Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
777/09.8TBALQ.L1-6
Relator: TOMÉ RAMIÃO
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
VENDA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
DEFESA DO CONSUMIDOR
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/01/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O n.º1 do art.º 4.º do Decreto-lei n.º 67/2003, de 8 de abril não estabelece uma hierarquia no exercício dos direitos conferidos ao consumidor, cujo exercício fica apenas limitado à sua impossibilidade ou que traduza abuso de direito, nos termos gerais - n.º5.
2. O comprador de veículo automóvel usado tem direito à resolução do contrato de compra e venda, ao abrigo do disposto no art.º 4.º/1 e 5.º desse diploma legal, por desconformidade com o contrato de compra e venda, quando a quilometragem apresentada pelo stand vendedor, aquando da sua aquisição, era de 82.695 km, e na sequência de uma peritagem e averiguação do seu historial, efetuada cerca de 9 meses depois, verificou-se que o veículo apresentava, três anos antes da sua aquisição, a quilometragem de 142.913 km.
3. Mostra-se equitativamente fixada a quantia de €2.000,00 pelos danos morais sofridos pelo Autor, consubstanciados na perturbação psicológica e sentimentos de angústia, decorrentes do facto de ter dispendido €21.500,00 por esse veículo, nessas circunstâncias, e que evita usar em grandes deslocações, nos termos dos art.º 496.º/3 do C. Civil e art.º 12.º/1 do Decreto-Lei n.º 24/96, de 31 de julho, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril.
( Da Responsabilidade do Relator )
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I- Relatório:
A , residente em ……,Vila Franca de Xira, propôs a presente ação declarativa contra B, residente em …., Alenquer, pedindo a condenação deste no reconhecimento da resolução do contrato de compra e venda de um veículo automóvel, com ele celebrado, e na restituição do preço pago, no montante de €21.500,00, bem como no pagamento de indemnização por danos emergentes do incumprimento contratual, no montante de €4.434,17.
Alegou, para o efeito, e em síntese, ter adquirido ao Réu, em 14 de junho de 2008, um veículo automóvel usado, de marca Audi, modelo A4 Avant 1.9 TDI, com a matrícula 00-0000, pelo preço de €21.500,00, como tendo 82.695 km, com acordo de garantia de bom funcionamento pelo prazo de 1 ano, para cujo pagamento contraiu empréstimo bancário de €11.500,00, relativamente ao qual pagou despesas bancárias de €934,17, sendo que o veículo começou a apresentar um barulho estranho, do que se queixou ao réu, o qual mandou levar o carro a uma oficina, o que, contudo, não resolveu o problema, pelo que se dirigiu a oficina da marca onde foi constatado que a quilometragem apresentada pelo conta quilómetros do veículo era, em 6/6/2005, de 142.913 km, mas adquiriu-o como tendo apenas 82.695 km, deixando de o conduzir, e pediu ao Réu a resolução do contrato, que este não aceitou.
O réu apresentou contestação, na qual, em síntese, reconhece a celebração do invocado contrato, mas alega que parte do preço, no montante de €7.500,00 foi pago mediante a retoma de um veículo do autor, impugna parcialmente a factualidade alegada no que concerne à existência de um barulho estranho no veículo e exceciona o desconhecimento de que a quilometragem apresentada pelo conta quilómetros do veículo não correspondia à realidade, alegando que o adquiriu assim, impugnando ainda a factualidade atinente aos alegados danos sofridos pelo autor e concluiu pela sua absolvição do pedido.
Foi proferido despacho saneador, com a seleção dos factos assentes e a organização da base instrutória, da qual reclamou o Réu, mas sem êxito, e realizou-se audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo, tendo sido, a final, proferido despacho de resposta à matéria de facto vertida na base instrutória, que não foi objeto de reclamação.
Proferida então a competente sentença, julgando a ação parcialmente procedente e, consequentemente, declarou resolvido o contrato de compra e venda do veículo automóvel, condenando o Réu a restituir ao autor a quantia de €21.500,00 (vinte e um mil e quinhentos euros) e a pagar-lhe a quantia de €2.000,00 (dois mil euros).
Desta sentença veio o Réu interpor recurso, que reformulando, após convite, nos termos do art.º 685.º-A/3, do C. P. Civil, apresentou conclusões, que do essencial extrai-se as seguintes:
1) O Tribunal «a quo» deveria ter decidido de forma diferente uma vez que o R. não tem culpa.
2) Desde logo quanto à matéria de facto dada como assente, deveria ter sido acrescentada uma alínea L) com a seguinte redação: “o Réu comprou o veículo em questão com 81.114 km em 11 de setembro de 2007”. Um facto extintivo do direito invocado pelo A. que não foi objeto de Réplica.
3) E não resulta em artigo algum da Petição Inicial invocado que o Réu tinha conhecimento da diferença de quilometragem. Tendo o Réu invocado por diversas vezes na sua Contestação que não tinha conhecimento de tal diferença de Kms.(v. artigos 38º, 39º, 40º, 41º, 42º e 44º). O que constitui facto igualmente extintivo do direito invocado pelo A. e que não foi objeto de Réplica. Razão pela qual deveriam os artigos 12º e 13º da Base Instrutória ter passado para a Matéria Assente conforme alínea L) supra.
4) Deveria ter sido igualmente levado à matéria assente uma alínea M) com a seguinte redação: o veículo com a anterior matrícula 00-00000 (atual 00-0000) foi sujeito a inspeção técnica periódica em 11 de setembro de 2007 apresentando 81.114 km, conforme ficha de inspeção técnica, emitida na mesma data pela Direção Geral de Viação do Ministério da Administração Interna”.
5) Bem como uma alínea N) com seguinte redação: “O veículo com a matrícula anterior 00-00000 e atual 00-0000 era à data de 28/09/2007 propriedade do Réu e apresentava 81.114 km, conforme Declaração Aduaneira de Veículo emitida em 28 de setembro de 2007 pela Alfândega Marítima de Lisboa”.
6) E ainda uma alínea O) com o seguinte teor: “O veículo foi sujeito a Inspeção Técnica Especial para efeitos de homologação em Portugal e dela resulta a ausência de quaisquer deficiências, tendo sido considerado aprovado, conforme o documento referido na alínea M)”.
7) A inclusão de tais alíneas M), N) e O) deve-se ao facto de tal informação resultar dos Documentos 1, 2 e 3 juntos pelo R. e não impugnados pelo A.
8) Deveria ainda ter sido acrescentada uma alínea P) com a seguinte redação: “Até à presente data, e não obstante conhecer da diferença de quilometragem desde 20 de março de 2009, nunca o Autor interpelou o Réu para reparar ou substituir ou reduzir o negócio”.
9) Quanto à Base Instrutória fixada que foi pelo Douto despacho saneador deveriam ter sido acrescentados os seguintes quesitos:
O veículo não apresentava qualquer anomalia, nem qualquer barulho estranho?
Foi efetuada alguma revisão ao veículo (artigo 11º da Contestação)?
O veículo foi testado pelo Réu, por funcionário do Réu, pelo Sr. …..,por funcionário do concessionário Auto …, por chefe da oficina do dito concessionário e por técnico da Auto……, os quais não detetaram qualquer anomalia ou barulho estranho?
E o Autor conduz o veículo com uma regularidade pelo menos semanal, conduzindo-o normalmente e ainda hoje o faz?
10) Mais considerou a Mma. Juíza «a quo» que (cfr. ponto 1.9. da sua “fundamentação”) “na Auto…. constaram e informaram o autor de que o barulho tinha relação com o turbo e que este tinha de ser substituído (cfr. resposta ao quesito 5º da base instrutória).
11) Não conseguimos vislumbrar como pode a MMA Juíza “A quo” retirar tal conclusão.
Não pode ter sido do depoimento da testemunha do Autor, ….que acabou por reconhecer que o que sabia deste assunto do turbo, provinha do que ouvia o autor (Sr….) dizer.
12) A testemunha afinal nada presenciou com relevo para este aspeto, pois acabou por reconhecer, sob inquirição da própria Mma. Juiz «a quo» que o que sabe relativamente à questão do turbo soube-o por lhe ter contado o Sr. … (precisamente o autor);
13) De igual modo nada poderia a Mma. Juíza «a quo» concluir pelo depoimento da testemunha ….. .
14) Ou seja, mais uma vez se demonstra que também não poderia ser deste testemunho que poderia resultar possível a conclusão a que a Mma. Juíza «a quo» diz ter chegado, isto é, que o barulho tinha relação com o turbo e que este tinha de ser substituído.
15) Também não poderá ter retirado tal conclusão do depoimento da testemunha do R., …. .
16) Mais uma vez terá de dizer-se que não poderá ser também deste depoimento que a Mma. Juíza poderá justificar a sua conclusão errada de que “o barulho tinha relação com o turbo e que este tinha de ser substituído”.
17) Pois o que resulta do depoimento da testemunha, não obstante as constantes interrupções pela Mma. Juíza «a quo», foi que, quer das 2 vezes que o veículo esteve na oficina do Sr. …., quer da visita à oficina especializada em turbos em Vila Franca de Xira, é a inexistência de qualquer anomalia no turbo.
18) Em suma: As supra invocadas alíneas “L”, “M”, “N”, “O” e “P”, bem como a prova testemunhal produzida deveriam ter levado a Mma. Juíza «a quo» a concluir de forma diversa, pois mesmo a entender-se como presumida a culpa do R., o que é certo é que este, atentas as consequências daquelas alíneas e não só, conseguiu ilidir tal presunção. Devendo para além disso, ter sido considerado provado que o barulho era normal, que não era necessário substituir o turbo, não existindo defeito.
19) Concluiu ainda a Mma. Juíza «a quo» que “Mais se apurou que o autor evita conduzir o veículo e conduz o dos seus pais e que toda a situação vivida desde a aquisição do veículo lhe causou e causa perturbação e angústia”; Considerando pois provado que “o autor evita utilizar o veículo e conduz o veículo de seus pais” e que “a situação referida em 1.5 e 1.7 a 1.10, causou e causa ao autor perturbação e angústia”
20) Não se conforma o R. com a facilidade que a Mma. Juíza «a quo» considerou provada tal factualidade, pois a fragilidade dos depoimentos que foram prestados quanto a esta matéria é por demais evidente.
21) São depoimentos demasiado vagos para terem permitido à Mma. Juíza ter fixado uma indemnização de 2.000,00 € a título de danos não patrimoniais.
22) Razão pela qual, os fundamentos de facto invocados pelo Tribunal «a quo» estão em oposição com a decisão o que gera nulidade da sentença ao abrigo da al. c) do nº do Art. 668º do CPC.
23) A Mma. Juíza invoca a Lei 24/96 de 31 de julho e o DL 67/2003 de 8 de abril que, para além de ter transposto para o Direito interno a Diretiva 1999/44/CEE de 25 de maio relativa a certos aspetos de venda de bens de consumo, alterou ainda os Arts. 4º e 12º daquela Lei 24/96. Todavia, com o devido respeito, não a aplicou de forma correta.
24) Efetivamente, é esta a legislação aplicável como aliás bem julgou o Tribunal da Relação de Lisboa no Processo nº 11157/2008-6 de 18 de junho de 2009: “Com efeito, com o DL 67/2003, visou-se transpor para o direito interno «a Diretiva nº 1999/44/CEE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio, relativa a certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, com vista a assegurar a proteção dos interesses dos consumidores, tal como definidos no nº 1 do art. 2 da Lei 24/96» - art. 1º DL 67/2003”.
25) Tendo em atenção tal legislação especial, cumpre então aferir se o A. pode ou não recorrer diretamente à resolução contratual, como o fez, sem antes se terem por verificados determinados circunstancialismos prévios, nomeadamente a hierarquia constante do nº 1 do Art. 4º do DL 67/2003;
26) E não, como erradamente invoca o A., aplicando dispositivo legal com redação já alterada à data da celebração do contrato, quando invoca o nº 1 do Art. 12º da Lei 24/96 cuja redação era “(…) o consumidor (…) pode exigir (…) a reparação da coisa, a sua substituição, a redução do preço ou a resolução do contrato.
27) Quando é antes aplicável o nº 1 do Art. 4º do citado DL que dispõe:
«Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato»; e nº 5 – O consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou, constituir abuso de direito, nos termos gerais».
28) “No art. 4º DL 67/2003, não se faz expressa referência a esta hierarquia, mas deverá entender-se que ela resulta dos princípios gerais e que está implícita no preceito, quando se estabelece como limite a «impossibilidade e o abuso de direito».”
29) Nos termos da Diretiva 99/44 (transposta para a ordem jurídica interna através do citado DL 67/2003 cuja aplicação aqui se defende), o consumidor não pode escolher livremente entre os direitos. “Pelo contrário, existia uma clara hierarquia entre os quatro direitos atribuídos ao consumidor/comprador. Primeiro que tudo, o consumidor deveria solicitar a reparação ou a substituição do bem. E apenas preenchidas determinadas condições, lançava mão dos instrumentos da redução do preço ou rescisão contratual.
30) Assim, o A. ao ter peticionado como o fez na Petição Inicial, pedindo de imediato a resolução do contrato, sem antes ter esgotado a hierarquização imposta pelo nº 1 do Art. 4º do DL 67/2003, violou tal normativo, assim como o fez igualmente a Mma. Juíza «a quo» ao julgar procedente a pretensão do A.
31) Pois o A. não podia exigir, sem mais, a resolução contrato, conforme fez por carta constante dos autos junta pelo A. com a Petição Inicial. Na verdade, o direito que lhe assistia era o de que a viatura fosse reparada ou substituída. Não outro. Para exercer algum dos outros direitos previstos no nº 1 do Art. 4º do DL 67/2003, era necessário, designadamente, alegar e provar que a reparação ou substituição do veículo era impossível.
32) Em conclusão: não assistia ao A., em 31 de março de 2009, o direito à resolução do contrato - único direito aí exigido; e não lhe assiste, agora, igual direito à resolução do contrato porque não existe, ainda, incumprimento definitivo.
33) Para além disso, e quanto ao peticionado pelo A. relativamente a indemnização por danos emergentes por alegado incumprimento contratual, cumpre referir que nenhuma razão lhe assiste, uma vez que, não existindo norma especial, aplica-se o Art. 798º e ss. Do Código Civil, como bem decidiu aliás o Tribunal da Relação de Lisboa no Processo 11157/2008-6.
34) Assim, ainda que se venha a demonstrar que efetivamente a quilometragem foi alterada, também se demonstrou, pela junção dos documentos ora em anexo – E NÃO IMPUGNADOS PELO A. – que o R. não teve culpa, pois que se limitou a adquiri-lo com os Kms lá indicados, aliás nada tendo sido detetado na inspeção especial para efeitos de homologação. Sendo pois de concluir que o R. é em absoluto alheio à discrepância de kms apresentada pelo veículo verificada posteriormente.
35) Em conclusão, sendo o direito de pedir, conforme entendimento supra, a condenação do R. na reparação ou substituição do veículo, optou por exigir dele a resolução do contrato, à qual, face aos factos por si alegados, não tem direito, em virtude da não ocorrência de qualquer dos factos jurídicos que a lei estabelece com indispensáveis para a substituição da natureza da obrigação a que estava vinculado o A.
36) A prova documental, bem como a produção de prova testemunhal, deveria ter levado o Tribunal «a quo» a decidir de forma oposta.
37) O Autor nunca imputou dolo ao Réu, não havia qualquer problema com o turbo, o R. sempre providenciou pela assistência ao veículo; os documentos juntos pelo R. em sede de contestação, não impugnados pelo A. comprovam que o R. desconhecia a quilometragem real do veículo; o veículo não está inapto ao fim a que se destina pois o A. usa-o, ainda que diga que não o faz em viagens grandes e, é ainda utilizado com frequência pela esposa que transporta uma criança.
38) Atendendo a todas estas circunstâncias é notório o abuso de direito ao resolver o contrato e exigir o preço na íntegra de volta, quando inclusive parte do preço foi pago com a retoma de um veículo do A. pelo valor de 7.500,00 € ( e que já não pertence ao R.).
39) Na pior das hipóteses, o que por uma questão de raciocínio se admite, já não constituiria abuso de direito, a redução do preço, sendo o R. condenado a restituir a diferença que viesse a ser apurada quanto ao valor a abater a título da diferença de quilómetros.
E concluiu pela revogação da sentença por outra que o absolva do pedido.
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O Autor contra-alegou, pugnando pelo não provimento do recurso e defendendo a manutenção da sentença recorrida.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo (fls.294).
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II – Fundamentação.
Perante o teor das conclusões formuladas pelo recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 660º, nº2, 661º, 672º, 684º, nº3, 685º-A, nº1, todos do C. P. Civil –, constata-se que o thema decidendum consiste em saber:
a) Se a sentença padece do vício de nulidade, nos termos da al. c) do n.1º do art.º 668º do CPC.
b) Se ocorre, ou não, in casu, fundamento para a alteração da matéria de facto;
b) Se o Autor tem ou não direito à resolução do contrato de compra e venda e respetivas consequências jurídicas.
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Vejamos, pois.
A) Nulidade da sentença.
Sustenta o apelante que os fundamentos de facto invocados pelo Tribunal «a quo» estão em oposição com a decisão o que gera nulidade da sentença ao abrigo da al. c) do n.º1 do art. 668º do CPC.
Manifestamente que o recorrente carece de razão.
Com efeito, nos termos do art.º 668º, n.º 1, alínea c), do C. P. Civil, a sentença é nula quando “ os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.
Esta nulidade remete-nos para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Não está em causa o erro de julgamento, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito aplicável, mas antes a estrutura lógica da sentença, ou seja, quando a decisão proferida seguiu um caminho diverso daquele que apontava os fundamentos.
Como referem Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Júris, pág. 117 “A observação da realidade judiciária mostra que é vulgar a arguição da nulidade da decisão … E a verdade é que por vezes se torna difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, como é aquele que está na origem da decisão”. No mesmo sentido o Ac. do S, T. J. de 30/9/2010, Proc. n.º 341/08.9TCGMR.G1.S2, in www.dgsi.pt/jstj, quando refere “o erro de julgamento (error in judicando) resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error júris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa”.
Porque assim é, as nulidades da decisão, previstas no art. 668.º do C.P.C., são vícios intrínsecos da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença que não podem confundir-se com o erro de julgamento que se traduz antes numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjetivo) aplicável. Nesta última situação, o tribunal fundamenta a decisão, mas decide mal; resolve num certo sentido as questões colocadas porque interpretou e/ou aplicou mal o direito (cfr. Ac. RC de 15.4.08, Proc.1351/05.3TBCBR.C1).
Ora, a verdade é que o apelante invoca abusivamente esta nulidade a propósito da sua discordância quanto ao erro de julgamento, ou seja, quanto à apreciação pelo tribunal da matéria de facto.
É que basta ler a sentença para concluir imediatamente que os fundamentos apontam no sentido da decisão proferida, pelo que não padece do apontado vício, sendo totalmente descabida tal afirmação, pois que o raciocínio lógico seguido na decisão teria de conduzir à procedência da ação, não existindo qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, pois o inverso é que conduziria a eventual nulidade
Coisa diversa é o apelante discordar da decisão da matéria de facto.
Improcede, pois, a 22.ª conclusão quanto à apontada nulidade.
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B) Reapreciação da matéria de facto.
1. Em função das conclusões do recurso, temos que o apelante considera que deveria ter sido acrescentado à factualidade assente o seguinte:
1) Uma alínea L) com a seguinte redação: “o Réu comprou o veículo em questão com 81.114 km em 11 de setembro de 2007”, por se tratar de um facto extintivo do direito invocado pelo A. que não foi objeto de Réplica.
Pois tendo o Réu invocado por diversas vezes na sua Contestação que não tinha conhecimento de tal diferença de Kms.(v. artigos 38º, 39º, 40º, 41º, 42º e 44º). Razão pela qual deveriam os artigos 12º e 13º da Base Instrutória ter passado para a Matéria Assente conforme alínea L) supra.
Sobre a inclusão dessa factualidade nos factos assentes já o apelante havia reclamado aquando da respetiva seleção da matéria de facto no despacho saneador, a qual foi indeferida (fls. 96) e mereceu resposta negativa após o respetivo julgamento.
E fundamentou a Senhora Juíza essa resposta negativa, nos seguintes termos:
“(…a não prova da factualidade vertida nos quesitos … 12º e 13º, resultou de nenhuma prova objetiva, designadamente documental aliás de fácil obtenção, …. os documentos juntos a fls. 62-63 apenas referem as características que o veículo apresentava quando em setembro de 2007 foi apresentado pelo réu à alfândega e à Direção Geral de Viação para registo, não comprovando nem a data da aquisição pelo réu nem a quilometragem que aquando da mesma apresentava), ou subjetiva, segura e credível …. , e nem essas nem as demais testemunhas revelaram conhecimento direto da demais factualidade vertida nos quesitos em causa) ter sido produzida no sentido da sua realidade.
Ora, no caso do recurso envolver a impugnação da matéria de facto, o recorrente, sob pena de rejeição, deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, enunciá-los na motivação de recurso e sintetizá-los nas conclusões, bem como os concretos meios probatórios que, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, impunham decisão diversa da adotada quanto aos factos impugnados, indicando as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição – Art.º 685.º- B/1 e 2 do C. P. C. (Cfr. Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª Ed., Almedina, pág.153 e Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, dos Recursos, Quid Júris, Pág. 253 e segs).
Na verdade, como sublinham Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, ob. Cit. Pág. 253 e 254, “(…) o recorrente que impugne a matéria de facto deve procurar demonstrar o erro de julgamento dessa matéria, demonstração que implica a produção de razões ou fundamentos que, no seu modo de ver, tornam patente tal erro “(…). “(…) não parece excessivo exigir ao apelante que, no curso da alegação, exponha, explique e desenvolva os fundamentos que mostram que o decisor de 1.ª instância errou quanto ao julgamento da matéria de facto, exposição e explicação que deve consistir na apreciação do meio de prova que justifica a decisão diversa da impugnada, o que pressupõe, naturalmente, a indicação do conteúdo desse meio de prova, a determinação da sua relevância e a sua valoração. Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente …, deve ser cumprido com particular escrúpulo ou rigor, caso contrário, a impugnação da matéria de facto banaliza-se numa mera manifestação inconsequente de inconformismo.” – No mesmo sentido, Abrantes Geraldes, ob cit. e Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2008, pág. 80.
Não procedendo a estas obrigatórias especificações o recurso sobre a matéria de facto será rejeitado, nos termos do art.º 685.º-B/1, do C. P. C., justificando a sua rejeição liminar a ausência de conclusões ( seu art.º 685.º-C/2, al. b).
Ora, a verdade é que o apelante não indica os fundamentos porque discorda dessas respostas negativas, nomeadamente indicando a respetiva prova que impunha decisão diversa, indicando o conteúdo desse meio de prova, a sua relevância e a valoração, ou seja, que demonstre que o decisor de 1.ª instância errou quanto ao julgamento dessa matéria de facto.
O único fundamento invocado consubstancia-se no facto de ter alegado no artigo 39.º da contestação, que por se traduzir em matéria excetiva, e porque o autor não replicou, logo deveria ser considerada como confessada.
Ora, no artigo 39.º o apelante alegou:
“Importa todavia esclarecer que o R., comprou o veículo em questão com 81.114 km em 11 de setembro de 2007”
Tal matéria de facto não constitui, evidentemente, facto extintivo, modificativo ou impeditivo do direito à resolução do contrato de compra e venda, enquanto causa de pedir invocada pelo autor (art.º 342.º/2 do C. Civil), pois que da sua prova ou não prova não depende a sorte dessa pretensão.
Daí que o autor não devesse a ela responder mediante a réplica, pois como é sabido este articulado apenas seria admissível no caso de ser invocada matéria excetiva na contestação ( ou formulado pedido reconvencional e em resposta apenas a essa matéria - art.º 502.º/1, do C. P. Civil.
Donde, pensamos que houve, por parte do Tribunal recorrido uma criteriosa seleção da matéria de facto, e tendo em conta o princípio geral da livre convicção do julgador, assente nos princípios instrumentais da oralidade e imediação, não se vê fundamento bastante para dar como provada essa matéria de facto, atenta a ausência de indicação, pelo apelante, de outros meios probatórios produzidos, nomeadamente documental ( pois os documentos juntos a fls. 61 a 63 o não atestam claramente).
Para que decisão da 1ª instância seja alterada é necessário que algo de “anormal” se tenha passado na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, o que não é o caso.
E, assim sendo, improcede, nesta parte, a apelação.
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2. Sustenta também o apelante que deveria ter sido igualmente levado à matéria assente uma alínea M) com a seguinte redação: o veículo com a anterior matrícula 00-00000 (atual 00-0000) foi sujeito a inspeção técnica periódica em 11 de setembro de 2007 apresentando 81.114 km, conforme ficha de inspeção técnica, emitida na mesma data pela Direção Geral de Viação do Ministério da Administração Interna”.
Bem como uma alínea N) com seguinte redação: “O veículo com a matrícula anterior 00-00000 e atual 00-0000 era à data de 28/09/2007 propriedade do Réu e apresentava 81.114 km, conforme Declaração Aduaneira de Veículo emitida em 28 de setembro de 2007 pela Alfândega Marítima de Lisboa”.
E ainda uma alínea O) com o seguinte teor: “O veículo foi sujeito a Inspeção Técnica Especial para efeitos de homologação em Portugal e dela resulta a ausência de quaisquer deficiências, tendo sido considerado aprovado, conforme o documento referido na alínea M)”.
Ora, como já foi decidido no despacho de fls. 96, essa matéria de facto não foi alegada na contestação, sendo seguro que o tribunal só poderá atender os factos alegados pelas partes (art.º 664.º do C. P. Civil).
Mais, o único facto relativo a essa matéria vem referido no art.º 40.º da contestação, com a seguinte redação:
“Tal veículo foi sujeito a exigente inspeção técnica especial, porque para efeitos de homologação em Portugal, e não obstante tal inspeção nada de anormal foi detetado conforme resulta de documento comprovativo de inspeção técnica e declaração aduaneira de veículo que permitiram o requerimento de livrete” – Docs. 1, 2 e 3.
Ora, tratando-se, como se trata, de veículo usado e importado da Alemanha, para poder circular em Portugal está sujeito a esses procedimentos administrativos, cujos elementos, nomeadamente a quilometragem, é fornecida pelo requerente, no caso o Autor, e percecionada pelos serviços, mediante inspeção exterior ao veículo, ou seja, no caso de adulteração da quilometragem não será, em princípio, detetada, tanto assim que o documento de fls. 61 (Inspeção Técnica Periódica) apenas se atesta “ A ausência de anotações de deficiências significa a conformidade do veículo com a regulamentação em vigor, no momento em que foi inspecionado”.
Por conseguinte, improcede também a apelação, nesta parte, não havendo lugar à alteração, com inclusão, dessa matéria de facto.
***
3. Entende ainda o apelante que deveria ainda ter sido acrescentada uma alínea P) com a seguinte redação: “Até à presente data, e não obstante conhecer da diferença de quilometragem desde 20 de março de 2009, nunca o Autor interpelou o Réu para reparar ou substituir ou reduzir o negócio”.
Porque tal matéria não foi alegada, pelas razões acima indicadas não podia, nem pode, ser considerada, para além de ser irrelevante para a decisão da causa.
E entende ainda, quanto à Base Instrutória, que deveriam ter sido acrescentados os seguintes quesitos:
O veículo não apresentava qualquer anomalia, nem qualquer barulho estranho?
Foi efetuada alguma revisão ao veículo (artigo 11º da Contestação)?
O veículo foi testado pelo Réu, por funcionário do Réu, pelo Sr. …, por funcionário do concessionário Auto …, por chefe da oficina do dito concessionário e por técnico da Auto…., os quais não detetaram qualquer anomalia ou barulho estranho?
E o Autor conduz o veículo com uma regularidade pelo menos semanal, conduzindo-o normalmente e ainda hoje o faz?
Ora, como é sabido e consabido, a base instrutória deve ser equacionada em função das regras de distribuição do ónus da prova.
Assim, enquanto compete ao Autor alegar e provar os factos constitutivos da sua pretensão, ao Réu incumbe invocar factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquela pretensão (art.º 342/1 e 2do C. Civil.)
Consequentemente, essa matéria, ainda que alegada, seria totalmente irrelevante, por se integrar na sua defesa por impugnação, isto é, dando uma nova versão dos factos, já que da sua prova ou não prova não depende a sorte da presente ação.
É que compete ao Autor alegar e demonstrar o defeito da coisa adquirida, bem como os prejuízos invocados (art.º 342.º/1 do C. Civil), competindo ao Réu a respetiva contraprova, não a prova do contrário.
Improcede a apelação quanto a esta questão.
***
4. Concluiu ainda o apelante que mais considerou a Mma. Juíza «a quo» que (cfr. ponto 1.9. da sua “fundamentação”) “na Auto … constaram e informaram o autor de que o barulho tinha relação com o turbo e que este tinha de ser substituído (cfr. resposta ao quesito 5º da base instrutória).
Não conseguimos vislumbrar como pode a MMA Juíza “A quo” retirar tal conclusão.
Não pode ter sido do depoimento da testemunha do Autor, …., que acabou por reconhecer que o que sabia deste assunto do turbo, provinha do que ouvia o autor (Sr. …) dizer.
A testemunha afinal nada presenciou com relevo para este aspeto, pois acabou por reconhecer, sob inquirição da própria Mma. Juiz «a quo» que o que sabe relativamente à questão do turbo soube-o por lhe ter contado o Sr. …. (precisamente o autor);
De igual modo nada poderia a Mma. Juíza «a quo» concluir pelo depoimento da testemunha …. .
Ou seja, mais uma vez se demonstra que também não poderia ser deste testemunho que poderia resultar possível a conclusão a que a Mma. Juíza «a quo» diz ter chegado, isto é, que o barulho tinha relação com o turbo e que este tinha de ser substituído.
Concluiu ainda a Mma. Juíza «a quo» que “Mais se apurou que o autor evita conduzir o veículo e conduz o dos seus pais e que toda a situação vivida desde a aquisição do veículo lhe causou e causa perturbação e angústia”; Considerando pois provado que “o autor evita utilizar o veículo e conduz o veículo de seus pais” e que “a situação referida em 1.5 e 1.7 a 1.10, causou e causa ao autor perturbação e angústia”
Não se conforma o R. com a facilidade que a Mma. Juíza «a quo» considerou provada tal factualidade, pois a fragilidade dos depoimentos que foram prestados quanto a esta matéria é por demais evidente, são depoimentos demasiado vagos para terem permitido à Mma. Juíza ter fixado uma indemnização de 2.000,00 € a título de danos não patrimoniais.
Ora, está em causa, quanto ao n.º 9 dos factos provados, o art.º 5.º da base instrutória, o que tem a seguinte redação:
“ O autor dirigiu-se a uma oficina onde lhe foi dito que esse barulho provinha do turbo do veículo?”
E obteve a seguinte resposta, provado que “na Auto … constataram e informaram o autor de que o barulho tinha relação com o turbo e que este tinha de ser substituído”.
E quanto aos restantes factos dos art.ºs 8.º, 10.º e 11.º, da base instrutória, com a redação, respetivamente:
- “Em consequência desse barulho, até à data referida em H), o autor evitava conduzir o veículo, usando apenas quando estritamente necessário”?
- “Quando necessita de se deslocar, o autor conduz o veículo dos seus pais”?
-“A situação referida em 3º a 10º causou angústia e perturbação ao autor”?
Mereceu a resposta seguinte:
Quesitos 8º e 10º - Provado apenas que o autor evita utilizar o veículo e conduz o veículo dos seus pais;
Quesito 11º - Provado que, a situação referida na resposta aos quesitos 3º, 5º a 8º e 10º e na alínea H) dos factos assentes, causa ao autor perturbação e angústia;
Face à solicitada alteração da factualidade apurada, nos termos do artº712º/1, al. a), do C. P. C., e cumprido que foi o previsto no seu n.º 2 do mesmo compêndio adjetivo, este Tribunal de Recurso ouviu na totalidade os depoimentos prestados pelas testemunhas que foram inquiridas a essa matéria de facto, produzida na Audiência de Discussão e Julgamento e que foi gravada, como impõe o artº522º-C do C. P. C., conforme documentado em ata, a fls. 127 a 130, a saber: …; …. (arroladas pelo Autor) e …. (arts. 5.º, 8 e 10.º), …., (art.º 5.º) …. (art.º 5.º e 8.º), e …. (arts. 8.º e 10.º).
(…)
Vejamos, então, se os depoimentos referidos impunham resposta diversa aos citados quesitos.
Convém previamente sublinhar que não obstante se garantir no sistema processual civil um duplo grau de jurisdição, nomeadamente quanto à reapreciação da matéria de facto, não podemos ignorar que continua a vigorar entre nós o princípio da livre apreciação da prova, conforme resulta do artº 655.º, do C. P. Civil, o qual estatui que “o tribunal coletivo aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, pelo que a convicção do Tribunal não é, em princípio, sindicável.
Donde, para que decisão da 1ª instância seja alterada é necessário que algo de “anormal” se tenha passado na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes.
O tribunal de recurso não julga de novo, antes avalia da razoabilidade da convicção probatória da 1ª instância e, consequentemente, só deverá alterar a matéria fáctica quando detete flagrantes desvios às regras de experiência comum ou manifestos erros de julgamento.
Não sendo tais erros detetados, e dando a 1.ª instância preferência a determinados meios de prova em detrimento de outros, fundamentando devidamente a sua convicção e não se afastando das regras de experiência comum, deverá prevalecer essa convicção, privilegiando-se a imediação e a oralidade, princípios estruturantes do julgamento e que permitem condições mais favoráveis para a valoração da prova.
E não basta existir uma qualquer divergência em relação à valoração da prova produzida, ou ao critério das respostas dadas à matéria de facto, que justifique uma alteração dessas respostas. Essa alteração apenas deverá ter lugar se a reavaliação da prova o impuser. Neste sentido pode ver-se o Acórdão do S. T. J. de 10.03.2005 (Relator – Oliveira Barros, consultável in www.dgsi.pt/jstj, de que se extrai a seguinte citação: «A plenitude do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto sofre naturalmente a limitação que a inexistência de imediação necessariamente acarreta, não sendo, por isso, de esperar do tribunal superior mais que a sindicância de erro manifesto na livre apreciação das provas».
(…)
Assim, e analisando a referida matéria de facto, no que respeita ao artigo 5.º da B. I., foi dado como provado que “na Auto … constataram e informaram o autor de que o barulho tinha relação com o turbo e que este tinha de ser substituído.
Procede, nesta parte, a apelação, anulando-se a resposta dada ao artigo 5.º da B. I., considerando-a como não provada, o que se decide.
Quanto à resposta aos artigos 8º , 10º e 11.º, aceita-se a resposta dada pelo tribunal, excluindo-se apenas o art.º 5.º que consta da resposta ao art.º 11.º, face ao que supra de decidiu, exceto quanto à clarificação dessa resposta, por melhor coincidir com os depoimentos supra referidos.
(…)
***
C) Da matéria de facto:
Da decisão recorrida, com a alteração da matéria de facto por esta Relação, nos termos sobreditos, resulta a seguinte factualidade.
1. No exercício da sua atividade profissional de compra e venda de veículos automóveis, em 14 de junho de 2008, o réu vendeu ao autor o veículo automóvel de marca Audi, modelo A4 Avant 1.9. TDI, e matrícula 00-0000, emitindo e entregando ao autor a respetiva declaração de venda.
2. Aquando dessa venda foi dada ao autor a garantia de um ano, à qual foi atribuído o n.º 1804 e cuja gestão cabe à sociedade …MOTOR, sendo emitido e entregue ao autor o correspondente boletim de adesão.
3. O preço da venda foi de 21.500,00€, que o autor pagou ao réu.
4. Para pagamento de parte desse preço, o autor contraiu um empréstimo bancário.
5. Pouco tempo depois da aquisição do veículo, este começou a fazer um barulho contínuo (zunido) do tipo vibração metálica quando atingia determinada velocidade, e o autor queixou-se ao réu de que o veículo fazia um barulho que lhe parecia estranho.
6. O réu fez com a companhia do autor um teste de condução do veículo, após o que, conforme sua indicação, o autor levou o veículo à oficina de ....
7. O veículo foi levado por funcionário do réu à oficina de …., onde foi constatado o barulho e substituído o líquido da caixa de velocidades, mas o barulho manteve-se.
8. Na sequência da estadia na oficina de …., o réu levou o veículo à Auto …, onde em 28 de fevereiro de 2009 foi efetuado um teste de estrada ao veículo, por técnico da Auto…., o qual elaborou o correspondente relatório, do qual consta, designadamente, a confirmação, após uma dezena de quilómetros, de um ruído do tipo vibração metálica, leve, ao desacelerar, considerado normal, considerando-se que a quilometragem que ostenta no conta quilómetros pode ser real uma vez que o habitáculo está em bom estado de conservação.
9. Aquando da aquisição do veículo pelo autor, o mesmo ostentava a quilometragem de 82.695 km, mas conforme peritagem e averiguação do seu historial, efetuada em 20 de março de 2009 a pedido do autor na Auto …., em Lisboa, verificou-se que o mesmo apresentava, em 6 de junho de 2005, a quilometragem de 142.913 km.
10. O autor enviou ao réu uma carta, subscrita por advogada, datada de 31/03/2009 e recebida pelo réu em 02/04/2009, na qual comunica que, face à diferença entre a quilometragem apresentada pelo veículo no conta quilómetros e a sua quilometragem real, pretende resolver o contrato de compra e venda, solicitando a devolução do preço pago e o pagamento das despesas com a amortização antecipada do empréstimo, no montante global de 22.500,00€.
11. Em resposta a essa carta, o réu enviou ao autor uma carta, datada de 08/04/2009, na qual informa que adquiriu o veículo em setembro de 2007 com 81.114 km, ignorando que essa quilometragem não fosse real, e que o preço da venda do veículo foi pago pelo autor em parte com a entrega de outro veículo avaliado em 7.500,00€ .
12. Em resposta a essa carta, o autor enviou ao réu uma carta subscrita por advogada, datada de 28/04/2009 e recebida pelo réu em 29/04/2009, na qual insiste pela resolução e pagamento do montante global de 22.500,00€, no prazo de 5 dias úteis, contra a devolução do veículo.
13. O autor evita utilizar o veículo em grandes deslocações e conduz o veículo dos seus pais.
14. A situação referida em 5 e 7 a 9, causou e causa ao autor perturbação e angústia.
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D) O Direito.
1. Vejamos agora a questão de fundo e que consiste em saber se os factos apurados permitem, ou não, ao Autor, o direito à resolução do contrato de compra e venda do automóvel.
De acordo com o art.º 874.º e 879.º do C. Civil, o contrato de compra e venda é aquele pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço, e tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa, a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço.
“A compra e venda é um contrato pelo qual se transmite uma coisa ou um direito contra o recebimento de uma quantia em dinheiro (preço). O resultado final do negócio consistirá na aquisição por parte do comprador do direito de propriedade sobre o bem vendido, à qual acrescerá como efeito subordinado a aquisição da posse, bem como a aquisição por parte do vendedor do direito de propriedade sobre determinadas espécies monetárias” – Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, Contratos em Especial, Almedina, 4.ª edição. Pag. 19.
Nos termos do art.º 882.º/1, do C. Civil, a coisa deve ser entregue no estado em que se encontrar ao tempo da venda, o que implica para o comprador a obrigação de a rececionar ou levantar no lugar e no momento devidos.
O contrato de compra e venda é um contrato primordialmente não formal, pois não está, em regra, sujeito a forma especial, salvo nos casos expressamente previstos na lei (art.º 219.º do C. C).
Por sua vez, estatui o art. 913º do Código Civil:
1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.
2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.
A este propósito comentam Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. II, pág. 205:
“...O artigo 913º cria um regime especial cuja real natureza constitui um dos temas mais debatidos na doutrina germânica [...] para as quatro categorias de vícios que nele são destacadas:
a) Vício que desvalorize a coisa;
b) Vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada;
c) Falta das qualidades asseguradas pelo vendedor;
d) Falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.
Equiparando, no seu tratamento, os vícios às faltas de qualidade da coisa e integrando todas as coisas por uns e outras afetadas na categoria genérica das coisas defeituosas, a lei evitou as dúvidas que, na doutrina italiana por exemplo, se têm suscitado sobre o critério de distinção entre um e outro grupo de casos.
Como disposição interpretativa, manda o nº2 atender, para a determinação do fim da coisa vendida, à função normal das coisas da mesma categoria [...]”. A venda da coisa pode considerar-se venda defeituosa quando, numa perspetiva de “funcionalidade”, contém:
“Vício que a desvaloriza ou impede a realização do fim a que se destina; falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que se destina.”
Nesta medida, diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente – função negocial concreta programada pelas partes – ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art. 913º, nº2)” – cfr. “Compra e Venda de Coisas Defeituosas - Conformidade e Segurança”, de Calvão da Silva, pág. 41.
A coisa é defeituosa se tiver um vício ou se for desconforme atendendo ao que foi acordado.
O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto a desconformidade representa a discordância com respeito ao fim acordado.
No mesmo sentido escreve Luís Menezes Leitão, ob.cit, pág. 120, “(… A aplicação do regime da venda de coisas defeituosas assenta em dois pressupostos de natureza diferente, sendo o primeiro a ocorrência de um defeito e o segundo a existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa contratual.
Quanto ao primeiro pressuposto, a lei faz incluir assim no âmbito da venda de coisas defeituosas, quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas ou necessárias. Apesar de a distinção entre vícios e falta de qualidades não se apresentar tarefa fácil, parece que se poderá sustentar que a expressão "vícios", tendo um conteúdo pejorativo, abrangerá as características da coisa que levam a que esta seja valorada negativamente, enquanto que "a falta de qualidades", embora não implicando a valoração negativa da coisa, a coloca em desconformidade com o contrato.
Em relação ao segundo pressuposto, para que os defeitos da coisa possam desencadear a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas toma-se necessário que eles se repercutam no programa contratual, originando uma de três situações: a desvalorização da coisa; a não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor e a sua inaptidão para o fim a que é destinada. A primeira situação refere-se aos vícios e a segunda à falta de qualidades, enquanto que a terceira abrange estas duas situações.”
Da conjugação do disposto nos art.ºs 913.º, nº1, a 915.º do C. Civil, decorre que o comprador de coisa defeituosa goza do direito de exigir do vendedor a reparação da coisa; de anulação do contrato, do direito de redução do preço e também do direito à indemnização do interesse contratual negativo.
Como ensina Pedro Romano Martinez, in “Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos”, pág., 135 e 136, Almedina, 2.ª Edição, “ (… O regime do cumprimento defeituoso, estabelecido nos arts. 913.º e segs. do Código Civil, vale tanto no caso de ser prestada a coisa devida, mas esta se apresentar com um defeito, como também para as hipóteses em que foi prestada coisa diversa da devida. E, sustenta: “ (… ) As consequências da compra e venda de coisas defeituosas determinam-se atentos três aspetos: em primeiro lugar, na medida em que se trata de um cumprimento defeituoso, encontram aplicação as regras gerais da responsabilidade contratual (arts. 798.º segs. Código Civil); segundo, no art. 913.º, nº1, do Código Civil faz-se uma remissão para a secção anterior…Nos termos gerais, incumbe ao comprador a prova do defeito (art. 342º, nº l Código Civil) e presume-se a culpa do vendedor, se a coisa entregue padecer de defeito (art. 799.º, nºl, Código Civil)”.
E atento o disposto no art. 916.º do C. Civil, a responsabilidade do vendedor pela venda de coisa defeituosa depende da prévia denúncia do vício ou falta de qualidade da coisa pelo comprador, exceto se este tiver atuado com dolo, denúncia a efetuar até 30 dias depois de conhecido o vício e dentro de seis meses após a entrega da coisa.
2. Mas importa ainda ter em consideração outras disposições legais que visam proteger o consumidor, pois que estabelecendo um regime mais favorável prevalecem sobre as demais.
Com efeito, o adquirente de coisa defeituosa beneficia ainda da proteção conferida pela Lei de Defesa do Consumidor (LDC, aprovada pelo Dec. Lei n.º 24/96, de 31/7, alterada pelo Dec. Lei n.º 67/2003, de 8 de abril), bem como do regime de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, instituído pelo Dec. Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, alterado e republicado pelo Dec. Lei n.º 84/2008, de 21 de maio.
De acordo como o art.º 2/1 da LDC, “ Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.”
O Decreto-Lei 67/2003, de 8 de abril, aplica-se apenas às pessoas que exerçam com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, e cujo fornecimento de bens ou serviços ocorra nesse âmbito e sejam destinados a uso não profissional pelo adquirente.
O consumidor tem direito, entre outros, à qualidade dos bens e serviços, e os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor ( art.ºs 3.º/1, al. a) e 4.º da LDC).
E tem direito à indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos, sendo que o produtor desses bens é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos de produtos que coloque no mercado, nos termos da lei – seu art.º 12.º
Por sua vez, o vendedor é responsável perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento da entrega do bem. E, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato – art.ºs 3 e 4/1.º do Dec. Lei n.º 67/2003 de 8 de abril.
Com este diploma legal pretendeu-se proteger o consumidor relativamente à aquisição de bens de consumo ( móveis ou imóveis), em que o bem entregue padece de desconformidade face ao contrato de compra e venda, presumindo-se as seguintes situações em que ocorre desconformidade com o contrato, a saber: a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo; b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado; c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo; d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem - ( seu art.º2.º/1 e 2).
O vendedor que satisfaça os direitos concedidos ao consumidor beneficia do direito de regresso contra o profissional a quem adquiriu a coisa, por todos os prejuízos causados pelo exercício desses direitos –art.º 7.º/1 do Dec. Lei n.º 67/2003 de 8 de abril.
Pode, ainda, o consumidor que tenha adquirido coisa defeituosa, e sem prejuízo dos direitos que lhe assistem perante vendedor, optar por exigir diretamente do produtor a sua reparação ou substituição, salvo se tal se manifestar impossível ou desproporcionado tendo em conta o valor que o bem teria se não existisse falta de conformidade, a importância desta e a possibilidade de a solução alternativa ser concretizada sem grave inconveniente para o consumidor. Ao produtor é concedia a faculdade de se opor à reparação ou substituição se o defeito resultar exclusivamente de declarações do vendedor sobre a coisa e sua utilização, ou de má utilização ou que o defeito não existia no momento em que colocou a coisa em circulação – art.º 6.º Dec. Lei n.º 67/2003 de 8 de abril.
Portanto, mesmo no âmbito dos diplomas legais citados, a sua aplicação sempre depende da existência de “vícios da coisa ou coisa defeituosa”, vendida ou adquirida, ou “desconformidade face ao contrato de compra e venda”, ou seja, perspetivando-se que o bem sofra de vício que a desvalorize ou que impeça a realização da finalidade a que a mesma se destina ou careça das qualidades necessárias e asseguradas pelo vendedor para a realização desse fim.
3. No caso concreto, ficou provado que o Réu, no exercício da sua atividade profissional de compra e venda de veículos automóveis, vendeu, em 14 de junho de 2008, ao autor, o veículo automóvel de marca Audi, modelo A4 Avant 1.9. TDI, e matrícula 00-0000, emitindo e entregando a respetiva declaração de venda, dando ao autor a garantia de bom funcionamento por um ano, cuja gestão cabe à sociedade ….MOTOR.
Donde, não oferece dúvidas, nem vem posto em crise, que o Autor e o Réu, ora apelante, celebraram um típico contrato de compra e venda de um veículo automóvel, pagando o Autor o preço acordado de €21.500,00€, que lhe foi entregue pelo Réu, com a respetiva declaração de venda, e garantia de funcionamento por um período de um ano, nos termos do art.º 921.º do C. Civil.
E mais vem provado que pouco tempo depois da aquisição do veículo, este começou a fazer um barulho contínuo (zunbido) do tipo vibração metálica quando atingia determinada velocidade, e o autor queixou-se ao réu de que o veículo fazia um barulho que lhe parecia estranho. O réu fez, com a companhia do autor, um teste de condução do veículo, após o que, conforme sua indicação, o autor levou o veículo à oficina de …, onde foi constatado o barulho e substituído o líquido da caixa de velocidades, mas o barulho manteve-se.
Na sequência da estadia na oficina de …., o réu levou o veículo à Auto …, onde em 28 de fevereiro de 2009, foi efetuado um teste de estrada ao veículo, por técnico da Auto…., o qual elaborou o correspondente relatório, do qual consta, designadamente, a confirmação, após uma dezena de quilómetros, de um ruído do tipo vibração metálica, leve, ao desacelerar, considerado normal, considerando-se que a quilometragem que ostenta no conta quilómetros pode ser real uma vez que o habitáculo está em bom estado de conservação.
Aquando da aquisição do veículo pelo autor, o mesmo ostentava a quilometragem de 82.695 km, mas conforme peritagem e averiguação do seu historial, efetuada em 20 de março de 2009, a pedido do autor, na Auto …, em Lisboa, verificou-se que o mesmo apresentava, em 6 de junho de 2005, a quilometragem de 142.913 km.
Ao ter conhecimento dessa disparidade, o autor enviou ao réu uma carta, subscrita por advogada, datada de 31/03/2009 e recebida pelo réu em 02/04/2009, na qual comunica que, face à diferença entre a quilometragem apresentada pelo veículo no conta quilómetros e a sua quilometragem real, pretende resolver o contrato de compra e venda, solicitando a devolução do preço pago e o pagamento das despesas com a amortização antecipada do empréstimo, no montante global de 22.500,00€.
Ora, tal como se considerou na decisão recorrida, que acompanhamos “(… Com efeito, em face deste quadro factual, é compreensível e objetivamente justificada a perda de interesse do autor (a que se refere o art.º 808º) na reparação ou substituição do veículo ou na redução do preço de aquisição e a sua opção pela resolução do contrato, a que procedeu medicante comunicação ao réu por carta enviada em 2 de abril de 2009, e portanto, dentro do prazo de garantia de 1 ano e em menos de 30 dias e de 60 dias do conhecimento da falta de qualidades do veículo inerente à sua quilometragem real.
Desta sorte, não admira que o veículo fizesse um barulho e necessitasse de substituição do turbo pouco tempo depois da sua aquisição, pois, como é evidente, tratando-se de um veículo automóvel, o maior uso importa necessariamente maior desgaste das peças e, consequentemente, por um lado, maior possibilidade de mau funcionamento e de avarias do veículo e mais dispêndio na manutenção do veículo em condições de funcionamento e, por outro lado, a redução, no caso, drástica, do seu valor comercial, que, como é consabido, é extremamente sensível como não podia deixar de ser, ao uso do veículo e consequente desgaste que, normalmente, o registo da quilometragem, quando não é alterado, revela.”
Decorrentemente, não oferece dúvidas de que a diferença de quilómetros, seguramente para mais do dobro, no veículo, tratando-se de carro usado, configura uma desconformidade face ao contrato de compra e venda, pois não estava conforme com a descrição que dele foi feita pelo vendedor, sabido que esse elemento é essencial na determinação da vontade do comprador, o mesmo é dizer que a viatura não tinha as qualidades que o Réu assegurou, pois como se escreveu no Ac. do T. Rel. do Porto, de 14/2/2005, Proc. n.º 0456802, in www.dgsi.pt/jtrp, “(… não pode considerar-se irrelevante para o comum das pessoas, que se proponham adquirir uma viatura usada, o número de quilómetros que a mesma possa ter realmente percorrido, isto é, não é de aceitar que não haja uma diferença e bastante acentuada entre duas viaturas usadas que, apesar de aparentarem as mesmas características e estado de conservação, apresentem diferente quilometragem efetivamente percorrida, designadamente quando uma apresenta 45.000 Kms. e a outra 100.000 Kms. realmente percorridos, porquanto, como é público e notório, o desgaste global da viatura aumenta com o maior número de quilómetros percorridos)
E no caso concreto, preenche o conceito de consumidor o adquirente de uma viatura automóvel destinada a uso não profissional ( como é o caso do Autor), se o respetivo fornecedor ( no caso o Réu) exercer com caráter profissional a correspondente atividade económica - n.º 1 do art.º 2.º da LDC.
Resumindo, da factualidade assente resulta claramente ter o Réu a categoria de pessoa que exerce atividade com caráter profissional, sendo clara a posição de consumidor por banda do Autor, atenta a qualificação vertida no nº1, do art.º 2º, da LDC (Lei nº24/96, de 31 de julho), para o qual remete o art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, sendo este o diploma legal aplicável no caso em apreço, (na redação anterior ao DL n.º 84/2008, de 21/05, que entrou em vigor em 20 de junho de 2008 e, por isso, não estar em vigor á data da celebração do contrato de compra e venda – 14/6/2008) e que transpôs para o ordenamento jurídico interno a Diretiva nº1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio, com vista à aproximação das disposições dos Estados membros da União Europeia sobre certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, sem com isso diminuir o nível de proteção já reconhecido entre nós ao consumidor, designadamente, na Lei nº24/96, de 31 de julho (cfr. parte preambular do Decreto-Lei n.º67/2003 e seu art.º 1.º).
O Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de abril, na sua versão originária ( redação anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 84/2008, de 21 de maio), no seu art.º 5.º, n.º1 e 2 , estabelece os prazos para o exercício dos direitos do consumidor, consignados no respetivo art.º 4.º, fixando-os em 2 dois ou 5 anos a contar da entrega do bem, consoante se trate de coisa móvel ou imóvel, podendo ser reduzido para um ano, por acordo das partes, no caso de coisa móvel usada, como prazos de caducidade. E o seu n.º3 e 4 fixa em de dois meses, no caso de bem móvel, o prazo para o consumidor fazer a denúncia ao vendedor da falta de conformidade, a contar da data em que tenha detetado, devendo exercer os seus direitos no prazo de seis meses após essa denúncia.
Ora, tendo o Autor adquirido o veículo em 14 de junho de 2008, e detetada a diferença de quilómetros em 20 de março de 2009, ou seja, dentro do prazo de garantia de um ano, denunciando tal situação ao Réu, por carta, datada de 31/03/2009, e recebida por este em 02/04/2009, na qual comunica que face à diferença entre a quilometragem apresentada pelo veículo no conta quilómetros e a sua quilometragem real, pretende resolver o contrato de compra e venda, e propondo a ação em 19 de junho de 2009, concluiu-se ter respeitados os referidos prazos legais.
Aliás, essa circunstância não vem posta em causa pelo apelante, pois que este discorda apenas no direito á resolução do contrato, sem que o Autor previamente exercesse, obrigatoriamente, o direito à reparação do veículo ou redução do preço, aceitando o enquadramento legal efetuado na 1.ª instância.
Com efeito, sustenta o recorrente ser aplicável, no caso concreto, a Lei 24/96 de 31 de julho e o DL 67/2003 de 8 de abril, e que tendo em atenção tal legislação especial, o A. não pode recorrer diretamente à resolução contratual, como o fez, sem antes se terem por verificados determinados circunstancialismos prévios, nomeadamente a hierarquia constante do nº 1 do Art. 4º do DL 67/2003, ou seja, primeiro que tudo, o consumidor deveria solicitar a reparação ou a substituição do bem. E apenas preenchidas determinadas condições, lançava mão dos instrumentos da redução do preço ou rescisão contratual.
Será assim?
Não concordamos com a leitura dessas disposições legais.
Desde logo, porque não decorre do art.º 4.º/1 do Dec. Lei n.º 67/2003, qualquer hierarquia dos direitos conferidos ao consumidor em consequência da desconformidade do bem com o contrato, podendo exercer qualquer dos direitos, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais, como está plasmado no seu n.º 5, do qual não se infere essa hierarquia.
Reconhece-se que o consumidor para exercer tais direitos deve, previamente, denunciar ao vendedor a falta de conformidade notada, como o exige o n.º3 do art.º 5.º desse diploma legal, na medida em que deverá permitir ao vendedor a possibilidade de repor, sem encargos para aquele, a desejada e obrigatória conformidade, em consonância com o próprio contrato firmado, como se tudo tivesse corrido bem desde o inicio.
Mas daí não decorre que o regime legal estabeleça uma hierarquia no exercício dos direitos conferidos ao consumidor - nº5, do art.º 4º -, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.
Pedro Romano Martinez, ob citada, pág. 141, sustenta haver “uma sequência lógica: em primeiro lugar, o vendedor está adstrito a eliminar o defeito da coisa e, não sendo possível ou apresentando-se como demasiado onerosa a eliminação do defeito, a substituir a coisa vendida; frustrando-se estas pretensões, pode ser exigida a redução do preço, mas não sendo este meio satisfatório, cabe ao comprador pedir a resolução do contrato”. E entende que a remissão feita pelo art.º 913.º do C. Civil para o art.º 905.º levaria a supor não se estar perante uma resolução, pois aí fala-se em anulabilidade do contrato, mas deve entender-se tratar-se de uma resolução do contrato ( pág. 136 e 137).
Depois, porque mesmo que assim não fosse, no caso concreto, é manifestamente impossível a reparação ou substituição do veículo, visto que o fundamento invocado pelo autor assenta da disparidade substancial da quilometragem real percorrida e a que consta do contrato de compra e venda e do respetivo conta quilómetros.
Se assim é, como fazer a reparação ou substituição? A reparação é impossível, pois não se pode apagar o número de quilómetros percorrido do veículo de modo a que tudo se passasse como se não tivesse sucedido. E quanto à substituição, é igualmente impossível, a menos que o apelante se dispusesse a colocar à disposição do autor outro veículo, da mesma marca, modelo, ano de matrícula, quilometragem, estado de conservação e preço. E não foi esta a posição assumida pelo apelante na contestação, onde alega apenas não ter tido culpa, por ter também adquirido o veículo com a quilometragem nele indicada, como se fosse o autor, enquanto consumidor e comprador, a assumir os encargos daí decorrentes.
Ora, exercendo o apelante a atividade profissional de compra e venda de veículos, terá de ser ele a suportar os prejuízos, não o comprador, de acordo com o velho brocardus latino “ubi commoda, ibi incommoda”.
Por outro lado, também não é exigível ao autor que fique com o veículo, optando por uma redução do preço que pagou, porque seria de todo intolerável ficar com esse veículo, ainda que por preço inferior, por não resultar dos autos que se tivesse tido conhecimento dessa circunstância, ainda assim, o teria adquirido. Pelo contrário, a posição assumida pelo Autor, logo que teve conhecimento desse facto, pediu de imediato a resolução do contrato.
Portanto, no caso concreto, sendo manifestamente impossível a reparação ou substituição do veículo, provado o defeito referido, tendo direito à redução do preço ou à resolução do contrato, não ocorrendo qualquer abuso de direito nesta última opção, como vem sublinhado na decisão recorrida, “dada a gravidade do defeito do veículo e da sua repercussão negativa na aptidão para o fim a que se destina e no seu valor que justifica objetivamente a perda de interesse do autor na aquisição”.
Como é sabido e consabido, a resolução do contrato pode ocorrer quando esteja prevista na lei ou por acordo das partes, sendo os seus efeitos equiparados à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, o mesmo é dizer que a resolução tem efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente, e faz-se por declaração à outra parte – art.ºs 289.º/1, 432.º/1, 433.º e 436.º/1, todos do C. Civil.
Em jeito de conclusão, não merece censura a decisão recorrida, reconhecido que foi, ao Autor, o direito à resolução do contrato de compra e venda, com a consequente condenação do Réu a restituir-lhe a quantia de 21.500,00€ (vinte e um mil e quinhentos euros), correspondente ao preço pago pela viatura, devendo o Autor, em contrapartida, e simultaneamente, entregar o referido veículo, nos termos do art.º 290.º do C. Civil.
Improcede, pois, nesta parte, a apelação.
4. Vejamos agora se o Réu está, ou não, também obrigado ao pagamento da indemnização fixada em €2.000,00 (dois mil euros), como fixado na decisão recorrida.
Sustenta o recorrente que o direito à indemnização resulta dos princípios gerais, nomeadamente do art.º 798.º e segs. do C. Civil, ou seja, quando o devedor falta culposamente ao cumprimento da obrigação, o que não foi o caso, pois que se limitou a adquirir o veículo com os kms lá indicados.
Ora, no caso sub judice, não podem restar dúvidas ter ocorrido cumprimento defeituoso, por banda do Réu, sendo aplicável as regras gerais da responsabilidade contratual (arts. 798.º segs. C. Civil) presumindo-se a culpa do vendedor, porque a coisa entregue padece de defeito - art. 799.º, nºl, do C. Civil – cfr.. Pedro Romano Martinez, ob citada.
Donde, o Réu é responsável pelos prejuízos causados ao autor.
Igualmente decorre do art.º 12.º/1 da LDC ( Lei n.º 24/96, de 31 de julho, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril), que o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos. Trata-se de uma responsabilidade subjetiva nos termos gerais, ou seja, só existe na medida em que o responsável tenha culpa, como decorre do confronto do n.º2 dessa disposição legal, onde refere que o produtor é responsável “independentemente de culpa”.
E como ensina Pedro Romano Martinez, ob. citada, pág. 141, o direito à indemnização pelos danos concedido ao comprador, “cumula-se com qualquer das pretensões com vista a cobrir os danos não ressarcíveis por estes meios” ( reparação da coisa, substituição, redução do preço ou resolução do contrato).
Na decisão recorrida, considerou-se que o Autor não provou outros danos, para além de evitar utilizar o veículo e conduzir o veículo de seus pais, bem como dos sentimentos de perturbação e de angústia provocados pela compra do veículo nessas circunstância, fixando em €2.000,00 o montante dos danos não patrimoniais, nos termos do art.º 496.º/3 do C. Civil.
E justificou nos seguintes termos:
“(… Essa situação de evitar conduzir o veículo adquirido e conduzir o veículo dos pais, bem como esse estado psicológico e sentimento de angústia, são compreensíveis e decorrem como sua consequência adequada, da situação vivenciada pelo autor, que despendeu mais de 20.000,00€ na aquisição de um veículo que, afinal, não tem esse valor nem as qualidades que justificadamente esperava que tivesse e do qual não tira partido como esperava legitimamente tirar, vendo assim frustradas as suas expectativas e diminuído o seu património sem contrapartida correspondente.
Situação e estado psicológico esses que sobrevieram ao autor em consequência da conduta do réu, os quais constituem danos que assumem gravidade suficiente para merecerem a tutela do direito, mediante a atribuição ao autor do direito a haver do réu uma compensação, cujo valor se fixa equitativamente em 2.000,00€”.
Costuma afirmar-se que os prejuízos não patrimoniais são aqueles que se verificam em relação a interesses insuscetíveis de avaliação pecuniária, interesses de ordem espiritual (Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, 373 e ss).
O dano moral relevante, segundo o artº496.º, do C. Civil, é aquele que, pela sua gravidade, merece a tutela do direito e o montante ressarcitório que lhe há de corresponder deve ser encontrado por recurso a critérios de equidade, nos termos do seu nº3, atendendo-se à gravidade do dano, o grau de culpa do agente, a situação económica de lesante e lesado, bem como outras circunstâncias que forem pertinentes, como flui do art.º 494.º do mesmo diploma legal – cfr Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5.ª Edição, pág. 483 a 486; e Pries de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, pág. 499).
Como se escreveu no Acórdão do S. T. J., de 25/5/2007, Proc. n.º nº07A1187, disponível em www.dgsi.pt/jstj, “dano grave não terá que ser considerado apenas aquele que é “exorbitante ou excecional”, mas também aquele que “sai da mediania que ultrapassa as fronteiras da banalidade. Um dano considerável que, no seu mínimo, espelha a intensidade de uma dor, duma angústia, dum desgosto, dum sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna inexigível em termos de resignação”.
E assim sendo, os danos morais sofridos, manifestados por perturbação psicológica e sentimentos de angústia compreensíveis, e decorrentes do facto de ter dispendido €21.500,00 por um veículo que ostentava a quilometragem de 82.695 km, mas que veio a descobrir, na sequência de peritagem e averiguação do seu historial, efetuada em 20 de março de 2009, a seu pedido, que o mesmo apresentava, em 6 de junho de 2005, a quilometragem de 142.913 km, passando, desde então, a evitar circular com o mesmo, em especial em grandes deslocações, as sucessivas deslocações a oficina no sentido de detetar e reparar a anomalia que provocava o ruído, e considerando que essa limitação de utilização do veículo e consequente angústia se vem mantendo desde o pedido de resolução do contrato, devem ser indemnizados.
Porque esses danos são consequência direta do cumprimento defeituoso, por parte do Réu, e assumem gravidade suficiente e relevância jurídica, no sentido de merecerem a tutela do direito, mostra-se equitativamente fixada a indemnização de €2.000,00.
Decorrentemente, improcede a apelação.
Vencido no recurso, suportará o apelante as respetivas custas – art.º 446.º/1 do C. P. Civil.
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III. (…)
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IV. Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.

Lisboa, 1 de Março de 2012

Tomé Ramião
Jerónimo Freitas
Fernanda Isabel Pereira