Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
127/09.3TCFUN.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
EXCESSO DE VELOCIDADE
PEÃO
SEGURANÇA SOCIAL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
PERDA DE CAPACIDADE AQUISITIVA
ESPERANÇA MÉDIA DE VIDA
JUROS DE MORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROCEDÊNCIA
Sumário: I – Se um veículo em marcha descontrolada e em excesso de velocidade vai embater num peão, pode-se presumir que o descontrolo foi provocado pelo excesso de velocidade e que a culpa do acidente é do condutor do veículo.
II – O facto de um peão transitar pela faixa de rodagem, mesmo que consubstancie um ilícito, não é causa relevante do acidente, “se, segundo as regras da experiência, dada a sua natureza e atentas as circunstâncias conhecidas do agente, ou susceptíveis de serem conhecidas por uma pessoa normal”, esse ilícito “não se apresenta de molde a agravar o risco de verificação do dano”.
III – Se a segurança social não foi chamada a deduzir pedido de reembolso dos subsídios de doença, a indemnização em que a seguradora deve ser condenada a pagar à vítima não pode ser descontada daqueles valores.
IV – Justifica-se a atribuição de 20.000€ de indemnização por danos não patrimoniais a uma vítima que, entre o mais, ficou com 14,5% de incapacidade permanente geral e que passou um ano com incapacidade profissional total e outro ano com incapacidade geral parcial, e que vai continuar a precisar de tratamentos e medicamentos.
V – “O montante indemnizatório deve começar por ser procurado com recurso a processos objectivos (através de fórmulas matemáticas, cálculos financeiros, aplicação de tabelas), por forma a que seja possível determinar qual o capital necessário, produtor do rendimento, que, entregue de uma só vez, e diluído no tempo de vida […] do lesado, proporcione à vítima o mesmo rendimento que antes auferiria se não tivesse ocorrido a lesão ou a compense pelo maior grau de esforço desenvolvido”, sendo depois aumentado se houver para tal fundamento equitativo.
VI - O número de anos que importa ter em conta não é o número de anos que falta atingir para a idade da reforma, mas sim para a idade correspondente à esperança média de vida da vítima.
VII – A fixação de jurisprudência do acórdão do STJ, 4/2002, de 09/05/2002, é de aplicar apenas, como dele decorre, quando a indemnização pecuniária foi objecto de cálculo actualizado.
(da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

“A” propôs a presente acção, contra a Companhia de Seguros “B”, SA, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe 500€ a título de despesas de deslocação ao hospital, à polícia, à seguradora e à segurança Social, 800€ a título de despesas médicas; quantia não inferior a 150.000€ a titulo de danos patrimoniais emergentes do acidente e lucros cessantes; e quantia não inferior a 20.000€ a título de indemnização por danos não patrimoniais; tudo acrescido de juros vencidos e vincendos à taxa legal em vigor, até integral pagamento, a contar do dia dos factos; e a condenação da ré a pagar-lhe, em liquidação de sentença, todas as quantias que esta venha a despender, em consequência do acidente.
Alega para o efeito que: quando estava a circular a pé junto à berma da estrada, foi vítima de atropelamento por um veículo segurado na ré, cuja condutora seguia em excesso de velocidade, desatenta à circulação dos automóveis e dos peões (mais à frente também fala em marcha descontrolada da viatura); em consequência, sofreu diversos danos morais e patrimoniais, sendo certo ainda que terá de se submeter a tratamentos futuros.
Contestou a ré, alegando o seguinte: a responsabilidade do atropelamento deverá ser imputada à autora, pois, de forma repentina e totalmente inesperada, sem atender à circulação rodoviária, atravessou a correr a faixa de rodagem em que circulava o veículo segurado, quando existia uma passadeira a cerca de 31 m do local; conclui pela improcedência da acção.
Depois do julgamento, foi proferida sentença condenando a ré a pagar à autora 64.700€ (= 500€ por despesas + 20.000€ por danos morais + 4.200€ por perda de rendimentos + 40.000€ por perda de capacidade de ganho), acrescida de juros de mora contados desde a data da citação até integral pagamento; e os valores que esta despendeu e irá despender com medicamentos e tratamentos médicos das lesões e sequelas sofridas, a liquidar em execução de sentença.
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A ré interpôs recurso das decisões - para que seja deverá ser alterada a resposta dada aos quesitos 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 42, 44, 45, 49 e 50, e revogada integralmente a sentença, absolvendo-se a ré do pedido -, terminando as suas alegações com conclusões, em que, para além de pôr em causa aquelas respostas, ainda discute a culpa da condutora do veículo segurado, ou pelo menos a sua culpa exclusiva, os montantes indemnizatórios; a dedução de subsídios pagos pela segurança social; a data da contagem dos juros.
A autora contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.
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Questões que importa resolver: se deve ser alterada alguma das respostas aos quesitos colocadas em causa pela ré; se a culpa do acidente é só da segurada da ré ou se é só da autora ou se é de ambas e em que proporção; se os montantes indemnizatórios devem ser diminuídos tendo em conta o resultado das anteriores questões, mas também por serem excessivos; se deve haver algum desconto em consequência do pagamento, pela segurança social, de subsídios de doença; a questão da data desde a qual se vencem juros.
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Deram-se como provados os seguintes factos (os sob alíneas vêm dos factos assentes e os sob números vêm das resposta aos quesitos):
A) No dia 21/11/2005, pelas 9h, no caminho do P..., sentido norte-sul, freguesia de ..., concelho do ..., ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo automóvel conduzido por “C”, com a matrícula n° 00-00-00 e a autora.
B) A responsabilidade civil pelos danos causados pelo ligeiro encontrava-se, em 21/11/2005, transferida para a ré, através de contrato de seguro obrigatório de responsabilidade e civil automóvel titulado pela apólice n° ....
C) O ligeiro era, à data do acidente, propriedade de “D”, residente na rua ..., n° ..., 2° dtº e encontrava-se em bom estado de conservação.
D) O local do acidente é caracterizado como uma recta inclinada, pouco acentuada, com perfeita visibilidade, com 6,40 m de largura.
E) No momento do acidente, o piso encontrava-se seco e em bom estado.
G) A autora sofreu um severo traumatismo craniano.
H) Na sequência do acidente a autora ficou internada no Hospital Central do ..., serviço de cirurgia 2, durante sete dias, do dia 22/11/2005 até dia 28/11/2005, data em que teve alta hospitalar.
I) O condutor do ligeiro e o segurado participaram o acidente à ré.
1. No dia, hora e caminho referidos em A), a autora circulava a pé junto à berma da estrada.
2. A autora fazia o percurso de descida, junto à berma, em fila indiana, seguindo a sua irmã “E”.
3. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar circulava, no mesmo sentido, o ligeiro que, ao chegar ao local referido em 1, embateu brutal e violentamente com a frente direita do veículo na autora.
4. A autora e a sua acompanhante encontravam-se a circular junto à berma e a menos de 50 cm da extremidade da via.
5. Em consequência do atropelamento pelo ligeiro, a autora foi projectada para cerca de 5 m de distância do local onde se encontrava aquando do embate.
6. Devido à velocidade em que seguia, à imperícia da sua condução, e desatenção, a condutora do ligeiro não conseguiu imobilizar o veículo no espaço livre à sua frente, não conseguindo evitar os peões que circulavam de forma visível e ordeira na berma da estrada.
7. A via existente permite a passagem de veículos nos dois sentidos, e ainda a circulação usual de peões na sua berma, sendo que antes do acidente diversos veículos haviam passado pela autora e demais peões em circulação.
8. O ligeiro circulava a uma velocidade superior a 50 km/h.
9. Em consequência da marcha descontrolada, o ligeiro atravessou a via para o lado oposto, tendo ficado imobilizado a cerca de 4,40 m do local de embate.
10. No local das habitações referidas em 12 não existem passeios, passadeiras ou qualquer tipo de protecção.
11. O local onde ocorreu o acidente é visível a mais de 100 m por todos os condutores, quer circulem num sentido quer noutro.
12. No local onde o ligeiro embateu na autora existem diversas habitações com saída directa para a estrada.
13. As habitações em causa dão para a estrada, para a qual têm saída e entrada, e são visíveis por quem nela circula, de uma ponta a outra, a uma distância de pelo menos 100 m.
20. Após o embate, [provocado pelo ligeiro], a sinistrada ficou imobilizada no solo tendo sido socorrida e transportada para o Hospital Central do ..., Serviço Regional de Saúde, EPE [a parte entre parêntesis rectos vai ser retirada, como se explicará à frente]
22. A autora sofreu contusões temporais, bifrontais em termos esféricas e hemorragia subaracnoideia pós-traumática.
23. Passando à situação de baixa clínica e incapacidade absoluta para trabalho.
24. Foi prorrogada a baixa médica da autora.
26. A autora sofreu um estado de amnésia profunda nos primeiros tempos, após o acidente.
27 …de que resultou um estado de enorme angústia e sofrimento.
28. A autora ficou ainda afectada psíquica e psicologicamente.
29. Apesar do tempo decorrido, a autora continua a necessitar de tratamento e acompanhamento neurológico desde a data do acidente.
30. A autora padeceu e padece ainda de prolongados períodos de desorientação, tendo ficado afectada para o resto da sua vida.
31. As sequelas sofridas pela autora, em consequência do acidente, são compatíveis com o exercício das actividades profissionais prévias e posteriores ao acidente em apreço (isto é, actividades agrícolas e domésticas), bem como as actividades de formação (escolares) que actualmente desempenha, sendo no entanto responsáveis por esforços acrescidos no desempenho das mesmas.
32. Durante todo este tempo, a autora foi sujeita a diversos actos, exames, e tratamentos médicos e medicamentosos.
33. Em consequência do acidente e das suas sequelas, a autora teve de suportar diversas despesas, nomeadamente com o pagamento de consultas, aquisição de medicamentos, exames médicos.
35. A autora era uma mulher saudável, activa e trabalhadora, que sempre contribuiu para o sustento da família.
36. Até à data do acidente, a autora sempre trabalhou, exercendo a profissão de agricultora e de trabalhadora doméstica à jorna.
37. A autora auferia a quantia média mensal de 350€.
38. Desde o acidente, a autora mantém e sustenta o seu agregado familiar, graças ao apoio financeiro de familiares próximos.
39. Em resultado do acidente a autora tornou-se uma pessoa infeliz.
40. Devido ao acidente, a autora sofreu diversos hematomas, escoriações.
41. Sofreu sequelas encefálicas, com síndrome pós-traumática, com cefaleias frequentes, sensação de peso na cabeça, instabilidade no equilíbrio, dificuldade de concentração e de associação de ideias, fatigabilidade intelectual, alterações amnésicas, modificações de humor e da maneira de ser habitual, e perturbações do sono.
42. A autora continua presentemente na situação de baixa por incapacidade temporária para o trabalho.
43. A autora depende diariamente de medicação, nomeadamente potentes anti-epilépticos, anticonvulsionantes, anti-depressivos, ansiolíticos, neuropáticos, neurolépticos, analgésicos e anti-inflamatórios.
44. A autora não se encontra curada das sequelas do acidente, e não tem ainda possibilidade de contabilizar os custos e despesas de agora para o futuro. [a parte entre parêntesis rectos vai ser retirada, como se explicará à frente]
45. Em consequência do acidente, a autora teve de se deslocar da sua residência ao Hospital, à Seguradora, à Polícia, e à Segurança Social, por várias vezes, com o que despendeu, até à data, a quantia não inferior de 500€. [a parte entre parêntesis rectos vai ser retirada, como se explicará à frente]
46. Em consequência do acidente a autora ficou com uma incapacidade temporária geral total durante 15 dias, sofreu uma incapacidade temporária geral parcial de 715 dias e sofreu uma incapacidade temporária profissional total de 365 dias.
47. Em consequência do acidente a autora ficou com uma incapacidade permanente geral de 14,5 pontos.
49. A autora terá que suportar o custo com os tratamentos futuros às sequelas do acidente. [este ponto vai ser retirado, como se explicará à frente]
50. A autora, nesta data, encontra-se ainda sob tratamento, com baixa.
51. A 03/11/2008, a autora deu entrada no Hospital Central do ... por apendicite aguda fleimonosa com abcesso localizado, tendo sido submetida a apendicectomia por via laparoscópica sem complicações, tendo alta a 11/11/2008, sendo que durante esse período a autora esteve impossibilitada de trabalhar por motivos alheios ao acidente de viação.
53. A cerca de 31,20 m do local do embate existia e existe uma passadeira para peões devidamente sinalizada e demarcada.
Ao abrigo dos arts. 713/2 e 659/3, ambos do CPC, acrescenta-se ainda o seguinte facto, provado pelo assento de nascimento de fls. 89, facto que tinha sido alegado conclusivamente pela autora no artigo 49 da petição inicial.
J) A autora nasceu no dia 26/08/1962.
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Do recurso quanto aos factos:
A ré impugna a resposta dada ao quesito 2º.
O quesito 2º tinha o seguinte teor: a autora fazia o percurso de descida, junto à berma, em fila indiana, seguindo a sua irmã “E”.
O quesito teve resposta de provado.
A ré considera que a resposta devia ser: a autora fazia o percurso de descida, junto à berma, em fila indiana, transitando à frente, seguindo-a a sua irmã “E”.
E isto na medida em que as testemunhas “C” e “E” referiram que a autora seguia à frente e não ao contrário.
O tribunal recorrido não justifica em particular esta resposta.
Decidindo:
Ver-se-á, nas impugnações seguintes, que a ré utiliza sistematicamente o depoimento da testemunha “F” para considerar que a autora seguia a par da sua irmã e não à frente dela, pelo que não faz sentido que ela queira, aqui, que se dê como provado que a autora seguia em fila indiana, atrás ou à frente.
De qualquer maneira, como a resposta foi impugnada e para a sua apreciação foram ouvidas as 4 testemunhas que se pronunciaram quanto ao acidente, a questão põe-se agora entre seguir a versão da condutora e da irmã da autora, que dizem que esta seguia à frente da irmã, ou seguir a versão da testemunha “F”, que diz que ela ia a par da irmã, o que implicará não se aceitar a referência à fila indiana.
Antes de mais esclareça-se que só existem três testemunhas que sabem directamente do acidente: a condutora, a irmã da autora e a testemunha “F” (como diz a ré, e não “F”, como diz a autora – a testemunha esclarece que assim é no seu depoimento…). A outra única testemunha que se pronuncia sobre o acidente é o agente da PSP que procedeu à participação do mesmo e elaborou o esboço, mas logo esclareceu que chegou ao local já depois da autora ter sido retirada do local, pelo que nada sabe directamente dele.
Quanto àquelas três testemunhas, uma delas é a condutora e o seu depoimento não merece qualquer credibilidade como se explicará mais à frente.
Ficam assim dois depoimentos que nesta parte são coincidentes: o da testemunha “F” e o da irmã da autora.
Ora, ver-se-á mais à frente que o depoimento da testemunha “F” foi, com razão, a base da formação da convicção do tribunal, por, diz-se agora, se revelar imparcial, suficientemente pormenorizado, coerente, plausível e congruente com as regras da experiência, como se irá vendo. E o depoimento da irmã da autora é, naturalmente, tendente a desvalorizar toda a eventual contribuição de ambas para o acidente, o que no caso implica que ela queira dizer que caminhavam em fila indiana e não a par, ao lado uma da outra, na estrada.
Por último, se a autora caminhasse à frente da irmã, a 10 ou 20 cm de distância da mesma, como esta conta, dificilmente um ligeiro, vindo de trás, aos ziguezagues, conseguiria embater na autora sem embater também na irmã.
Por tudo isto, prefere-se a versão da testemunha “F”, de que a autora caminhava a par da irmã e não em fila indiana, e, assim sendo, tem que se retirar a referência à fila indiana.
Esclareça-se que não se acrescenta à resposta que a autora seguia ao lado da irmã, por tal não ter sido alegado por ninguém e não ser uma simples restrição ou explicação à resposta ao quesito. A autora dizia que seguia em fila indiana, a ré dizia que a autora tinha aparecido a atravessar a estrada a correr. Não se provou nem uma coisa nem outra e o tribunal não pode, por sua iniciativa, acrescentar um facto a colocar a autora ao lado da irmã, embora se possa esclarecer que ela caminhava junto da irmã, indo esta junto à berma.
Falta esclarecer o seguinte: como decorre do depoimento da três testemunhas referidas (irmã, condutora e “F”), as duas irmãs caminhavam, na ocasião do embate, já na parte da estrada que está junto à parede de prédios. Ora, como se vê de forma inequívoca nas fotografias de fls. 244 a 249, excepto nas duas de baixo de fls. 247, e também no depoimento do agente da PSP, esses prédios ocupam parte da faixa de rodagem. Pelo que entre os prédios não existe qualquer superfície que possa ser considerada berma.
Assim, tem de ser retirada a referência à berma. Retirada que tem de ser feita quer na resposta a este quesito, quer na resposta aos demais que lhe façam referência, no caso, os quesitos 1 e 7.
Falta agora precisar a resposta quanto ao local por onde a autora circulava, o que tem de ser feito por referência à irmã, pois que apenas se sabe que aquela caminhava junto desta. Ora, as três testemunhas referidas esclarecem que a irmã da autora circulava encostada à parede dos prédios (no início do primeiro prédio vê-se, nas fotografias, um aqueduto, também referido pelo agente da PSP, mas esse aqueduto não se prolonga por toda a fachada desse prédio…).
Pelo que os quesitos 1 e 2 devem merecer uma resposta conjunta com o seguinte teor:
1 e 2: provado que no dia, hora e caminho referidos em A), a autora fazia, a pé, o percurso de descida, junto da sua irmã que seguia junto à parede do prédio que ladeia a faixa de rodagem.
A alteração à resposta dos quesitos 1 e 7, não impugnadas, impõe-se para não entrar em contradição com a resposta ao quesito 2 (aqueles referindo uma berma e este passando a não a referir) e porque do processo constam todos os elementos de prova que serviram à decisão sobre esses pontos da matéria de facto, e é feita ao abrigo da 1ª alternativa da al. a) do nº. 1 do art. 712 do CPC.
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A ré impugna a resposta dada ao quesito 3º.
O quesito 3º tinha o seguinte teor (na parte que interessa): naquelas circunstâncias de tempo e lugar circulava o ligeiro que ao chegar ao local referido em 1 embateu brutal e violentamente com a frente direita na autora?
O quesito teve a resposta de provado.
A ré considera que a resposta devia ser alterada para “Naquelas circunstâncias de tempo e lugar circulava o ligeiro que ao chegar ao prédio com o nº 39 de polícia embateu com a frente direita na autora, que se encontrava afastada da berma direita de rodagem”.
Isto atendendo a que: ao contrário do referido na resposta ao quesito, que remete para a resposta ao quesito 1º, o embate não ocorreu junto à berma, mas sim mais para o meio da faixa de rodagem, conforme depoimento da testemunha “C” que referiu que, no momento do embate, a autora tinha-se deslocado para a esquerda, mais para o centro da faixa de rodagem, sendo que uma mulher de estatura média, conforme a autora, mede cerca de 40 a 50 cm de largura; a D. “F” afirmou que no momento do embate a autora e a sua irmã transitavam “a par”, uma ao lado da outra, o que comprova que a autora não se encontrava junto à berma, mas mais para meio da faixa de rodagem; às regras da experiência comum (cfr. depoimento de “C”, desde o minuto 01:59 ao minuto 03:24, e desde o minuto 05:20 ao minuto 06:22 da gravação com início a 11:11:19 e termo a 11:19:15, e o depoimento de “F”, desde o minuto 11:28 ao minuto 12:00, da gravação com início a 16:30:15 e termo a 16:49:22, supra transcritos).
O tribunal recorrido não justifica especificadamente esta resposta.
Decidindo:
O que está em causa, nesta impugnação, é saber se o embate se dá em frente ao prédio com o nº 39 e se o embate se dá quando a autora se encontrava afastada da berma.
Sem se esquecer que já se alterou a resposta aos quesitos 1 e 2 e que desta alteração já resulta que o embate se dá frente aos prédios que ladeiam a faixa de rodagem e não frente à berma – berma que não existe – bem como que a autora seguia junto da irmã e portanto necessariamente mais para dentro da estrada, resta apenas dizer que não se sabe se o embate se dá precisamente frente ao prédio com o nº. 39, sendo que, tendo o prédio vários metros de fachada, a referência seria demasiado genérica, e que a formulação de “afastada da berma”, dada pela ré, também não seria suficientemente precisa.
Já quanto à ideia de que a autora se teria deslocado para a esquerda, que a ré pretendia sugerir com esta resposta, é de afastar totalmente, porque se baseia unicamente no depoimento da condutora do veículo, que não merece qualquer credibilidade, pois que, quanto a isso, ela diz ou admite três coisas diferentes: a autora estava a atravessar lentamente (a ré na contestação fala em atravessar a correr...) a estrada; a autora poderia estar a desviar-se um pouco para a esquerda; a autora, quando o ligeiro estava a dois metros de si, desviou-se para o centro ao ouvir um grito de cuidado, cuidado (a própria ré transcreve estas três versões da condutora) – confronte-se linha 7 de fls. 296, linhas 5 a 7 de fls. 296, linhas 9 a 15 de fls. 296 e linhas 31/32 de fls. 377 (aqui já na transcrição da autora).
Por tudo isto é de indeferir esta impugnação e de, apenas para adequar a resposta à alteração efectuada na resposta aos quesitos 1 e 2, aditar a referência ao quesito 2 na resposta ao quesito 3.
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A ré impugna a resposta dada ao quesito 4º.
O quesito 4 tinha o seguinte teor: A autora e a sua irmã encontra-vam-se a circular junto à berma e a menos de 50 cm da extremidade da via?
O quesito teve a resposta de provado.
A ré entende que deverá dar-se como não provado na medida em que no momento do embate a autora tinha-se deslocado para a esquerda, mais para o centro da faixa de rodagem, conforme depoimento da testemunha “C”, sendo que uma mulher de estatura média, conforme a autora, mede cerca de 40 a 50 cm de largura, sendo que a D. “F” afirmou que no momento do embate a autora e a sua irmã transitavam “a par”, uma ao lado da outra, o que comprova que a autora não se encontrava junto à berma, a menos de 50 cm da extremidade da via (cfr. depoimento de “C”, desde o minuto 01:59 ao minuto 03:24, e desde o minuto 05:20 ao minuto 06:22 da gravação com início a 11:11:19 e termo a 11:19:15, e o depoimento de “F”, desde o minuto 11:28 ao minuto 12:00, da gravação com início a 16:30:15 e termo a 16:49:22, supra transcritos).
A fundamentação do tribunal recorrido não responde directamente a estas impugnações.
Decidindo:
A resposta ao quesito terá de ser alterada, para não provado, como quer a ré, não pelas razões por ela referidas, mas sim porque já se viu que a autora e a irmã não se encontravam a circular junto à berma (que não existe) e porque não tem sentido dizer, em relação a duas pessoas que circulavam a par uma da outra, que ambas circulavam a menos de 50 cm da extremidade da via.
Por outro lado, como na resposta aos quesitos 1 e 2 já se colocou a irmã da autora a circular encostada à parede dos prédios, é evidente que esta o fazia a menos de 50 cm da extremidade da via, já que ‘encostada’ quer dizer aqui ‘sem distância”. Mas já não se pode dizer o mesmo da autora, que apenas se sabe que circulava junto da irmã, pelo que não se pode dizer que ela não ocupasse nenhum espaço para além dos 50 cm da extremidade da via.
Mas quanto à argumentação da ré, volte-se a dizer que não tem qualquer credibilidade a versão da condutora de que no momento do embate a autora se tinha deslocado para a esquerda, mais para o centro da faixa de rodagem, por aquilo que já se disse acima na apreciação da impugnação da resposta dada ao quesito 3.
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A ré impugna a resposta dada ao quesito 5º:
O quesito 5º tinha o seguinte teor: em consequência do atropela-mento brutal pelo ligeiro, a autora foi projectada violentamente a vários metros de distância, pela frente do ligeiro, no sentido Oeste – Este, ficando imobilizada na faixa de rodagem frente ao nº 39.
O quesito teve a seguinte resposta: Em consequência do atropelamento pelo ligeiro, a autora foi projectada para cerca de 5 m de distância do local onde se encontrava aquando do embate.
A ré entende que deverá ser alterada a resposta dada ao quesito 5º, considerando-se provado que “Em consequência do atropelamento pelo ligeiro, a autora foi projectada, no sentido oeste-este, para cerca de 5 m de distância do local onde se encontrava aquando do embate”.
Diz a ré: com efeito, ainda que tenha sido alegado pela autora, e constasse da redacção inicial do referido quesito, que a projecção ocorreu no sentido oeste-este (sentido este constante do croquis junto como doc. 2 à contestação, a que corresponde uma projecção da direita para a esquerda, atento à óptica da condutora do veículo atropelante) o referido facto não foi considerado provado, ainda que fosse importante para a boa decisão da causa, e resultasse dos depoimentos das testemunhas “C”, “F”, “E”, e constasse do croquis junto à contestação como doc. 2, e que permite igualmente concluir de que lado da faixa de rodagem se encontrava inicialmente a transitar a autora.
Decidindo:
A decisão recorrida não diz porque é que eliminou a referência. Mas é evidente a razão porque o fez e fê-lo bem. É que não há prova de que a projecção tenha sido no sentido oeste-leste e os meios de prova invocados pela ré indiciam que a projecção foi no sentido noroeste => sudeste. E não se diga que então a resposta devia ter dito isto, pois que se o fizesse se poderia entender que estava a acrescentar factos não alegados.
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A ré impugna a resposta dada ao quesito 6º:
O quesito 6º tinha o seguinte teor: devido à velocidade em que seguia, à imperícia da sua condução, e desatenção, o condutor do ligeiro não conseguiu imobilizar o veículo no espaço livre à sua frente, não conseguindo evitar os peões que circulavam de forma visível e ordeira na berma da estrada.
O quesito teve a resposta de provado.
A ré entende que o quesito deverá ser considerado integralmente não provado, na medida em que nenhuma testemunha referiu que o veículo circulava a velocidade superior a 50 km/h, inexistem rastos de travagem, sendo certo que qualquer condutor que visse um peão que se encontrasse a circular junto ao limite direito da faixa de rodagem, atento ao seu sentido de marcha, e de um momento para o outro se deslocasse para a esquerda, para o meio da faixa de rodagem, teria desviado o seu veículo para a esquerda de modo a evitar o embate, sendo manifesto que dada a largura total da faixa de rodagem – 6,40 m – o veículo, com o desvio para a esquerda, conseguia chegar facilmente ao limite esquerdo da mesma, mesmo que circulasse à velocidade de 40 km/h, ou a velocidade inferior.
A decisão recorrido fundamentou assim a sua convicção quanto à forma como se deu o acidente:
“[…] o tribunal fundamentou a sua convicção essencialmente no testemunho de “F”, a qual presenciou o ocorrido, encontrando-se numa posição privilegiada para visionar toda a sequência do acidente, sendo o seu depoimento desinteressado e convincente.
Na verdade a testemunha circulava a pé no lado oposto àquele em que circulava a autora e o veículo automóvel.
Ora, está testemunha “viu o carro vir desgovernado, aos ziguezagues, durante cerca de 500 metros”, embatendo na autora, que circulava junto à berma, no sentido descendente, sendo que a viatura, após o embate, atravessou a estrada, na diagonal, até parar no lado oposto, junto à testemunha, a qual circulava a pé no passeio, no sentido ascendente, chegando a tocar-lhe de raspão na perna.
Segundo esta testemunha o carro já vinha desgovernado muito antes de embater na autora, projectando o corpo desta em cerca de 5 m, o qual ficou próximo da frente do carro.
Esta testemunha afirmou que “quando vi o carro desgovernado ainda pensei que não batesse nela, pensei que a condutora ia conseguir segurar o carro”.
Desta forma, o tribunal ficou convencido de que não houve qualquer manobra súbita da condutora, provocada pela entrada da autora na estrada, uma vez que o carro já vinha desgovernado durante 500 metros, numa recta, em sentido descendente, ficando evidente que havia boa visibilidade.
Esta testemunha presencial acrescentou que ainda gritou quando viu o carro a vir desgovernado antes de embater na autora, a qual circulava a pé, de costas viradas para a viatura.
Referiu ainda que a condutora do carro, quando saiu da viatura, lhe disse que estava com uma depressão e que o veículo era da mãe.
Este testemunho, no que respeita ao posicionamento final do veículo e à localização do corpo após o embate, coincide com o croquis constante da participação de fls. 46, confirmado em audiência pelo agente da PSP que o elaborou.
Daquele croquis retira-se que existe um passadeira que antecede em 31,20m o local de embate e que a viatura se atravessou até ao lado oposto, àquele em que circulava, percorrendo cerca de 4,40m até se imobilizar junto à berma onde a testemunha “F” referiu encontrar-se.
A mancha de sangue existente junto à frente lateral direita da viatura também cria a convicção de que o corpo da vítima foi projectado em mais de cinco metros, tendo em conta o comprimento da viatura e a distância por esta percorrida, desde o local em que se deu o embate.
O relato da testemunha “F”, conjugado com a distância percorrida pela viatura, bem como a distância para a qual foi projectado o corpo da vitima, criou a convicção de que a viatura circulava a mais de 50 km/h.
Na verdade, se a viatura circulasse a 39 km/h, como referiu a condutora, esta não percorreria 4,40 até se imobilizar, após o embate, junto ao passeio no sentido oposto àquele em que circulava.
Com efeito, o testemunho de “C” não se mostrou credível, sendo notória sua preocupação em afastar qualquer tipo de responsabilidade na ocorrência do acidente. Assim se compreende que tenha afirmado que circulava a 39 km/h, por forma a não indiciar qualquer tipo de excesso de velocidade, convencida de que o limite legal no local seria de 40 km/h.
Na verdade, este testemunho revelou-se comprometido, não abalando de forma nenhuma a convicção criada pela testemunha “F”.
Por sua vez a testemunha “E”, irmã da autora, circulando a pé quando a autora foi colhida pela viatura automóvel, apenas pode confirmar que a sua irmã seguia à sua frente, rente à margem da estrada, num local onde as casas tem saída directa para a estrada, inexistindo qualquer passeio, referindo que só a viu a ser projectada para o meio da via pela referida viatura.”
Decidindo:
O quesito é todo ele conclusivo e por isso não podia ser dado como provado.
Decompondo o quesito, veja-se:
- Devido à velocidade em que seguia a condutora do ligeiro não conseguiu imobilizá-lo... nem evitar os peões.
Trata-se de uma conclusão. O que devia constar – e teria que ser alegado para o efeito - era algum facto que demonstrasse que a autora tinha tentado imobilizar o ligeiro ou desviá-lo dos peões. Entretanto note-se que na fundamentação que antecede, o tribunal não invoca qualquer tentativa de imobilização e a ré lembra, bem, que não existem rastos de travagem… (embora diga que a condutora travou…).
- Devido à imperícia da sua condução a condutora do ligeiro não conseguiu imobilizá-lo…nem evitar os peões.
Trata-se de novo de uma conclusão. O que devia constar era algum facto que demonstrasse que a autora tinha tentado, sem conseguir, parar o veículo ou desviá-lo dos peões.
- Devido à desatenção, a condutora do ligeiro não conseguiu imobilizar o veículo… nem evitar os peões.
Trata-se de nova conclusão, sem qualquer base, pois que se diz que a autora estava desatenta sem se invocar qualquer facto que permita essa conclusão. Para além disso, é contraditória pois que não se dizendo que a condutora deixou de estar desatenta, não se pode dizer que ela tentou imobilizar ou desviar o veículo sem o conseguir, pois que essa tentativa pressupõe ter atentado, em algum momento, nos peões e na necessidade de uma manobra para os evitar.
Para além de tudo isto, é ainda contraditório com o que estava e está dado como provado, dizer que os peões circulavam na berma da estrada. É que foi dado como provado que eles circulavam na faixa de rodagem e não na berma – berma que, aliás, no local onde a autora foi atingida, não existia, como já se viu.
Assim, a resposta deve ser alterada para não provado, não se discutindo, para já, porque não tem cabimento aqui, a velocidade a que a condutora seguia.
Poderia discutir-se, aqui, se não deveria dar-se como provado, respondendo restritivamente ao quesito, que o embate se deveu à marcha descontrolada do ligeiro, mas isso já resulta do que consta do quesito 9, pelo que se considera desnecessária esta restrição, relativamente à qual se poderia dizer que extravasaria do que se perguntava no quesito.
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A ré impugna a resposta dada ao quesito 8º.
O quesito 8º tinha o seguinte teor: O ligeiro circulava a velocidade manifestamente superior a 50 km/h.
O quesito teve a seguinte resposta: O ligeiro circulava a uma velocidade superior a 50 km/h.
A ré entende que o quesito deverá ser considerado integralmente não provado, na medida em que nenhuma testemunha referiu que o veículo circulava a velocidade superior a 50 km/h, inexistem rastos de travagem, sendo certo que qualquer condutor que via um peão que se encontrava a circular junto ao limite direito da faixa de rodagem, atento ao seu sentido de marcha, e de um momento para o outro se deslocasse para a esquerda, para o meio da faixa de rodagem, teria desviado o seu veículo para a esquerda de modo a evitar o embate, sendo manifesto que dada a largura total da faixa de rodagem – 6,40 metros – o veículo, com o desvio para a esquerda, conseguia chegar facilmente ao limite esquerdo da mesma, mesmo que circulasse à velocidade de 40km/h, ou a velocidade inferior.
Decidindo:
É certo que ninguém falou na velocidade do veículo, mas a ré esquece o principal da argumentação da decisão recorrida (deixada consignada acima), que tem a ver com a distância para a qual foi projectado o corpo da vitima, a mais de 5 m. Ora, é aceitável o raciocínio da decisão recorrida de que um ligeiro, que circulasse a menos de 50 km/h, não projectaria um corpo para mais de 5 m de distância, mesmo que já não se aceite o resto do raciocínio, isto é, que “se a viatura circulasse a 39 km/h, como referiu a condutora, esta não percorreria 4,40 m até se imobilizar, após o embate, junto ao passeio no sentido oposto àquele em que circulava”, nem que mais não seja porque o ligeiro estava numa descida e 4,40 m (ou um pouco mais se contarmos com o comprimento do veículo) não é uma distância impossível de percorrer nessas circunstâncias, tanto mais que um embate numa pessoa não representa um impedimento ao avanço do ligeiro.
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A ré impugna a resposta dada ao quesito 9º.
O quesito 9º tinha o seguinte teor: em consequência da marcha descontrolada, o ligeiro atravessou a via para o lado oposto, tendo ficado imobilizado a cerca de 4,80 m do local do embate.
A resposta precisou a distância. São 4,40 m e não 4,80.
A ré entende que se deverá considerar meramente provado que “O ligeiro atravessou a via para o lado oposto, tendo ficado imobilizado a cerca de 4,40 m do local de embate”, na medida em que não se pode concluir que a referida manobra se deveu à marcha descontrolada do veículo, em face do referido no parágrafo anterior, bem como ao depoimento de “C” desde o minuto 16:00 ao minuto 16:50, na gravação com início a 11:28:48 e termo a 11:52:58, supra transcrito.
O referido no parágrafo anterior, pela ré, foi o seguinte, na parte que pode ser aqui aproveitada: qualquer condutor que visse um peão que se encontre a circular junto ao limite direito da faixa de rodagem, atento ao seu sentido de marcha, e de um momento para o outro se desloque para a esquerda, para o meio da faixa de rodagem, desviaria o veículo para a esquerda de modo a evitar o embate.
Decidindo:
Quanto ao desvio da autora, já foi acima dito que não há a mais pequena prova de ter ocorrido.
Quanto à credibilidade do depoimento da condutora, já foi dito acima que é nenhuma, pelas três versões que contou ou admitiu, acrescentando-se aqui que a forma como se referiu à velocidade a que seguia – 39 km/h porque ia abaixo do limite que pensava ser 40 km/h (confronte-se as linhas 1 a 3 de fls. 376 e as linhas 12 a 16 de fls. 377, transcrição da autora) – seria suficiente, só por si, para se ver que o seu depoimento não passa de uma tentativa de desculpabilização.
Para além disso, sublinhe-se a total falta de lógica na argumentação da condutora do ligeiro: quando estava a dois metros da autora viu esta a desviar-se para a esquerda, travou e desviou mas não conseguiu evitar o embate. É que mesmo que a condutora circulasse a 39 km/h, no espaço de tempo que a condutora levaria a reagir, que é, como se sabe (regra da experiência comum das coisas que aqui se invoca), no mínimo de 0,75 segundos, já teria percorrido 8,125 m (se 39000 m são percorridos em 3600 segundos, em 0,75 segundos seriam percorridos 8,125m) Ou seja, a versão dos factos da condutora é completamente absurda, inventada por alguém que não tem experiência séria de condução.
Assim sendo, é inteiramente correcta a desvalorização do depoimento desta condutora, feita pela decisão recorrida, transcrita acima, pelo que não há razão para o considerar.
Mas, pela positiva, note-se que, como se viu acima, a sentença fundamenta no depoimento da testemunha “F” a sua convicção quanto ao descontrolo do ligeiro, e fá-lo com toda a razão (excepto na parte em que diz que a testemunha diz que gritou antes do embate – é certo que a própria condutora reconhece a existência desse grito, tal como a irmã da autora, mas a testemunha”F” não confirmou que o tenha dado antes do embate, pelo que nessa parte o resumo do depoimento está errado), e contra isso a ré nada disse. Temos por isso uma resposta devidamente fundamentada, com fundamentação que a ré não combate directamente, limitando-se a invocar depoimento e argumentos em sentido contrário, improcedentes como já se viu, pelo que não se justifica qualquer alteração na resposta ao quesito.
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A ré impugna a resposta dada ao quesito 10º.
O quesito 10º tinha o seguinte teor: no local das habitações referidas em 12 não existem passeios, passadeiras ou qualquer tipo de protecção.
Teve a resposta de provado.
A ré entende que deverá considerar-se provado que “No local das habitações referidas em 12 não existem passeios junto ao limite direito da faixa de rodagem, no sentido Norte/Sul, passadeiras, ou qualquer tipo de protecção, existindo um passeio do lado oposto da faixa de rodagem, no sentido Sul/Norte”.
E isto na medida em que do lado oposto da faixa de rodagem existia um passeio, pelo qual a autora e irmã poderiam ter acedido através da passadeira existente a 31,20 m do local do embate, conforme croquis junto à contestação como doc. 2 e fotografias juntas na audiência de julgamento de 06 de Maio de 2011.
Decidindo:
Como de facto o quesito não se limitava a um dos limites laterais da faixa de rodagem, a restrição sugerida pela ré impõe-se – pois que do outro lado da faixa de rodagem existe um passeio, como resulta do esboço feito pelo agente da PSP e das fotografias juntas depois – mas já não o acrescento que ela pretende, pois que se traduziria num aditamento de factos, não alegados: a ré não invocou, na contestação, a existência de um passeio do outro lado da estrada.
Assim a resposta deve ser: No local das habitações referidas em 12, não existem, junto ao limite direito da faixa de rodagem, considerando o sentido norte => sul, passeios, passadeiras, ou qualquer tipo de protecção.
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A ré impugna a resposta dada ao quesito 15º.
Este quesito tinha o seguinte teor: A condutora do ligeiro seguia na referida faixa direita de rodagem com atenção à estrada.
Teve resposta de não provado.
A ré entende que deve ter resposta de provado, face ao depoimento da testemunha “C” que referiu que circulava a velocidade inferior a 40km/h; o curto espaço percorrido desde a tentativa de desvio; o embate e o local onde ficou o veículo imobilizado (cerca de 5 m); o espaço que percorreu a autora desde o embate à imobilização (cerca de 5 m); sendo que o ligeiro tinha cerca de 3 m de comprimento, sendo que com duas ou três rotações completas dos rodados o veículo percorre cerca de 5 m, mesmo a baixa velocidade. Dizendo-o ainda de outro modo: considera que se provou que a condutora seguia a velocidade inferior a 40km/h, e que seguia atenta à estrada, motivo pelo qual ao aperceber-se da deslocação da autora para a esquerda, desviou para a esquerda o dito veículo, de forma a evitar o embate.
Decidindo:
É evidente, face ao que já foi dito relativamente à credibilidade do depoimento da condutora do ligeiro, que a resposta não deve ser alterada com base no que por ela foi dito quanto à velocidade, desvio, atenção, etc. E nada mais foi alegado que tenha independência disto. Sendo que nenhuma outra testemunha disse que a condutora fosse com atenção.
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A ré impugna a resposta dada ao quesito 16º.
Este quesito tinha o seguinte teor: O ligeiro circulava a uma velocidade inferior a 40Km/h; não provado.
A ré entende que deve ter resposta de provado. A fundamentação da impugnação é a mesma daquela que foi transcrita a propósito da impugnação da resposta ao quesito 15.
Decidindo:
Vale aqui o que foi dito quanto à impugnação da resposta ao quesito 15, bem como o que já foi dito quanto à velocidade do ligeiro aquando da apreciação da impugnação da resposta ao quesito 8º.
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A ré impugna a resposta dada ao quesito 17º.
Este quesito tinha o seguinte teor: de repente, de forma abrupta, repentina e totalmente inesperada, a autora, quando se encontrava próxima da porta nº 39, sem atender à circulação rodoviária, designadamente a aproximação do ligeiro, atravessou a correr a faixa de rodagem da direita para a esquerda, atento o sentido de marcha do ligeiro, fora da passadeira.
O quesito teve a resposta de não provado.
A ré entende que deverá considerar-se provado que: “De repente, de forma abrupta, repentina e totalmente inesperada, a autora, quando se encontrava próxima da porta nº 39, sem atender à circulação rodoviária, designadamente a aproximação do ligeiro, deslocou-se para a esquerda, para o eixo da faixa de rodagem, tendo atravessado a correr a faixa de rodagem da direita para a esquerda, atento o sentido de marcha do ligeiro, fora da passadeira.”
E isto atendendo ao depoimento da testemunha “C” que referiu que circulava no sentido descendente, tendo a autora, que circulava junto à berma direita da faixa de rodagem, se deslocado para a esquerda, para o meio da faixa de rodagem, motivo pelo qual a condutora desviou o seu veículo para a esquerda, sendo que, nesse momento, a autora, após ter ouvido “cuidado”, começou a correr para o lado da faixa de rodagem, ao invés de para o lado da parede, o que fez com que o veículo viesse atropelá--la no meio da faixa de rodagem.” (cfr. depoimento de “C”, desde o minuto 01:59 ao minuto 03:24, desde o minuto 03:55 ao minuto 04:25, desde o minuto 05:20 ao minuto 06:22, da gravação com início a 11:11:19 e termo a 11:19:15, bem como desde o minuto 01:40 ao minuto 03:00, e desde o minuto 3:30 ao minuto 03:50 da gravação com início a 11:28:48 e termo a 11:52:58, supra transcritos). Sendo certo que a condutora “C” confirmou a dita deslocação da autora da berma para a esquerda, para o meio da faixa de rodagem, tendo a testemunha D. “F”, que subia no passeio existente do lado oposto da via, referido que no momento do embate a autora e a irmã transitavam “a par”, uma ao lado da outra, tendo apenas uma sido embatida pelo veículo (pelo que, em relação à estrada, atento a óptica de quem subisse ao Caminho do P... a autora encontrava-se à direita da irmã, sendo que na óptica de quem descesse a referida artéria a autora encontrava-se à esquerda da irmã, resultando em qualquer caso que a autora se encontrava mais para meio da faixa de rodagem) e resulta das regras da experiência comum que se a autora circulasse junto à berma, caso fosse embatida pela direita do veículo segurado, teria sido projectada para a frente direita ou simplesmente para a frente, e não para quase junto da berma localizada do lado oposto (invoca ainda o croquis junto à contestação como doc. 2, e o depoimento de “E”, com início a 10:27:55 e termo a 10:53:55).
Decidindo:
- quanto ao depoimento da condutora, já foi afastado (mas anote-se que a condutora não diz que a autora, após ter ouvido cuidado, começou a correr para o lado da faixa de rodagem, como a ré aqui alega, para a “colocar” a correr e a ser atropelada a meio da faixa de rodagem…; o que a condutora diz foi que a autora acelerou o passo, aliás como a ré transcreveu a fls. 297).
- quanto ao que foi dito pela testemunha “F”, isto é, que a autora transitava a par da irmã, já foi tomado em conta e não tem relevo agora, em que não se discute onde ela estava, mas o que teria feito.
- quanto às regras da experiência comum, diga-se que ficando dado como provado que a autora seguia junto da irmã, a qual seguia junto à parede limite da faixa de rodagem, poderia perfeitamente ser projectada para a frente esquerda – como já acima se disse estar indiciado - de modo a ir cair onde caiu, para mais tendo sido embatida por um ligeiro que seguia descontrolado, como o disse, sem deixar margem para dúvidas, a testemunha “F”.
- do esboço da participação não é possível retirar qualquer desvio da autora para a esquerda, muito menos um desvio apressado e a correr, ou que ela estivesse no eixo da via no momento do embate,
- quanto ao que foi dito pela irmã da autora, trata-se de um reenvio, em bloco, para o depoimento dela, sem se dizer o que de particular se pretende dele retirar; de qualquer modo, o depoimento da irmã já foi considerado e nenhum relevo tem para este quesito.
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A ré impugna a resposta dada ao quesito 18º.
Este quesito tinha o seguinte teor: face ao supra referido atravessa-mento repentino na faixa de rodagem, a condutora do ligeiro ainda travou e desviou o seu veículo para a hemi-faixa de rodagem contrária de sentido Sul/Norte, com vista a tentar evitar o embate na autora, sendo que não circulava qualquer veículo na referida hemi-faixa de sentido oposto.
Teve a resposta de não provado.
A ré entende que deverá considerar-se provado que “Face à supra referida deslocação para a esquerda da autora, e atravessamento da via, a condutora do ligeiro ainda travou e desviou o seu veículo para a hemi-faixa de rodagem contrária de sentido sul/norte, com vista a tentar evitar o embate na autora, sendo que não circulava qualquer veículo na referida hemi-faixa de sentido oposto”.
E isto com base no que foi transcrito a propósito da impugnação da resposta ao quesito 17.
Decidindo:
Vale aqui o que foi dito aquando da apreciação da impugnação da resposta ao quesito 17, sublinhando-se que não há a mais pequena prova de qualquer travagem da condutora com desvio voluntário para a esquerdo, como já foi dito e tinha sido explicado na decisão recorrida.
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A ré impugna a resposta dada ao quesito 19º.
Este quesito tinha o seguinte teor: apesar de ter travado e desviado o seu veículo, a condutora do ligeiro não conseguiu evitar o atropelamento, vindo a embater com a frente direita do ligeiro na autora quando se encontravam no eixo da faixa de rodagem.
Teve a resposta de não provado.
A ré entende que deverá considerar-se provado.
E isto com base no que foi transcrito a propósito da impugnação da resposta ao quesito 17.
Decidindo:
Vale aqui o que foi dito aquando da apreciação da impugnação da resposta ao quesito 17, sublinhando-se aqui que não há a mais pequena prova de a autora se encontrar no eixo da via quando foi embatida pelo ligeiro.
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A ré impugna a resposta dada ao quesito 20º.
O quesito 20 tinha o seguinte teor: Após o embate, provocado pelo ligeiro, a sinistrada ficou imobilizada no solo tendo sido socorrida e transportada para o Hospital Central do ..., Serviço Regional de Saúde, EPE, e teve resposta de provado.
A ré quer que se retire do quesito a frase “provocado pelo ligeiro”. Alega para o efeito, no essencial, que “o questionário não pode incluir um quesito que a priori contenha a resolução da questão concreta do direito que é objecto da acção, limitando-lhe ou traçando-lhe o destino. Formulado ele, a respectiva resposta não pode deixar de ser tida por não escrita – art. 646º, nº 3, do CPC, aplicado por analogia.” (ac. RL, de 28/05/1987, CJ, 1987, 3º-99, citado por Abílio Neto em CPC Anotado, Ediforum Edições Jurídicas, L.da, 16ª edi, pág. 819.
Decidindo:
A ré tem razão. Trata-se daquilo que nestes autos se tem de decidir nesta acção pelo que a resposta não pode ser dada a propósito de um quesito.
Assim, a frase em causa deve ser retirada.
*
A ré impugna a resposta de provado aos quesitos 42 e 50.
A resposta foi a seguinte:
“42: A autora continua presentemente na situação de baixa por incapacidade temporária para o trabalho”.
50: A autora, nesta data, encontra-se ainda sob tratamento, com baixa”
Os quesitos 42 e 50 tinham o seguinte teor:
42: …apesar do tratamento continuado, a autora encontra-se presentemente na situação de baixa com incapacidade absoluta para o trabalho, em virtude das lesões causadas pelo acidente de viação.
50. A autora, nesta data, encontra-se ainda sob tratamento, com baixa e incapacidade absoluta para o trabalho habitual, em virtude das sequelas do acidente.
A ré entende que não se provou que a autora se encontra de baixa, ou caso assim não se entenda, que não se provou que a autora se encontra de baixa em consequência do acidente, e que, por isso, as respostas devem ser de “não provado”.
E isso porque, diz a ré:
“[…] apesar de as testemunhas terem referido que a autora se encontrava de baixa, o certo é que não se encontra junto aos autos qualquer documento comprovativo de que efectivamente a autora se encontrava de baixa, em consequência do acidente.
Com efeito, consta do documento de folhas 219 que o último certificado de incapacidade temporária para o trabalho por estado de doença foi emitido a 15/09/2010, tendo-lhe sido prorrogada a baixa por trinta dias, sendo que se encontra assinalado que o motivo da baixa deveu-se a “doença natural”.
Acresce que, ainda que tivesse ficado provado que a autora ainda se encontra de baixa, considera a ré que apenas deverão constar dos factos provados não os estados em que se encontra a autora, mas sim aqueles estados e situações de são consequência do acidente, por se tratar este o objecto do processo.
Ora, o acidente ocorreu a 21/11/2005, encontrando-se junto à petição inicial diversos relatórios médicos, sendo que apenas no relatório médico junto à petição inicial como doc. 5, datado de 08/07/2008, é referido que “em avaliações posteriores em Junho de 2008 a doente mantém o mesmo estado neurológico, tendo iniciado queixas de lombociatalgias bilaterais. Realizou TAC que revela uma discreta protusão L4-L5 sem outras alterações. Foi aconselhada a ter cuidados em termos de evitar pesos e posturas incorrectas e estimulada a ter actividades físicas como a marcha e hidoginástica.”
Pelo que, apenas em 2008, cerca de dois anos após o acidente a autora começou a ter problemas lombares e foi aconselhada a evitar pesos.
Resultaria do depoimento da testemunha Srª “G” (aos minutos 23:50 até 25:48, do seu depoimento com início a 15:58:14 e termo a 16:24:02 da sessão de julgamento realizada a 11/03/2011, que o trabalho da mãe consiste basicamente em levantar pesos, do qual se encontra impossibilitada, designadamente por dores musculares, lombares, de pernas.
Ora, conforme [resulta da] resposta aos quesitos 31º e 47º a incapacidade e sequelas advenientes do sinistro não impossibilitam que a autora trabalhe, exigindo, no entanto, esforços acrescidos.
Resulta do relatório pericial elaborado após a instauração da acção, junto aos autos a 10/08/2010, que a autora não se encontra de baixa em consequência do acidente.
Com efeito, consta desse relatório que a autora encontra-se afectada por uma IPG de 14,5, a qual exige esforços acrescidos, mas é compatível com o desempenho da sua actividade profissional, tendo a autora ficado incapaz para o trabalho pelo período de 365 após a data do acidente, ou seja, até 21 de Novembro de 2006.
Consta da pág.3 do dito relatório que a autora referiu “Fenómenos dolorosos: desde 2007, refere iniciado quadro de dor na região dorso-lombar, que têm vindo a agravar; desde há cerca de um ano para cá refere dores no ombro direito e mão homolateral, dores que refere terem constituído um dos motivos pelo qual abandonou as actividades agrícolas que exercia”, problemas estes sem nexo causal com o sinistro.
Ainda que não tivesse sido alegado na petição inicial nem constasse do objecto da perícia aferir se a autora possui dores lombares e musculares por força do acidente, o certo é que a Srª Perita no relatório pericial junto aos autos a 10/08/2010 teve a preocupação de fazer constar e fundamentar nas páginas 4 e 5 do relatório que inexiste nexo de causalidade entre as queixas referidas pela autora relativas a sinais e sintomas relacionados com o membro superior direito e coluna vertebral e o sinistro, pelo que é manifesto que a autora queixou-se à Srª Perita que padecia de problemas relacionados com o membro superior direito, com a coluna vertebral, designadamente a coluna lombo-sagrada, considerando que estes eram consequência do acidente, não tendo a Srª Perita considerado existir nexo causal.
Sendo certo que consta do relatório junto à petição inicial como doc. 5 que a Autora foi aconselhada a ter cuidados em termos de evitar pesos e posturas incorrectas, pelo que não ficou provado que a sua eventual situação de baixa actual seja consequência do acidente, e não de outras causas.”
Decidindo, diga-se que a impugnação não tem razão de ser:
Basta a comparação entre os quesitos em causa e a resposta que obtiveram para se ver que o tribunal não considerou provado que a autora se encontre presentemente na situação de baixa com incapacidade absoluta para o trabalho, em virtude das lesões causadas pelo acidente de viação.
Por outro lado, basta também a comparação com a resposta positiva a outros quesitos, para se ver que dos factos provados já resulta o mesmo.
Por isso mesmo, a fundamentação da resposta aos quesitos, nesta parte, consta do seguinte:
“Relativamente à baixa médica o tribunal teve em consideração a documentação junta a fls. 159 a 219.
Quanto às lesões sofridas pela autora e à incapacidade, cumpre realçar o relatório de perícia de avaliação de dano corporal junto a fls. 129 a 132, bem como os esclarecimentos juntos a fls. 225 a 227.
Segundo aquele relatório médico a autora sofreu lesões meningo-encefálicas, das quais não resultou, em concreto, perigo para a vida.
O mesmo relatório refere que as dores na região dorso-lombar iniciaram-se em 2007, não sendo possível estabelecer nexo causal entre as mesmas e o acidente, sendo a própria autora que refere que aquelas dores constituíram um dos motivos pelos quais abandonou as actividades agrícolas que antes desempenhava.
O mesmo relatório refere que as sequelas sofridas são compatíveis com o exercício das actividades profissionais prévias e posteriores ao acidente em apreço (isto é, actividades agrícolas e domésticas), bem como as actividades de formação (escolares) que actualmente desempenha, sendo no entanto responsáveis por esforços acrescidos no desempenho das mesmas, pelo que não se pode concluir que a autora sofre actualmente de uma incapacidade absoluta para o trabalho, derivada das sequelas do acidente.
De realçar ainda os testemunhos de “H”, para quem a autora trabalhava antes do acidente, bem como os testemunhos de duas das filhas e da irmã da autora, as quais confirmaram o estado em que ficou a autora após o acidente e as dificuldades que tem sentido desde então.”
Assim, o tribunal nunca deu como provado o que a ré sugere que está provado na resposta aos quesitos.
Por outro lado, aquilo que o tribunal deu como provado está realmente provado e só um equívoco da ré é que lhe permite defender o contrário.
Note-se: tendo a acção sido intentada em 04/03/2009, e não havendo articulados supervenientes, as afirmações quesitadas e depois provadas (“presentemente”, “nesta data”) reportam-se necessariamente a 04/03/2009 e não à data da resposta aos quesitos (Maio de 2011)…
Ora, como os quesitos se reportam a factos e o tribunal tinha que lhes responder, tinha-o que fazer tendo em conta aquilo que apurou. E como resulta da argumentação da ré, ela admite que na data a que se reporta a resposta, a situação de facto era como ficou a constar da resposta.
Por fim, é a nível do direito que depois a questão terá reflexo: se a baixa actual e a incapacidade [absoluta e temporária] para o trabalho não forem devidos ao acidente, não poderão ser incluídos na indemnização… como aliás, note-se desde já, não foram..
Note-se entretanto que embora a ré só ponha em causa a questão da baixa, queria que a resposta aos dois quesitos em causa fosse de não provado, apesar de o quesito 50 se referir a outra questão, sobre a qual ela não diz nada, qual seja: “A autora, nesta data, encontra-se ainda sob tratamento”. Ora, esta parte também está provada e resulta aliás da resposta a vários outros quesitos (por exemplo: 29 e 43).
*
A ré impugna a resposta de provado ao quesito 44 que foi a seguinte: “A autora não se encontra curada das sequelas do acidente, e não tem ainda possibilidade de contabilizar os custos e despesas de agora para o futuro.”
Considera a ré que a 2ª parte, a partir do “e”, constitui matéria conclusiva ou de direito, pelo que deverá ser considerada não escrita, nos termos do disposto no art. 646, nº 4 do CPC.
Decidindo:
A parte da resposta em causa é realmente conclusão, que terá de ser extraída, pelo tribunal, para aplicação do disposto no nº. 2 do art. 564 do CC, se for o caso, dos factos provados, ou melhor, da ausência delas.
Pelo que essa parte da resposta se deve ter por não escrita.
Entretanto, anote-se que a ré não tira qualquer consequências desta impugnação, a nível das decisões de direito, aceitando a condenação em liquidação…
*
A ré impugna a resposta de provado ao quesito 45 que foi a seguinte: Em consequência do acidente, a autora teve de se deslocar da sua residência ao Hospital, à Seguradora, à Polícia, e à Segurança Social, por várias vezes, com o que despendeu, até à data, a quantia não inferior de 500€.
A ré entende que a última parte, a partir de “com o que” deve ser retirada.
E isto porque: não foram juntos aos autos quaisquer documentos comprovativos das deslocações alegadamente realizadas, nem os seus custos. E porque: resulta do relatório pericial junto a 10/08/2010 que a autora queixa-se de dores no membro superior direito e na coluna vertebral, e considera-os consequência do acidente, o que não se comprovou, e encontram-se juntos aos autos certificados de incapacidade temporária para o trabalho por estado de doença natural, entregues na Segurança Social, pelo que não se pode concluir que todas as ditas deslocações e todos as eventuais despesas foram consequência do acidente.
Decidindo:
A ré tem razão: por um lado, a fundamentação da decisão recorrida não fundamenta esta resposta; por outro, não há qualquer prova documental do valor das deslocações; por fim, as testemunhas da autora quando falam nos custos das deslocações partem da versão desta de que todas as deslocações que fez foram por causa das sequelas do acidente, o que, como já se viu, não foi o caso.
Por isso, aquela parte da resposta deve ser retirada.
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A ré impugna a resposta de provado ao quesito 49 que foi a seguinte: “A autora terá que suportar o custo com os tratamentos futuros às sequelas do acidente.”
Considera a ré que esta matéria constitui matéria conclusiva ou de direito, pelo que deverá ser considerada não escrita, nos termos do disposto no art. 646, nº4 do CPC.
Decidindo:
É realmente conclusão, que teria de ser extraída, se tivesse interesse para a decisão, dos factos provados. Pelo que a resposta se deve ter por não escrita.
E diz-se “se tivesse interesse” porque também aqui a ré não tira qualquer consequências desta impugnação, a nível das decisões de direito, aceitando a condenação em liquidação…
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As três modificações nas respostas aos quesitos 20, 44 e 45 e a eliminação da resposta ao quesito 49, que decorrem do que antecede, já foram assinaladas nos factos provados, como deles constam. As modificações e eliminações nas circunstâncias relativas ao acidente, implicam uma alteração mais profunda pelo que se entende conveniente, para melhor compreensão, que fique aqui a versão corrigida dos factos:
1 e 2. No dia, hora e caminho referidos, a autora fazia, a pé, o percurso de descida, junto da sua irmã que seguia junto à parede dos prédios que ladeiam a faixa de rodagem.
3. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar circulava o ligeiro que ao chegar ao local referido em 1 e 2 embateu brutal e violentamente com a frente direita na autora.
5. Em consequência do atropelamento pelo ligeiro, a autora foi projectada para cerca de 5 m de distância do local onde se encontrava aquando do embate.
7. A via existente permite a passagem de veículos nos dois sentidos, e ainda a circulação usual de peões, sendo que antes do acidente diversos veículos haviam passado pela autora e demais peões em circulação.
8. O ligeiro circulava a uma velocidade superior a 50 km/h.
9. Em consequência da marcha descontrolada, o ligeiro atravessou a via para o lado oposto, tendo ficado imobilizado a cerca de 4,40 m do local de embate.
10. No local das habitações referidas em 12, não existem, junto ao limite direito da faixa de rodagem, considerando o sentido norte => sul, passeios, passadeiras, ou qualquer tipo de protecção.
11. O local onde ocorreu o acidente é visível a mais de 100 m por todos os condutores, quer circulem num sentido quer noutro.
12. No local onde o ligeiro embateu na autora existem diversas habitações com saída directa para a estrada.
13. As habitações em causa dão para a estrada, para a qual têm saída e entrada, e são visíveis por quem nela circula, de uma ponta a outra, a uma distância de pelo menos 100 m.
53. A cerca de 31,20 m do local do embate existia e existe uma passadeira para peões devidamente sinalizada e demarcada.
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Do recurso quanto à matéria de direito
Da culpa do acidente
Nas conclusões 37 e 38 a ré faz a sua descrição do acidente, ou seja a descrição que entende que resulta da prova produzida na audiência de julgamento:
“O ligeiro seguia pela direita da faixa de rodagem, sendo que a dado momento, e quando aquele veículo se encontrava próximo, a autora, que circulava de costas para o trânsito automóvel, deslocou-se para a esquerda, para o meio da faixa de rodagem, afastando-se da berma. Devido à referida deslocação, a condutora desviou o veículo para a esquerda, de forma a evitar o embate, o que não conseguiu devido à dita deslocação da autora para a esquerda e o atravessamento da via.”
Como não foi isto o que no essencial se provou (só a parte sublinhada está dada como provada), estas conclusões ficam afastadas.
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Diz a ré na conclusão 39:
“Do lado direito da faixa de rodagem, no sentido norte/sul, local onde a autora transitava, inexistiam passeios, nem guias a separar a berma do resto da faixa de rodagem …. (cfr. desde o minuto 09:46 ao minuto 10:20 do depoimento do Sr. Agente Policial “I”, gravado na sessão de julgamento de 06-05-2011, com início a 12:26:04 e termo a 12:52:36, e fotografias juntas à audiência de 06-05-2011).”
Nesta conclusão a ré está-se a referir àquilo que consta do facto dado como provado sob o ponto 10, embora acrescente a referência a uma berma, que já se provou inexistente. Nesta conclusão a ré faz ainda referência a elementos de prova, sem interesse, pois que já se está a discutir o direito e não os factos e porque, por outro lado, o facto que ela invoca está provado e por isso não interessa a referência àqueles meios de prova (de qualquer modo acrescente-se que nenhum deles refere a existência de qualquer berma…).
Já se verá o relevo desta conclusão, ou melhor, do facto sob o ponto 10...
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Na conclusão 40 diz a ré:
“No entanto, existia um passeio do lado oposto da faixa de rodagem, sendo que a autora e irmã quando desciam o Caminho do P..., podiam (e deviam) ter atravessado a passadeira existente a 31,20 metros do local, com vista a aceder ao dito passeio.”
A ré está a utilizar um facto não provado: ou seja, a existência de um passeio do lado oposto. A questão já foi acima decidida expressamente. Ora, na aplicação do direito aos factos o tribunal só se pode servir dos factos provados. Como a ré – e o tribunal – não se pode servir daquele facto, fica afastado o dever que a ré dele retira e por isso o valor desta conclusão.
De qualquer modo, já se verá o relevo da questão do passeio do lado oposto…
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Diz a ré na conclusão 41: a autora ao transitar pela direita da faixa de rodagem, de costas voltadas para o trânsito automóvel, numa zona onde inexistiam passeios, encontrando-se o único passeio existente do lado oposto da faixa de rodagem, e ao não circular junto da berma, tendo-se deslocado para a esquerda, para o meio da faixa de rodagem onde transitavam veículos, violou o disposto nos art.s 3º, nº2, 99º, nºs 1 e 2, al.s a) e b), 100º, nºs1 e 2, 101º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada, bem como o dever geral de prudência, o que foi causa do sinistro e respectivos danos, devendo a autora ser considerada a única responsável pelo sinistro, e a Recorrente ser absolvida.
A conclusão da ré baseia-se numa série de factos não provados (sublinhados). Sem a prova deles, a ré já não pode concluir pela violação, que imputava à autora, daquelas normas ou do dever de prudência que refere.
A circulação da autora pela faixa de rodagem será, de qualquer modo, analisada abaixo…
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Na conclusão 42 a ré diz que: sendo certo que no momento do embate, a autora não circulava o mais próximo possível do limite direito da faixa de rodagem, pelo que caso pudesse transitar no referido local, o que não se concede, sempre teria violado o disposto no art. 100º, nº3 do Código da Estrada, o que foi causa do embate.
Já abaixo aceitar-se-á que a autora cometeu a infracção em causa, mas ver-se-á que esta infracção não foi causa do embate, ao contrário do que a ré refere.
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Na conclusão 43 diz a ré: caso se entenda que a condutora do veículo segurado é responsável pelo sinistro, deveria considerar-se ter existido repartição de responsabilidades na produção e extensão dos danos, na proporção de 10% para a segurada da ré e de 90% para a autora, e o montante indemnizatório ser inferior ao arbitrado, em conformidade com o disposto no art. 570º, nº1 do CC.
Já de seguida ver-se-á que não é caso de se repartirem responsabilidades.
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Posto isto:
Tendo agora em conta apenas os factos realmente provados o acidente descreve-se assim: um ligeiro, que ia a mais de 50 km/h e em marcha descontrolada, vai embater, por trás, numa pessoa que circulava a pé, no mesmo sentido, junto da irmã que seguia junto à parede dos prédios que ladeiam a faixa de rodagem (não existiam bermas nem passeios nesse lado naquele local). Essa pessoa era visível a mais de 100 m. A faixa de rodagem tinha 6,40 m de largura. Antes do acidente diversos veículos haviam passado pela autora e demais peões em circulação. (factos sob A), D, 1, 2, 3, 7, 9, 10, 11 e 12).
O descontrolo do veículo, pode ter a ver com a eventual falta de atenção ou de perícia da condutora, caso em que o acidente lhe seria imputável a título de culpa (art. 483º/1 do CC), ou com problemas do veículo ou decorrentes da circulação do veículo, caso em que a responsabilidade do acidente seria imputável à proprietária do mesmo (art. 503º/1 do CC).
Em qualquer dos casos, a ré teria que responder pelos danos causados, devido à transferência, para si, da eventual responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo.
Como, para além do descontrolo, está provado que o ligeiro seguia em excesso de velocidade (art. 27/1 do CE), o que quer dizer em violação de uma norma de protecção de interesse alheios, violação que faz presumir a culpa do seu agente, pode-se presumir que o descontrolo teve origem na culpa da condutora do ligeiro e por isso imputar-lhe a responsabilidade ao abrigo do art. 483º/1, 2ª alternativa, do CC. Como diz o Prof. Jorge Sinde Monteiro “Verificada a violação da disposição de protecção, deve presumir-se a existência de culpa, solução para que se vêm inclinando os nossos tribunais” (Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Almedina, Colecção Teses, 1989, pág. 612), ou antes: “... Está pois bem acompanhado o nosso STJ (ac. de 21/2/1961, BMJ.104º, 417/421), ao falar de '...negligência presumida, qualificação que se traduz por inobservância de leis ou regulamentos, o que per se dispensa a prova em concreto da falta de diligência”, pág. 267 (o au­tor cita também os acs do STJ de 14/10/1982, BMJ.320/422; de 6/1/1987, BMJ 363º, págs. 488/491, com inclusão de outra ju­rispru­dência, e de 21 e 28/1/88, TJ, nº. 40, Abril de 1988, respectivamen­te págs. 22 e 23). E mais à frente: “Verificada a violação da disposição de pro­tec­ção [aquelas que contêm delitos de perigo abs­tracto (v.g. limites de veloci­da­de) - pág. 610], deve presu­mir-se a existência de culpa, solu­ção para que se vêm inclinando os nossos tribunais” - pág. 612; no mesmo sentido, por último, veja-se Adelaide Menezes Leitão, Responsabilidade dos administradores para com a sociedade e os credores sociais por violação de normas de protecção. Direito e justiça - Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, vol. I, Lisboa, Universidade católica editora, Outubro – 2011, pág. 42.
Note-se que no caso não se está a dizer que o excesso de velocidade foi a causa directa do acidente. Está-se sim a dizer que o excesso de violação, em infracção às regras de trânsito, faz presumir a culpa da condutora do veículo no descontrolo da marcha deste, tendo sido esta marcha descontrolada que veio a provocar, comprovadamente, o acidente dos autos.
Da parte da autora, também se pode dizer que ela caminhava em contravenção às regras estradais, pois que o fazia pela faixa de rodagem (embora junto à irmã, que por sua vez caminhava junto à extremidade da faixa de rodagem). E não ficaram provados factos que permitissem concluir pela licitude da sua caminhada pela faixa de rodagem. O que a autora tentou fazer, ao alegar o que era quesitado em 10, mas só o conseguiu fazer em parte, não logrando provar que não houvesse passeio no lado oposto ou que por aí não pudesse circular (com isto está-se a considerar que era à autora que cabia o ónus da alegação e prova das condições especiais em que é permitida a circulação pela faixa de rodagem: art. 99/2 do CE94 [igual nas sucessivas versões de 1994, 1998 e 2001]).
Mas a verdade é que não há qualquer razão para se dizer que o facto de ela estar a caminhar pela faixa de rodagem tenha contribuído para o embate. Até porque se deu como provado, sem impugnação da ré, que a via existente permitia a passagem de veículos nos dois sentidos, e ainda a circulação usual de peões, sendo que antes do acidente diversos veículos haviam passado pela autora e demais peões em circulação (facto sob o ponto 7). Para mais sabendo-se que a autora era visível a mais de 100 m. Como diz Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra Editora,7ª edição, 1997, pág. 405: “Uma condição deixará de ser causa adequada […] desde que seja irrelevante para a produção do dano segundo as regras da experiência, dada a sua natureza e atentas as circunstâncias conhecidas do agente, ou susceptíveis de serem conhecidas por uma pessoa normal. E dir-se-á que existe aquela irrelevância quando, dentro deste condicionalismo, a acção não se apresenta de molde a agravar o risco de verificação do dano”. Ou como já dizia um antigo acórdão do STJ de 02/07/1975 (BMJ. 249, 421) o facto de a vítima seguir em transgressão ao disposto no art. 40/1 do CE54, não significa que exista nexo causal necessário entre essa conduta e o acidente. Só haverá concorrência de culpas quando aquela seja adequada ao resultado. Ou como diz o ac. do TRL de 11/10/2007 (5438/2007-2): “um facto apenas se pode considerar causal na medida em que faça acrescer, de modo considerável, a possibilidade objectiva da realização do resultado ocorrido”. E acrescenta este acórdão: “A não ser assim, teríamos, em exemplo de extremo, que se o peão preterir a passadeira, e vier a ser atropelado numa extensão de recta em que era visível para o automobilista a 100 metros de distância, vigorando no local o limite de velocidade de 50 km/hora…teria então concorrido para a produção do acidente… Resultando evidente o absurdo.”
Por último, o acto ilícito e culposo assim provado está presumivelmente ligado aos danos também provados, pois que a regra de cautela violada se destina a prevenir, entre o mais, a produ­ção de acidentes do tipo do dos autos (é normal que um excesso de velocidade possa dar origem a um descontrolo do veículo e que na sequência o veículo vá embater em alguém ou em alguma coisa).
“Sempre que se verifique um embate no âm­bito de previsão de uma norma (estradal) que foi efectiva­mente violada, não pode deixar de haver nexo de cau­salidade entre a infracção e as conse­quências do em­bate” - ac. da Relação de Lisboa de 6/1/1987, CJ.87.1.91.
Estão assim verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil: o acto ilícito e culposo, causador adequado de danos. E, devido à transferência da responsabilidade para a ré, a necessidade de condenação desta.
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Dos danos e dos montantes indemnizatórios
Despesas
Na conclusão 44, a ré diz que não ficou provado que a autora tenha despendido a quantia de 500€ a título de despesas com as deslocações da sua residência ao hospital, à seguradora, à polícia e à segurança social, em consequência do acidente, devendo ser revogada a decisão de condená-la no pagamento da dita quantia.
Em termos gerais e para o que aqui importa, decorre que, por força dos arts. 562, 563, 564 e 566, todos do CC, devem ser indemnizados todos os prejuízos sofridos pelos lesados e, se não for possível averiguar o valor exacto dos danos, deve o tribunal julgar equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.
Ora, foi dado como provado que, em consequência do acidente, a autora teve de se deslocar da sua residência àquelas instituições, por várias vezes. Pelo que se prova o dano… embora não o seu valor exacto.
Valor que assim deve ser fixado equitativamente, para o que se tem em conta que a estabilização das sequelas da autora só ocorreu cerca de 2 anos depois, continuando a autora a necessitar de tratamento e acompanhamento neurológico desde a data do acidente e que durante todo este tempo foi sujeita a diversos actos, exames, tratamentos médicos e consultas (facto sob 45, 29, 32, 33, 46 e 50), bem como que ela alegava o valor de 500€ para um maior período de tempo e actos relacionados com outras doenças.
Pressupondo que a autora terá feito, dada a variedade de actos em causa, pelo menos 2 viagens por mês, num total de 24 por ano e por isso 48 naquele período, e pressupondo que pelo menos ½ dos km teriam que ser feitos em automóvel de aluguer (0,38€/km), até porque a autora teria naturalmente, por vezes, necessidade de companhia, em algumas das vezes, e ½ em transporte público (0,12€/km), consideramos justo, no caso concreto, atribuir uma indemnização de 250€ por tais despesas.
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Do desconto dos subsídios de doença
Nas conclusões 45 e 46 diz a ré: a sentença condenou a ré no pagamento de 4200€ a título de perda de rendimentos enquanto esteve com incapacidade temporária para o trabalho, atendendo a que a autora auferia 350€ e ficou com incapacidade temporária profissional durante 365 dias.
Face a informação de fls. 159 emitida pelo Centro de Segurança Social da Madeira que refere que a autora auferiu de 3145,60€, a título de subsídio de doença, durante o período de 29/12/2005 a 28/12/2006, deverá descontar-se ao montante eventualmente a arbitrar à autora a título de perdas salariais pelo período de incapacidade temporária para o trabalho, a dita quantia, sob pena de enriquecimento ilegítimo da autora por força do presente sinistro, fixando-se a quantia devida em 1054,40€.
Os factos de que o tribunal se pode servir, ao resolver as questões de direito que se lhe põem, são os factos que tiverem sido alegados pelas partes, nos articulados normais ou em articulados supervenientes (art. 664 do CPC). Como aqueles factos não foram alegados por nenhuma das partes, não podem ser tomados em consideração, independentemente de estarem ou não provados.
Para além disso, a questão não pode ser colocada como a ré o faz. A ré não pode beneficiar do pagamento que um terceiro (no caso a segurança social) tenha feito à autora para cobrir os prejuízos causados pela conduta segurada (até porque esse pagamento é, no caso, sempre feito a título provisório, conforme decorre do art. 7/1 do Dec. Lei 28/2004, de 04/02).
Veja-se: se A tem um prejuízo de 1500 que devia ser pago por B, e se antes de B pagar os 1500, C vier pagar 500 a A, B não pode invocar os 500 que C já pagou para evitar pagar ele os 500 a A. Pois que então os prejuízos seriam suportados por B e C, quando deviam ser só suportados por B.
Se a ré queria evitar o enriquecimento de que agora fala, devia ter requerido a intervenção da segurança social, para que ela viesse pedir, contra si, seguradora, o reembolso daquilo que tinha pago à autora. Era nesse âmbito, perante as três partes (autora, segurança social e seguradora) que a questão teria que ser discutida. Se na acção, perante a discussão suscitada, se provasse que a autora já tinha recebido algo da segurança social, então essa parte já não teria que ser paga à autora pela seguradora, mas teria que o ser à segurança social. Ou seja, a seguradora pagaria o mesmo, mas a duas pessoas distintas.
Não tendo a ré acautelado a situação, não pode agora evitar esse pagamento, porque nos autos a questão não foi discutida entre quem o devia ser.
E a autora só ficará enriquecida se a segurança social não lhe vier pedir o reembolso daquilo que tenha recebido a mais do que o prejuízo sofrido.
Em suma: se fosse como a ré agora quer, o resultado seria, não o enriquecimento da autora mas o da ré, que evitaria pagar parte dos prejuízos sofridos pela autora.
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Dos danos morais
Na conclusão 47 a ré diz que os 20.000€ arbitrados a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais não é equitativa ou justa, ultrapassando inclusive em demasia os montantes arbitrados pelos tribunais superiores em situações semelhantes, onde foram fixadas indemnizações de cerca de 10.000€, a título de danos não patrimoniais (cfr. ac. TRL de 12/05/2009, 689/09.4YRLSB-7; no corpo das alegações invocou ainda o ac. do TRL de 04/10/2007, 3077/2007-6) configurando um enriquecimento injustificado da autora à custa da recorrente, pelo que a sentença recorrida violou o disposto nos arts. 483º, 494º, 496º, nºs 1 e 3, 562º, 563º, 564º do CC, devendo, em caso de condenação, a referida verba ser reduzida para montante não superior a 10.000€.
Os danos não patrimoniais são – como diz Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 9ª edição, I, Almedina, pág. 623 – os “prejuízos (como dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física, a honra ou o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização.”
Dentro destes danos, apenas são indemnizáveis os que, “pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito” E são-no com base na equidade (art. 496, nºs 1 e 3 do CC).
Como os danos não patrimoniais não são susceptíveis de avaliação pecuniária, a jurisprudência tem procurado a fixação do valor destes danos com recurso à comparação com os valores de outras indemnizações de danos não patrimoniais (não sendo em regra seguida a sugestão de parte da doutrina de se atribuir 1.000.000€ pela perda do direito à vida, sendo todos os outros danos não patrimoniais alinhados depois abaixo desse valor [neste sentido, veja-se Leite de Campos, Os danos causados pela morte e a sua indemnização, Comemorações dos 35 anos do CC e dos 25 anos da reforma de 1977, vol. III Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 2007, pág. 137; e Menezes Cordeiro, Tratado do Direito Civil, II, Tomo III, Almedina, 2010, págs. 755]).
Recorrendo então à comparação com outros casos jurisprudenciais, vejam-se os seguintes 5 casos (todos retirados da base de dados do ITIJ, como até aqui, excepto se estiver assinalado o contrário):
O acórdão do STJ de 22/01/2008 (07A4338), deu 35.000€ a um professor que sofreu fracturas do fémur e do úmero direitos, um período de cura directa de mais de 1 ano, uma intervenção cirúrgica do foro ortopédico e subsequentes tratamentos particularmente agressivos e dolorosos, tendo o respectivo quantum doloris sido avaliado em 6, numa escala de 7, com períodos consideráveis de internamento, tendo ainda resultado um prejuízo estético avaliado em 3 numa escala de 7, e ficando com sequelas que se traduzem numa incapacidade permanente geral parcial de 25%, agravada no futuro em mais 5%.
O ac. do STJ de 09/12/2008 (08A3323) atribui 25.000€ a uma pessoa submetida a intervenção cirúrgica em que fora deixada no abdómen um pano (destinado a isolar as partes do organismo que exigiam intervenção das partes adjacentes), e de cujo acto negligente veio a resultar infecção que demandou fortes dores e febres durante cerca de cinco meses e que obrigou a nova intervenção cirúrgica com carácter de urgência, havendo a pessoa operada chegado ao ponto de recear muito fortemente pela sua vida.
O acórdão do STJ de 07/07/2009 (704/09.9TBNF.S1) atribuiu 45.000€ a uma jovem de 19 anos que, quer em consequência do acidente, quer com os tratamentos a foi sujeita, quer com as intervenções cirúrgicas a que foi submetida, sofreu dores de grau 4 numa escala de sete graus de gravidade crescente, sentiu pavor com a perspectiva da própria morte, sofre pelo facto de ter ficado com as cicatrizes supra referidas, e desde o acidente que se sente complexada e triste com o seu aspecto físico (as cicatrizes afectam o rosto são visíveis e podem não ser passíveis de regressão ou tratamento após cirurgias).
No ac. do TRP de 17/03/2011 (2993/08.0TBPVZ.P1): considerou-se equilibrada a indemnização de 24.000€, devida a título de danos não patrimoniais, a jovem de 17 anos, estudante, que sofreu lesões graves que demandaram intervenções cirúrgicas com internamentos hospitalares e sucessivos tratamentos e consultas, o que lhe determinou uma incapacidade absoluta durante cerca de dez meses, com perda do ano escolar, sofrendo danos físicos irreversíveis e ficando afectada de uma IPP de 15%.
Neste último acórdão, cita-se um outro, do STJ de 16/12/ 2010, 4948/07.3TBVNG.P1.S1, em que se ampliou a indemni-zação por dano não patrimonial sofrido por um jovem de 19 anos, de 15.000€ para 25.000€ num quadro factual de dano moral semelhante ao que ali se apreciava.
No caso dos autos, os danos morais são todos aqueles que resultam dos factos sob 20, 22, 23, 26/27, 29, 30, 31, 32, 38, 39, 40, 41, 43, 44, 45, 46, 47 e 50], salientando-se as dores físicas decorrentes do embate e tratamentos posteriores; o sofrimento pelas incapacidades durante quase 2 anos, o primeiro também de incapacidade profissional total; o facto de a autora continuar a ter dores e necessidade de medicação e tratamentos e de ter ficado com uma incapacidade geral de 14,5%, e por ter de necessitar de ajuda para sustentar o seu agregado familiar.
Ora, comparando estes danos com os dos acórdãos referenciados, vê-se que o caso do acórdão do STJ de 09/12/2008 pode ser considerado menos grave e mereceu uma indemnização mais alta; enquanto que os outros dois podem ser considerados não muito mais graves e têm indemnizações significativamente mais altas.
Quanto aos dois acórdãos invocados pela ré:
No acórdão de Maio de 2009 não ficou estabelecido qual o grau de incapacidade de que a lesada ficou a padecer apenas em consequência do acidente e o valor foi suficientemente baixo para ter levado o próprio acórdão a justificar-se do modo seguinte: “nota 5: trata-se do valor peticionado na petição inicial e reafirmado, já em 2008, em requerimento autónomo, pelo que não parece curial ir além deste valor.” Quanto ao acórdão de Outubro de 2007, a lesada nem sequer ficou com nenhuma incapacidade. Daí que, bastavam estes acórdãos invocados pela ré e a comparação com o caso dos autos, atenta a gravidade dos danos sofridos pela autora, com 14,5 pontos de incapacidade (num máximo de 100, pelo que, pode ser lido com 14,5% de incapacidade), para se considerar correcta a indemnização atribuída a este título.
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Perda da capacidade de ganho
Nas conclusões 48 e 49 a ré apresenta calcula o valor da indemnização deste dano do seguinte modo:
A autora auferia à data do sinistro 350€ mensais, a que correspondia o salário anual de 4200€, sendo que desde a data em que cessou de estar em situação de incapacidade temporária para o trabalho (44 anos) até perfazer os 70 anos, teria um rendimento de 109.200€ (€4200,00 x 26 anos). Atendendo a que a autora ficou afectada por uma IPG de 14,5 pontos, sendo que as sequelas sofridas pela autora, em consequência do acidente, são compatíveis com o exercício das actividades profissionais prévias e posteriores ao acidente, sendo no entanto responsáveis por esforços acrescidos no desempenho das mesmas, o valor devido a título de perda de rendimento seria de 15.834€, ao qual deverá ser descontado ¼ do referido valor, atendendo a que a autora irá auferir de uma vez quantias que iria auferir fraccionadamente ao longo da vida, caso não tivesse ocorrido o acidente, devendo ser fixada a quantia devida a título de perda de capacidade de ganho em quantia não superior a 11.875,50€.
A este título diz a sentença recorrida:
A título de danos resultantes de incapacidade permanente geral, (correspondente à afectação definitiva da integridade física e psíquica da pessoa, com repercussão na sua actividade diária), importa indemnizar a perda da “capacidade de ganho” por parte da autora.
Assim, mesmo nos casos em que a incapacidade permanente parcial não acarreta perda de diminuição nos rendimentos profissionais do lesado, este continuará a ter direito a uma indemnização pelo chamado dano biológico, decorrente da afectação funcional que a incapacidade sempre lhe trará, exigindo-lhe esforços acrescidos no desempenho das suas normais actividades (vd. ac. do STJ de 12/10/2006, 06B2581).
Procurando atingir a justiça do caso, têm os tribunais vindo a acolher a solução de a indemnização do lesado por danos futuros dever representar um capital que se extinga ao fim da sua vida activa e seja susceptível de lhe garantir, durante ela, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho.
É entendimento pacífico e prática corrente da nossa jurisprudência que os cálculos, neste âmbito indemnizatório, devem assentar mais em juízos de equidade do que nas tabelas financeiras e nas demais operações aritméticas, que normalmente se utilizam nesta actividade calculadora, mas que nunca deverão ultrapassar o seu cariz meramente adjuvante (neste sentido vd. ac. do STJ de 10/05/2007 (07B1341), 08/03/2007 (06B4320) e 12/10/2006 (06B2461).
Ora, considerando que, em consequência das lesões causadas pelo acidente, a autora passou a sofrer de cefaleias e ligeiro/médio défice cognitivo, com particular repercussão nas funções de memória e concentração, passando ainda a sofrer de descompensação psicótica com aspectos depressivos e possibilidade de hostilidade, de perturbação obsessivo-compulsivo, de flutuações do nível de energia (vd. relatório de fls. 132 verso), tendo esta 43 anos à data do acidente, sendo de prever como provável para ela um período de vida activa de, pelo menos, 27 anos, uma vez que a esperança de vida humana já ultrapassa os 70 anos, e a vida activa não se circunscreve à vida de trabalho remunerado, mantendo-se enquanto qualquer pessoa for capaz de, por si, proceder à, ou providenciar pela, satisfação das suas necessidades, atendendo ainda ao valor da remuneração que este auferia à data do acidente, no valor mensal de 350€, nos termos do art. 566º nº 3 do CC, fixa-se em 40.000€ a quantia indemnizatória devida à autora por conta dos danos futuros derivados da incapacidade permanente parcial.
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A sentença recorrida segue o modo habitual de proceder na maior parte da jurisprudência (de que dá exemplos), sem que se demonstre expressamente a forma de obter o valor fixado e por isso compreende-se que a ré a contradiga apresentando simplesmente uma outra via para obter a indemnização da perda da capacidade de ganho: a aplicação, pura e simplesmente, de algumas regras aritméticas, mas sem tomar em conta que durante os 26 anos de vida que prevê para o cálculo é previsível a evolução de uma série de factores. Para além disso, a ré não explica porque é que utiliza os 70 anos como limite para o cálculo. Nem a forma como obteve o salário anual.
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Do uso das fórmulas matemáticas apenas como ponto de partida
Grande parte da jurisprudência tem aceite a aplicação de fórmulas matemáticas para o cálculo deste dano, mas apenas como ponto de partida. Isto é, as fórmulas matemáticas devem ser usadas para se ter uma base que possa contribuir para uma uniformidade de critérios. Os valores obtidos, podem depois ser aumentados, se as circunstâncias o justificarem.
Ou, tal como foi exposto pelo acórdão do STJ de 04/12/2007, publicado sob o nº. 07A3836 da base de dados do ITIJ, que tem sido muito referido em acórdãos posteriores do STJ (a citação é feita através do texto e não do sumário por este não resumir adequadamente o texto):
a) o montante indemnizatório deve começar por ser procurado com recurso a processos objectivos (através de fórmulas matemáticas, cálculos financeiros, aplicação de tabelas), por forma a que seja possível determinar qual o capital necessário, produtor do rendimento, que, entregue de uma só vez, e diluído no tempo de vida activa do lesado, proporcione à vítima o mesmo rendimento que antes auferiria se não tivesse ocorrido a lesão ou a compense pelo maior grau de esforço desenvolvido;
b) […]
c) é preciso ter em conta que o valor resultante das fórmulas matemáticas ou tabelas financeiras dá-nos porém um valor estático, porque parte do pressuposto que o lesado não mais evoluiria na sua situação profissional; não conta com o aumento de produtividade; não inclui no cálculo um factor que contemple a tendência, pelo menos a médio e longo prazo, quanto à melhoria das condições de vida do país e da sociedade; não tem em consideração a tendência para o aumento da vida activa para se atingir a reforma; não conta com a inflação; nem tem em conta o aumento da própria longevidade. Daí que a utilização das fórmulas matemáticas, ou tabelas financeiras só possa servir para determinar o “minus” indemnizatório, o qual, terá posteriormente de ser corrigido com vários outros elementos, quer objectivos quer subjectivos, que possam conduzir a uma indemnização justa.
Note-se que neste acórdão do STJ se aceitou a posição da 1ª instância e do TRL de dar 110.000€ de indemnização pela perda de capacidade aquisitiva, quando a fórmula matemática tinha dado o resultado de cerca de 71.000€.
No acórdão do TRC de 03/02/2010 (276/03.1GBOBR.C1), aceitou-se que o valor obtido pelas fórmulas matemáticas, de cerca de 129.000€, fosse subido para 200.000€, subida devidamente justificada.
Como exemplo de decisões recentes do STJ que aceitam estas ideias, vejam-se os acórdãos de: 16/12/2010 (270/06.0TBLSD.P1.S); 21/10/2010 (1331/ 2002.P1.S1); 07/10/2010 (839/07.6TBPFR.P1.S1); 30/09/2010 (935/06.7TBPTL. G1.S1); 25/11/2009 (397/03.0GEBNV.S1); 05/11/2009 (381-2002.S1); 24/09/09 (09B0037); 22/01/2009 (07B4242); e 23/09/2008 (07B2469).
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Da aplicação daquelas fórmulas
O acórdão do STJ de 04/12/2007 – referido acima - colocou ao dispor de “quem não é perito em operações complexas em matemática e deseje rapidamente chegar a resultados semelhantes ao das fórmulas utilizadas pelo STJ no ac. de 05/05/1994 ou do TRC de 04/04/1995” [uma tabela] e a essa tabela chegou-se “pela simples aplicação do programa informático excell à fórmula financeira utilizada pelo STJ, tomando como parâmetros a idade que ainda falta à vítima para atingir a idade de reforma e a taxa de rendimento previsível de 3% ao ano para as aplicações a médio e longo prazo […]”.
Portanto, tal tabela é uma aplicação da fórmula usada pelo STJ no ac. de 05/05/1994 (publicado na CJ.STJ.94.2.86, onde se esclarece que ela foi facultada pelo docente Dr. Joaquim Correia Caetano), e antes deste no ac. do STJ de 04/02/1993 (do mesmo relator e publicado na CJ.STJ.93.1.128).
Ora, aquela fórmula foi desenvolvida depois pelo ac. do TRC de 04/04/1995 (publicado na CJ.95.2.23/26), de modo a tomar em consideração o crescimento dos salários ao longo de toda a vida laboral, a acompanhar a inflação, e os ganhos de produtividade e as promoções profissionais.
E assim, desde tal data têm sido utilizadas para a consideração de todos estes factores e já tendo em conta que o capital tem de estar esgotado no fim do período em causa, as seguintes duas fórmulas complementares:
A 1ª (que é um resumo simplificado da fórmula matemática utilizada pelo STJ, fornecida pelo autor da acção julgada no ac. do TRC de 04/04/1995) é:
C = [(1 + i)N – 1 / (1 + i)N x i] x P
em que
C = capital;
P = prestação a pagar no 1º ano;
i = taxa de juro; e
n = o nº. de anos de esperança de vida;
A 2ª é:
i = (1 + r / 1 + k) - 1
em que:
r = taxa de juro nominal líquida.
k = taxa anual de crescimento de P (inflação + ganhos da produtividade + promoções profissionais).
Isto para que a variável i não seja a taxa de juro nominal líquida da apli­cação financeira, mas sim a taxa de juros real líquida.
No caso dos autos, para aplicação da 2º fórmula, considera-se que:
r = é igual a 4%.
k = é igual a 3%.
Pelo que, sendo
i = (1 + r / 1 + k) - 1
i é 0,97%.
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Os factores a considerar
Salário
Para aplicação de tais fórmulas tem agora de se fixar o salário da autora. O mesmo era de 350€ mensais, ou seja, 4.900€ por ano (= 350€ x 14 meses).
Não tem pois razão a ré quando diz que o salário anual da autora é de 4.200€. Não está a entrar em linha de conta que qualquer trabalhador tem direito a um 13º (subsídio de férias) e a um 14º mês (subsídio de Natal).
Os 14,5% de perda desta capacidade de ganho correspondem a uma perda anual de 710,50€.
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Da idade da reforma ou da esperança média de vida
O número de anos que importa ter em conta não é o número de anos que falta atingir para a idade da reforma, mas sim para a idade correspondente à esperança média de vida da vítima (isto é, o que importa é o tempo provável de vida da vítima).
A referência ao tempo provável de vida da vítima é opção seguida pelo acórdão do STJ de 28/9/1995, publicado na CJ.STJ.95.III, pág. 36 (: “finda a vida activa do lesado não é razoável ficcionar que também a vida física desaparece no mesmo momento e com ela todas as necessidades do lesado e, por outro lado, geralmente, continua a receber remunerações, ou como pensão de aposentação da própria profissão, ou como prestação da segurança social”) e nos acórdãos do STJ de 16/3/1999, CJ.STJ.99.I.167, de 25/7/2002, na CJ.STJ.2002.II.128.
E passou a ser seguida por parte da jurisprudência, a partir do momento em que tal referência foi adoptada no parecer do Provedor de Justiça a propósito do caso da ponte de Entre-os-Rios (parecer de 19/03/2001, publicado no Diário da República, II série, nº. 96, de 24/4/2001, págs. 7139 e segs., especificamente ponto 38, nota 17): “julga-se a utilização do período de vida expectável da vítima como critério mais adequado do que o comummente utilizado da idade da reforma/aposen-tação, já que é de supor que o auferimento de rendimentos durante a vida activa permitiria, pela inscrição obrigatória em regime de segurança social, o recebimento de pensão de velhice ou de aposentação até ao fim da vida”.
Ora, a esperança de vida, segundo os dados do INE reportados a 29/05/2009 (sítio www.ine.pt/), é de 75,49 anos para o sexo masculino e de 81,74 anos para o sexo feminino (já se utilizou a esperança média de vida reportada à data da nascença, mas tal leva a desconsiderar a evolução das condições de vida das pessoas ao longo do tempo…).
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Note-se que parte da jurisprudência – como a do ac. do STJ de 04/12/2007 referido abaixo – utiliza a idade da reforma… mas apenas na aplicação das fórmulas matemáticas referidas, considerando depois a esperança média da vida no ajustamento do resultado obtido com tais fórmulas. Assim, por exemplo, o referido acórdão do STJ diz: “Aqui chegados, entramos na 3.ª fase, ou seja, naquela em que há que atender a todos os outros factores que as ditas fórmulas não contemplam, e que se repercutirão, previsivelmente, em termos de perdas patrimoniais, e que são extremamente relevantes, indicando-se a título exemplificativo: “o prolongamento da IPP para além da idade de reforma (sendo importante sublinhar que entrando na base de cálculo a referência à idade de reforma aos 65 anos não significa necessariamente que se deixe de trabalhar depois dessa idade, ou que se deixe de ter actividade depois dela).”
Assim, seja por uma via ou por outra, o que deve entrar como factor é a esperança média de vida e não o tempo provável de vida activa.
Como a perda de rendimentos da autora, também peticionada, diz respeito a um ano de perda de salários, ano que decorreu desde a data do acidente, e este ocorreu em 22/11/2005, a data que importa considerar é a de 22/11/2005.
Tendo a autora nascido a 26/08/1962, os 81,74 anos de esperança média de vida, conduzem à data de 26/05/2044.
E de 22/11/2006 a 26/05/2044 vão 37,5 meses.
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E para aplicação da 1ª fórmula, sabe-se agora que:
P é igual a 710,50€.
N é igual a 37,5 (nº de anos de vida provável).
i é igual a 0,97%
Pelo que
C = [(1 + 0,97%)37,5 - 1 / (1+0,97%)37,5 x 0,97%] x 710,50€
C = 22.246,38€.
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Note-se que a vantagem de utilizar a fórmula corrigida pelo ac. do TRC de 1995, é o de conseguir introduzir a idade da esperança média de vida, bem como outros factores, logo no cálculo matemático, o que só vai ajudar à uniformidade de critérios de cálculo das indemnizações.
Dito de outro modo: como meio de conseguir atingir, de modo objectivo, um valor justificável por si e o mais próximo possível dos danos efectivamente sofridos, sem deixar margem para uma ampla discricionariedade, é preferível incluir logo na fórmula matemática referida todos os factores e fazer depois as adaptações que se justifiquem, do que usar uma tabela ou fórmula que só abrange, por exemplo, os anos de vida activa, fazendo depois funcionar, sem nunca se explicar bem como, um outro factor destinado aos restantes anos de esperança de vida.
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Da eventual dedução por entrega imediata do capital
Os acórdãos do STJ de 1994 e o do TRC de 1995 – que estão na origem das fórmulas referidas - não faziam tal dedução.
O ac. do STJ de 25/11/2009, (397/03.0GEBNV.S1), diz que se deve fazer esta dedução:
“Após determinação do capital, há que proceder ao “desconto”, “dedução” ou “acerto” porque o lesado perceberá a indemnização por junto, podendo o capital a receber ser rentabilizado, produzindo juros, sendo que se impõe que, no termo do prazo considerado, o capital se encontre esgotado; trata-se de subtrair o benefício respeitante à recepção antecipada de capital, de efectuar uma dedução correspon-dente à entrega imediata e integral do capital, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa alheia. Na quantificação do desconto em equação a jurisprudência tem oscilado na consideração de uma redução entre os 10% e os 33%.”
Aceita-se que se deva fazer, sempre que se demonstre minimamen-te que, no caso concreto, a entrega de tal capital, de imediato, possa repre-sentar um enriquecimento sem causa. E essa dedução deve ser feita, então, com base na percentagem que se demonstre ser aplicável.
No caso, partindo-se de um rendimento para o capital de 4% ao ano, e de que o valor gasto em cada ano aumentaria também todos os anos em 2% pela inflação, considera-se que tem de haver uma dedução, sob pena de o capital em causa, em vez de se ir reduzindo ao longo dos anos, ir antes aumentando.
Veja-se:
No 1º ano, o lesado tira 710,50€ do capital de 22.246,38€. Restam 21.535,88€ que, no banco, à taxa de 4%, ficarão transformados, no fim do 1º ano em 22397,32€
No 2º ano, o lesado tira 710,50€ mais 2% da inflação, ou seja, 724,71€. Restam 56.558,76€ que, no fim do ano, com 4% de aumento, ficam em 22539,51€.
E assim sucessivamente, de tal modo que só ao fim do 16 anos é que o capital começa a baixar para além do valor inicialmente entregue, de tal modo que se chegaria ao fim dos 37,5 anos ainda com perto de 58% do capital.
Aceita-se por isso, que deve ser feita a dedução e na percentagem sugerida pela ré, ou seja, de 25%.
Pelo que aquele capital inicial a ser entregue fica reduzido a 16.684,79€ (= 22.246,38€ : ¼).
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Da elevação do resultado obtido através da fórmula
Este último é o resultado a que a aplicação das fórmulas matemáticas conduz, já tendo em consideração a evolução dos factores.
E como já se sugeriu, este resultado pode ser aumentado, desde que se justifique esse aumento.
Ora, no caso, não se vê que exista a justificação necessária.
A sentença recorrida parece justificar o aumento com recurso a dados que constam do relatório que invoca (o de fls. 132 verso), mas como esses dados não constam dos factos provados, não podem ser tomados em consideração.
Assim, no caso, não se vê que deva ser atribuído à autora, mais do que aquilo que os cálculos efectuados demonstram ser o suficiente para lhe proporcionar rendimentos iguais aos que obteria com a capacidade aquisitiva que perdeu, embora arredondado para 16.700€.
Note-se que os factores que têm servido para, a partir do resultado obtido através de contas simples, se aumentar o valor da indemnização, que são aqueles referidos na al. c) da passagem citada acima do ac. do STJ de 04/12/2007, já foram todos tidos em consideração na fórmula matemática aplicada.
Assim, para se aumentar a indemnização para além do resultado obtido, teria que se invocar alguma razão para o efeito, como por exemplo o facto de as sequelas com que o lesado ficou – uma IPP de 40% - o impedirem do exercício da actividade profissional habitual. Assim, o resultado “matemático” obtido através da consideração dos 40% de incapacidade, poderia ser aumentado, por exemplo, em 50%, como se fez no caso tratado no ac. do TRC de 03/02/2010 (276/03.1GBOBR.C1), já citado.
Das contra-alegações, vê-se que a autora defende o montante indemnizatório fixado pela sentença recorrida. Mas não tem fundamentação específica para o efeito e nas suas contra-alegações diz que se encontra incapacitada para trabalhar para o resto da vida… e que se encontra de baixa médica desde praticamente a data do acidente. Aqui sim, a ré poderia dizer, que a autora – não a sentença - aproveita os factos 42 e 50 como se dizessem respeito a consequências do acidente… Mas como não são não podem ser tomados em conta para o cálculo do valor deste dano.
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Outras razões para diminuir a indemnização?
Na conclusão 50 a ré tenta demonstrar de novo que a indemnização atribuída pela sentença recorrida é excessiva, mas fá-lo para chegar ao mesmo resultado já por ela proposto, de 11.875€.
Diz ela, na parte que ainda não foi considerada: a autora até atingir os 70 anos poderia ficar desempregada ou ter uma diminuição de rendimentos; resultou do relatório pericial de 10/08/2010 e do depoimento da testemunha Srª “G” que, antes do acidente, a autora exercia uma actividade que exigia esforço físico, sendo que, desde cerca de 2 a 3 anos após o acidente, sofre de problemas na coluna vertebral e no membro superior direito, sem qualquer nexo causal com o acidente, tendo a autora sido advertida a não levantar pesos; a autora durante 9 dias esteve impossibilitada de trabalhar devido a uma apendicectomia.
Tratam-se de especulações da ré que já vão para além daquilo que é possível. Também se poderia especular em sentido oposto, ou seja, que os problemas posteriores que surgiram na autora, se verificaram precisamente devido à fragilidade psíquica em que ficou devido ao acidente dos autos; e que a autora poderia ter, se não fosse o acidente, encontrado um emprego melhor remunerado, etc.
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Da co-responsabilidade da autora?
Na conclusão 51 a ré faz a síntese dos valores que entende serem devidos, e termina dizendo que deverá ser deduzida a quantia correspondente à quota-parte da responsabilidade da autora no sinistro ou produção e extensão dos danos (90%).
Como não se provou qualquer quota parte de responsabilidade da autora (questão já vista acima), não há que fazer essa dedução.
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A questão dos juros
Nas conclusões 52 e 53 diz a ré que o tribunal a quo ao fixar em 20.000€, a indemnização devida a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais, bem como a quantia de 40.000€ a título de ressarcimento da sua incapacidade permanente parcial, procedeu à actualização do montante do dano apurado para reparar o prejuízo que a lesada efectivamente sofreu, bem como fixou no presente uma indemnização que tem como elementos a ressarcir a perda da capacidade de ganho até aos 70 anos, eventos que ainda não ocorreram. Por isso, conforme acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ nº 4/2002, os juros moratórios deveriam ser contabilizados a partir do trânsito em julgado da decisão, e não desde a data da citação, não sendo aplicável o disposto no art. 805º, nº3 do CC.
Diz o acórdão de fixação invocado, n.º 4/2002, de 09/05/2002, publicado no DRI de 27/06/2002, que sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do art. 566.º do CC, vence juros de mora, por efeito do disposto nos arts 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do CC, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.
Este acórdão do STJ tem aplicação quando se demonstre que o cálculo dos danos foi corrigido ou actualizado “em função da taxa da inflação” (como se diz no acórdão; ou noutra formulação, também nele utilizada: “se o juiz atribuir uma indemnização monetária aferida pelo valor que a moeda tem à data da decisão da 1ª instância” — como tinha acontecido no caso julgado pelo STJ), ou, acrescenta-se aqui, se os danos morais tiverem sido fixados reportadamente à data da sentença, ou se esta teve em conta os valores actuais que a jurisprudência atribui a tais tipos de danos. Ou seja, se se demonstrar que os valores dos danos morais, se tivessem sido fixados em 2006 ou em 2009 (ano da citação), seriam diferentes dos valores fixados em 2011. O que não é o caso. E em relação ao dano da perda da capacidade de ganho, o cálculo foi reportado à data da estabilização da incapacidade definitiva parcial – um ano depois do acidente.
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(…)
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Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso, alte-rando-se parte dos factos nos termos deixados expostos acima e baixando-se a indemnização de 64.700€ para 41.150€, mantendo-se em tudo o mais a sentença recorrida.
Custas por autora e ré nas proporção do decaimento, quer na acção quer no recurso.

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2012.

Pedro Martins
Sérgio Silva Almeida
Lúcia Sousa