Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1370/05.0TBBNV.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
LEI INTERPRETATIVA
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
SUBSÍDIO DE ALIMENTAÇÃO
AJUDAS DE CUSTO
INCAPACIDADE PERMANENTE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROCEDÊNCIA
Sumário: I - A portaria 377/08, de 26/05 (actualizada pela portaria 679/2009) não é lei interpretativa dos arts. 496, 562 e 566 do CC, nem é para ser utilizada pelos tribunais na fixação das indemnizações.
II – A aplicação da regra do art. 567 do CC, no caso de perda da capacidade de ganho do lesado, por incapacidade permanente, só depende do requerimento deste.
III – Valores pagos a título de “subsídio de almoço” e “ajudas de custo”, todos os meses e em montante superior ao “vencimento mensal”, presumem-se retribuição da capacidade de ganho do lesado.
IV – Aquele que fica a sofrer de uma incapacidade permanente total para o trabalho habitual e para outras actividades na sua área de preparação técnico-profissional, deve ser indemnizado com uma pensão fixada entre 62,50% e 87,50% da sua retribuição, tendo em conta a sua idade e a possibilidade – a provar pela contra-parte - de vir a exercer outra profissão.
V – Não é errada a atribuição de uma indemnização de 60.000€ a um lesado de 52 anos que, entre o mais (inúmeras fracturas, tratamentos, cirurgias, dores e sofrimentos), fica com uma total incapacidade para a profissão própria e outras da sua área de preparação; e sofreu de: uma incapacidade genérica total de quase 2 anos e meio; um quantum doloris de 6 em 7; um prejuízo estético de 3 em 7; e um período de quase 5 meses de total imobilização.
(da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: “A” instaurou a presente acção a 26/09/2005 contra “B”, SA, para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos na sequência da colisão do veículo ligeiro de passageiros segurado na ré e responsável pelo acidente, com a matrícula 00-00-SX, com o motociclo de matrícula 1SMG-00-00, conduzido pelo autor, seu proprietário.
Pede o seguinte: a) a suportar todas as despesas que o autor faça, quer directamente por si, quer por terceiros, em seu proveito e por pura necessidade, até que se mostre clinicamente curado, com ou sem incapacidade para o trabalho, quer com despesas médicas e medicamentosas, quer com quaisquer outras conexas com o acidente e com a sua recuperação clínica, e que até esta data (28/09/2005) se liquidam em 1934,78€; b) a pagar ao autor o montante mensal equivalente à retribuição mensal que auferia na data do acidente, isto é, 1050,00€, a prestar desde a data do acidente e até que o autor possa retomar a sua actividade profissional, sem qualquer incapacidade, ou lhe seja fixada, e paga, indemnização devida pela incapacidade permanente de que venha a padecer, sem prejuízo do acordo efectuado em sede da providência cautelar. Até 31/08/2005 são devidos ao autor 11.550€, incluindo neles o subsídio de férias e tempo de férias, já vencidos e o subsídio de Natal, a vencer em 30/11/2005; c) a ser-lhe fixada incapacidade total e permanente, que lhe seja paga uma prestação mensal e vitalícia, no montante de 1050€ (ou o valor que o autor vier a provar que é a sua retribuição mensal ilíquida), actualizada em Janeiro de cada ano, conforme o índice de inflação a publicar pelo Instituto Nacional de Estatística, e referente ao ano anterior; d) a indemnizar o autor pelos danos morais sofridos, e bem assim pelos danos morais que continua a sofrer, liquidando os sofridos até esta data em 60.000€, e relegando para execução de sentença o montante global a este título, a fixar em face aos padecimentos de que ainda será vítima e, pela incapacidade, total ou parcial, de que vier a ser portador; e) a indemnizar o autor pelos danos morais que venham a ocorrer até ter alta médica definitiva, sem prejuízo de incapacidades permanentes, totais ou parciais, e que venham a justificar pedido de indemnização por danos morais, tudo a liquidar em execução de sentença; f) por todas as despesas que venha a realizar, conexas com o acidente, a liquidar em execução de sentença; g) em assegurar todos os tratamentos e intervenções médicas e hospitalares que se justifiquem até alta médica definitiva; h) em indemnizar o autor pela perca de retribuição que possa ocorrer se o autor ficar incapacitado para o trabalho, total ou parcialmente e a liquidar em execução de sentença; i) a reembolsar o autor das despesas feitas por si, ou no seu interesse directo, para que lhe fossem prestados serviços, com táxis (200€), ambulância (113,40€), comboios (20,50€) autocarros (5,20€) e medicamentos (6,78€), que o autor desembolsou no montante global de 345,88€.
Contestou a ré, aceitando que a culpa do acidente foi da exclusiva responsabilidade da sua segurada, devendo a acção ser julgada parcialmente procedente de acordo com a prova que vier a ser produzida e tendo em conta os montantes que a ré já pagou ao autor no âmbito da providencia cautelar de arbitramento de reparação provisória apensa.
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Depois do julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré a pagar ao autor:
i) a título de danos não patrimoniais, 60.000€, acrescidos de juros à taxa legal, desde o dia seguinte à notificação da sentença e até integral pagamento;
ii) a título de danos patrimoniais, 1.943,78€, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento;
iii) desde a data do acidente, uma renda mensal vitalícia calculada com base na remuneração mínima mensal que anualmente tenha sido e venha a ser fixada, multiplicada por catorze meses, de forma a incluir o valor dos subsídios de férias e de Natal, e novamente dividida por doze meses, acrescendo a este valor o montante do subsídio de almoço fixado no CCT do sector. Ao valor devido até ao trânsito em julgado desta sentença, será deduzido o valor já pago pela ré ao autor desde 01/09/2005, nos termos da transacção homologada no âmbito do processo de arbitramento de reparação provisória;
iv) a pagar as despesas com o internamento do autor na “Casa ...”, a partir do dia 01/06/2005.
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A ré recorre desta sentença – para que seja substituída por outra que condene em valores mais baixos – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
I. A indemnização fixada pelo tribunal para compensar o autor pelos danos morais sofridos, de 60.000€, afigura-se excessiva assim como a decisão de condenar a ré a pagar-lhe uma indemnização pelo dano patrimonial futuro mostra-se ilegal e desadequada ao caso concreto.
II. De acordo com o art. 13/1 do CC: A lei interpretativa integra-se na lei interpretanda, ficando, salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de natureza análoga.
III. Em matéria de indemnizações emergentes de responsabilidade civil por acidente de viação, a lei nacional e a interpretação que dela vem sendo feita pela jurisprudência sempre foram no sentido da admissibilidade do ressarcimento do dano morte, danos morais próprios, danos morais dos herdeiros, danos futuros etc., merecem a tutela do direito, embora nenhum lesado em acidente de viação alguma vez tenha ou possa ter tido legitima expectativa em receber determinada quantia em razão de certo dano.
IV. São frequentes as decisões judiciais que fixam diferentes montantes de indemnização para situações similares.
V. O legislador, depois de anos de reflexão sobre o fenómeno do dano corporal emergente dos acidentes de viação em Portugal e da aturada análise e comparação das centenas de milhares de sentenças, tantas vezes contraditórias, proferidas, decidiu-se por estabelecer critérios indicativos, nos termos do disposto no Dec.-Lei 291/07, de 21/08, e da Portaria 377/08, de 26/05.
VI. O novo instrumento regulador e tabelador dos montantes indemnizatórios devidos por dano corporal emergente de acidente de viação vertido na Portaria 377/08, que entrou imediatamente em vigor reveste, manifestamente, carácter de norma interpretativa dos arts. 496, 562 e 563 do Código Civil pelo que, nessa medida, se deve aplicar, retroactivamente ao casos pendentes, como é o caso dos presentes autos, atendendo a que a sentença ainda não transitou em julgado.
VIII. Ao decidir como decidiu violou a sentença recorrida o disposto nos arts 13, 496, 562 563 e 567, todos do CC, e a Portaria 377/2008, pelo que a sentença, porque ilegal, deve ser revogada e substituída por uma outra que condene a apelada a pagar ao apelante uma indemnização por danos morais de 12.885,71€ e a título de IPP uma indemnização de 47.277€.
IX. Não cabe aplicar ao caso a norma do art. 567 do CC, uma vez que é o próprio tribunal que declara não saber se a entidade patronal do recorrido estava abarcada pelo ACT do sector tão pouco fazendo sentido recorrer as regras do direito do trabalho uma vez que este acidente foi apenas de viação e [não] de trabalho.
X. Para quando se não entenda que a referida Portaria tem ca-rácter interpretativo dos citados preceitos e se aplica, imediatamente, aos casos pendentes, como é o dos presentes autos, mesmo assim, se afiguras, excessivas as indemnizações fixadas, atenta a orientação jurisprudencial recente, pelo que a indemnização final a fixar por dano moral não deverá exceder 15.000€ e pela IP de 17% 50.000€, a pagar de uma só vez, pelo que a sentença deve ser revogada e substituída por uma outra que condene a ré a pagar ao autor uma indemnização por esses valores.
O autor, para além de contra-alegar, defendendo a improcedência do recurso da ré, interpôs recurso subordinado, que terminou com as seguintes conclusões:
h) Entendem-se, para os devidos e legais efeitos, reunidos todos os critérios necessários para a procedência do objecto deste recurso, nomeadamente a fixação de uma renda mensal no valor de 1050€, correspondente à retribuição mensal total que o autor auferia à data dos factos, e ainda,
i) A atribuição de uma indemnização a título de dano patrimoniais, tal como requerido na PI,
j) E bem assim a suportar o pagamento de todas as despesas que o autor faça, directamente por si ou por terceiros, em seu proveito e por pura necessidade, tais como as despesas médicas, medicamentosas e hospitalares ou quaisquer outras conexas com o acidente ou com a sua recuperação clínica, contabilizadas desde a data dos factos até ao fim da sua vida,
k) Nomeadamente a passar as credenciais para a assistência hospitalar de que o autor venha a necessitar, e conexas com o acidente de viação que o vitimou.
A ré não contra-alegou.
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Questões que importa resolver: se a Portaria 377/08 tem natureza interpretativa dos artigos do CC aplicáveis ao caso e se os seus critérios deviam ter sido aplicadas no caso; se no caso não podia ter sido aplicada a norma do art. 567 do CC e a ré condenada a pagar uma renda vitalícia; se a indemnização fixada pelos danos morais e a renda vitalícia pela IPP são excessivas perante orientação jurisprudencial recente; se a renda vitalícia devia ser no valor de 1.050€; se a ré também devia ter sido condenada a suportar o pagamento de todas as despesas que o autor faça, directamente por si ou por terceiros, em seu proveito e por pura necessidade, tais como as despesas médicas, medicamentosas e hospitalares ou quaisquer outras conexas com o acidente ou com a sua recuperação clínica, contabilizadas desde a data dos factos até ao fim da sua vida e a passar as credenciais para a assistência hospitalar de que o autor venha a necessitar, conexas com o acidente.
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Foram dados como provados os seguintes factos [os sob alíneas até N) vêm dos assentes; os sob nºs vêm da resposta aos quesitos; os das alíneas O) a S) foram dados como provados na sentença]:
A) No dia 30/11/2004, pelas 10h30, ocorreu um acidente de viação na Estrada da ..., Benavente, Foros de Salvaterra, em que foram intervenientes o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula 00-00-SX e o ciclomotor de matrícula 1 SMG-00-00 [corrigiu-se a data, pois que antes estava escrito 30/10/2004 – a data correcta é referida por outras vezes na sentença e na petição inicial, facto não impugnado pela ré].
B) e C) O SX era propriedade de “C”, SA, e o SMG era propriedade do autor.
D) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas o SX era conduzido por “D” e o 1- SMG pelo autor.
E) e F) O autor conduzia, na referida estrada, o 1-SMG na hemi-faixa direita, atento o seu sentido Foros de Salvaterra-Benavente e o referido “D” conduzia o SX no sentido Benavente-Foros de Salvaterra, na hemi-faixa direita, atento o sentido de marcha.
G) De forma inesperada, ao cruzarem-se um pelo outro, o condutor do SX accionou os mecanismos de travagem.
H) Em consequência disso, a traseira do SX invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária e embateu no ciclomotor.
I) À data do acidente, “C” Portugal, Aluguer de Veículos, SA, havia dado em locação financeira à “F” - Aluguer de Automóveis, Lda, o SX.
J) À data do acidente, a responsabilidade civil pelos eventuais danos causados a terceiros, até ao limite de 600.000€, referente ao SX estava transferida para a ré, pelo contrato de seguro, titulado pela apólice n.º ....
K) A ré assumiu a responsabilidade do condutor do SX pela produção do sinistro, pelo que em cumprimento do acordo celebrado nos autos de providência cautelar de arbitramento de reparação provisória, pagou até 31/10/2005 - data da entrada em juízo da contestação -, a quantia global de 40.775,64€.
L) e M) Após o acidente, o autor foi transportado para o Centro Hospitalar de Lisboa, onde foi assistido e sujeito a exames, e posteriormente foi transportado para o Hospital de Santarém.
N) A ré responsabilizou-se pelo pagamento das despesas relacionadas com intervenções cirúrgicas prestadas ao autor pelo Hospital das Descobertas.
1. Em consequência do acidente, o autor sofreu as seguintes lesões: a) traumatismo abdominal; b) traumatismo torácico; c) trau-matismo do membro inferior esquerdo; d) fracturas de arcos costais esquerdos, com hemotórax, hemoperitoneu; e) fractura-luxação co-minutiva e exposta da tíbio-társica esquerda; f) fracturas expostas bimaleolares ao nível da tíbio-társica esquerda com escaras com exposição dos dois melélos e articulação tibiotársica; g) fractura do baço; h) a perna esquerda do autor apresentava necrose cutânea e exposição óssea, muscular e tendinosa; i) perda de substância cutânea da face externa do joelho e perna com extensão de cerca de 200 cm2; j) focos de contusão parenquimatosa à esquerda.
2. Em consequência das lesões sofridas por causa do aciden-te, o autor foi submetido aos seguintes tratamentos e cirurgias: a) esplenectomia por fractura do baço; b) osteotaxia da tíbio-társica esquerda com fixador externo e maléolo interno esquerdo com dois fios de k por força da fractura - luxação cominutiva e exposta da tíbo társica; c) drenagem torácica do hemotórax; d) cinesioterapia respiratória; e) recobrimento da exposição óssea da face esquerda tibiotársica e do maléolo peronial com retalho fasciocutâneo pedi-culado transposto no pedículo vasculonervoso sural; f) recobrimen-to da exposição óssea da face interna da tibiotársica e do maléolo tibial com retalho fasciocutâneo transposto de base superior e en-xerto de pele da face externa da perna e joelho numa área superior a 200 cm2.
3 e 4. Em 21/01/2005, os recobrimentos supra aludidos esta-vam cicatrizados e abrangiam toda a loca maleolar e da tibiotársi-ca; e os enxertos do joelho e da face interna da tibiotársica estavam pegados em quase toda a sua extensão.
5. A partir de 21/01/2005, o autor passou a ser seguido em regime ambulatório.
6. Em 21/06/2005, o autor apresentava drenagem da articula-ção de um líquido purulento e subluxação da articulação da tibiotársica.
7 e 8. As complicações referidas em 6 foram consequência das lesões descritas em 1 e de uma reactivação da infecção anterior e demandavam dois procedimentos urgentes: a) desbridamento da infecção; b) Artrodése da articulação tiobiotársica esquerda.
9. Após a supra referida alta hospitalar, o autor, por prescrição médica continuou a fazer tratamentos de fisioterapia.
10. Porque o autor não tinha condições de seguir tais tratamentos em sua própria casa e sua esposa não tinha condições de os ministrar, por ausência de conhecimentos e força física para lidar com o corpo do primeiro, a ré aceitou pagar a estadia do autor numa clínica denominada "Casa ...", nas imediações da residência daquele.
11. Em 31/05/2005, a ré comunicou ao autor que a partir de 01/06/2005, não liquidaria as despesas de internamento na referida clínica, e que só assumiria as despesas com tratamentos, desde que acompanhados pelas prescrições médicas.
12. O autor ainda continuava a necessitar de ser sujeito aos tratamentos prestados na referida clínica.
13. O autor não tinha meios para se deslocar diariamente para aquela clínica.
14. Não obstante ter conhecimento dos factos referidos em 12 e 13, a ré continuou a recusar-se a custear as aludidas despesas.
15. Em consequência da interrupção dos tratamentos, o autor piorou o seu estado de saúde.
16. Na intervenção cirúrgica referida em N), foi colocada ao autor uma próteses metálica exterior e dezassete partes metálicas no tornozelo e na parte superior do pé.
17. O autor vai ficar com o pé imobilizado.
18. Na sequência da intervenção cirúrgica aludida em N), o autor esteve internado até 10/09/2005.
19. Após a alta, o autor regressou a casa onde teve um período de imobilização de três meses.
20 e 21. Em de 16/11/2005, o corpo do autor estava a rejeitar uma das próteses metálicas e por essa razão teve de ir à consulta do Hospital das Descobertas.
22. Para se fazer transportar ao hospital, o autor utilizou os serviços de uma ambulância dos Bombeiros Voluntários, a quem teve de pagar serviço que lhe foi prestado.
23. À data do acidente o autor era servente de pedreiro, auferindo o vencimento mensal de 368,30€, acrescido de subsídio de almoço e ajudas de custo pela deslocação, recebendo mensalmente uma média de 1.050€.
24. Desde a data do acidente que o requerente nada recebe da sua entidade empregadora.
27. O quantum doloris sofrido pelo autor é fixável no grau 6 numa escala de 7, e ainda sofre dores.
28. Muitas vezes se lhe depara o quadro de ter que passar o resto dos seus dias deitado ou numa cadeira de rodas.
29. E tal intensificou-se até 10/08/2005, data em que a ré aceitou passar uma credencial.
30. Em consequência do acidente o autor sofreu incapacidade temporária genérica total fixável num período de 861 dias (entre 30/11/2004 e 10/04/2007); incapacidade temporária genérica parcial fixável num período de 35 dias (entre 11/04/2007 e 15/05/2007); e incapacidade profissional total a partir de 30/11/2004.
31. O ciclomotor do autor sofreu danos, cuja reparação importa 576,92€.
32. Para substituir a roupa que o autor trazia vestida no dia do acidente e que se danificou, gastou em calças, sapatos, camisa e casaco, 30€, 45€, 20€ e 69€, respectivamente.
33 e 34. O capacete, marca CMS, que o autor utilizava no dia do acidente ficou danificado, importando a sua substituição em 85€.
35. A mala de bagagem que equipava o ciclomotor ficou danificada, ascendendo o custo de uma que a substitua a 375€.
36 e 37. As luvas que o autor trazia calçadas no dia do acidente, de marca "Deneise", ficaram danificadas e a sua substituição importa um custo de 50€.
38. O autor incorreu ainda em despesas no montante de 252,27€.
39 e 40. Em deslocações em comboios e autocarros de transporte colectivo de passageiros, para tratar de assuntos conexos com o acidente e de assistência, o autor gastou 327,90€, e em táxis, para o mesmo fim, o autor gastou 80,50€.
41. Em medicamentos o autor gastou o montante de 32,19€.
42. O autor sofreu angústia, ansiedade e insegurança.
43. Sendo esta última ainda provocada pela atitude da ré em negar o tratamento na clínica Casa ....
Foram ainda dados como provados os seguintes factos:
O) No dia 19/08/2005 as partes subscreveram o acordo efectuado no âmbito do processo apenso, obrigando-se a ora ré nos seguintes termos:
(…)
2. A requerida responsabiliza-se pelo pagamento dos custos com o internamento do requerente no Hospital “Cuf Descobertas”, para aí ser operado pelo Dr. ..., conforme termo de responsabilidade emitido em 10/08/2005, que faz parte integrante da presente transacção e aqui se dá por reproduzido;
3. A requerida aceita pagar ao requerente uma pensão mensal provisória, no montante de 550€ com efeitos a partir de 01/09/2005, sendo tais quantias consideradas como adiantamentos por conta da indemnização a fixar na acção principal e sem prejuízo do valor que, nessa acção, vier a ser apurado como correspondente à efectiva remuneração mensal do requerente; (…)
5. O valor previsto na clª 3ª é, nesta data, fixado, com referência a uma incapacidade total actual para o trabalho do requerente de 100% e será revisto caso o requerente, em resultado das intervenções e tratamentos a que se venha a submeter, observe melhoras e readquira a sua capacidade para o trabalho, mesmo que as sequelas que, eventualmente ainda apresentar, lhe tragam esforços acrescidos no exercício da sua actividade;
6. Para efeitos de aplicação do previsto na cláusula antecedente, será considerado o resultado do exame médico-legal a realizar na acção principal ou, de qualquer exame extrajudicial a que o requerente, entretanto, venha a submeter-se”.
P) Em consequência do acidente o autor ficou com uma inca-pacidade permanente genérica parcial fixável em 17%, tendo sido valorizados para este cálculo os seguintes aspectos: artrodese da articulação tíbio-társica esquerda a 80º, encurtamento de 2 cm do membro inferior esquerdo, status pós esplenectomia, que não afec-tando o examinado em termos de autonomia e independência, são causa de sofrimento físico, limitando-o em termos funcionais.
Q) Esta incapacidade permanente genérica parcial é impediti-va do exercício da actividade profissional de servente da constru-ção civil, bem como de outras actividades na sua área da prepara-ção técnico-profissional (o que se considera assente em face do teor da clª 5 da transacção e com base no relatório pericial de fls. 245 a 251).
R) Em consequência do acidente o autor, que nasceu no dia 04/06/1952, ficou com um dano estético fixável no grau 3 duma escala de 7, tendo em conta as cicatrizes descritas no exame objectivo (das quais ressaltam 2 com 10 cm, 2 com 12 cm, uma com 20, uma com 26 e outra ainda com 32 cm), a amiotrofia do membro inferior esquerdo, marcha claudicante, e aumento de volume do tornozelo esquerdo (cfr. referido relatório pericial).
S) A ré não efectuou o pagamento das despesas com o internamento do autor na “Casa ...” residência geriátrica, a partir do dia 01/06/2005 (cfr. doc. de fls. 282).
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Da portaria 377/08
A questão da aplicação dos critérios da portaria (entretanto revista pela portaria 679/2009, de 25/06…) já foi muito discutida jurisprudencialmente e nunca foi admitido que os critérios da mesma fossem aplicados na determinação, pelos tribunais, dos montantes indemnizatórios, ou que ela tivesse qualquer carácter interpretativo do regime civilístico da obrigação de indemnizar.
Assim, o autor logo lembra, nas suas contra-alegações, o acórdão de 20/01/2009 do Tribunal da Relação de Coimbra (= TRC; o autor esclarece que este acórdão [ou melhor: o sumário] está publicado no sítio do Instituto de Seguros de Portugal na internet; para além disso, o acórdão está publicado na íntegra na Colectânea de Jurisprudência de 2009, tomo I, págs. 17 a 19):
I. A portaria 377/2008, de 26/05, fixa os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados de proposta razoável para indemnização do dano corporal, não tendo carácter de norma interpretativa dos arts 496, 562 e 563 do Código Civil. II – As disposições constantes da aludida portaria não afastam o direito à indemnização por outros danos, nem fixação de valores superiores aos dela resultantes. III – Será o tribunal que, equitativamente, terá de fixar quais os danos relevantes e qual a indemnização que lhes corresponderá”.
Este acórdão do TRC – que recai sobre um caso em que as alegações da seguradora são, nesta parte, exactamente iguais às dos presentes autos - recorre a passagens da obra de Baptista Machado, Sobre a aplicação no tempo, 1968, págs. 286 e segs, e 246 e segs, para concluir que “dois requisitos emergem na lei interpretativa: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe nos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei”
Ora, a propósito deste último requisito, diga-se que os critérios da portaria estão muito longe de se situarem no quadro de qualquer controvérsia existente e logo por aí seria de afastar o suposto carácter interpretativo.
Para o efeito, basta ver o que sobre elas diz o Prof. Menezes Cordeiro (Tratado do Direito Civil, II, Tomo III, Almedina, 2010, págs. 753 e 759):
“visando – o Governo – respaldar as companhias de seguros – […] são [as portarias] lamentáveis: conseguem fixar valores ainda aquém das já deprimidas cifras obtidas nos tribunais. Pior: cifras máximas, quando seria de esperar, ao menos, que as cifras fossem mínimas. […] A portaria contém tabelas por danos corporais e outros: insignificantes […] Esta iniciativa merece um juízo de censura absoluta. O Governo nunca deveria ter intervindo neste domínio, sem critério nem justiça e, aparentemente, sem conhecimento da evolução (penosa) do próprio Direito Civil […] este grave atentado aos direitos mais sérios e profundos dos cidadãos. […] As ofertas muito baixas, feitas pelas seguradoras, às vítimas de sinistros, agora apoiadas pelas infelizes portarias do Governo, têm ainda uma dimensão da maior injustiça. Elas são propostas a famílias de baixos recurso, desesperadas pelos danos morais e patrimoniais que inesperadamente as atingem e que logo aceitam como único paliativo. Apenas a classe média/alta pode enfrentar um processo de muitos anos contra uma seguradora para, então, conseguir arrancar um resultado menos deprimente” E mais à frente: “a boa fé não pode ser dispensada por portaria do Governo.
Ou aquilo que é dito pelo Prof. Paulo Mota Pinto (Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Coimbra Editora, Dez2008, notas 1639 a 1641, págs. 568/571) sobre medidas num âmbito conexo:
“medidas de claro favorecimento das seguradoras em prejuízo dos segurados” que podem levar a uma situação que pode ser considerada de “escandalosa injustiça material” (de verdadeira expropriação forçada por utilidade particular (no caso, das seguradoras – utilizando as palavras de Menezes Leitão, em obra que cita) e por isso inconstitucionais.
Ou seja, as portarias em causa vieram propor a alternativa de valores “insignificantes”, ou seja, muito longe daqueles que os tribunais, com esforço, vinham – e vêm – ultimamente a aplicar. Dito de outro modo, embora exista discrepância nos resultados encontrados na jurisprudência para casos semelhantes, essa discrepância situa-se entre limites muito superiores aos que as portarias em causa sugerem.
Mas, verdade seja, nem a própria portaria 377/2008 tem a veleidade de se considerar interpretativa dos artigos do Código Civil invocados pela ré, pois que ela própria diz (art. 1/2) que “as disposições constantes da presente portaria não afastam o direito à indemnização de outros danos, nem a fixação de valores superiores aos propostos”.
E esta última frase lembra, por sua vez, aquilo que a portaria 377/2008 tem em vista regular, “os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal”, matéria que está longe de ser a dos artigos invocados pela ré.
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No mesmo sentido da não aplicação da portaria pelos tribunais, vejam-se ainda por exemplo:
O ac. do STJ de 25/03/2010 (344/07.0TACVD.P1.S1 – todas as referências deste tipo são à base de dados do ITIJ, salvo indicação em contrário) III - A Portaria 377/2008, é totalmente irrelevante para o caso dos autos, pois ela visa não mais do que fornecer valores mínimos que sirvam de base de negociação para a determinação das indemnizações. Os valores por ela indicados não são vinculativos, não têm em conta as circunstâncias do caso, que são essenciais para a formulação do juízo de equidade que o n.º 3 do art. 496 do CC impõe.
O acórdão do STJ de 09/09/2010 (2572/07.0TBTVD.L1): As quantias das faladas portarias não vinculam, de modo algum, os tribunais. […] impondo a lei ordinária que, com base nelas, se faça uma proposta razoável de indemnização, se existir clara discrepância entre os montantes ali referidos e os fixados jurisprudencialmente, passam tais propostas, afinal, a não serem razoáveis. Nesse caso, sendo os valores jurisprudenciais superiores existe um prejuízo manifesto para os lesados e até para as finalidades daquelas. O que não significa, contudo, que sejam os tribunais a moldarem o seu entendimento. […] Enfim, de todo o quadro que vimos expondo, parece-nos resultar para nós uma imposição de continuidade relativamente aos valores que vêm sendo fixados pelos tribunais, em especial por este Tribunal. Essa continuidade não afasta uma paulatina evolução no sentido ascensional.
O ac. do STJ de 07/07/2009 (205/07.3GTLRA.C1): I - No que diz respeito à indemnização pelo dano morte, a Portaria 377/2008, tem um âmbito institucional específico de aplicação extrajudicial, sendo que, por outro lado, e, pela natureza do diploma que é, não derroga Lei ou DL, situando-se em hierarquia inferior, pelo que o critério legal necessário e fundamental, em termos judiciais, é o definido no CC.
O ac. do TRP de 17/03/2011 (2993/08.0TBPVZ.P1) lembra o ac. do STJ de 01/07/2010 (457/07.9TCGMR.G1.S1 – que diz estar publicado na CJSTJ.2010.II, págs. 139 e segs) que refere que a portaria tem a “típica funcionalidade de mero estabelecimento de padrões mínimos a cumprir pelas seguradoras na apresentação de propostas sérias e razoáveis de regularização de sinistros”, de tal modo que a sua aplicação pura se poderia traduzir num “insustentável retrocesso na protecção devida aos lesados, voltando-se a um «miserabilismo» indemnizatório há muito justificadamente derrogado pelos critérios jurisprudenciais dominantes, de modo a afastar decididamente o arbitramento de montantes indemnizatórios irrisórios, desproporcionadamente exíguos perante a gravidade das lesões sofridas”.
No mesmo sentido, vejam-se ainda os acórdãos do TRC de 15/02/2011 (291/07.6TBLRA.C1), de 21/09/2011 (794/04.4GBILH.C1), de 21/12/2010 (1601/08.4TBVIS.C1) e do TRP de 07/02/2011 (2942/08.6TBVCD.P1).
O mesmo aliás tem sido dito quanto aos critérios do próprio Dec.-Lei 291/2007, como se vê, por exemplo, na decisão sumária de 09/01/2012 do TRC (153/11.2TJCBR.C1): 2. A aplicação do critério de “perda total”, implicando o cumprimento da obrigação de indemnização em dinheiro e não através da reparação do veículo, previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do DL 291/2007 de 21/08, restringe-se ao procedimento obrigatório de apresentação pela seguradora da “proposta razoável”, destinado a agilizar o acertamento extrajudicial da responsabilidade.
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Da renda vitalícia
Diz o nº. 1 do art. 567 do CC: Atendendo à natureza continuada dos danos, pode o tribunal, a requerimento do lesado, dar à indemnização, no todo ou em parte, a forma de renda vitalícia ou temporária, determinando as providências necessárias para garantir o seu pagamento.
O que a ré diz contra a aplicação do art. 567 do CC é apenas o que consta da conclusão IX, mas o que aí é dito tem apenas a ver com a forma como a norma deve ser aplicada e não quanto à sua aplicação.
Os requisitos do nº. 1 do art. 567 do CC são apenas dois: a natureza continuada dos danos e o requerimento do lesado.
E os dois estão verificados, já que a perda de capacidade de ganho do autor é um dano que vai continuar a existir até ao fim da vida do mesmo.
A questão é que a norma é pouco aplicada, porque, como lembra a sentença recorrida, “os lesados não usam fazer este pedido e tal só pode ser estabelecido a seu requerimento”.
Casos análogos existem nos acs. do TRP de 31/03/1998 (9520369), do STJ de 29/03/2007 (revista n.º 709/07, nos sumários do STJ no sítio do mesmo na internet) do STJ de 18/10/2007 (Revista n.º 3455/07, nos sumários do STJ…), do STJ de 04/10/2005 (05A2284) e em todos eles não se levantou qualquer questão quanto ao pedido.
O único caso que se encontrou em que se decidiu de forma diferente foi o do ac. do TRC de 04/05/2004 (1079/04) por entender que a norma do art. 567 do CC representa uma excepção ao princípio nominalista consagrado no nosso ordenamento jurídico - é que uma vez fixado o valor global dos prejuízos, a dívida de indemnização reveste, como regra, o carácter de uma obrigação momentânea, a satisfazer imediatamente no seu todo - e que o facto de o exequente ter formulado, no que concerne a tais danos, o pedido de que a indemnização fosse fixada sob a forma de renda mensal vitalícia, não é vinculativo para o tribunal. O juiz tem a faculdade ou poder de optar ou não por tal modalidade de indemnização. Invoca neste sentido Dario Martins de Almeida (Manual de Acidentes de Viação, Livraria Almedina, 2ª ed., pags. 134/135). E considera que para que o pedido seja deferido, têm de se verificar especiais razões ponderosas que aconselhassem a tal, que refere como sendo nomeadamente uma acentuada perda de rendimento ou acentuada diminuição da sua capacidade aquisitiva ou então ainda aumento das suas necessidades normais.
Para além da passagem citada (que na 3ª edição, está nas págs. 138/139), Dario Martins de Almeida, diz ainda (3ª edição, em anotação ao art. 567 do CC, pág. 411): “Desde que os danos assumam um carácter permanente, a indemnização pode revestir, no todo ou em parte, a forma de renda quer vitalícia, quer temporária. Este carácter permanente dos danos provém normalmente da supressão ou diminuição da capacidade de trabalho ou aquisitiva do lesado. E nesta emergência, a indemnização em forma de renda constitui o processo mais justo e, por vezes, o mais perfeito de reparar o dano, já que a duração da vida do lesado é sempre um facto incerto”
Ou como diz Vaz Serra (BMJ 84, págs,. 152 e 153), citado por Daria Martins de Almeida (nota 1 da pág. 138): “A indemnização mediante atribuição de uma renda vitalícia pode ser, com efeito, a maneira mais apropriada de reparar um dano de carácter permanente, que se traduza na eliminação ou redução da actividade do prejudicado com a qual podia ganhar a sua vida. Não sendo fácil calcular, na data da sentença, a quanto monta o dano, ignorando-se a duração da vida do prejudicado, e atendendo, por outro lado, a que este fica numa situação mais parecida com a que teria se o facto danoso não tivesse sido lugar, caso lhe seja reconhecido o direito a uma renda vitalícia (pois é de calcular que, se conservasse a sua actividade anterior, iria auferindo continuadamente o rendimento dessa actividade), a reparação por meio de uma renda pode apresentar-se como a mais adequada a uma situação desse natureza”.
E diz Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 2010, 9ª edição, Almedina, 2010, pág. 421: “[…] se alguém, em consequência de uma lesão, vê reduzida a sua capacidade para prestar trabalho ou para adquirir outro tipo de rendimentos, é manifesto que […a] solução apenas pode passar […], pela atribuição de uma indemnização em renda vitalícia ou temporária, cabendo ao tribunal determinar as providências necessárias para garantir o seu pagamento, conforme prevê o art. 567. Só dessa forma a fixação da indemnização permitirá colmatar a perda continuada de rendimentos pelo lesado”.
Ou seja, no caso de vítimas de acidentes de viação, que percam capacidade aquisitiva, verificam-se sempre ou pelo menos em regra as razões ponderosas exigidas pelo referido ac. do TRC. Assim, até se poderia dizer que a tese deveria ser a oposta à formulada por este acórdão. Por isso, Vaz Serra, em comentário ao ac. do STJ de 06/07/1971 (BMJ. 209, pág. 102), publicado na RLJ 105, pág. 154, citado por Dario Martins de Almeida, na nota já referida) defende a tese, segundo a qual o tribunal pode optar pela indemnização em forma de renda, desde que o lesado nada tenha dito a esse respeito ou não diga expressamente que a pretende em forma de capital.
Mas mesmo que se seguisse a tese do ac. do TRC as razões ponderosas verificam-se, no caso, já que o autor sofreu uma acentuada diminuição da sua capacidade aquisitiva, o que se verá melhor mais à frente.
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O valor da renda vitalícia
A renda, no caso, deve ser igual ao rendimento mensal perdido pelo autor. Se ele ganha 100 e passa a ganhar 50, o dano sofrido são os 50 mensais.
E como a perda de capacidade aquisitiva é um dano permanente, a renda deve vigorar para o resto da sua vida, ou seja, deve ser vitalícia.
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Quanto é que o autor ganhava
Provou-se que (factos sob 23) o autor, “à data do acidente, era servente de pedreiro, auferindo o vencimento mensal de 368,30€, acrescido de subsídio de almoço e ajudas de custo pela deslocação, recebendo mensalmente uma média de 1.050€.”
A fundamentação da sentença recorrida
A sentença recorrida para saber qual foi o rendimento perdido, vai buscar o conceito de retribuição do direito de trabalho.
Neste, diz, incluem-se o vencimento e o subsídio de almoço, mas não as ajudas de custo.
Quanto ao subsídio de alimentação diz que, “o subsídio de alimentação pago mensalmente por um montante pré-fixado é uma prestação certa e regular relacionada com a prestação efectiva de trabalho e integra-se no conceito de retribuição a atender como base de cálculo para as prestações reparatórias” (cfr. ac. STJ, de 10/12/2008, recurso 1893/08, nos sumários dos acórdãos do STJ).
Para chegar a conclusão contrária quanto às ajudas de custo, invoca dois sumários de dois acórdãos do STJ, ambos publicados no sítio do STJ na internet: o primeiro, de 23/06/2010, 607/07.5TTLSB.S1, e o segundo de 30/06/2010, 108/07.1TTBRR.S1).
Mas logo a seguir diz que as ajudas de custo poderiam integrar o conceito de retribuição, desde que estivesse provado – e tivesse sido alegado - o respectivo carácter regular e de funcionamento como contrapartida pela sua prestação de trabalho (e não pela deslocação temporária do local de trabalho ou outra justificação para a respectiva existência com este nome).
Mas – continua - não está e o ónus daquela alegação e prova caberia ao autor (art. 342/11 do CC), uma vez que não estamos em sede das relações entre o trabalhador e entidade patronal. Cita neste sentido, o ac. STJ de 21/01/2009, 3362/08, com sumário publicado no mesmo sítio: “cabe ao trabalhador/autor, nos termos do art. 342/1, do CC, o ónus de alegar e provar os factos – ainda que inseridos em presunções legais de que pudesse aproveitar, v.g. no quadro do art. 82 da LCT – que permitam concluir qual a retribuição ilíquida que auferia e atendível para o cálculo das pensões resultantes de IPP de que ficou a padecer, por se tratar de factos constitutivos do direito por ele accionado”.
Pelo que, conclui a sentença recorrida, aquilo que vale como retribuição do autor é o vencimento mensal de 368,30€ - que lembra ser praticamente ao salário mínimo nacional vigente à data - e o subsídio do almoço.
Quanto ao valor do subsídio do almoço, que não está concretizado, diz que será razoável admitir que o valor do subsídio de almoço fosse fixado próximo do valor estabelecido no Contrato Colectivo de Trabalho do sector que obriga, por um lado, as empresas singulares ou colectivas que, no território do continente, se dedicam à actividade da construção civil, obras públicas e serviços relacionados com a actividade da construção e estejam filiadas nas associações de empregadores outorgantes e, por outro, os traba-lhadores ao seu serviço das categorias profissionais nele previstas, pelo que, não estando determinado é determinável por essa via. Na verdade, apesar de não sabermos se a empresa em que o autor estava a trabalhar com contrato a termo, tinha ou não aderido a este CCT, o certo é que o mesmo abrange 18.517 empregadores e 300.000 trabalhadores, sendo consequentemente um elemento que nos permite utilizar dados objectivos num julgamento que será, nesta parte, equitativo [as referências que a sentença faz permitem localizar o CCT que invoca – trata-se do CCT para a indústria da construção civil e obras públicas, revisão global 2010, que está publicado em http://www.aiccopn.pt/upload/CCT_2010.pdf (consultado em 13/02/2012); o anterior está publicado em http://www.apel.pt/gest_cnt_upload/editor/File/apel/cct/BTE%20_13_de_8%20_Abril_2005.pdf, consultado em 14/02/2012)].
Assim, para a sentença, aquilo que o autor perdeu foi o salário mínimo nacional e o subsídio de almoço do CCT do sector.
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Posição das partes
A ré, como se viu, entende que a sentença não pode recorrer ao CCT do sector, mas a afirmação fá-la a propósito do art. 567 do CC, não tirando qualquer consequência da mesma quanto à matéria agora em discussão, nem faria muito sentido que o fizesse, já que a única consequência seria ficarmos com um subsídio de almoço de montante indeterminado, que teria de ser determinado de algum modo. De qualquer modo, face aos valores de indemnização que a ré defende, vê-se que para a ré a retribuição não eram os 1050€, mas 400€ (não justificando este valor, que nem sequer é afirmado expressamente, resultando dos dados da “proposta razoável” que junta às alegações…).
Quanto ao autor, vê-se que o mesmo entende que tudo aquilo que recebia era, apesar do nome, retribuição. Diz o autor: “sabe[-se], que o valor contabilizado como ajudas de custo não é mais do que uma parte da retribuição para aos trabalhadores. […] A concorrência que se instalou no ramo da construção civil, em que os grandes grupos económicos deixaram de ter empregados directos a efectuar a parte menos qualificada das obras, e dão essas tarefas de empreitada a tarefeiros e a empresas de menor dimensão, cujos preços impõem, levam a que as retribuições sejam pagas pelo ordenado mínimo nacional, sobre o qual são pagas as contribuições para a Segurança Social, sendo paga a restante parte da retribuição através de ajudas de custo, estas sem encargos patronais.
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Das “ajudas de custo”
Posto isto, o que importa aqui é apurar se as ajudas de custo, recebidas todos os meses, num valor sempre igual (se as outras duas parcelas têm sempre o mesmo valor, a terceira não pode deixar de o ter…), são ou não retribuição.
A sentença diz que não porque não está provado que tal valor funcionasse como contrapartida pela sua prestação de trabalho e não pela deslocação temporária do local de trabalho ou outra justificação para a respectiva existência com este nome.
Face ao disposto no art. 260/2 do Código de Trabalho de 2003 (que era o que estava em vigor à data do acidente), que se citará abaixo, diga-se desde já que, aquilo que é válido para as ajudas de custo, teria que ser válido para o subsídio de refeição, pelo que não se justifica a solução diferente que a sentença recorrida dá a uma e outra parcela.
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A sentença só se pode servir de factos principais alegados pelas partes
Diga-se antes de mais que o autor tinha dito auferir a remuneração mensal de 1050€, “conforme melhor se discrimina no doc. 7 junto à providência cautelar (arts. 3 e 49 da pi)”. Ora, o doc. 7, assinado pela entidade patronal, diz que o autor “aufere um valor mensal de 368,30€, acrescido de subsídio de almoço e ajudas de custo com uma remuneração média mensal de 1050€”.
No julgamento foi dado como provado que (23): “à data do acidente o autor era servente de pedreiro, auferindo o vencimento mensal de 368,30€, acrescido de subsídio de almoço e ajudas de custo pela deslocação, recebendo mensalmente uma média de 1.050€.”
Na sentença recorrida diz-se a este propósito – no último parágrafo da pág. 314 – “[…] tendo-se provado apenas o que constava do documento emitido pela respectiva entidade patronal […]”.
Tendo isto em consideração, pergunta-se: se se provou apenas o que constava do documento, porque é que se alterou o que nele se dizia, acrescentando-se a expressão “pela deslocação” à expressão “ajudas de custo”?
Trata-se de um facto principal, que preenche um elemento da previsão de uma excepção, pelo que teria que ter sido alegado pela ré para poder ser considerado. Não sendo um facto instrumental, ele não podia ser introduzido na resposta aos quesitos (arts. 664 e 264/2, ambos do CPC). Como se trata da violação de uma proibição de utilização de factos, o facto não pode ser utilizado e por isso é como se do ponto sob 23 constasse apenas “e ajudas de custo”.
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O que se segue não depende, no entanto, da eliminação da expressão “pela deslocação”.
Desde logo, a expressão ajudas de custo tem a ver necessariamente com quantias que são pagas para compensar o trabalhador nos gastos/custos que teve para poder realizar o seu trabalho. Dito nos termos de Jorge Leite, Colectânea de Leis do Trabalho, pág. 92, citado por João Leal Amado, Contrato de Trabalho, Coimbra Editora, 2009, pág. 299, nota 408, com referência ao conjunto de prestações patrimoniais previstas no art. 260/1 do CT2003: “trata-se, aqui, apenas, de ressarcir o trabalhador de despesas que este suporta em virtude da prestação de serviço.”
Ou, nos termos dos acórdãos referidos abaixo, destinam-se a compensar o trabalhador por custos aleatórios.
Por isso, pela lógica das coisas, as quantias pagas a título de ajudas de custo, que sejam realmente ajudas de custo, são sempre uma pequena fracção das quantias pagas pelo próprio trabalho. Não tem sentido pagar-se 600€, todos os meses, para receber do trabalhador actividade pela qual só se paga 365€.
Quer isto dizer que a expressão ajudas de custo, no caso dos autos, é só um nome para uma realidade muito diversa, ou seja, para a retribuição efectiva do autor, com os fins que o autor refere: para se fazerem menos descontos para a segurança social, e outras que ele podia referir: para dar origem a menos impostos e para se poder retirarem as mesmas sem respeito pelas regras legais que protegem a retribuição [veja-se Júlio Gomes, Algumas Observações Críticas Sobre a Jurisprudência Recente em Matéria de Retribuição e Afins, , Memórias (IV Congresso Nacional do DT), pág. 52].
E para se chegar aqui não se teve que usar de qualquer presunção legal (qual seja, no caso, a do art. 249/3 do CT). Trata-se sim de, tendo em conta as regras da lógica, considerar que as quantias englobadas naquilo que o autor recebia todos os meses, de valor superior ao suposto vencimento, e sempre em montantes iguais, eram retribuição e não ajudas de custo. Ou seja, de não dar qualquer valor ao nome que foi dado a tais quantias.
O que, a própria ré fez. Pois que, tendo na providência cautelar acesso ao doc. 7, no qual se dizia que o autor só recebia o valor mensal de 365€, aceitou pagar 550€ mensais. Ou seja, não dando qualquer valor àquilo que contrariava as regras da lógica.
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Mas para além disso e por tudo isto, e também de forma suficiente, não é de aceitar a construção que a sentença faz de que era ao autor que cabia o ónus de alegação e prova de que aquelas quantias, ditas de ajudas de custa, eram retribuição e não ajudas de custo.
Quanto ao acórdão que invoca veja-se, antes de mais, na íntegra, o sumário do mesmo (já que é só de um sumário que se trata):
I – Decorre do disposto no art. 26 da Lei 100/97, de 13/09 (LAT), que a retribuição atendível para o cálculo das pensões por incapacidade permanente é a ilíquida.
II – Tratando-se de acidente sofrido por um trabalhador por conta de outrem, em 04/02/2001, segundo o respectivo regime legal aplicável nessa data, é ilíquida a retribuição do trabalhador antes de sobre ela incidir: (i) a quotização para a Segurança Social a cargo do mesmo, segundo taxas definidas por lei, e por cujo pagamento é responsável a entidade empregadora, que a deve descontar na remuneração paga ao trabalhador e fazer entrega do respectivo valor à Segurança Social (art 60/1, 61 e 62 da Lei 17/2000, de 08/08, diploma em vigor à data do acidente); (ii) a retenção na fonte feita pelo empregador, aquando do pagamento da retribuição ao trabalhador, por conta do IRS por este devido (arts 1/1, 91 e 92, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Dec.-Lei 442-A/88, de 30/11, na sua redacção original, vigente à data do acidente).
III – No âmbito da respectiva relação laboral, a retribuição devida pelo empregador ao trabalhador está submetida ao princípio geral da liberdade contratual, prevista no art. 405 do CC.
IV – Cabe ao trabalhador/autor, nos termos do art. 342/1 do CC o ónus de alegar e provar os factos – ainda que inseridos em presunções legais de que pudesse aproveitar, v.g. no quadro do art. 82 da LCT – que permitam concluir qual a retribuição ilíquida que auferia e atendível para o cálculo das pensões resultantes de IPP de que ficou a padecer, por se tratar de factos constitutivos do direito por ele accionado.
V – Tendo-se apurado, apenas, que a ré entregava, mensal-mente, ao autor a quantia de 638,46€, e nada se tendo alegado nem provado sobre se a ré efectuava descontos referentes às quotizações para a Segurança Social ou retenção na fonte de verbas, a título de IRS, com referência à retribuição laboral do autor, ou se, independentemente da sua validade ou invalidade, houve algum acordo das partes a respeito da realização desses descontos e retenção, e o seu teor, não pode concluir-se que aquela quantia correspondia tão-somente à parte líquida da retribuição ajustada, devendo considerar-se, a sobredita quantia, como a retribuição atendível para o cálculo das pensões emergentes do acidente de trabalho.
Ora, pode-se desde logo concluir-se que a sentença incorre no erro de considerar que o acórdão está perante uma relação processual estabelecida entre um autor e um terceiro que não é a entidade patronal. Pois que, como resulta da aplicação da Lei 100/97, de 13/09, e da referência constante do ponto V – “Tendo-se apurado, apenas, que a ré entregava, mensalmente, ao autor a quantia de …” -, a acção está a correr entre entidade empregadora e autor. Por outro lado, como resulta do ponto V do sumário do acórdão, a retribuição considerada foi toda a que o autor conseguiu provar… Ou seja, não ficou nenhuma parcela de fora da retribuição por o autor não ter conseguido provar que se tratava de retribuição. O que se passava é que o autor queria que tudo aquilo que tinha conseguido provar fosse considerado retribuição líquida e não ilíquida. Em suma, o acórdão não disse, nem podia ter dito aquilo que a sentença recorrida pensa que o acórdão disse. E dificilmente se concebe que o acórdão pudesse ter dito isso, pois que não se vê que o jogo das regras legais pudesse dar um resultado diverso daquele a que se chegará abaixo, apenas porque a outra parte é um terceiro e não a entidade empregadora.
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Essas regras - arts. 249/1 e 2 e 260/1 e 2 do CT (na redacção em vigor à data do acidente; está-se a utilizar a redacção que está publicada no sítio da PGD de Lisboa) – são então as seguintes:
Diz o art. 249/1: Só se considera retribuição aquilo a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho. E o nº. 2 acrescenta: Na contrapartida do trabalho inclui-se a retribuição base e todas as prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie. E o nº. 3 diz: 3 - Até prova em contrário, presume-se constituir retribuição toda e qualquer prestação do empregador ao trabalhador.
Por sua vez, o art. 260 do CT2003, diz que: 1 - Não se consideram retribuição as importâncias recebidas a título de ajudas de custo, abonos de viagem, despesas de transporte, abonos de instalação e outras equivalentes, devidas ao trabalhador por deslocações, novas instalações ou despesas feitas em serviço do empregador, salvo quando, sendo tais deslocações ou despesas frequentes, essas importâncias, na parte que exceda os respectivos montantes normais, tenham sido previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador. E o nº. 2 acrescenta: O disposto no número anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, ao abono para falhas e ao subsídio de refeição.
Quer isto dizer que existe a regra geral (art. 249/1 e 2), auxiliada por uma presunção (art. 249/3), existe uma excepção (art. 260/1, 1ª parte) e existe uma contra-excepção (art. 260/1, 1ª parte).
Tudo aquilo que seja recebido pelo trabalhador, de forma periódica e regular, presume-se retribuição, excepto se a outra parte alegar e provar os factos da excepção, ou seja, os factos que permitiriam qualificar parte daquele valor como ajudas de custo por deslocações, que assim são factos impeditivos (art. 342/2 do CC).
Ora, o preenchimento dos pressupostos da regra – art. 249/1 e 2 – cabia ao autor, tarefa de que ele se desempenhou com a prova do facto sob 23: demonstrou ter recebido, regular e periodicamente, aquelas “ajudas de custo”, ou melhor, demonstrou ter recebido, regular e periodicamente, 1050€, conjugado com a presunção do nº. 3 do art. 249.
E a ré não alegou – nem provou – os pressupostos da excepção. Mas, provado que fossem os pressupostos de tal excepção, nem isso seria suficiente para considerar que tais quantias eram ajudas de custo, pois que sempre se teriam de dizer preenchidos os pressupostos da contra-excepção da 2ª parte do nº. 1 do art. 260: O próprio facto de serem recebidas todos os meses e no mesmo valor, sendo só por si de valor superior ao da soma da suposta retribuição-base com o subsídio de refeição, desmentiria o nome que lhes foi dado de ajudas de custo por deslocação.
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Neste sentido, vejam-se:
O ac. do TRP de 25/02/2008 (0716724):
I - Nos termos do art. 260/1, 1ª parte do CT, as importâncias recebidas a título de ajudas de custo não têm, por regra, a natureza de retribuição em sentido jurídico (art. 249/4, do CT). II - No entanto, a 2ª parte do referido artigo admite que tais importâncias tenham carácter retributivo se e na medida em que o seu valor exceder um montante considerado normal, ou quando, pelo contrato ou pelos usos, seja tido como elemento integrante da retribuição (Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 13ª edição, pg. 474).
Diz o acórdão na parte que ainda importa:
Tendo em conta a matéria provada ao autor sempre foi pago pela ré – pelo menos no período que vai de Março de 2004 a Março de 2005 – determinado montante, ainda que variável, a título de ajudas de custo. Tal significa que o autor tem legítima e fundada expectativa de receber todos os meses aquela prestação, por a mes-ma lhe ter sido atribuída de forma regular e permanente, criando a convicção de que ela faz parte do seu salário. E se assim é, e por-que no caso dos autos se verifica a situação prevista na parte final do nº 1 do art. 260 do CT, deve esse complemento remuneratório ser incluído na remuneração para efeitos de cálculo de pensão.
O acórdão do STJ de 08/10/2008 (08S1984): o qual entre o mais diz o seguinte:
Somos, pois, reconduzidos à previsão do n.º 3 do art.º 26 da LAT97, que remete para a noção legal de retribuição, no caso a que consta do Código do Trabalho, vigente à data do acidente (idêntica, aliás, à que constava da LCT), acrescentando que também se abrange na retribuição atendível para cálculo das pensões e indemnizações por acidente de trabalho “todas as prestações que revistam carácter de regularidade e não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios”.
Comentando esse art., escreve Carlos Alegre - (5), no domínio ainda do regime da LCT, idêntico, repete-se, ao do CT, nos aspectos em apreço: «Para o conceito de “retribuição normalmente recebida”, usado pelo art. 26 (...), o art. 82 da LCT fornece um critério que associa três aspectos: a obrigatoriedade, fundamentada normativa ou contratualmente; a co-respectividade com a efectiva prestação do trabalho e a regularidade e periodicidade do seu pagamento.
Com base nesse critério, é possível excluir, quase liminarmente, os acrescentos salariais que assumam o expresso carácter de liberalidade (art. 88 da LCT), como são de excluir os que se destinem a compensar custos aleatórios (ajudas de custo, reembolso de despesas de deslocação, de alimentação ou de estada – art. 87 da LCT ou participação nos lucros da empresa – art. 89 da LCT), por não poderem ser considerados contrapartidas do trabalho prestado (...)».
No quadro apontado e como também foi entendido no acórdão recorrido, somos reconduzidos à previsão e aplicação dos arts 249 e 260 do CT.
Este último preceito define, dentre as atribuições patrimoniais nele previstas e que revestem, efectiva ou tendencialmente, carácter aleatório - (6), ligado à eventualidade ou contingência das deslocações ou novas instalações do trabalhador, com o inerente acréscimo de despesas, quais as que revestem e em que termos natureza retributiva - (7).
Posto isto há que proceder à tarefa de conciliação dos preceitos contidos nos n.ºs 2 e 3 do art. 249 e no n.º 1 do art. 260 do CT.
Tal conciliação faz-se nos seguintes termos:
Cabe à entidade empregadora, nos termos dos art.s 344/1 e 350/1 do CC, provar que a atribuição patrimonial por ela feita ao trabalhador reveste a natureza de ajudas de custo, abonos de viagem, despesas de transporte, abonos de instalação e outras equivalentes (por comodidade, passaremos a designar tais atribuições apenas por “ajudas de custo”), sob pena de não lhe aproveitar a previsão do art. 260 do CT e de valer a presunção do n.º 3 do art. 249 do CT de que se está perante prestação com natureza retributiva - (8) .
Feita essa prova, entra em aplicação a norma especial do n.º 1 do art. 260 do CT que estabelece que ajudas de custo revestem e não revestem natureza retributiva e em que termos e medida a revestem.
Sendo que, como resulta do seu próprio teor literal (“não se consideram retribuição ...”) e finalidade, essa norma especial afasta, torna inaplicável, no estrito âmbito da sua regulamentação, a aplicação das presunções dos n.ºs 2 e 3 do art. 249 do CT - (9).
E, nos termos desse art. 260, só têm natureza retributiva as importâncias pagas a título de ajudas de custo por deslocações frequentes na parte que exceda as respectivas despesas normais e quando tais importâncias tenham sido previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da remuneração ao trabalhador - (10).
Ora, no caso dos autos apenas vem provado, com interesse, que o autor foi admitido ao serviço da ré – sociedade que se dedica à prestação de serviços de transporte de mercadorias – com a categoria de motorista de pesados, que a ré lhe pagava, em Abril de 2005, a retribuição mensal de 630,19€ x 14 meses, e que a ré, nos meses de Março de 2004 e Março de 2005 pagou ao autor as quantias discriminadas nos factos n.ºs 14 a 25, a título de ajudas de custo e das cláusulas 74ª, n.º 7, 47ª e 47ª-A do aludido CCT.
Não vem, pois, provada a causa concreta dos pagamentos referidos nesses factos, isto é, qual o correspectivo dessas contrapartidas – designadamente, se a prestação da actividade laboral ou da respectiva disponibilidade pelo autor, em si mesmas, ou a compensação devida pela ré por deslocações, novas instalações ou despesas por este feitas ao seu serviço, como, neste caso, se tornava necessário para que tais importâncias não revestissem, nos termos do n.º 1 do art. 260, a natureza de retribuição, e se subsumissem à noção de ajudas de custo ou à previsão das referidas cláusulas, 47ª, 47ª-A e 74ª, n.º 7 – [nota 11: Nesta linha, podem ver-se, entre outros, os acórdãos acima referidos na nota 9, e bem assim o acórdão de 23.11.2005, desta 4.ª Secção, proferido no Proc. n.º 2260/05, onde se defendeu que o simples facto de as quantias pagas pelo empregador virem designadas nos recibos como ajudas de custo não lhes confere tal natureza].
Assim sendo, não podemos ter como assente que as prestações pecuniárias em causa, por parte da ré têm a natureza constante dos factos n.ºs 14 a 25 (ou seja, a de ajudas de custo ou de prestações das cláusulas 47ª, 47ª-A e 74ª, n.º 7 do mencionado CCT, coincidente, aliás, com os dizeres constantes dos recibos de fls. 62 a 74 dos autos).
Cai-se, por isso, na previsão do n.º 3 do art. 26 da LAT, por força da presunção, não ilidida pela ré , do n.º 3 do art. 249 do CT.
E, assim sendo, é de considerar, como o fizeram as instâncias, que tais verbas entram na noção de retribuição auferida pelo autor e entram no cálculo das prestações infortunísticas a que este tem direito.”
E o ac. do TRL de 08/09/2010 (530/06.0TTVFX.L1-4):
I - Ao mandar atender no cálculo das indemnizações e pensões por acidente de trabalho a “todas as prestações recebidas mensalmente que revistam carácter de regularidade e não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios”, o nº 3 do art. 26 da LAT/97, acaba por remeter para o critério constante do art. 249 do CT, que associa três aspectos: a obrigatoriedade do pagamento, fundamentada normativa ou contratualmente; a co-respectividade com a efectiva prestação do trabalho e a regularidade e periodicidade do pagamento. II - Cabe à entidade empregadora, nos termos dos arts. 344/1 e 350/1 do CC, provar que a atribuição patrimonial por ela feita ao trabalhador reveste a natureza de ajudas de custo, sob pena de não lhe aproveitar a previsão do art. 260 do CT e de valer a presunção do nº 3 do art. 249 do CT de que se está perante prestação com natureza retributiva. III – Tal ónus não fica satisfeito se apenas se prova que determinadas quantias eram processadas nos recibos de vencimento a título de ajudas de custo, uma vez que daí não resulta que tivessem efectivamente essa natureza - os recibos de vencimento não fazem prova plena da veracidade das declarações neles emitidas pelo empregador e também não existe qualquer presunção legal nesse sentido. IV - Não estando provada a causa concreta dos pagamentos referidos como “ajudas de custo”, cai-se, por isso, na previsão do nº 3 do art. 26 da LAT97, por força da presunção, não ilidida pela entidade empregadora, do nº 3 do art. 249 do CT, sendo, por isso, de considerar, que tais verbas entram na noção de retribuição auferida pelo trabalhador e, consequentemente, no cálculo das prestações infortunísticas a que este tem direito.
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Qual a perda de capacidade
A sentença recorrida diz o seguinte quanto a isto:
“[…Q]uando acontece, como no caso que nos ocupa, que em consequência do acidente o autor […] fic[ou] com uma incapacidade permanente genérica parcial fixável em 17%, a qual é impeditiva do exercício da actividade profissional de servente da construção civil, bem como de outras actividades na sua área da preparação técnico-profissional [factos dados como provados em P) e Q)…], a incapacidade para o trabalho é total, apesar de ser de parcial a incapacidade permanente de que o autor ficou a padecer.”
Também o acórdão do TRP de 31/03/2009 (3138/06.7TBMTS.P1) segue idêntica posição:
I Na determinação da perda da capacidade de ganho, deve ser considerada como perda a 100% a existência de uma incapacidade permanente que, embora fixada em 25% para o trabalho em geral, se traduza, relativamente à ofendida, na absoluta incapacidade de exercer a sua profissão específica e quando não tenha condições para se reconverter a outra actividade profissional.
Este acórdão, na fundamentação da sua decisão remete para a doutrina do ac. do STJ 28/10/92, publicado no BMJ 420, págs. 544 e segs:
“VI. Na determinação da perda da capacidade de ganho, deve ser considerada como perda a 100% a existência de uma incapacidade permanente que, embora fixada em 65% para o trabalho em geral, se traduza na perda de um braço, relativamente a ofendido que, com ela, fique absolutamente incapacitado de exercer a sua profissão específica e não tenha condições para se reconverter a outra actividade profissional”.
Só que este acórdão do STJ reporta-se a uma incapacidade de 65% e a alguém que não tinha condições para se reconverter a outra actividade profissional. Melhor, nos dizeres do texto do acórdão: “porque não se provou que pudesse ter ou tivesse possibilidade de exercer outra.”. O que quer dizer, em relação a este último pressuposto – a possibilidade de exercer outra profissão - , que, na lógica do acórdão, o mesmo deve ser provado pela ré. O mesmo – quanto ao ónus da prova – decorria do nº. 5 do art. dedicado à indemnização em forma de renda do anteprojecto do Prof. Vaz Serra (BMJ 100, pág. 128), citado por Dario Martins de Almeida, obra referida, págs. 413/414: “Só pode exigir-se do lesado uma mudança de profissão ou actividade, para o efeito de valorizar quanto possível a sua capacidade aquisitiva, quando tal for evidentemente admissível, vistas as circunstâncias do caso. O encargo da prova cabe ao responsável pela indemnização”.
Seja como for, a fonte de todas estas considerações é, por exemplo, a Base XVI/1b) da Lei 2127 de 03/08/1965 – a antiga Lei dos acidentes de trabalho – que previa que se do acidente resultasse incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, a pensão vitalícia seria fixada entre metade e dois terços da retribuição-base [mesmo uma incapacidade absoluta para todo e qualquer trabalho só dava direito a uma pensão de 80%...], conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível.
Dizia Cruz de Carvalho, que a fixação deste regime especial resultou da consideração lógica […] de que a incapacidade permanente absoluta para todo o trabalho habitual é sempre mais grave do que uma diminuição parcial da mesma amplitude fisiológica, não só pela necessidade de mudança de profissão, como pela dificuldade de reeducação profissional, exigindo por isso uma compensação maior” (Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Petrony, 2ª edição, 1983, pág. 97; no mesmo sentido, veja-se ainda Vítor Ribeiro, Acidentes de Trabalho, Rei dos Livros, Jan84, págs. 317/318).
O art. 17/1b) da Lei 100/97, de 13/09 – da nova lei dos acidentes de trabalho – prevê que na incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, seja fixada uma pensão anual e vitalícia compreendida entre 50% e 70% da retribuição, conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de profissão compatível e subsídio por situações de elevada incapacidade permanente.
De novo há que notar que mesmo uma incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho só por si só dá direito, na lei dos acidentes de trabalho, a uma pensão anual e vitalícia igual a 80% da retribuição.
Por sua vez, o nº. 5a) das instruções gerais da tabela nacional de incapacidades, do Dec.-Lei 341/93, de 30/09, prevê que sempre que se verifica perda ou diminuição de função inerente ou imprescindível ao desempenho do posto de trabalho que ocupava com carácter permanente, os coeficientes de incapacidade previstos são bonificados com uma multiplicação pelo facto 1,5, se a vítima não for reconvertível em relação ao posto de trabalho ou tiver 50 anos ou mais.
Considerando tudo isto dir-se-á que não é aceitável – como fez a sentença e como é defendido pelo autor - considerar aquele que fica totalmente incapacitado para o trabalho habitual mas tem uma incapacidade permanente genérica de apenas 17%, igual àquele que tem uma incapacidade permanente genérica total. A situação é necessariamente menos grave. Mas muito mais inadmissível é – como quer a seguradora - considerar esse lesado numa situação igual à daquele que tem apenas uma incapacidade permanente genérica de 17%. (ou pontos como lhe chama a ré).
A forma de fazer a distinção pode perfeitamente passar pela adaptação da legislação laboral, adaptação que passará pela ideia de que nos actos geradores de responsabilidade civil não laboral não há limites de 80% para a indemnização dos danos. E, assim, se aquele que tem uma incapacidade permanente genérica para todo o trabalho pode receber, no máximo, por acidente de trabalho, uma pensão de 80%, mas se fosse num acidente não laboral já poderia receber 100%, então há que fazer a correspondência proporcional dos limites de 50 a 70% para aqueles que ficam totalmente incapacitados para o trabalho habitual, mas ficam capazes para outros trabalhos. Se 80% corresponde a 100%, 70% corresponde a 87,5% e 50 corresponde a 62,5%.
A pensão do autor deve pois ser fixada entre 62,5% e 87,5% da retribuição global que auferia antes do acidente.
Ora, tendo agora em conta a) a idade do autor – nascido em 1952 e por isso com 52 anos à data do acidente –, b) a incapacidade genérica de 17%, c) o facto de a incapacidade permanente genérica ser impeditiva não só do exercício da sua actividade profissional, mas de outras actividades na sua área da preparação técnico-profissional e d) o facto de não ter sido alegado pela ré, como lhe competia, e por isso não ter ficado provado, o facto modificativo da possibilidade de exercer outra profissão, considera-se que a pensão deve ser fixada em 80% da retribuição que o autor auferia.
Assim: 1050€ x 80% = 840€.
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Da indemnização por danos não patrimoniais
Fundamentação da sentença
A sentença fixou em 60.000€ a indemnização por danos morais e fá-lo depois de considerações genéricas sobre as indemnizações dos danos não patrimoniais, que não foram postas em causa por nenhuma das partes, chamando a atenção para que, no caso, ficou provada a culpa do segurado da ré e, depois, para os danos sofridos pelo autor, com referência à resposta aos quesitos que lhes dizem respeito.
Após sublinha que, no caso dos autos, para além da censurabilidade da conduta do segurado com a sua imprudente actuação que foi a única causa do acidente, também é censurável a postura da ré que cessou os pagamentos da clínica, mesmo sabendo que o autor continuava a necessitar dos tratamentos, situação que lhe agravou o estado de saúde, sendo, portanto, um dos factores a ter em conta na fixação da compensação em dinheiro que se arbitrará ao autor.
E termina dizendo que no caso dos autos, o sofrimento do autor, em grau próximo do máximo e que só até à alta médica durou quase três anos, é tão patente que fundamenta a atribuição de indemnização em quantitativo próximo do que usualmente é atribuído pelos tribunais, a título de dano morte, já que o sofrimento do mesmo prolongar-se-á por toda a sua vida, pelo que deve ter uma compensação adequada às limitações que sempre o afectarão nas mais comezinhas tarefas do dia-a-dia, sendo para esse fim que deve servir o constante aumento dos prémios dos seguros.
Invoca, neste último sentido, o ac. do STJ de 05/07/2007 (revista 1734/07, nos sumários): “I – O objectivo essencial do aumento continuado e regular dos prémios de seguro que tem ocorrido em Portugal no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil por acidentes de viação não é o de garantir às companhias seguradoras a obtenção de lucros desproporcionados, mas antes o de, em primeira linha, assegurar aos lesados indemnizações adequadas. II - Não vigora no nosso ordenamento jurídico nenhuma norma positiva ou princípio jurídico que no âmbito dos danos não patrimoniais impeça a atribuição duma compensação ao lesado sobrevivente superior ao máximo daquela que habitualmente tem sido atribuída pelo STJ para indemnizar o dano da morte (entre 50 e 60.000€). III - Isso pode suceder quando, tendo em conta o art. 496/1, do CC, a perda da qualidade de vida do lesado atinja um patamar excepcionalmente elevado, expresso nas dores, sofrimentos físicos e morais e limitações de vária natureza a que tiver ficado sujeito para o resto da vida em consequência do acto lesivo”.
E invoca ainda outros acórdãos do STJ, para, segundo diz, casos de acentuada gravidade como é o presente: de 07/12/2005, revista n.º 3297/05; de 08-06-2006, revista n.º 1479/06, para uma IPP de 25%; de 22-01-2009, revista n.º 3360/08, para uma IPG de 20%.
E salienta o ac. do STJ de 03/02/2009, revista n.º 4089/08, para uma IPG de 30%, que diz ter consequências menos graves porque o lesado não perdeu a capacidade de trabalhar:
“III - Considerando que o autor, em consequência do acidente, sofreu lesões várias no seu corpo, designadamente, traumatismo da anca esquerda, escoriações e feridas na mão esquerda e fractura basicervival do fémur esquerdo, esteve internado em três ocasiões, foi sujeito a duas intervenções cirúrgicas, padeceu de uma incapacidade absoluta temporária de cerca de 4 meses durante a qual experimentou dores que, medidas em termos de quantum doloris, atingiram o grau 4 (numa escala de 1 a 7), apresenta ainda hoje queixas de coxalgia à esquerda e anca dolorosa nos limites máximos de movimento, ficou com uma cicatriz operatória na perna esquerda, passou a sofrer de abalo psicológico, tristeza, tem dificuldade em se sentar, calçar, subir ou descer escadas, ficou privado de actividades lúdicas, como correr, jogar à bola e praticar ténis, que antes do acidente fazia duas vezes por semana, sofreu um prejuízo de afirmação pessoal de grau 4 (numa escala de 1 a 5) e um dano estético de grau 4 (numa escala de 1 a 7), tem-se por ajustada e equitativa a indemnização de 45.000€ fixada a título de danos não patrimoniais”.
O único destes acórdãos que está publicado na íntegra é o primeiro, de 05/07/2007 (07A1374) que considera:
“justo atribuir uma indemnização de 85.000€ por danos morais ao lesado que, bombeiro de profissão, ficou aos 42 anos de idade definitivamente impossibilitado de exercer essa actividade por causa dum acidente de viação de que não foi culpado e cujas consequências foram, entre outras de gravidade paralela, deixar-lhe o braço esquerdo de todo inutilizado (dependurado, preso por uma cinta) até ao final dos seus dias, impossibilitando-lhe a realização, sozinho, de tarefas como vestir-se e lavar-se, e tornar-lhe o andar notoriamente claudicante por virtude da fractura duma rótula”, para além de uma incapacidade permanente geral global de 60%.
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Posição da ré
A ré quer que a indemnização por danos não patrimoniais seja reduzida para 12.885,71€ - por aplicação da portaria 377/2008 -, ou quando muito para 15.000€ - considerando casos jurisprudenciais análogos; invoca para tanto as indemnizações fixados nos acórdãos:
- do STJ de 12/09/2006 (SJ200609120021406);
- do STJ de 07/04/2005): fracturas do prato tibial externo direito distal do ossos da perna esquerda, com internamento medicamentação e 4 operações cirúrgicas com acamamento, uso de canadianas e consolidação viciosa de ossos da tibia e de fracturas da coluna vertebral com colapso grave de 2 corpos vertebrais, lombalgias, incongruência das superfícies articulares fémuro tibial, sinais de artrose e dores a nível tibiotársico com claudicação e grave dificuldade de locomoção de um sinistrado num acidente de viação, portanto num quadro doloroso muitíssimo mais grave do que o dos presentes autos se fixou um valor de 25.000€.
- do TRP de (RP 20061004055426) e
- do STJ 14/12/2009 (220/03.6TBSTB.ES,S1) – em que um homem de 37 anos saudável foi electrocutado por uma descarga eléctrica que lhe causou extensas queimaduras no membro superior direito e na parte superior direita das costas, que lhe provocaram dores horríveis e uma IPP de 45% que o impedem de trabalhar na sua actividade profissional de manobrador de máquinas ou em quaisquer tarefas que impliquem o uso de ambas as mãos e que manteve a decisão das instâncias anteriores de recurso que fixaram a indemnização por danos morais em 25.000€.
O autor defende a improcedência desta pretensão da ré.
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Crítica da posição da ré
A invocação dos quatro acórdãos pela ré é feito no seguinte contexto: a ré introduz os acórdãos dizendo que “de acordo com a sentença” e depois refere os factos 27 a 29, 42, 43 e R), sugerindo assim que são esses os únicos danos não patrimoniais que importa indemnizar.
Ora, basta a comparação entre todos os factos que têm a ver com os danos não patrimoniais e os factos invocados pela ré, para se ver que a ré tem uma concepção muito restrita dos danos não patrimoniais, quase só reportados a dores físicas ou psíquicas, entendidas em sentido muito estrito.
Por isso, desde logo quanto aos acórdãos do STJ de 12/09/2006 (SJ200600609120021406) e do TRP de (RP 20061004055426), basta atentar nos pontos que ela transcreve para se ver que dizem respeito a situações sem qualquer analogia com a do caso.
Quanto ao acórdão do STJ de 07/04/2005 (SJ200504070005162 – citado com um zero a mais; a referência correcta, de qualquer modo, é 05B516), diz a ré que ele se reporta a um quadro doloroso muitíssimo mais grave do que o dos presentes autos. Ora, note-se que: a) que quem fixou a indemnização foi a Relação, num acórdão que data de Set2004, e b) que, por exemplo, o quantum doloris foi fixado em 5 numa escala de 7 (enquanto no nosso caso foi de 6), o prejuízo estético foi fixado em 1 numa escala de 7 (enquanto no nosso caso foi de 3), os períodos de incapacidade são ali de 379 dias (enquanto no nosso caso são quase de 2 anos e meio), naquele não há qualquer incapacidade permanente para o trabalho habitual, etc. Assim, ao contrário do que a ré diz, e atendendo à data do acórdão, à tendência, assumida expressa e implicitamente, pelo STJ para vir subindo os valores indemnizatórios [veja-se a parte sublinhada do acórdão do STJ de 09/09/2010 (2572/07.0TBTVD.L1), citado acima], bem como ao facto de os danos daquele caso serem quase que incomparavelmente menores que os destes autos, o acórdão pode antes servir para sustentar a indemnização fixada nos autos.
Quanto ao acórdão do STJ 10/12/2009 (220/03.6TBSTB.E1) – mal citado pela ré (que dizia ser de 14/12/2009 e ter o nº. 220/03.6TBSTB.ES,S1) -, a ré não diz que quer o STJ quer a Relação não se pronunciaram sobre o assunto, porque da decisão não tinha sido interposto recurso, e não diz de que data é que é a decisão da 1ª instância. Assim, embora se aceite que nesse caso a situação do lesado é mais grave que a destes autos, a indemnização não serve de ponto de comparação.
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Sugestão da doutrina
A jurisprudência não tem em regra seguido a sugestão de parte da doutrina de se atribuir 1.000.000€ pela perda do direito à vida, sendo todos os outros danos não patrimoniais alinhados depois abaixo desse valor (essa sugestão vem de Leite de Campos, Os danos causados pela morte e a sua indemnização, Comemorações dos 35 anos do CC e dos 25 anos da reforma de 1977, vol. III Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 2007, pág. 137; no mesmo sentido, veja-se Menezes Cordeiro Tratado do Direito Civil, II, Tomo III, Almedina, 2010, págs. 755).
Outros casos da jurisprudência
Em alternativa, o que a jurisprudência tem procurado é a fixação do valor destes danos com recurso à comparação com os valores de outras indemnizações de danos não patrimoniais, de modo a que haja mais uniformidade de critérios.
Recorrendo então à comparação com outros casos jurisprudenciais, vejam-se os seguintes casos (todos retirados da base de dados do ITIJ, como até aqui, excepto se estiver assinalado o contrário):
1. O acórdão do STJ de 22/01/2008 (07A4338), deu 35.000€ a um professor que sofreu fracturas do fémur e do úmero direitos, um período de cura directa de mais de 1 ano, uma intervenção cirúrgica do foro ortopédico e subsequentes tratamentos particularmente agressivos e dolorosos, tendo o respectivo quantum doloris sido avaliado em 6, numa escala de 7, com períodos consideráveis de internamento, tendo ainda resultado um prejuízo estético avaliado em 3 numa escala de 7, e ficando com sequelas que se traduzem numa incapacidade permanente geral parcial de 25%, agravada no futuro em mais 5%.
2. O acórdão do STJ de 28/02/2008, publicado sob o nº. 08B388, manteve a indemnização de 125.000€ a uma vítima que esteve em coma profundo durante vários dias, sem ter a consciência do que lhe acontecera e das lesões profundas que apresentava, permanecendo durante semanas com perda de consciência, sem reconhecer pessoas, familiares; esteve internado em diferentes instituições hospitalares e foi submetido a diversas e delicadas intervenções cirúrgicas e sessões de tratamento e recuperação; quer durante o internamento quer posteriormente, sofreu muitas dores, intensas privações, aborrecimento e desconforto; continuará a sentir tais dores, privações e aborrecimento, bem como a ter necessidade de tratamentos, nomeadamente fisioterapia, por toda a vida; ficou com limitações físicas graves, com elevado índice de incapacidade, que é total em relação à actividade profissional que exercia; que sente, em consequência das dores, aborrecimentos e privações, depressões, infelicidade, sentimento de inferioridade e de diminuição das suas capacidades, bem como profundo desgosto pela sua total dependência de terceiros, quer para se mover quer para tratar de outros assuntos; ficou com cicatrizes extensas e notórias…. está condicionado na mobilidade do seu próprio corpo; há manifestamente um dano decorrente de limitação da sua capacidade de afirmação pessoal; há um decréscimo de qualidade de vida, que mais se acentuará com o decurso do tempo, face às limitações de mobilidade e a um previsível acréscimo do grau de dependência em relação a terceiros.
3. O acórdão do STJ de 4/3/2008, publicado na base de dados do ITIJ sob o nº.08A183, atribuiu a um autor com quase 59 anos, que sofreu uma mudança radical na sua vida social, familiar e pessoal, já que se acha impotente sexualmente e incontinente, jamais podendo fazer a vida que até então fazia, e é hoje uma pessoa cujo modo de vida, física e psicologicamente é penoso, sofrendo consequências irreversíveis, não sendo ousado afirmar que a sua auto-estima sofreu um abalo fortíssimo, 225.000€. Nota-se que os condenados eram pessoas singulares e os factos datavam de 1998.
4. O acórdão do STJ de 19/06/2008, publicado na base de dados do ITIJ sob o nº. 08B1841, quantificou em 120.000€ os danos não patrimoniais sofridos por uma mulher de 27 anos de idade, que sobrevive com gravíssimos ferimentos, destacando-se a amputação do membro inferior direito, o prejuízo estético e funcional, a afectação sexual, a auto estima, as operações a que teve que se sujeitar, os sofrimentos físicos e psíquicos que teve e continua a ter, as intervenções cirúrgicas, e a IPP de 70% de que ficou a padecer.
5. O ac. do STJ de 09/12/2008 (08A3323) atribui 25.000€ a uma pessoa submetida a intervenção cirúrgica em que fora deixada no abdómen um pano (destinado a isolar as partes do organismo que exigiam intervenção das partes adjacentes), e de cujo acto negligente veio a resultar infecção que demandou fortes dores e febres durante cerca de cinco meses e que obrigou a nova intervenção cirúrgica com carácter de urgência, havendo a pessoa operada chegado ao ponto de recear muito fortemente pela sua vida.
6. O acórdão do TRP de 31/03/2009 (3138/06.7TBMTS.P1) Tendo a lesada 54 anos de idade, à data da prolação da sentença de 1º instância, uma incapacidade geral para o trabalho de 25% e uma incapacidade total para o seu trabalho habitual, justifica-se a atribuição de uma indemnização de […] 45.000€, a título de dano não patrimonial.
7. O acórdão do STJ de 26/05/2009, publicado na base de dados do STJ/ITIJ sob o nº. 3413/03.2TBVCT.S1, atribuiu 200.000€ por danos não patrimoniais provando-se que, por causa do acidente, ocorrido em Novembro de 2001, o autor, com 29 anos, motorista de pesados ficou, devido às lesões sofridas e às sequelas correspondentes, afectado de uma incapacidade permanente de 100%, necessitando de: usar um par de canadianas (cuja duração é inferior a 1 ano) como auxiliar de locomoção; submeter-se a consultas periódicas de controle do seu sangue, a intervenções cirúrgicas com anestesia geral, internamentos hospitalares, análises clínicas, exames radiológicos, consultas e tratamentos das especialidades de Urologia e de Cirurgia Vascular, bem como do foro psicológico e psiquiátrico, nomeadamente em relação ao seu estado de impotência sexual; ingerir medicamentos e tomar injecções penianas relacionadas com o seu estado de total impotência sexual; recorrer a tratamentos de fisioterapia dos seus membros inferiores; suportar as despesas com uma terceira pessoa para o desempenho de tarefas pessoais e diárias, tais como cortar as unhas dos pés, locomover-se, tomar banho. E atribuiu 50.000€ por danos não patrimoniais da mulher do autor, considerando que a sua qualidade de vida ficou profundamente afectada, os seus direitos conjugais amputados numa parte importante para uma mulher jovem e o seu projecto de ter mais filhos irremediavelmente comprometido.
8. O acórdão do STJ de 07/07/2009 (704/09.9TBNF.S1) atribuiu 45.000€ a uma jovem de 19 anos que, quer em consequência do acidente, quer com os tratamentos a foi sujeita, quer com as intervenções cirúrgicas a que foi submetida, sofreu dores de grau 4 numa escala de sete graus de gravidade crescente, sentiu pavor com a perspectiva da própria morte, sofre pelo facto de ter ficado com as cicatrizes supra referidas, e desde o acidente que se sente complexada e triste com o seu aspecto físico (as cicatrizes afectam o rosto são visíveis e podem não ser passíveis de regressão ou tratamento após cirurgias).
9. No acórdão do TRC de 03/02/2010 (276/03.1GBOBR.C1) aceitou-se o valor de 125.000€ (que era o valor pedido) como o adequado para um adulto com 29 anos, que sofreu um traumatismo cranioencefálico e facial com focos de contusão cerebrais e várias fracturas e cortes que lhe deixaram cicatrizes; que ficou em estado de coma durante 8 dias, e depois cerca de 42 dias internado num hospital; foi sujeito a inúmeras operações e tratamentos e programas durante vários meses; que depois da alta apresentava graves problemas de comunicação, de memória, de funcionamento motor, assimetria facial, problemas visuais, delírios, alterações de personalidade, problemas cognitivos e emocionais, etc.; e que ficou com as referidas – para a fixação da incapacidade feita acima - alterações irreversíveis da fala, da memória, da atenção e da orientação, o que tudo prefigura um síndrome pós-traumático encefálico em grau severo, com clara diminuição da sua eficiência pessoal e, necessariamente, profissional (= IPP de 40%); teve uma diminuição bilateral do olfacto. Tem um prejuízo de afirmação pessoal fixável em 3 numa escala de cinco graus de gravidade crescente; teve um período de incapacidade geral quase total durante quase 22 meses.
10. No ac. do STJ de 27/05/2010 (8629/05.4TBBRG.G1.S1), referido pelo de 2012, fixou-se em 60.000€ a compensação relativa a sinistrado com 16 anos que sofreu fractura basicervical do fémur esquerdo e traumatismo craniano com perda de consciência. Teve de andar de canadianas três meses e fazer fisioterapia, ficou a apresentar marcha viciosa e marcadamente claudicante, dismetria dos membros inferiores, báscula da bacia com rotação e maior saliência da anca esquerda, desvio escoliótico com dor na palpação lombar, atrofia dos nadegueiros à esquerda, atrofia da coxa e da perna esquerdas e marcada rigidez a anca esquerda. Ficou ainda com incapacidade para corrida, para se ajoelhar e adoptar posição de cócoras, dificuldade marcada na permanência de pé, alterações sexuais devido às dificuldades de posicionamento, impossibilidade de poder praticar desportos que impliquem esforço físico, sensação de tristeza, vergonha e revolta bem como frustração e medo no contacto com o sexo oposto, Tem necessidade de nova intervenção cirúrgica, de continuar a fazer fisioterapia, de adaptação automóvel para poder conduzir, não frequenta da praias pela dificuldade em caminhar na areia e pela vergonha de exibir o seu corpo, não frequenta piscinas, não participa em jogos de futebol e está impossibilitado de carregar pesos. Era alegre e extrovertido e passou a ser mal-humorado e agressivo, com pesadelos frequentes, insónias e tendências para o isolamento, lendo e escrevendo com dificuldade.
11. No ac. do STJ de 07/10/2010 (370/04.1TBVGS.C1) referido pelo de 2012, fixou-se a compensação em € 50.000 relativamente a uma pessoa de 29 anos que sofreu várias fracturas e um traumatismo crâneo-encefálico, com inerentes dores (de grau 5 numa escala até 7); esteve hospitalizado duas vezes, foi sujeito a intervenções cirúrgicas e a tratamento em fisioterapia; teve de se deslocar, por longo tempo, com o auxílio de canadianas; ficou, como sequelas permanentes, com cicatrizes na perna, claudicação da marcha, dificuldade em permanecer de pé, em subir e descer escadas e, bem assim, impossibilitado de correr e praticar desporto que antes praticava; passou, de alegre e comunicativo, a triste, desconcertado e ansioso.
12. No ac. do STJ de 02/03/2011 (1639/03.8 TBBNV.L1 da base de dados do ITIJ) sumariou-se: IV. É justo atribuir uma indemnização de 400.000€ por danos morais à lesada que, com 19 anos de idade, por força do embate de uma árvore na viatura onde seguia, ficou com diversas e muito graves lesões, de entre as quais se salienta a fractura de vértebras, com instalação irreversível de tetraplegia, sofrendo de diminuição acentuada da função respiratória e de incapacidade funcional permanente de 95%, com incapacidade total e permanente para o trabalho; a partir da data do sinistro e durante cerca de um ano, foi alimentada através de um tubo gástrico introduzido pelas narinas e, na sequência de gastrotomia a que teve de ser submetida em resultado de uma fístula esofágica alta que sobreveio a uma intervenção cirúrgica, alimentada através de uma sonda introduzida no corte cirúrgico, na zona do estômago; foi submetida a várias intervenções cirúrgicas e ficou com múltiplas e extensas cicatrizes deformantes; as lesões sofridas, os seus tratamentos e suas sequelas provocaram dores lancinantes; desloca-se em cadeira de rodas e necessita de assistência permanente de pessoa nos actos da vida diária, sendo que, para certos actos (tais como, tomar banho e defecar) carece da ajuda de mais uma pessoa; perdeu todos os movimentos e sensibilidade do pescoço para baixo (com excepção dos ombros), designadamente nos órgãos sexuais, nos esfíncteres, no ânus, no recto, nos intestinos, no estômago, no aparelho urinário, no respiratório e nos membros inferiores e superiores; corre o risco sério de vir a sofrer graves lesões renais; tem a sua expectativa de vida encurtada; não pode ter relações sexuais, nem prazer sexual, nem procriar; vive em permanente estado de amargura, desespero e angústia, inconformada com a sua situação e perdeu a vontade de viver e muitas vezes tem pedido que lhe ponham termo à vida (este acórdão recenseia cerca de uma dezena de casos muito graves, três deles com indemnizações de 250.000€ por danos não patrimoniais…).
13. No ac. do STJ de 27/11/2011 (2572/07.OTBTVD.L1) referido pelo de 2012, fixou-se em 30.000€ a indemnização relativamente a um jovem que teve um período de tratamento particularmente penoso, com intervenções cirúrgicas, acamamento, imobilização, enjoos, dores em grau 3 numa escala até 7 e sequelas permanentes com gravidade relativa.
14. O ac. do STJ de 26/01/2012 (220/2001-7.S1) Lesado com 28 anos, 40% de IPP; É adequado o montante compensatório de 40.000€ relativamente ao danos não patrimoniais sofridos, cujo internamento hospitalar se prolongou por quase 3 meses, com várias intervenções cirúrgicas, que, depois, teve necessidade de ajuda permanente de terceira pessoa, tendo tido dores de grau 5 numa escala até 7 e cuja incapacidade absoluta para o trabalho (relevando aqui na sua vertente não patrimonial) se prolongou por cerca de ano e meio, tendo ficado, com a estabilização clínica, com dores e dismetria dos membros inferiores.
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Síntese dos danos não patrimoniais sofridos pelo autor:
Inúmeras e gravíssimas fracturas/lesões com complicações posteriores (factos sob 1, 6, 7, 8, 20 e 21); inúmeros tratamentos e cirurgias (factos sob 2, 7, 8 e 9, 16, 18, 20 e 21); período de internamento de 30/11/2004 a 21/01/2005 (deste o acidente até à data em que o autor passou a ser seguido em regime ambulatório), mais um período incerto, não anterior a 10/08/2005 e até 10/09/2005 [factos A) e 5, N), 18 e 29]; desgosto e sofrimento pela interrupção de tratamentos por causa da ré, que piorou o estado de saúde do autor (factos sob 10 a 15 e 43); muitas vezes se lhe deparou o quadro de ter que passar o resto dos seus dias deitado ou numa cadeira de rodas e tal intensificou-se até 10/08/2005, data em que a ré aceitou passar uma credencial (factos sob 28 e 29); período de imobilização de 3 meses, a partir de 10/09/2005 (facto 19); nasceu no dia 04/06/1952 [facto sob R)]; um quantum doloris de 6 numa escala de 7, e ainda sofre dores (facto sob 27); sofreu angústia, ansiedade e insegurança (facto sob 42); sofreu uma incapacidade temporária genérica total fixável num período de 861 dias (entre 30/11/2004 e 10/04/2007) e genérica parcial fixável num período de 35 dias - entre 11/04/2007 e 15/05/2007 - (facto sob 30); sofreu uma incapacidade profissional total a partir de 30/11/2004 (facto sob 30); ficou com uma incapacidade permanente genérica parcial fixável em 17%, que não o afectando em termos de autonomia e independência, são causa de sofrimento físico, limitando-o em termos funcionais – facto sob P) – e impede-o do exercício da actividade profissional de servente da construção civil, bem como de outras actividades na sua área da preparação técnico-profissional – facto sob Q); vai ficar com o pé imobilizado – facto 17; ficou com um dano estético fixável no grau 3 duma escala de 7, tendo em conta as cicatrizes descritas no exame objectivo (das quais ressaltam 2 com 10 cm, 2 com 12 cm, uma com 20, uma com 26 e outra ainda com 32 cm), a amiotrofia do membro inferior esquerdo, marcha claudicante, e aumento de volume do tornozelo esquerdo – facto sob R).
Saliente-se: uma total incapacidade para a profissão própria e outras da sua área, num homem com 52 anos de idade à data do acidente; uma incapacidade genérica total de quase 2 anos e meio; um quantum doloris de 6 em 7; um prejuízo estético de 3 em 7, e quase 5 meses de total imobilização.
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Comparação com os casos referidos:
Tendo agora em conta esta síntese e a síntese dos casos jurisprudenciais referidos, veja-se agora: o caso 1 é bastante mais leve – não há incapacidade total profissional e o período de cura é muito mais curto – e mereceu, em inícios de 2008, uma indemnização de 35.000€. O caso 2 embora mais grave, dificilmente se diria 2 vezes mais graves do que o caso dos autos. O caso 3 não se poderia dizer, de todo, 4 vezes superior ao dos autos. O caso 4 apenas se pode dizer 2 vezes mais grave que o dos autos. O caso 5 pode-se dizer muitas vezes mais leve que o dos autos. Os dados que constam da síntese dos casos 6 e 8 permitem tê-los como significativamente mais leve que o dos autos. O caso 7 pode-se dizer 3 vezes e meia mais grave do que o dos autos. O caso 9 não se pode dizer duas vezes mais grave do que o dos autos. O caso 10 pode-se dizer menos grave do que o dos autos. O caso 11 pode-se dizer bem menos grave do que o dos autos. O caso 12 pode-se dizer muitíssimo mais grave do que o dos autos, mas nunca quase 7 vezes superior. O caso 13, tendo em conta a síntese feita, pode-se dizer pelo menos 2 vezes menos grave do que o dos autos. O caso 14 pode-se dizer significativamente mais leve do que o caso dos autos (onde, recorde-se, existe uma incapacidade permanente para o trabalho habitual e o período de cura é de quase superior em um ano).
Assim, considerando os valores que foram atribuídos nestes casos, todos eles justificam perfeitamente o valor atribuído no caso dos autos, de 60.000€.
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Despesas futuras
Com as conclusões i) a j) do seu recurso, o autor põe em causa a falta de condenação da ré no pagamento de despesas futuras, ou seja, daquelas que o autor tenha que fazer em consequência das lesões/sequelas sofridas com o acidente.
Quanto a isto a sentença recorrida tinha dito:
“[…] o autor havia peticionado o pagamento de todas as despesas que venha a realizar conexas com o acidente, a liquidar em execução de sentença, e a assegurar todos os tratamentos e intervenções médicas e hospitalares que se justifiquem até alta médica definitiva.
Destas despesas apenas resultou provado que a ré não procedeu ao pagamento das despesas decorrentes do internamento do autor na “Casa ...” – Residência geriátrica, a partir do dia 01/06/2005.”
E depois de dizer, quanto a estas últimas, que condenará a ré a pagá-las, acrescenta:
“Não se tendo provado a existência de quaisquer outras despesas, e porque a consolidação médico-legal ocorreu na data supra referida e não existe qualquer prova nos autos de que o autor tenha que ser sujeito a mais intervenções cirúrgicas resultantes do acidente, não há qualquer razão para condenação da ré em quantia a liquidar em execução, uma vez que esta só podia ocorrer se houvesse tal prova.
Evidentemente, tal não significa que, se no futuro essa situação se vier a verificar por consequência das lesões sofridas com este acidente, esteja precludido qualquer direito que futuramente se venha a constituir na esfera jurídica do autor.”
Posto isto:
Como decorre do art. 564 do CC na fixação da indemnização, o tribunal só pode atender aos danos futuros desde que sejam previsíveis. Ora, não ficaram provados, como diz a sentença recorrida, quaisquer factos dos quais decorresse a necessidade de despesas futuras, pelo que a solução não podia ser outra.
De qualquer modo a sentença teve o cuidado de dizer que “tal não significa que, se no futuro essa situação se vier a verificar por consequência das lesões sofridas com este acidente, esteja precludido qualquer direito que […] se venha a constituir na esfera jurídica do autor.”
É o que diz Pereira Coelho (Obrigações, sumários, 1967, pág. 160, citado por Dario Martins de Almeida, pág. 396: o facto da indemnização ser, em regra, definitiva, “não exclui a possibilidade de, em nova acção, o lesado pedir a indemnização de outros danos que o facto constitutivo de responsabilidade civil venha a causar-lhe”.
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Valor da acção para efeitos de custas
O valor da acção não é só a soma dos 60.000€ de danos não patrimoniais mais os valores dos danos patrimoniais concretizados, no valor total, dado pelo autor, de 63.330,66€, mas sim este valor global mais o valor da prestação anual multiplicada por 20 [art. 6/1d) do CCJ].
O autor entendia que tinha direito a 1050€ por mês x 14 = 14.700€ x 20 = 294.000€.
Assim, o valor da acção para efeitos de custas é de 63.330,66€ = 357.330,66€.
Proporção das custas na acção
Quanto à pensão o autor só ganhou 840€ x 14 = 11.760€.
11.760€ x 20 = 235.200€
Assim, dos 357.330,66€ é como se o autor ganhasse 298.530,66€.
Se 357.330,66€ são 100, 298.530,66€ são 83,55%.
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Proporção das custas no recurso do autor
O autor queria que a indemnização passasse para 1050€ mensais (= 14.700€ e queria e que a ré fosse condenada nas despesas futuras e indeterminadas que viesse a ter que fazer. Teve parcial vencimento na pretensão no montante da pensão (o que a sentença fixou daria, no 1º ano, cerca de 6298€ e o que este acórdão fixou dará 11.760€ no 1º ano; assim, o vencimento é de cerca de 65%) e ficou vencido quanto à condenação nas despesas futuras em montante indeterminado. É fixar o vencimento em 55%.
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(…)
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso da ré e parcialmente procedente o recurso do autor, alterando-se a terceiro travessão da decisão recorrida, que passa a ter o seguinte teor:
- desde a data do acidente, uma renda mensal vitalícia de 840€ (actualizada todos os anos de acordo com o índice de inflação), multiplicada por catorze vezes ao ano. Ao valor devido até ao trânsito em julgado deste acórdão, será deduzido o valor já pago pela ré ao autor desde 01/09/2005, nos termos da transacção homologada no âmbito do processo de arbitramento de reparação provisória.
Custas do recurso da ré pela ré.
Custas do recurso do autor: pelo autor em 45% e pela ré em 55%.
Custas da acção em 16,45% pelo autor e 83,55% pela ré.
Valor da acção para efeitos de custas: 294.570,66€

Lisboa, 8 de Março de 2012.

Pedro Martins
Sérgio Silva Almeida
Lúcia Sousa