Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
570/05.7TBPNI.L1-7
Relator: GOUVEIA DE BARROS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
CARTA DE CONDUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: O direito de regresso da seguradora, previsto na alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei nº522/85, de 31 de Dezembro, contra o condutor não legalmente habilitado para o exercício da condução, só existe se o demandado não provar que tal falta de habilitação não teve qualquer contribuição causal na ocorrência do sinistro.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção):

A Companhia de Seguros …, S.A., com sede em Lisboa, propôs a presente acção declarativa com processo ordinário contra B., residente em …, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de €55.777,42, acrescida de juros desde a citação, valor que corresponde ao total por si pago em consequência de um acidente de viação provocado pelo réu em 19/7/1999 e de que resultou a morte de um motociclista.
Para tal alega que o réu, sem possuir licença que o habilitasse a fazê-lo, conduzia um veículo cujo proprietário transferira para si a responsabilidade civil emergente da sua circulação, a coberto de contrato de seguro titulado pela apólice nº …
Contestou o réu para impugnar a dinâmica do acidente e para dizer que o direito de regresso da autora não é automático, pois muito embora não tivesse licença para conduzir o veículo na via pública, tinha experiência de condução, dado que desde 1973 conduz viaturas similares, após ter obtido licença como condutor durante o cumprimento do serviço militar.
Assim, conclui, deve ser absolvido do pedido, porquanto os prejuízos reclamados não resultaram da falta de habilitação legal para conduzir e o direito de regresso apenas abrange “a indemnização que (a seguradora) tiver satisfeito se ela compreender os danos próprios da falta de habilitação legal”.
Conferida a regularidade formal da instância e seleccionada a matéria de facto pelo despacho unitário de fls 108 e segs, prosseguiram os autos seus termos e, discutida a causa, foi proferida sentença a julgar a acção procedente e a condenar o réu no pedido.
Inconformado com o decidido, apelou o réu para pugnar pela revogação da sentença e pela sua absolvição, alinhando para tal as seguintes razões com que encerra a alegação oferecida (apenas se transcrevem as relevantes):
(…)
4) Dos factos provados, resulta, que o ora Apelante é uma pessoa experiente na condução, com conhecimentos e com destreza para o seu exercício, ainda que não tivesse habilitação legal para o efeito.
5) Não ficou demonstrado que, mesmo que o Apelante fosse uma pessoa com habilitação válida para o exercício da condução, o acidente não ocorreria.
6) Ainda que não se levantem dúvidas quanto à culpa do ora Apelante, há que ter em conta que, com a culpa deste, concorre a culpa da própria vítima, uma vez que, esta circulava em excesso de velocidade.
7) Consequentemente, nem sequer foi o Apelante o único e exclusivo culpado pela eclosão do acidente.
8) Ficou provado que, o Apelante dispunha de conhecimentos e elevada experiência na condução da viatura acidentada, e, que ocorreu um “concurso de culpas,
9) Consequentemente, daqueles factos resulta que não foi a falta de habilitação legal para a condução que determinou a ocorrência do sinistro!
10) Não se pode olvidar, que diariamente ocorrem centenas de acidentes de viação, com as mesmas características que os dos presentes Autos e nos quais os condutores são pessoas com habilitação para conduzir válida.
11) A existência de habilitação válida nem sempre é sinónimo de que o condutor sabe conduzir, do mesmo modo que, a falta de habilitação não pode significar, sem mais, que essa pessoa não é ágil, nem hábil, nem cuidadoso, no exercício da condução.
12) Ainda que não seja o entendimento que a Apelada, perfilha, nomeadamente, quando se atenta no alegado sob o Art.º 19 da douta petição inicial, que se transcreve:
“A inexistência de habilitação para conduzir, indicia a falta de conhecimentos, experiência prática, agilidade e desenvoltura necessários ao tráfego automóvel.”
13) Estabelecer uma relação de causa/efeito entre a falta de habilitação legal do Apelante, para conduzir, e, daí concluir, sem sequer fundamentar, que o Apelado não gozava de condições necessárias ao exercício da condução automóvel é uma presunção, que, no caso sub judice, se revela injustificada e inadmissível.
14) Todavia, também a douta sentença recorrida acabou por ir nesse sentido, apesar de julgar provada a experiência e destreza do Apelante, para o exercício da condução, a despeito da ausência de habilitação legal para o efeito, mas;
15) No entanto, a sentença proferida pelo Mº Juiz “a quo”, acabou por aderir à posição que a aqui Apelada tinha direito de regresso sobre o Apelante em virtude de ter indemnizado os lesados pelo acidente ocorrido.
16) A ora Apelada fundou o seu direito de regresso no Art.º 19.º, alínea c), do Decreto- Lei 522/85, de 31 de Dezembro de 1985, que foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto de 2007, mas que permanece aplicável ao caso concreto em razão da data da ocorrência do acidente e do disposto no Art.º 12 do Código Civil.
(…)
23) Nesta óptica, independentemente do nexo causal entre a falta de habilitação legal para conduzir, o sinistro ocorrido, a seguradora teria sempre, o direito ao reembolso, da indemnização que tivesse pago, desde que fizesse prova dos pressupostos da responsabilidade civil, do pagamento de indemnização ao lesado e da alegação de falta de habilitação legal do responsável do sinistro!
24) Apesar de conceder que a questão do direito de regresso das seguradoras da responsabilidade automóvel, não é isenta de opiniões divergentes, não pode, com o respeito devido, o Apelante concordar o entendimento perfilhado na douta sentença.
25) Não se concebe que o legislador tenha dispensado a existência de um critério que permita avaliar a situação concreta, o que deixa as seguradoras sem qualquer ónus de prova no que respeita ao nexo de causalidade entre a falta de habilitação legal para conduzir e a ocorrência de um sinistro;
26) Pois, nesta perspectiva, o direito de regresso funcionará de forma automática!
27) Ora, apesar de não ignorar que no âmbito da responsabilidade civil automóvel, o direito de regresso constitui um direito especial, isso não faz com que não basta para isentar a Seguradora de fazer prova nos termos gerais, do nexo de causalidade, no caso concreto, entre a falta de habilitação legal para conduzir e o sinistro ocorrido.
28) Com efeito, Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, instituiu o seguro obrigatório, mas não afastou, nem pretendeu afastar o regime geral da responsabilização, criando presunções, alterando o ónus da prova ou outro circunstancialismo que se desvie do regime geral, até porque, o direito de regresso apenas abrange os prejuízos que a seguradora suportou e tem uma relação causal com o acidente.
29) Logo, apesar da consagração legislativa do direito de regresso, no âmbito da responsabilidade civil emergente de acidente de viação, terão que ser atendidos os
critérios constantes do Art.º 342, n.º 1 do Código Civil (…).
30) Esta solução bem se compreende, uma vez que, o ónus da prova quanto a cada facto incumbe à parte cuja pretensão processual só pode ter êxito mediante a aplicação da norma de que ele é pressuposto.
31) Nestes termos, cada parte deve ter o ónus da prova quanto a todos os pressupostos das normas que lhe são favoráveis, querendo isto dizer que sendo o fundamento do direito de regresso a condução sem habilitação legal, cabe a quem invoca esse direito, neste caso à Apelada, fazer a prova dos pressupostos de que ele depende ou seja, o nexo causal entre a condução sem carta, o sinistro e os consequentes danos.
32) Por isso, na nossa modesta opinião, para a procedência do direito de regresso contra o condutor não habilitado a conduzir, deve alegar-se e fazer-se prova do nexo de causalidade, entre a condução sem carta e o acidente, cujo ónus recai sobre a seguradora, neste caso à Apelada.
(…)
37) Nesta sequência, no nosso modesto entendimento, no caso em apreço, dever-se-á aplicar, a jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, n.º 6/2002, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 28 de Maio de 2002, do qual resulta, resumidamente que, neste circunstancialismo caberia à Apelada a prova do nexo causal entre a falta de habilitação legal para conduzir e a eclosão do acidente.
38) No presente caso a Apelada não alegou e quaisquer factos susceptíveis de configurarem e justificarem a verificação de causalidade adequada entre a falta de habilitação legal para a condução e o acidente ocorrido, pois limitou-se na sua petição inicial, sob o seu Art.º 19.º, alegar que “a inexistência de habilitação para conduzir, indicia a falta de conhecimentos, experiência prática, agilidade e desenvoltura necessários ao tráfego automóvel”.
39) E, se não se alegou quaisquer factos, muito menos logrou provar a existência do nexo de causalidade entre a falta de habilitação legal para conduzir, a ocorrência do acidente e os danos provocados.
40) Do exposto resulta claramente que, não podia a pretensão da ora Apelada ter sido julgada procedente.
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Em resposta a recorrida defende a confirmação do julgado, dizendo, em síntese de alegação que era ao recorrente que cabia fazer prova de que a falta de licença “foi de todo alheia ao desencadear do acidente” e que tal prova não foi feita.
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Factos provados:
A sentença sob recurso inventariou como provados os seguintes factos:
A) No âmbito da sua actividade, A. celebrou com “C…, Lda.” um contrato de seguro do ramo automóvel titulado pela apólice nº… destinado a garantir a responsabilidade civil emergente da condução do veículo de matrícula QP;
B) No dia 19 de Julho de 1999, entre as 16.00 horas e as 17:30 horas, na Estrada …, do concelho e comarca de …, o R. conduzia a viatura, pesado de mercadorias, marca Toyota Dyna 250, com a matrícula QP, no sentido Nascente/ Poente;
C) Ao atingir a zona conhecida como …, junto ao ramal de acesso às instalações fabris da “P…”, o R. pretendeu passar a circular, por este ramal, o qual entronca, pelo lado esquerdo da estrada referida, atento o sentido de marcha da viatura conduzida pelo R.;
D) Pelo que accionou o sinal luminoso indicativo de mudança de direcção à esquerda e…;
E) Virou para a esquerda, ocupando, com a viatura por si tripulada, a hemifaixa d rodagem destinada à circulação no sentido Poente/Nascente;
F) Nessa altura, o motociclo com a matrícula JC… com 885 cm3, marca Triumph, modelo TROPHY 900, conduzido por PJ. circulava em sentido oposto, Poente/Nascente, pela metade direita da faixa de rodagem, atento o mesmo sentido - alínea F) dos F.A.;
G) Ao aperceber-se do veículo QP, PJ… accionou os mecanismos de travagem do motociclo.
H) E deixou marcado no pavimento um rasto de travagem numa extensão de 5,20 metros, com início a cerca de 14,40 metros antes do local do embate;
I) Após o que o motociclo tombou;
J) Seguindo-se, igualmente marcados no pavimento, sulcos de derrapagem no total de 7 metros;
K) PJ… veio a embater na viatura tripulada pelo R., mais precisamente ao nível do ponto de combustível;
L) Ficando, após o embate, com a parte inferior do corpo à frente do rodado duplo traseiro direito;
M) (…)
N) (…)
O) Lesões que lhe vieram a determinar a morte;
P) O R., antes de virar à esquerda, não viu o motociclo conduzido por PJ., só se apercebendo da sua presença após o embate;
(…)
X) O R. não era portador de carta de condução ou outro título que o habitasse a conduzir veículos, com motor na via pública;
Z) O R. sabia conduzir a viatura em causa, em virtude de ter aprendido a conduzir viaturas desta natureza durante o cumprimento do serviço militar, tendo no decurso do serviço obtido licença para o efeito para o ano de 1973;
AA) Desde 1973 que o R. conduz viaturas com características da dos autos, sem que tivesse tido intervenção em acidente de viação, ou que lhe tivessem exigido licença de condução;
BB) Em consequência do referido acidente, a A. foi obrigada, em cumprimento do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa (…) a indemnizar o pai do condutor do motociclo pagando-lhe, em 12 de Dezembro de 2002, a quantia de €25.551,23;
CC) Também no cumprimento do citado acórdão o A. pagou, em 31 de Janeiro de 2003, ao Centro Nacional de Pensões, a quantia de €1.183,36;
DD) Por sua vez, a mãe do sinistrado propôs também uma acção contra a aqui A. pretendendo ser indemnizada pela sua quota parte dos danos resultantes da morte do filho, a qual correu termos no 2.º Juízo deste tribunal com o n.º .../2001;
EE) Acção que terminou por transacção homologada por sentença, em 23/5/2003;
FF) Em cumprimento do acordado, a aqui A. pagou, em 23/06/2003 à mãe do sinistrado, a mesma quantia que havia pago ao pai;
GG) Os pais do sinistrado propuseram, contra a aqui A. uma terceira acção, com o objectivo de serem indemnizados pelos danos no motociclo;
HH) Tal acção terminou, também, por transacção;
II) No cumprimento do acordado neste último processo, a agora A. pagou, em 29 de Maio de 2003, aos pais do sinistrado, a quantia de €3.491,60;
JJ) No exercício da condução referida em Z) o R. demonstrava conhecer os sinais e regras de trânsito;
KK) No exercício da condução referida em Z) o R. demonstrava possuir agilidade e desenvoltura.
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Análise do recurso:
Sopesada a natureza da acção e a tutela por ela visada, a este tribunal apenas vem deferida a decifração da seguinte questão: o direito de regresso da autora relativamente ao condutor que deu causa (posto que concorrente) a um sinistro, quando conduzia um veículo sem ter licença que o habilitasse a fazê-lo, pressupõe ou não que ela demonstre que a falta de habilitação teve intervenção causal no acidente?
Com efeito, tendo aquele direito nascido com o pagamento da quantia fixada, no essencial, em acórdão desta Relação (o valor pago à mãe do falecido foi decalcado do arbitrado a favor do pai e o atinente aos danos materiais não foi posto em causa), é vicioso assinalar a concorrência de culpas porque espelhada no montante arbitrado, ou discutir a dinâmica do acidente já que tal foi feito em sede própria que correu termos contra o réu e que por isso ele não pode mais pôr em crise.
Por conseguinte, importa tão somente decidir se o direito de regresso estabelecido na alínea c) do artigo 19º do DL nº522/85, de 31 de Dezembro é de aplicação automática ou implica a demonstração do nexo causal entre o sinistro e o ilícito ali previsto (falta de habilitação legal do condutor), estendendo-se assim a esta situação a disciplina do Acórdão Uniformizador nº6/2002, como é advogado pelo recorrente.
A disposição em causa estabelece que “satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandono de sinistrado”.
Parecia que uma tal formulação legal consagraria uma opção de política legislativa tendente a não onerar as seguradoras, compelidas legalmente a celebrar o seguro obrigatório, com o pagamento de indemnizações a terceiros, emergentes de sinistros causados por condutores não habilitados, ou que estando, adoptam comportamentos ética e socialmente reprováveis.
Cedo, porém, se viu que tal opção não encontrava guarida na jurisprudência, confrontada com os resultados intoleráveis da aplicação automática da previsão legal às situações concretas submetidas ao escrutínio judiciário.
E mesmo o abandono de sinistrado, no entender da mais significativa jurisprudência, só gera direito de regresso da seguradora, se vier a apurar-se que contribuiu para causar ou agravar o dano, esfumando-se assim a dimensão moral que parecia estar subjacente à formulação legal.
No tocante à condução sob o efeito do álcool, como é vincado no Acórdão Uniformizador 6/2002, tinham-se delineado três correntes jurisprudenciais: uma que pugnava pela aplicação automática da previsão legal, com base no desvalor da conduta do condutor, e as outras que recusavam tal solução, erigindo a “influência do álcool” em mera presunção tantum juris da responsabilidade, cuja elisão uma corrente colocava a cargo da seguradora e outra a cargo do condutor.
Era manifesto que aquela aplicação automática acabava por representar uma sanção civil cuja aplicação dispensava a averiguação da culpa e bem assim do nexo causal entre a alcoolemia e o acidente, tendo lugar mesmo que a seguradora tivesse sido chamada com base no risco.
E a corrente jurisprudencial que advogava que “o direito de regresso só existe se a situação de alcoolemia for causa do acidente”, mas advogava uma presunção sobre a existência de tal nexo causal, deixando a cargo do condutor o ónus de a infirmar, sendo embora a que se apresentava mais justa, conduzia também a resultados indesejáveis, como aliás o acórdão evidencia.
Com efeito, a expressão “tiver agido sob a influência do álcool” não comporta qualquer referência gradativa ou quantitativa, o que determinava que o direito de regresso da seguradora poderia fundar-se numa conduta do condutor eticamente neutra ou desprovida de relevância criminal.
Será legítimo supor que o sentido da solução adoptada pelo Plenário pudesse ser diferente se a noção “influência do álcool” estivesse suficientemente densificada, porventura por remissão para o parâmetro que a lei penal adopta para a tipificação do crime de condução sob o efeito do álcool, convocado para ancorar a presunção do nexo causal conforme era proposto pelo Acórdão desta Relação de 13/7/95, farol de uma das correntes em confronto.
Mas se é inquestionável que a solução que fez vencimento onerou as seguradoras com uma prova praticamente impossível, o que a simples consulta da jurisprudência evidencia (como pode a seguradora provar que o excesso de velocidade foi fruto da euforia induzida pelo álcool ou tanto o embate como a violência que o acompanhou foram determinados pelo alongamento do tempo de reacção associado ao álcool?), não é menos exacto que a favor do entendimento acolhido militavam incontornáveis argumentos retirados do texto legal.
Como se assinala no Acórdão Uniformizador em análise “é necessário que o condutor aja sob a influência do álcool e não apenas que ele conduza etilizado”, sendo por isso legítimo entender que se “o legislador quisesse dispensar a prova do nexo de causalidade diria simplesmente que o direito de regresso existia se o condutor estivesse com álcool”.
Mas esta incursão sobre a solução consagrada no Acórdão Uniformizador teve apenas o propósito de avaliar o seu eventual desajustamento ao caso da condução sem licença, pois aí nenhum elemento literal pode servir de base a controvérsia similar, porquanto a expressão “estiver legalmente habilitado” não comporta leituras diferenciadas ou tergiversações.
Por isso é que significativa corrente jurisprudencial vai no sentido de que “a seguradora, para fazer valer o direito de regresso (…) não tem de provar o nexo de causalidade adequada entre a falta de carta e o acidente” (citámos Ac. R. P. de 6/11/2007).
Diz-se que tal solução se funda “na presunção de impreparação do condutor prevaricante e na maior probabilidade de ter sido a má execução a conduzir, decorrente dessa mesma impreparação, a estar na origem do facto lesivo” (citámos Ac. desta Relação de 13/9/2011), justificação que leva implícita a possibilidade de a presunção poder ser ilidida pelo réu, além de não poder estender-se aos casos em que a seguradora tiver sido chamada a indemnizar com base no risco.
E na verdade, tal como o recorrente assinala, o acidente reportado nos autos, infelizmente, repete-se vezes sem conta, envolvendo condutores extremamente experientes e com registo cadastral sem mácula.
Ou seja, estando adquirido que o réu, há mais de 35 anos, conduzia veículos similares desde que “tirou a especialidade” no cumprimento do serviço militar, não parece razoável levar à conta de impreparação o acidente em que veio a ser interveniente, causado por uma manobra de mudança de direcção que terá executado milhares de vezes sem qualquer percalço.
Ora, assinala-se no Ac. do STJ de 24/10/2006 (Nuno Cameira) é inequívoco que o legislador onerou a seguradora com a demonstração do nexo causal nas hipóteses previstas nas alíneas a), b) e d), pondo-a a cargo do demandado no caso previsto na alínea f), em que estabeleceu uma “presunção irrazoável em muitos casos”, como refere.
Sobra assim a previsão da alínea c) na qual, no dizer do mesmo aresto, o legislador “se limitou a prever factos, comportamentos passivos e criminalmente censurados noutras disposições legais, já antes ética e socialmente reprovados, sem curar de saber se esses comportamentos foram causais do acidente ou factores de agravamento dos danos”.
Mas, com o devido respeito, a verdade é que a afirmação transcrita não é exacta como já se disse, pois a expressão “sob a influência do álcool”, porque despojada de qualquer referência quantitativa, abarca inapelavelmente condutas eticamente neutras ou sem relevância penal.
Aliás e a fazer fé nos especialistas, uma taxa de alcoolemia até 0,2g/l é compatível com a simples ingestão de uma salada!
Por outro lado, a solução do Acórdão Uniformizador foi estendida às situações de abandono de sinistrado que, em nosso entender, seriam, de longe, as que mais justificariam a sanção civil que o direito de regresso a favor da seguradora representa.
Custa na verdade a aceitar uma leitura da norma mais condescendente para o condutor que abandona na estrada o sinistrado a quem acabou de provocar a morte, do que o condutor que se detém com o propósito – mesmo que inconsequente - de lhe prestar auxílio e assumir a sua responsabilidade, mas não possui licença de condução ou a que possui não é válida para o veículo que conduzia, ou não o é em Portugal ou simplesmente, porque está caducada.
Na verdade, é consensual o entendimento de que o direito de regresso da seguradora no caso de abandono de sinistrado apenas abrange os danos derivados do abandono da vítima ou o agravamento decorrente desse abandono, e não a totalidade dos danos originados pelo acidente (citámos Ac do STJ de 1/2/2011, Cons. Paulo Sá),
Assim, “não existe direito de regresso quando o abandono do sinistrado não contribuiu para agravar os danos consequentes do acidente” (Ac. STJ de 30/5/2006, Cons. Fernandes Magalhães).
Temos assim que de todas as situações elencadas nas várias alíneas do artigo 19º do DL nº 522/85, só o condutor não habilitado com a pertinente licença estaria automaticamente incurso no dever de reembolsar a seguradora, independentemente de o acidente radicar em culpa sua ou no risco do próprio veículo.
Qual a justificação para tão desigual tratamento?
Parece-nos assim de acolher o judicioso conselho deixado no último acórdão citado, em que se escreve que “por vezes há que considerar uma determinada norma como afloramento de um princípio geral, devendo, por isso, aplicar-se sempre que surjam situações merecedoras de idêntico tratamento”.
Pensamos ser o caso da alínea c) do artigo 19ºa que respeita a presente análise.
O que é que pode justificar que o atropelamento mortal de um peão tenha efeitos tão díspares conforme o condutor que o cause esteja etilizado, não possua licença de condução válida ou abandone a vítima, quando todas as mencionadas situações constam da mesma previsão legal?
E mesmo que se desconsiderem todas e quaisquer considerações éticas ou de política legislativa, que justificação pode ser dada para sancionar o condutor não habilitado e ser tão condescendente para quem, em acidente em que teve ingerência, prossegue a marcha indiferente às consequências do seu acto?
Pensamos pois que, à míngua do apoio do elemento literal que ancorou a solução do Acórdão Uniformizador, também no caso do condutor não habilitado o direito de regresso estará dependente da demonstração, pelo demandado, de que o sinistro não foi causado por tal falta.
Concede-se que na expressão “não estiver legalmente habilitado” cabe uma multitude de situações, abarcando tanto o principiante mais canhestro como um qualquer exímio condutor de outro país, cujo título de condução não tenha validade na nossa ordem jurídica.
Também por isso a impreparação, como já atrás assinalámos, não pode ser convocada para justificar a solução legal em análise, sendo então legítimo estender-lhe o tratamento dispensado às demais situações contempladas.
Entender de outra forma, “conduziria a que, satisfeita a indemnização, o segurado estivesse sujeito à sanção (pagamento da indemnização), independentemente do respectivo grau de culpa, (…), ou até do facto de o acidente ter ocorrido por mero risco”- citámos Ac. do STJ de 28/1/2003 (Cons. Garcia Marques).
Na verdade, diz este acórdão, “a seguradora só responde perante o lesado porque se trata de um seguro obrigatório. Mas porque se trata de um risco não abrangido pelo contrato de seguro, nas suas relações internas, é justo que ele venha a ser suportado pelo condutor não habilitado e não pela seguradora. Só que esse risco acrescido só se verifica quando o acidente foi causado, exclusivamente ou em parte, pela não habilitação do condutor e não nos casos em que a falta de habilitação não concorreu para a respectiva produção”.
E fazendo-se eco do Ac. do STJ de 14/1/97, justificava ainda dizendo:
“Se o direito de regresso da seguradora não existe em relação a todo e qualquer condutor que provoque por culpa sua o acidente, e porque o direito de regresso se situa dentro do campo das sanções civis reparadoras, a lógica jurídica e o equilíbrio do sistema jurídico importam a adopção da conclusão segundo a qual não deve aquele direito ser estendido a consequências que não têm a ver com as circunstâncias especiais que o motivam.
Isto quer dizer que o direito de regresso apenas deverá abranger os prejuízos que a seguradora suportou e que têm nexo causal com aquelas circunstâncias (…)”.
Bem se sabe que existem outras perspectivas sobre a questão em análise que todavia, como já se disse, não dão justificação cabal para o tratamento diferenciado que propõem para a situação concreta e muito menos cuidam de esclarecer por que há-de existir direito de regresso quando a responsabilidade emerge do risco.
Posto isto é altura de cotejar o que acaba de ser dito com os factos dados por assentes.
Foi levada à base instrutória factualidade tendente a demonstrar a aptidão do réu, sugerindo assim que se equacionou como plausível a possibilidade de ser demonstrada tanto a inaptidão (ponto 3) como a idoneidade técnica do réu no domínio da condução.
A discussão estaria em grande parte prejudicada, porquanto o que importava avaliar era o nexo causal entre a falta de habilitação e a concreta manobra que provocou o sinistro.
Na verdade, estava já adquirido que o réu sabia conduzir a viatura interveniente (Z), que desde 1973 conduzia viaturas com as mesmas características da dos autos, sem que tivesse tido intervenção em acidente de viação (AA e BB).
E estava também assente que accionou o sinal luminoso e virou para a esquerda, sem que antes se tivesse apercebido da aproximação do motociclo conduzido pelo P J. (alíneas D, E e P).
Torna-se assim evidente que o acidente de que emergiu a responsabilidade foi provocado, em concorrência com a velocidade excessiva da vítima, por uma manobra imprevidente do réu, motivada por desatenção.
Mas assim sendo, qual então o contributo causal que em tal conduta teve a falta de habilitação do réu?
Rigorosamente nenhum, como é intuitivo!
Em suma, a apelação merece integral provimento.
***
Decisão:
Atento o exposto, julga-se a apelação procedente e, consequentemente, revoga-se a sentença e absolve-se o réu do pedido.
Custas pela autora, em ambas as instâncias.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2012

Gouveia Barros
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho