
Em sentido idêntico julgaram os acórdãos do STA de 08.07.2004, processo n° 01129/03), de 20.04.2004, processo n° 0982/03, e de 16.01.2003, processo n° 045121, todos in www.dqsi.pt.
A Lei n° 13/2002, de 19 de Fevereiro, eliminou definitivamente do nosso ordenamento jurídico a dicotomia que durante anos existiu entre actos de gestão pública e actos de gestão privada como critério aferidor do tribunal competente para conhecer de litígios quando fosse parte uma pessoa colectiva de direito público, pelo que nem há que tecer considerações acerca da qualificação jurídica dos actos em apreço.
Do exposto, resulta, com manifesta simplicidade, que a jurisdição comum não tem competência para o julgamento do litígio subjacente à presente acção.
Nem se diga que suscitar a intervenção de uma companhia de seguros altera a causa de pedir, de molde a centrar a competência nos tribunais comuns.
O cerne da questão, a causa de pedir, continuará a ser a responsabilidade civil extracontratual decorrente de um acto de serviço público”.
Inconformada, veio a autora interpor o presente recurso, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões:
I. A Apelante intentou acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra as RR., com vista ao pagamento de uma indemnização por danos sofridos, decorrentes da deficiente prestação de cuidados de saúde pelas Rés, nomeadamente através do instituto da responsabilidade.
II. Conforme se alega na petição inicial, a Ré Médica actuou para com a A., nomeadamente, com falta de cuidado e por forma gravemente negligente, na administração defeituosa de epidural durante o parto da A. que levou a efeito.
III. Mesmo sendo médica, profissional na B, a sua responsabilidade não está excluída, pois devia intervir com o cuidado e a atenção exigíveis para o acto, o que não fez.
IV. Como tal é responsável pelo acto ilícito que cometeu, bem como a seguradora na medida em que para ela se transferiu, pelo menos em parte, a responsabilidade civil derivada da actuação profissional da Ré Médica.
V. Pelo que é o tribunal comum o competente, em razão da matéria, para dirimir o presente pleito.
VI. No âmbito do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e respectivos agentes, fixado pelo Decreto Lei 48 051, de 21/11/1967 (arts. 2°, n° 1 e 3°) e ponderando o disposto no art. 4°, n.º l, alínea h) do ETAF, os tribunais comuns, cuja competência é residual (art. 66° do C.P.C.), são materialmente incompetentes para processar e julgar acções que visem a condenação de um médico no pagamento de indemnização, por prejuízos causados por actuação ilícita na prestação dos cuidados
de saúde ao lesado, quando esse médico agiu no exercício das respectivas funções, enquanto profissional de hospital inserido no Serviço Nacional de Saúde: a competência para apreciação desse pedido pertence aos Tribunais Administrativos.
VII. Deduzindo-se ainda pedido de condenação solidária - até ao limite do capital seguro - contra uma entidade particular, por força de negócio (contrato de seguro) celebrado entre o médico e a sociedade, o Tribunal comum é materialmente competente para apreciar desse pedido, porquanto não tem cabimento interpretar extensivamente a alínea h) do art. 4° do citado diploma, o caso não se integra em nenhuma das demais alíneas desse preceito, e não pode qualificar-se a relação estabelecida entre o médico e a seguradora no âmbito de relação jurídico - administrativa.
Termina pedindo que seja dado provimento ao recurso e, consequentemente, revogada a sentença recorrida.
Foram apresentadas contra-alegações, nas quais as rés formularam as seguintes conclusões:
1. A Recorrente delimita objectivamente o presente recurso à decisão do Tribunal a quo quanto ao conhecimento da excepção de incompetência material quanto à Ré Médica pelo que é apenas quanto a essa questão que deve este Tribunal ad quem decidir o presente recurso, sendo que, relativamente ao demais formou-se caso julgado, em especial quanto à Ré Maternidade.
2. Na intervenção acessória para efeitos de exercício do direito de regresso, o terceiro está condicionado a auxiliar o réu na defesa respeitante às questões implicadas pela verificação do direito do autor.
3. A eventual intervenção da Seguradora nos presentes autos estaria condicionada à discussão das questões que importem para a constituição do direito de regresso entre a Ré Médica e a respectiva Seguradora.
4. Tal impõe que, em momento precedente à referida discussão, seja aferida a susceptibilidade do Tribunal a quo apreciar a causa, pois desse pressuposto depende o prosseguimento dos autos e assim a referida discussão.
5. Agiu bem o Tribunal a quo em não conhecer do pedido de chamamento da companhia de seguros pois a competência para apreciação do direito da ora Recorrente à indemnização, fundada no instituto da responsabilidade civil extracontratual, pela prática de actos médicos no âmbito do atendimento como utente em estabelecimento integrante do Serviço Nacional de Saúde, e assim a discussão do direito de regresso da Ré Médica sobre a companhia de seguros, dependente da verificação daquele direito da Autora, aqui Recorrente, à indemnização, estava prejudicada em razão da matéria.
6. Os actos médicos praticados pela Ré Médica na Ré Maternidade, e em cuja ocorrência a ora Recorrente fundou a acção proposta, ocorreram em sede de uma relação jurídica administrativa, ou seja, no exercício de uma actividade destinada a satisfazer a necessidade colectiva de protecção da saúde.
6. Na medida em que o quid disputatum diz respeito a uma relação jurídica administrativa, é à jurisdição administrativa e fiscal que compete apreciar a acção em causa, nos termos do artigo 4.°, n.º 1, alínea h), do ETAF.
Esteve bem o Tribunal a quo em ter decidido julgar a acção improcedente com fundamento na incompetência absoluta do Tribunal e, assim, em ter absolvido as Rés da instância.
Termina pedindo que o objecto do recurso seja objectiva e subjectivamente delimitado à questão da absolvição da instância das rés e que o mesmo seja julgado improcedente.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3, e 685º-A, n.º 1, do C. P. Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões da recorrente.
Assim, a questão a apreciar consiste fundamentalmente em saber se para conhecer da presente causa são materialmente competentes os tribunais judiciais ou os tribunais administrativos.
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III. Da questão de mérito:
Dispõem os arts. 66º do CPC e 18º, n.º 1, da LOTJ, que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam especialmente atribuídas a outra ordem jurisdicional.
E prescreve o art. 212º, n.º 3, da CRP que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Esta disposição consagra uma reserva material de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos.
Todavia, é dominante na doutrina e na jurisprudência, a interpretação de que a aludida disposição consagra uma reserva relativa, deixando à liberdade do poder legislativo a introdução de alguns desvios, aditivos ou subtractivos, desde que preserve o núcleo essencial do modelo de acordo com o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material (vide o Ac. T.C. n.º 211/2007 de 21-03-2007, in www.tribunal constitucional.pt).
Ora, estabelece o art. 4.º/l, alíneas f), g) e h) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (únicas disposições que poderão estar em causa nos autos) que:
1 - Compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução dos contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito público (...);
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos”.
Como constitui entendimento pacífico, a competência em razão da matéria deve primacialmente aferir-se pela natureza da relação jurídica tal como o autor a configura na petição inicial, isto é, no confronto entre o pedido formulado e a materialidade que integra a causa de pedir.
Ora, a autora funda a presente acção no instituto da responsabilidade civil por facto ilícito, com base num alegado erro médico na administração da anestesia, por parte da ré médica, ocorrido numa intervenção cirúrgica realizada num estabelecimento público de saúde (na ré B).
Esta última integra os Hospitais Civis de Lisboa, mais especificamente, o Grupo Hospitalar do Centro de Lisboa, sendo um estabelecimento público, dotado de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira (vide art. 1º da Portaria n.º 147/2001, de 2/3, arts. 1º e 2º do regime jurídico da gestão hospitalar aprovado pela Lei n.º 27/2002, de 8/11 e arts. 1º e 2º da Portaria n.º 172/2011, de 27/04).
A ré B é, pois, um hospital do sector público administrativo, sendo uma pessoa colectiva pública que integra os estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde
Ora, quem recorre a um estabelecimento de saúde público fá-lo ao abrigo de uma relação jurídica administrativa de ‘utente’, modelada pela lei, submetida a um regime jurídico geral estatutário, aplicável, em igualdade, a todos os utentes daquele serviço público, que define o conjunto dos seus direitos, deveres e obrigações e não pode ser derrogado por acordo, com introdução de discriminações positivas ou negativas. Não o faz, portanto, na qualidade de parte contratante, ainda que num hipotético contrato de adesão ou ao abrigo de relações contratuais de facto – cfr Ac. STA de 9 de Junho de 2011, relatado pelo Cons. Adérito dos Santos, in www.dgsi.pt.
A responsabilidade civil extracontratual emergente dessa prestação de cuidados de saúde está sujeita ao regime estabelecido na Lei n.º 67/2007, de 31/12 (diploma que revogou o D.L. n.º 48051, de 21/11/67), que regula a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas por danos resultantes, além do mais, do exercício da função administrativa, bem como a responsabilidade civil dos titulares dos órgãos, funcionários, agentes públicos e demais trabalhadores aos serviço das aludidas entidades por danos decorrentes de acções e omissões adoptadas no exercício daquela função (vide art. 1º do regime de responsabilidade civil instituído pelo citado diploma legal).
Ora, é indubitável que o conteúdo da relação estabelecida entre utente e a instituição de saúde, no âmbito do Serviço Nacional de Saúde, é uma relação especial de direito administrativo e que os actos praticados pela médica em causa, porque dirigidos ao cumprimento de uma atribuição pública, devem ser qualificados como funcionalmente públicos – vide numa situação similar o decidido no Ac. do Tribunal de Conflitos de 30 de Outubro de 2008, relatado pelo Cons Bettencourt de Faria, in www.dgsi.pt.
Assim sendo, tendo a presente acção sido intentada contra uma pessoa colectiva de direito público (a ré B) e contra uma sua agente/trabalhadora (a ré C ), e estando em causa um acto ou relação jurídico-administrativa, é manifesto que é da competência da jurisdição administrativa conhecer da matéria dos presentes autos, atento o disposto no art° 4º n° 1 alíneas g) e h) do ETAF
Por último refira-se, por tal questão ter sido chamada à colação pela apelante, que não releva nesta matéria a circunstância da ré médica ter transferido para uma companhia de Seguros a sua responsabilidade civil decorrente da actividade profissional através de contrato de seguro e da autora ter requerido a intervenção acessória da seguradora.
Efectivamente, e independentemente da autora não ter legitimidade para chamar a intervir a Companhia de Seguros, face ao estatuído no art. 330º, n.º 1, do CPC, a eventual intervenção da mesma não alteraria os dados da questão, tanto mais que a intervenção (acessória) de Companhia Seguradora não significa que seja demandada em plano de igualdade com os entes públicos, ou que ocorra uma situação de litisconsórcio necessário passivo - cfr. Ac. STA de 29/09/2005, em que foi relator António Fernando Samagaio, in www.dgsi.pt
É que o chamado não é devedor no confronto com a autora, nunca podendo ser condenado mesmo que a acção viesse a proceder, sendo apenas titular passivo de uma relação jurídica conexa (acção de regresso) que tem como titular activo a ré médica da causa principal.
Ademais, o facto de ser demandada uma empresa privada – que no caso seria a Seguradora …. - em conjunto com uma entidade pública não é obstáculo à atribuição do conhecimento do litígio aos tribunais da jurisdição administrativa, pois os particulares podem ser demandados nos processos do contencioso administrativo «no âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares» (art. 10.º, n.º 7, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).
Esta norma permite que, quando a relação jurídica controvertida respeitar a várias entidades e tiver natureza administrativa, a acção possa ser proposta contra todos os interessados, mesmo que sejam pessoas de direito privado, desde que estejam envolvidos nessa relação jurídica administrativa, que determina a competência contenciosa dos tribunais administrativos e uma entidade pública seja concomitantemente demandada.
Consequentemente, é de concluir que a competência para conhecer da presente acção cabe aos tribunais administrativos, conforme se decidiu, e bem, em 1ª instância.
(…)
***
IV. Decisão:
Pelo acima exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.

Lisboa, 20 de Março de 2012

Manuel Marques - Relator
Pedro Brighton - 1º Adjunto
Teresa Sousa Henriques - 2ª Adjunta