Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1693/2002.L1-6
Relator: MARIA TERESA PARDAL
Descritores: CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
COMUNICAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
NULIDADE DA CLÁUSULA
NULIDADE DO CONTRATO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Sendo arguidas as excepções de nulidade e de anulabilidade de um contrato, o Tribunal deverá começar por apreciar a nulidade, só devendo julgar a anulabilidade se aquela improceder. 2. As cláusulas contratuais gerais caracterizam-se por serem pré-elaboradas, insusceptíveis de serem negociadas e dirigidas a destinatários indeterminados, razão pela qual a lei atribui protecção especial ao contratantes aderentes, impondo um especial dever de comunicação e esclarecimento por parte do contratante proponente e atribuindo a este o ónus de provar o cumprimento deste dever (artigos 5º e 6º do DL 446/85 de 25/10).
3. Tratando-se de um contrato de aluguer de veículo sem que seja prevista a possibilidade de o mesmo vir a ser adquirido pelo contratante aderente e pretendendo este comprar o veículo a crédito, o que era do conhecimento do seu interlocutor com quem manteve os contactos prévios ao contrato, impunha-se que fossem comunicadas e explicadas todas as cláusulas do contrato, nomeadamente as relativas à obrigação do locatário de entregar o veículo no fim do respectivo prazo.
4. Não tendo a contratante proponente provado que foi cumprido o dever legal de comunicação e informação, devem ser excluídas do contrato todas essas cláusulas nos termos do artigo 8º do DL 446/85 e deverá o contrato ser declarado nulo ao abrigo do artigo 9º nº2 do mesmo diploma, por se verificar uma indeterminação insuprível dos elementos essenciais do contrato.
5. A arguição da nulidade do contrato com este fundamento não constitui abuso de direito.
( Da responsabilidade da Relatora )
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO.
A ( …, SA) intentou a presente acção declarativa com processo sumário contra B e esposa C (sendo o primeiro réu, entretanto falecido, agora representado pela herdeira habilitada C e herdeiros incertos), alegando, em síntese, que o réu, pretendendo comprar o veículo automóvel de matrícula 00-00-OC à Sociedade …e não o podendo fazer com pagamento a pronto, solicitou ao referido vendedor a possibilidade de este lhe alugar o veículo, com a intervenção da autora, pelo período de sessenta meses, pelo que, a solicitação do vendedor feita em nome do réu, a autora adquiriu o veículo com o objectivo de o dar de aluguer ao réu, o que fez, mediante acordo exarado em documento com data de 9/09/1999, pelo prazo de 60 meses, mediante o pagamento mensal do valor global de 46 148$00 (230,19 euros), sendo estipulado que a falta de pagamento de qualquer dos ditos alugueres implicaria a possibilidade de resolução do contrato pela autora e a responsabilidade do réu a restituir o veículo, fazendo a autora seus os alugueres até então pagos, bem como a responsabilidade do réu a pagar à autora os alugueres em mora, o valor dos danos que o veículo apresentasse e ainda uma indemnização para fazer face à desvalorização e ao próprio incumprimento, não inferior a 50% do valor total dos alugueres acordados.
Mais alegou que tendo sido entregue o veículo ao réu, este utilizou-o, mas, a partir de Novembro de 2001, deixou de pagar os alugueres, pelo que a autora lhe comunicou a resolução do contrato em Abril de 2002, tendo o veículo sido restituído em Julho de 2002, estando ainda em dívida pelo réu o valor dos alugueres em falta, bem como a indemnização pelo atraso na restituição do veículo e ainda a indemnização acordada, quantias pelas quais é também responsável a ré, tendo em atenção que o contrato teve em vista o proveito comum do casal de réus.
Concluiu pedindo a condenação dos réus a pagar as quantias de 2 759,97 euros e de 2 532,60 euros, mais juros vencidos desde a citação e juros vincendos até integral pagamento
Os réus contestaram arguindo a anulabilidade do contrato, alegando que o réu sempre pretendeu comprar o veículo a crédito e não alugá-lo, tendo manifestado essa vontade à sociedade vendedora, a quem entregou as quantias de 450 000$00 e de 86 250$00 a título de sinal e, confiando na referida sociedade, não leu o contrato, onde não se previa que o réu pudesse comprar o veículo, sendo essa sua vontade do conhecimento da autora e tendo sido este erro voluntária e conscientemente criado pela sociedade vendedora; arguíram também a nulidade do contrato, nomeadamente porque o contrato lhe foi apresentado completamente impresso, sem que lhe fosse dada a possibilidade de o discutir ou modificar e sem que lhe fosse comunicado e explicado o respectivo conteúdo, designadamente as cláusulas 10ª e 11ª.
Alegaram ainda que não é válida a resolução do contrato por não haver incumprimento definitivo, porque a autora não fixou prazo para que o réu pagasse as prestações consideradas em atraso, pelo que o contrato só findou em 22/07/2002, por acordo das partes, quando o réu entregou o veículo à autora, tendo o réu pago todas as prestações até ao mês de Janeiro de 2002 inclusive, sendo excessiva a cláusula penal e conclusivo o artigo da petição inicial onde se atribui à ré responsabilidade pelas quantias reclamadas.
Concluíram pedindo a procedência das excepções de nulidade e anulabilidade do contrato com a absolvição do pedido e, em reconvenção, a condenação da autora a pagar o montante total das prestações e caução pagas no total de 9 120,99 euros; pediram ainda, caso o contrato seja considerado válido, que se julgue inadmissível a resolução do contrato e o mesmo cessado por revogação, com a absolvição do pedido e, caso o contrato seja considerado cessado por resolução, que sejam consideradas pagas as prestações até Janeiro de 2002 e que seja reduzida a cláusula penal ao montante composto por todas as quantias que foram entregues pelo réu, nada mais devendo ser exigido.
A autora replicou alegando que não houve qualquer erro do réu, nem dolo do fornecedor do veículo, mas que, mesmo que tivesse havido dolo e/ou erro, o contrato não podia ser anulado porque a autora não teve conhecimento, nem tinha obrigação de ter, dos invocados dolo e erro e essencialidade deste, não estando assim preenchidos os requisitos dos artigos 247º nº2 e 254º nº2 do CC.
Alegou ainda que não se verificam as nulidades invocadas, nomeadamente a violação dos deveres de comunicação e informação previstos nos artigos 5º e 6º do DL 446/85 de 25/10, pois todas as condições do contrato se encontravam impressas no documento que lhe foi dado a assinar, sendo as mesmas simples de entender e encontrando-se a autora disponível para prestar qualquer esclarecimento e sendo certo que, se o réu não leu o contrato, é-lhe imputável o invocado erro.
Mais alegou que foi correcta a resolução do contrato, não havendo revogação por acordo das partes, que estão em dívida as prestações alegadas na petição inicial, que não foi fixada uma cláusula penal, mas sim uma cláusula de agravamento da responsabilidade, que não é excessiva por não ser desproporcionada e que se verifica o proveito comum do casal.
Invocou ainda a ineptidão da reconvenção por esta não ter sido deduzida separadamente e deduziu oposição à mesma, alegando que o valor reclamado pelos réus corresponde ao valor do gozo que o réu retirou do gozo que retirou do veículo enquanto esteve na sua posse e que, a considerar-se provadas as pretensas anulabilidade e nulidade do contrato, haveria manifesto abuso de direito dos réus.
Concluiu pedindo a improcedência das excepções e a ineptidão da reconvenção e, caso se entenda não haver ineptidão, a sua improcedência.
Os réus treplicaram impugnando a excepção de ineptidão da reconvenção.
Saneados os autos, com a improcedência da excepção de ineptidão da ineptidão da reconvenção, que foi admitida, procedeu-se a julgamento, findo o qual foi proferida sentença que absolveu a ré do pedido, anulou o contrato por erro e dolo e absolveu o réu do pedido de pagamento de rendas, indemnização e juros, condenando-o a pagar à autora o valor médio de mercado que a locação de um veículo com as características dos autos custaria em Julho de 1999, durante um período de 35 meses, a liquidar em execução de sentença e condenou a autora a, simultaneamente, pagar ao réu a quantia de 8 432,68 euros.
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Inconformados, autora e réus interpuseram recurso, tendo sido proferido acórdão no Tribunal da Relação, onde se decidiu anular a sentença recorrida, bom como o julgamento relativamente a parte da matéria de facto, determinando a repetição do mesmo quanto a tal matéria.
Baixados os autos à 1ª instância, procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida sentença que proferiu dispositivo igual ao da primeira sentença.
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Inconformada, a autora interpôs recurso da sentença, o qual foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
A recorrente alegou, formulando as seguintes conclusões:
1) A sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação da matéria de facto constante dos autos ao considerar nulo, por pretensa anulabilidade, o contrato dos autos e, assim, violou o disposto nos artigos 294º, 286º, 289º, nº1, 247º, 253º, nº1, e 254º, nº1, do Código Civil, tendo ainda violado o disposto no artigo 810º nºs 1 e 2 do mesmo normativo legal, na medida em que o contrato dos autos, ao invés do que decidido foi, é perfeitamente válido e eficaz, não padecendo de qualquer nulidade e igualmente violou, face à dita matéria de facto provada nos autos, a norma ínsita no artigo 334º do Código Civil, porquanto a pretensa nulidade do contrato dos autos constituiria e constitui sempre manifesto e claro abuso de direito.
2) Também a sentença recorrida, ao não conhecer, e considerar consequentemente prejudicada, a questão da validade da cláusula penal constante do contrato recorrido, mais concreta e precisamente a cláusula penal que como indemnização foi pedida nos autos, com a redução constante da petição inicial, no respectivo artigo 17º, violou o disposto no artigo 660º, nº2, do Código de Processo Civil, constituindo até tal situação nulidade da sentença nos termos do artigo 668º, nº 1, alínea d) do referido normativo legal.
3) Tendo assim em atenção e consideração os preceitos legais referidos, face à matéria de facto dada como provada na instância, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado e, consequentemente, revogar-se a sentença recorrida, substituindo-se a mesma por acórdão que julgue a acção inteiramente procedente e provada, condenando nos precisos termos da petição inicial, a recorrida C e os demais herdeiros incertos do falecido réu, em 1ª instância, B , desta forma se fazendo JUSTIÇA.
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Não foram apresentadas contra-alegações e foi proferido despacho apreciando a nulidade arguida nas alegações da recorrente e indeferindo-a.
As questões a decidir, delimitadas pelas conclusões das alegações da apelação da autora, são:
I) Nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
II) Validade do contrato.
III) Abuso de direito (no caso de o contrato ser inválido).
IV) Responsabilidade do réu e montante da indemnização (no caso de o contrato ser válido).
V) Responsabilidade da ré (no caso de o contrato ser válido).
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FACTOS.
Os factos considerados provados pela sentença recorrida são os seguintes (aos quais se adita uma alínea correspondente à alínea D) dos factos assentes, que, certamente por lapso, não consta na sentença):
a) O réu marido em 1999 pretendia adquirir o veículo automóvel de marca KIA, modelo K2700, com a matrícula 00-00-0C, tendo para o efeito contactado a Sociedade Auto …….(A).
b) Sem qualquer contacto prévio, o réu e os representantes da autora apuseram as suas assinaturas no documento intitulado “contrato de aluguer de veículo sem condutor nº...”, cuja cópia foi junta com a petição inicial como documento nº1, folhas 10 e seguintes, documento esse que já se encontrava completamente impresso antes da mesma assinatura (B).
c) No mesmo documento consta o nome da autora sob a palavra “locador” e a do réu ao lado da palavra “locatário”, referindo-se ainda o aluguer do veículo referido na alínea a) por 60 meses, mediante o pagamento mensal de 46 148$00, dos quais 39 057$00 de aluguer, 6 640$00 de IVA à taxa de 17% e 451$00 de prémio de seguro de vida, conforme documento nº1 (C).
c-A) Ainda do mesmo documento nº1 consta que a data do 1º aluguer seria em 15-10-1999 e a data do último em 15-9-2004 (D).
d) No mesmo documento, sob o título de “Condições Gerais”, consta a cláusula 10ª, com o seguinte teor: “(…) o incumprimento pelo locatário de qualquer das obrigações por ele assumidas no presente contrato dará lugar à possibilidade da sua resolução pelo locador, tornando-se efectiva essa resolução à data da recepção pelo locatário de comunicação fundamentada nesse sentido” (E).
e) No ponto 3 da mesma cláusula 10ª pode ler-se: “A resolução por incumprimento não exime o locatário do pagamento de quaisquer dívidas em mora para com o locador, da reparação dos danos que o veículo apresente e do pagamento de indemnização à locadora”, e no ponto 4 que: “a indemnização referida no artigo anterior destinada a ressarcir o locador – que fará sempre suas as importâncias pagas até então nos termos do contrato – dos prejuízos resultantes da desvalorização do veículo e do próprio incumprimento em si, do contrato pelo locatário – não sendo nunca inferior a 50% do total do valor dos alugueres referidos nas Condições Particulares” (F).
f) Na cláusula 11ª, ponto 3 “(…) O locador fica autorizado a retirar a viatura ao locatário sempre que a sua restituição não se efective voluntariamente (…), podendo para o efeito o locador utilizar os meios que entender como adequados a cobrar todos os custos em que incorra” (G).
g) Ainda no mesmo documento, na cláusula 12ª, ponto 1, o locatário é obrigado a efectuar “(…) um depósito no valor de 20% do preço de venda ao público do veículo (…) e no ponto 4: “Em caso de rescisão ou denúncia nos termos da cláusula 10ª o valor da caução reverterá na sua totalidade para a locadora, sem prejuízo do referido no 4 da cláusula 10ª” (H).
h) O réu entregou pelos menos as primeiras 25 entregas mensais referidas na alínea c), no montante total de 1 153 700$00, e ainda pelo menos a quantia equivalente ao seguro de vida relativamente à 26ª, não tendo pago pelo menos a 29º prestação nem as que se lhes seguiram (I).
i) A autora adquiriu à Sociedade ……. o veículo automóvel referido na alínea a), pelo preço de 2 682 250$00, que por seu turno foi entre ao réu que a passou a utilizar (J).
j) O veículo automóvel referido na alínea a) foi em Julho de 2002 entregue pelo réu à autora, tendo nesse momento sido preenchido o documento nº2 junto a folhas 34 com a contestação, intitulado “Auto de levantamento de viatura” (L).
k) A autora remeteu em 10 de Abril de 2002 ao réu a carta cuja cópia constitui o documento nº3 anexado à petição inicial, a folhas 14, na qual declarava que o réu devia a quantia de 1 199,69 euros, dos quais 1 148,70 euros de capital em dívida, e ainda que “o não pagamento da quantia referida leva-nos a considerar, no prazo de 10 dias a contar desta carta, o contrato em referência como rescindido, nos termos das cláusulas 10º e 11ª” (M).
l) Em 23 de Agosto de 1999, o réu e um vendedor da Sociedade …. assinaram o documento nº1 junto com a contestação, a folhas 34, no qual se dizia que “o cliente faz crédito e no dia 23-08-1999 entregou um cheque no valor de 450 000$00 como sinal. À data da entrega da viatura entrega um cheque no valor a diferença da entrada, ou seja: 86 259$00. O cliente fica de entregar a documentação para fazer crédito” (N).
m) A autora despendeu com a recuperação do veículo referido na alínea a) a quantia de 445,18 euros (1).
n) O réu, após o momento referido na alínea a), declarou à Sociedade Auto …. que não dispunha de fundos suficientes para efectuar a aquisição da viatura a pronto pagamento (3).
o) Tendo então a mesma Sociedade dito ao réu que trataria da documentação necessária para que lhe fosse atribuído um crédito para pudesse adquirir a viatura, pagando-a em prestações (4).
p) E nessa sequência foi assinado o documento referido na alínea l) (5).
q) Tendo na mesma data constante do documento o réu entregue à Sociedade Vendedora a quantia de 450 000$00, atribuindo-lhe o carácter de sinal (6).
r) Em 9 de Setembro de 1999, data em que recebeu a viatura, o réu entregou à Sociedade os documentos que lhe foram pedidos para que lhe fosse concedido crédito, bem como o montante de 86 250$00 referido na alínea l) (7).
s) No stand da Sociedade …. foi dito ao réu que através das prestações e com a assinatura do contrato o réu iria comprar a viatura (8).
t) A sociedade Auto ….. sabia que o réu apenas pretendia comprar a viatura e não alugá-la (9).
u) O réu era mineiro e tinha de habilitações literárias a 4ª classe (13).
v) A entrega da viatura à autora, referida na alínea j), ocorreu em data não determinada, mas que se situa entre 22 e 23 de Julho de 2002 (18).
w) A viatura valia pelo menos 5 500,00 euros (21).
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
I) Nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
A apelante arguiu a nulidade da sentença por esta não se ter pronunciado sobre a questão do montante da indemnização pedida na petição inicial, que os réus impugnaram, alegando ser excessivo.
O artigo 668º nº1 d) do CPC comina com a nulidade a sentença em que o juiz não se pronuncia sobre questões que devesse apreciar.
Contudo, tendo a sentença entendido que o contrato em causa é inválido, é óbvio que, nos termos do artigo 660º nº2 do CPC, ficou prejudicada a questão da indemnização aí acordada.
Não se verifica, pois, a nulidade da sentença.
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II) Validade do contrato.
Dos factos provados resulta que o réu e a autora celebraram um acordo escrito denominado “contrato de aluguer de veículo sem condutor”.
Nesse contrato previa-se a cedência do veículo pela autora ao réu, durante um período de 60 meses, mediante o pagamento de uma renda mensal e que, findo esse período, o réu o devolveria à autora.
Trata-se, assim, de um contrato de aluguer, previsto nos artigos 1022º e 1023º do CC, existindo também regulação legal, no DL 354/86 de 23/10 (com alterações nos DL 373/90 de 27/4 e 44/92 de 31/3), para os casos em que o aluguer do veículo seja efectuado no âmbito do exercício da indústria de aluguer de veículos automóveis sem condutor.
O veículo alugado ao réu pela autora foi por esta comprado a uma sociedade, que manteve com o réu os contactos preliminares respeitantes ao contrato de aluguer.
Provou-se, porém, que o réu pretendia comprar o veículo (alínea a) dos factos provados), que declarou à vendedora do veículo que não o podia comprar a pronto pagamento (alínea n) dos factos provados), que a vendedora lhe disse então que trataria da documentação necessária para que lhe fosse atribuído crédito para comprar o veículo a prestações (alínea o) dos factos provados), que no stand foi dito ao réu que com o pagamento das prestações e a assinatura do contrato o réu iria comprar a viatura (alínea s) dos factos provados) e que a vendedora do veículo sabia que o réu queria comprar e não alugar (alínea t) dos factos provados).
Perante estes factos, a sentença recorrida entendeu que se verificou um erro na declaração por parte do réu e dolo por parte da vendedora do veículo, respectivamente nos termos dos artigos 247º e 253º do CC e que a autora responde pelos actos da vendedora nos termos do artigo 800º do mesmo código, por esta actuar como sua representante e, consequentemente, julgou verificada a excepção de anulabilidade do contrato, solução da qual discorda a apelante, que defende a sua validade.
Vejamos então.
Na contestação dos réus, estes invocaram não só a anulabilidade do contrato por erro e dolo, mas também a sua nulidade, por não lhe ter sido comunicado e informado o seu conteúdo, comunicação e informações estas que se impunham, uma vez que se trata de um contrato que lhe foi dado a assinar totalmente impresso e sem que lhe fosse dada a oportunidade de discutir as respectivas cláusulas.
A solução perfilhada pela sentença recorrida poderá eventualmente levantar algumas questões, como a de não ter sido submetido a prova o facto sobre se a autora conhecia a vontade do réu de comprar o veículo (e a essencialidade dessa vontade) e sobre se a autora conhecia o dolo da sociedade vendedora (relevantes para preencher os requisitos dos artigos 247º – erro na declaração – e 254º – dolo de terceiro – ambos do CC), como é a de saber se o artigo 800º, que respeita ao cumprimento da obrigação, poderá aplicar-se à celebração do contrato, como é a resposta negativa aos quesitos 11º e 16º (em que se perguntava se o réu tinha assinado o contrato sem ler pensando que com o mesmo estava a adquirir a viatura e que se o réu soubesse o verdadeiro alcance das cláusulas do contrato nunca o teria assinado).
Contudo, antes da apreciação da anulabilidade do contrato, haveria que apreciar a sua nulidade, igualmente invocada pelos réus.
Como se verifica do facto constante na alínea b) dos factos provados e da leitura do contrato junto aos autos e como a autora admite na resposta à contestação (artigo 243º), o referido contrato contém cláusulas contratuais gerais, ou seja, cláusulas que não podem ser negociadas, apenas podendo o destinatário aderir ou não à proposta, que são pré-elaboradas e apresentadas ao destinatário já redigidas e que são dirigidas a sujeitos indeterminados, podendo ser utilizadas para qualquer destinatário, sem que sejam individualizadas (cfr. ac. RC de 28/01/2008, proc. 270/08.6, em www.dgsi.pt, citando Meneses Cordeiro em “Tratado e Direito Civil, I, Parte Geral, 353).
O regime das cláusulas contratuais gerais encontra-se no DL 446/85 de 25/10, que impõe, nos artigos 5º e 6º, que o proponente comunique e informe o conteúdo das cláusulas ao aderente.
Esta obrigação de comunicação e informação decorre do princípio da boa fé negocial na celebração dos contratos (artigo 227º do CC) que vigora em qualquer contrato.
Mas nos contratos com cláusulas contratuais gerais a lei é especialmente exigente quanto ao seu cumprimento, pois assume que a restrição à liberdade negocial, que decorre da impossibilidade de uma das partes negociar e discutir as cláusulas, poderá levar a uma declaração negocial menos esclarecida e ponderada, determinando a necessidade legal de protecção do contratante que adere a estas cláusulas.
Assim, ao contrário do que acontece com a falta e os vícios da vontade na generalidade dos contratos (entre os quais o erro e o dolo), em que o ónus da prova cabe a quem os alega (artigo 342º nº2 do CC), no caso da violação do dever de comunicação e de informação das cláusulas contratuais gerais, estabelece o artigo 5º nº3 do DL 446/85, que cabe ao contratante que submeta a outrem as referidas cláusulas o ónus da prova da comunicação adequada.
Por outro lado, a lei não exige que fique provado que o contratante aderente às cláusulas gerais contratuais teve efectivamente a sua vontade viciada, bastando que se prove que não lhe foi devidamente comunicado e esclarecido o conteúdo dessas cláusulas, para que a lei, no artigo 8º do DL 446/85, determine a sua exclusão dos contratos.
Com efeito, a sanção para a falta de cumprimento dos artigos 5º e 6º do DL 446/85 não é a imediata invalidade do contrato, mas sim a exclusão das cláusulas que não foram adequadamente comunicadas e explicadas, subsistindo o contrato nos termos do artigo 9º nº1 e vigorando na parte afectada as normas supletivas aplicáveis.
Contudo, o nº2 do referido artigo 9º do DL 446/85 prescreve que: “os referidos contratos são, todavia, nulos quando, não obstante a utilização dos elementos indicados no número anterior, ocorra uma indeterminação insuprível de aspectos essenciais ou um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa fé”.
Voltando ao caso dos autos, alegando os réus que todo o contrato não foi devidamente comunicado e explicado ao réu, nomeadamente o significado das cláusulas 10ª e 11ª, esta matéria não ficou provada (resposta negativa aos quesitos 12º, 14º, 15º e 16º).
Mas, perante esta alegação, cabia à autora, por força do artigo 5º nº3 do DL 446/85, o ónus de provar que a comunicação e explicação ocorreu efectivamente, não tendo a autora efectuado a prova correspondente, pelo que, nada se provando, tem de se considerar que a autora nada comunicou ou esclareceu ao réu sobre todo o conteúdo do contrato.
É certo que tem sido considerado pela doutrina e jurisprudência que a protecção legal dada ao aderente das cláusulas contratuais gerais não o dispensa de usar do cuidado e diligência a contratar, no sentido de se inteirar do conteúdo do contratos e que a extensão dos deveres de comunicação e informação é maior ou menor conforme as circunstâncias do caso concreto, dependendo da importância do contrato, da complexidade das cláusulas e das habilitações e condições do aderente (de acordo com o disposto no nº2 do artigo 5º do DL 446/85), tendo sido entendido que poderá não haver necessidade de explicar o contrato ponto por ponto, caso se trate de cláusulas de entendimento fácil (cfr. Ana Prata, “Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais”, página 255 e acs RP de 23/09/2010, proc. 1582/07.1 e de 15/12/2010, proc. 266/09.0, em www.dgsi.pt).
Todavia, conforme acima se referiu, no presente caso provou-se que o réu pretendia comprar e não alugar o veículo, o que era do conhecimento da vendedora do veículo, que foi quem manteve com ele uma relação pré contratual e que lhe disse que assinando o contrato e pagando as prestações nele previstas adquiriria o veículo.
Estas informações incorrectas prestadas ao réu e o facto, que também se provou, de que o réu tinha apenas a 4ª classe, leva a considerar que obviamente se impunha uma comunicação e esclarecimento pormenorizados das cláusulas do contrato, sobretudo de todas aquelas que mencionassem a obrigação de restituir o veículo findo o prazo da cedência.
Desde logo pode não ser fácil para o homem comum distinguir entre as várias figuras contratuais que poderiam configurar um acordo celebrado nestas circunstâncias.
Como é sabido, nestas circunstâncias – em que o contratante locador cede o gozo do bem ao contratante locatário, comprando-o expressamente para esse efeito – é vulgar que as partes tenham em vista um contrato de locação financeira, convencionando a possibilidade de o locatário adquirir o bem locado decorrido o período acordado para a cedência, por um preço determinado ou determinável no contrato (artigo 1º do DL 149/95 de 24/6, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 265/97 de 2/10, rectificado no DR, I, de 31.10.97, pelo DL 285/2001 de 3/11 e pelo DL 30/2008 de 25/2).
Também é prática frequente, no caso do bem locado ser um veículo automóvel, que, a par do acordo de aluguer do mesmo, se convencione um contrato promessa de aquisição do veiculo no fim do período acordado para o aluguer, acordos estes que integram uma figura contratual complexa que, não se encontrando tipificada na lei, é constituída ao abrigo da liberdade contratual contemplada no artigo 405º do CC e é correntemente denominada como aluguer de longa duração (ALD).
Podem ainda as partes acordar a concessão de crédito para a aquisição de um bem, mediante um contrato de crédito ao consumo, com as especificidades previstas no DL 359/91 de 21/9.
No contrato dos autos não está prevista por qualquer forma a aquisição do veículo, pelo que não estamos perante um contrato de locação financeira ou outro semelhante, em que a estrutura do contrato de aluguer serve de suporte para a concessão de um crédito para uma final aquisição do bem locado.
Só que, pretendendo o réu comprar o veículo e não alugá-lo e necessitando de crédito para tal aquisição, parece manifesto que a confusão que poderia surgir com estas outras figuras contratuais só poderia ser afastada com a comunicação leal e pormenorizada de todas as cláusulas do contrato.
Não tendo sido feita essa comunicação, tem de se concluir forçosamente que foram violados os artigos 5º e 6º pela autora e que devem considerar-se excluídas do contrato desde logo as cláusulas 10ª e 11ª que os réus a título de exemplo expressamente indicaram como não tendo sido comunicadas e explicadas.
Face às circunstâncias já mencionadas, de que era intenção do réu alugar o veículo e não comprá-lo e de que essa intenção era do conhecimento da vendedora do veículo, deverão considerar-se também excluídas todas as cláusulas que faziam referência à obrigação específica de o locatário devolver o veículo ao locador no final do contrato, como é o caso das cláusulas 7ª e 9ª, que fazem referência a tal obrigação a propósito da responsabilidade civil do locatário e das obrigações do locatário, respectivamente.
Resta saber se o contrato deverá subsistir sem essas cláusulas, nos termos do artigo 9º nº1 do DL 446/85, ou se, de acordo com o nº2 deste artigo, o mesmo se deverá considerar nulo.
Ora, excluídas todas as cláusulas que fazem referência à restituição do veículo no fim do contrato (cláusulas 7ª, 9ª e 11ª), verifica-se a situação prevista no artigo 9º nº2, ou seja uma indeterminação insuprível de aspectos essenciais do contrato, devendo este considerar-se nulo.
Procede, pois, a excepção de nulidade invocada pelos réus, que deverá ser declarada.
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III) Abuso de direito.
Alega a apelante que, caso seja considerado inválido o contrato, deverá considerar-se também que os réus actuam com manifesto abuso de direito.
O abuso de direito, previsto no artigo 334º do CC, consiste no exercício de um direito excedendo-se manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
A clamorosa violação dos limites da boa fé, bons costumes ou fim do direito deve ser avaliada caso a caso, consoante as circunstâncias, sendo que, no caso do contratante que adere às cláusulas contratuais gerais, a violação dos limites da boa fé terá ser muito grave para se concluir pelo abuso do direito, face à especial protecção que a lei lhe concede e sob pena de esta protecção ser neutralizada (cfr neste sentido ac STJ de 28/04/2009, proc. 2/09.1 em www.dgsi.pt).
Parece-nos assim que, ao contrário do que já tem sido entendido (cfr ac RC de 11/01/2011, proc. 340/09, em www.dgsi.pt), o simples facto de a arguição de nulidade ocorrer depois de o contrato já ter sido cumprido durante vários meses, por si só, não chega para constituir abuso de direito.
Na verdade, o facto de já ter decorrido um período de tempo durante o qual o contrato foi cumprido não significa necessariamente que o sujeito criou no proponente uma expectativa de que não irá impugnar a validade do contrato e de que prescindiu de se defender invocando a protecção que a lei lhe atribui, acontecendo que, frequentemente, só depois de decorrido algum tempo, quando ocorre uma situação de incumprimento, é que o contratante aderente se apercebe do sentido de algumas cláusulas (cfr neste sentido ac RP de 4/10/2011, proc. 1341/08.4, em www.dgsi.pt).
Acresce que no caso dos autos, para além de não resultar dos factos provados uma actuação do réu violadora da boa fé, tem de se considerar que a outorga do contrato não foi conduzida correctamente pela contra parte, assumindo uma maior gravidade a omissão de informação, tendo em atenção a expectativa do réu em adquirir o veículo.
Não se verifica, pois, abuso de direito, improcedendo as alegações da apelante.
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Face ao supra decidido e à invalidade do contrato, ficam prejudicadas as restantes questões sobre a responsabilidade contratual do réu e do cônjuge, a ré, nomeadamente a apreciação das cláusulas relativas à indemnização por incumprimento contratual (artigos 660º nº2 e 713º nº2 do CPC).
Deverá, pois, manter-se o restante decidido na sentença recorrida, por ser a consequência que aí se retirou da invalidade do contrato e por não ter sido objecto de impugnação.
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DECISÃO.
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação da autora e julgar nulo o contrato dos autos, nessa parte se alterando a sentença recorrida, que, no restante, se mantém.
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Custas da apelação pela recorrente.
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Lisboa, 15 de Março de 2012
Maria Teresa Pardal
Tomé Ramião
Jerónimo Freitas