Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1175/11.9TVLSB.L1-8
Relator: AMÉLIA AMEIXOEIRA
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
PROPRIEDADE HORIZONTAL
ILEGITIMIDADE ACTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - A locação financeira é um contrato oneroso, sinalagmático bivinculante, temporário mas origi­nando relações duradouras e de feição financeira".
II - É co-natural ao leasing que a sociedade locadora se obrigue a adquirir e a conceder o gozo da coisa ao locatário mas se desinteresse ou exonere dos riscos e da responsabilidade relativos à sua utilização”.
III - Na locação financeira imobiliária, existe um contrato de financiamento, visando, tendencialmente, um contrato de compra e venda; mas, enquanto este contrato perdurar a relação jurídico-negocial tem notória afinidade com o contrato de arrendamento.
IV - Durante o tempo por que perdura, o locatário entra na posse material do imóvel dado em locação (i)mobiliária e, tal como um mero arrendatário, tem poderes de fruição temporária – medida esta pelo período de duração do contrato – mediante o pagamento de uma renda.
V - Sendo traço comum da locação financeira, mobiliária e imobiliária, a fruição onerosa e temporária de um bem, o legislador quis colocar a cargo do locatário de fracção autónoma o pagamento das despesas comuns do edifício e os serviços de interesse comum, certamente em homenagem à vocação do tipo contratual, que visa o financiamento do locatário.
VI - Tendo em conta a especificidade do contrato de locação financeira imobiliária, a sua função económica e o facto do locatário financeiro assumir uma posição muito próxima da do arrendatário vinculístico, mormente, quanto ao uso e fruição do imóvel (na locação financeira com a expectativa de se tornar dono do imóvel), e sendo certo que até no arrendamento pode o arrendatário convencionalmente arcar com as despesas de condomínio, não é cabido considerar-se como não ambulatória a obrigação de pagamento das despesas condominiais, para as fazer recair sobre o locador financeiro, que não é o “dono económico” do imóvel nem beneficia de qualquer vantagem directa inerente à respectiva fruição.
VII - “Por via do regime-regra consagrado no artigo 1424º do Código Civil é ao locatário financeiro que compete o pagamento da quota-parte devida pela fracção que ocupa, em homenagem ao preceituado no artigo 10º, nº 1, alínea b) do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 265/97, de 2 de Outubro.
VIII - O requerente enquanto locatário financeiro da fracção autónoma não pode reagir contra o uso que os proprietários das fracções A e B pretendem dar-lhe, ainda que tal uso possa ser ilícito face ao que consta do titulo constitutivo da propriedade horizontal, até porque o requerente não pode opor-se a uma eventual alteração daquele titulo, que pode ter lugar sem o seu consentimento e até contra a sua vontade.
IX - Nem pode reagir contra obras a realizar ou realizadas nas partes comuns, que importem disposição das partes comuns e não apenas o seu uso.
X - Permitir tal situação poderia conduzir, no limite, a que o locatário pudesse reagir contra uma posição tomada pelo locador, na sua qualidade de proprietário da fracção autónoma.
XI - Só o locador pode exercer direitos que impliquem actos de disposição e o locatário apenas pode impugnar tais actos desde que devidamente mandatado/autorizado pelo locador, pois só este tem para tanto legitimidade.
(ISM).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO:
A… veio intentar a presente providência cautelar comum contra B…, S.A. C… SA e D… Lda., todas com os sinais dos autos, pedindo se ordene às requeridas que:
a) não iniciem ou, caso isso já tenha ocorrido, fazerem cessar de imediato, o uso ilícito das fracção “A” e “B” do prédio urbano sito na Avenida … n.ºs …, em Lisboa, abstendo-se de exercer nesse local a actividade de restauração ou de apoio a restaurante, bem como de as cederem para o mesmo fim;
b) reporem, no prazo máximo de 10 dias, o logradouro no estado em que se encontrava antes do início das obras, nomeadamente removendo a laje de betão aí colocada;
c) não colocarem ou, caso isso já tenha ocorrido, retirarem no prazo máximo de 10 dias, qualquer equipamento ou conduta de extracção de fumos e cheiros para a actividade de restauração;
d) condenar as requeridas na sanção pecuniária compulsória de 250 euros por cada dia em que deixarem de cumprir a providência decretada.
Para tanto alegou ser locatário financeiro da fracção autónoma designada pela letra “E”, destinada a habitação, correspondente ao 4º andar do prédio id. supra.
As 1ª e 2ª requeridas são donas e legitimas possuidoras das fracções autónomas designadas pelas letras “A” e “B”, do mesmo prédio, sendo a 3ª requerida uma sociedade comercial que se dedica à actividade de restaurante, bar, gelataria, pizaria, supermercados, compra e venda de artigos gourmet e similares, take away, catering, prestação de serviços relacionados.
O prédio referido supra não tem administrador, nem condomínio constituído.
A 1ª e 3ª requeridas pretendem instalar um restaurante na fracção “A”, supra identificada, para o que iniciaram obras necessárias a tal fim.
O requerente não autorizou a instalação do restaurante, nem a unidade de apoio aquele a instalar na fracção “B” pois tal traduz-se em dar aquelas fracções uso diferente do previsto na constituição da propriedade horizontal. Acresce que, para efeitos de colocação de máquinas de ar condicionado e extracção de fumos do restaurante as requeridas colocaram no logradouro, parte comum do prédio, uma laje em betão com aproximadamente 4 m2 de área.
As máquinas a instalar no logradouro pela sua dimensão e modo de funcionamento produzem ruídos e cheiros incompatíveis com o descanso e bem – estar habitacionais, para lá de o prédio, pela sua antiguidade e tipo de construção, não ter condições para o funcionamento de um restaurante. A utilização das fracções autónomas e logradouro pela forma indicada, sem autorização de todos os condóminos é ilícita e causa prejuízos ao requerente, nomeadamente resultante de barulhos e cheiros.
Daí a necessidade da presente providência.
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Citadas vieram as requeridas deduzir oposição tendo a 1ª requerida excepcionado a ilegitimidade activa do requerente, quer porque a sua qualidade de locatário financeiro não lhe permite exercer os direitos que só aos condóminos pertencem, quer porque se encontra desacompanhado da esposa, com quem é casado no regime da comunhão geral de bens, sendo necessária a sua intervenção para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
Excepcionou também a sua própria legitimidade na base da alegação de que tendo dado de arrendamento a fracção autónoma não tem a posse da mesma e que as obras de adaptação ficaram a cargo da arrendatária.
No mais impugnou a versão dos factos apresentada pelo requerente e alegou não estarem verificados os pressupostos de que depende o decretamento da providência.
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Na sua oposição as 2ª e 3ª requeridas vieram excepcionar a ilegitimidade do requerente nos mesmos termos em que o fez a 1ª requerida. Mais alegaram ser inepto o requerimento inicial, por falta de alegação dos necessários factos, no que tange aos invocados direitos pessoais de gozo.
Mais referiram não ser o procedimento cautelar comum o meio próprio e não se verificarem os requisitos de que depende o decretamento do mesmo.
Pedem a condenação do requerente e do seu mandatário como litigantes de má-fé.
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O requerente veio ao abrigo do disposto no art. 3º do CPC responder às invocadas excepções, mantendo o alegado no requerimento inicial e aduzindo as suas razões para que se considerem como não verificadas as invocadas excepções.
Teve lugar a audiência de julgamento, com produção de prova.
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Foi então proferida decisão no sentido de:
a) julgar improcedentes as invocadas excepções de nulidade de todo o processo, ilegitimidade activa por preterição de litisconsórcio necessário, ilegitimidade passiva da 1ª requerida e uso ilícito de procedimento cautelar comum;
b) julgar procedente a invocada excepção de ilegitimidade activa no que tange aos pedidos formulados que exijam a qualidade de condómino, e, em consequência, absolvem-se as requeridas da instância;
c) julgar o presente procedimento cautelar improcedente, não o decretando, na parte relativa à alegada violação de direitos de personalidade do requerente.
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Inconformado com o teor da decisão, veio o requerente interpor recurso, que concluiu da forma seguinte:
A) O Tribunal a quo decidiu julgar procedente a excepção dilatória de ilegitimidade activa do ora recorrente, por considerar que, sendo este locatário financeiro, não tinha legitimidade para reagir contra o uso que os proprietários das fracções A e B pretendem dar-lhe, ainda que tal uso possa ser ilícito;
B) O que está em causa nos presentes autos é a violação do título constitutivo da propriedade horizontal em vigor e não a sua alteração;
C) A seguir o douto entendimento do Tribunal a quo, resulta que qualquer condómino do prédio poderá fazer a utilização que muito bem entender, por muito ilegal que seja face ao título constitutivo, sem que um locatário financeiro imobiliário de uma outra fracção possa reagir contra essa ilegalidade.
D) Na prática, o Tribunal a quo considera “inexistente” para o locatário financeiro (porquanto ao mesmo jamais seria reconhecido qualquer direito à defesa da sua legalidade) o título constitutivo da propriedade horizontal existente em vigor.
E) Tal posição não tem correspondência com a natureza jurídica da locação financeira, nem com o regime jurídico que a regula.
F) Na locação financeira é o locatário que escolhe o bem e que o utiliza, sendo o locador um mero financiador da aquisição, sendo-lhe indiferente o objecto da locação. A locação financeira é, na realidade, uma verdadeira forma de financiamento para a aquisição da propriedade por parte do locatário financeiro, sendo que o mesmo é, ao contrário do que sucede na locação simples, considerado o verdadeiro proprietário económico do bem.
G) É o locatário financeiro, enquanto único e exclusivo utilizador da coisa, que pode controlar da violação da legalidade e que tem interesse na sua defesa.
H) Tendo em atenção o regime da locação financeira, o locatário financeiro é considerado o verdadeiro condómino do prédio, podendo exercer os respectivos direitos (e fazer cumprir os seus deveres).
I) A locação financeira tem um regime jurídico próprio, o qual se encontra estabelecido no Decreto-Lei 149/95, de 24 de Junho, o que se justifica por estarmos em presença de um tipo contratual autónomo.
J) O regime jurídico da locação financeira confere vários direitos ao locatário, que demonstram a legitimidade activa do ora recorrente para a presente lide, nomeadamente o de usar e fruir o bem locado, defender a integridade do bem e o seu gozo e exercer, na locação de fracção autónoma, os direitos próprios do locador, com excepção dos que, pela sua natureza, somente por aquele possam ser exercidos – artigo 10.º n.º 2 Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho.
L) O requerente pretende insurgir-se contra a violação do título constitutivo existente, o que, manifestamente, se encontra abrangido pela letra e espírito da expressão “exercer, na locação de fracção autónoma, os direitos próprios do locador, com excepção dos que, pela sua natureza, somente por aquele possam ser exercidos” – artigo 10.º n.º 2 Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho.
M) O recorrente não pretende praticar quaisquer actos de disposição sobre a fracção de que é locatário financeiro ou sobre as partes comuns do prédio, não pretende também utilizar as partes comuns do prédio ou a fracção de que é locatário financeiro indevidamente ou contra o título executivo, nem pretende alterar o respectivo fim!
N) De acordo com o título constitutivo da propriedade horizontal, a fracção autónoma identificada pela letra “A” destina-se exclusivamente a comércio e a fracção autónoma identificada no artigo “B” destina-se exclusivamente a escritório.
O) Sendo certo que um condómino não pode alterar como quiser o fim previsto no título constitutivo da propriedade horizontal para a sua fracção.
P) Estatui o artigo 1422.º, n.º 2, al. c), do Código Civil que é especialmente vedado aos condóminos dar à sua fracção uso diverso do fim a que se destina.
Q) Assim, por violação do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio em causa (uso diverso do fim a que se destina), é manifestamente ilegal a utilização que as recorridas estão actualmente a dar às referidas fracções “A” e “B”: restaurante e apoio ao restaurante.
R) É posição dominante na jurisprudência o reconhecimento da ilegalidade da utilização de uma fracção autónoma para restauração quando no título constitutivo da propriedade horizontal está prevista que o fim da fracção é “comércio”.
S) Sendo manifestamente ilegal, por violação do disposto no artigo 1422.º n.º 2 alínea. c) do Código Civil, constitui violação grave (violação de norma imperativa de interesse público) dos direitos dos condóminos a utilização das fracções autónomas para restaurante e apoio ao restaurante.
T) A defesa da legalidade da utilização de outras fracções no mesmo prédio é um direito que não pode deixar de poder ser exercido pelo locatário financeiro.
U) A violação em causa é uma violação de norma imperativa de interesse público, não sanável, cuja gravidade não pode compadecer-se com uma interpretação restritiva do direito à sua invocação, restringindo-a apenas, in casu, a uma entidade financeira, que, por já ter contratado o financiamento, nenhum interesse tem na afectação das demais fracções, designadamente se contra o respectivo título constitutivo.
V) Para além de utilizaram as fracções em causa para fim diverso do previsto no título constitutivo da propriedade horizontal, as requeridas também utilizam indevidamente partes comuns do prédio.
X) Para além da utilização das fracções ser ilegal, essa utilização depende ainda da ocupação ilícita de partes comuns.
Z) O sistema depuração e filtragem do ar em causa foi instalado no logradouro do prédio e como resulta patente das fotografias juntas aos autos e tem uma natureza quase industrial.
AA) O sistema de depuração e filtragem do ar instalado pelas requeridas, sem autorização dos condóminos, é algo de desmedido e inaceitável.
AB) As referidas máquinas, nada têm a ver com o que constava no “irreal” desenho esquemático que consta do projecto apresentado aos condóminos do prédio e no qual se dizia que “(…) pretende-se dotar o espaço de exaustão e ventilação adequados por meio de um tubo circular, a colocar no alçado posterior do edifício (…)”; “A sua fixação será de acordo com as boas normas de construção e acabamento, e será para pintar à cor da fachada e dos existentes, de modo a ficar exactamente igual e enquadrado na fachada existente”.
AC) Como resulta provado nos autos, as obras efectuadas pelas requeridas foram objecto de embargo pela Câmara Municipal de Lisboa.
AD) Para o Tribunal a quo, o locatário financeiro também nada pode fazer contra tal utilização, tendo que suportar, para além da ilegalidade da utilização das fracções, o uso abusivo das partes comuns, o que não pode ser aceite.
AE) A actuação do locatário financeiro no sentido não ter que suportar a utilização abusiva das partes comuns sempre deverá considerar-se prevista na expressão “usar e fruir o bem locado, defender a integridade do bem e o seu gozo” - artigo 10.º n.º 2 Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho.
AF) As recorridas devem também retirar todo o equipamento instalado nas partes comuns para o equipamento de extracção de fumos e cheiros utilizado na actividade de restauração e instalado nas partes comuns.
AG) Assistia ao recorrente, enquanto condómino, o direito a requerer a tutela destinada a acautelar provisoriamente o seu direito.
AH) Sendo sabido que a utilização de fracção para fim diverso do constante do título constitutivo da propriedade horizontal constitui violação grave dos direitos de qualquer condómino (para além da utilização abusiva das partes comuns), é-lhe reconhecido o direito de intentar uma providência cautelar para impedir tal uso.
AI) Mesmo que não se prove a existência de ruídos ou cheiros não constitui fundamento para a improcedência da providência, bastando a simples demonstração da utilização para restauração de uma fracção destinada a comércio.
AJ) Para justificar a manutenção do restaurante e do apoio ao restaurante em violação do fim previsto no título constitutivo da propriedade horizontal e com ocupação de partes comuns, as requeridas alegam ainda que o referido estabelecimento se encontra licenciado pela Câmara Municipal de Lisboa.
AL) O alvará emitido pela Câmara Municipal de Lisboa, não faz qualquer prova da legalidade da instalação de um restaurante na fracção em causa, sendo que, nos termos do disposto no decreto-lei 234/2007, de 19 de Junho, o licenciamento de estabelecimentos de restauração é hoje efectuado de forma bastante simplificada.
AM) Pretendem ainda as requeridas “sanar” qualquer das ilegalidades cometidas com a justificação de que o encerramento do estabelecimento causa o desemprego dos trabalhadores contratados e perda do elevado investimento efectuado.
AN) Como é por demais patente, as requeridas pretenderam impor ao requerente um facto consumado.
AO) Mesmo sabendo que em se encontravam em violação do fim previsto no título constitutivo da propriedade horizontal, que se encontravam a ocupar partes comuns, que não tinham qualquer autorização do recorrente e que as obras não eram legais (vide embargo efectuado pela Câmara Municipal de Lisboa), as requeridas quiseram, por sua responsabilidade e risco, instalar no local um restaurante e um apoio a restaurante.
AP) Se algum prejuízo ocorrer às requeridas, nomeadamente valor das obras efectuadas e indemnizações a trabalhadores, tal apenas se pode dever a negligência da respectiva gerência;
AQ) O Tribunal a quo deveria ter reconhecido a legitimidade do recorrente para o presente procedimento cautelar, decretando-o por considerar verificados os respectivos requisitos. Ao não fazê-lo, o Tribunal manteve na ordem jurídica uma situação de violação de norma imperativa de interesse público.
Em consequência, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que considere totalmente procedente o procedimento cautelar comum apresentado pelo recorrente.
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D…, LDA. e C…, S.A., vieram contra-alegar, concluindo da forma seguinte:
1.ª A decisão recorrida não merece reparo no que concerne à ilegitimidade do recorrente no que tange aos direitos próprios dos proprietários/condóminos, a decidir-se de outra forma violar-se-ia, nomeadamente, o disposto em arts. 26º, 288º nº 1 al. d) do CPC.
2.ª Verifica-se a total ausência de prova de factualidade constitutiva do periculum in mora, e de prova da dificuldade/impossibilidade da reparação de uma lesão, pelo que nunca a providência requerida poderia ser decretada, e a decidir-se diferentemente verificar-se-ia frontal violação do disposto no art.º 381.º, n.º 1 do CPC.
3.ª Ainda que assim não se considerasse, o que não se concede, resulta claro que, face à matéria de facto provada e supra referida, a desproporcionalidade que se verificaria, caso a providência fosse decretada, seria de tal forma ostensiva, face às suas consequências, que acarretaria, também por aqui, a impossibilidade de ser conferida ao recorrente a providência requerida, por força do disposto no art.º 387.º, n.º 2 do CPC.
4.ª O decretamento do embargo camarário a quatro dos trabalhos realizados no local – cuja licitude é matéria controvertida pendente em juízo administrativo – mostra-se totalmente irrelevante para os presentes autos.
Conclui no sentido de o recurso ser julgado improcedente e mantida a decisão recorrida.
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B…, LDA. contra-alegou, concluindo da forma seguinte:
a) Não é na esfera jurídica do locatário, mas na do locador que se constituem os diversos direitos e obrigações exceptuados pelo art. 10.º, n.º 2 do D.L. 145/95 de 24.06,
b) Como sejam os referidos na sentença recorrida, “nomeadamente alterar o título constitutivo da propriedade horizontal no sentido de alterar o fim a que se destina a fracção ou parte comum, autorizar alterações nas partes comuns, obras ou outras, com único limite na lei.” Cfr. pág. 10 da sentença, neste sentido Ac. STJ de 10.07.2008, proc. n.º 08A1057 in www.dgsi.pt,
c) Na esfera jurídica do locador, ao nível patrimonial, ingressa apenas o direito à locação – tanto assim que a fracção locada não responde pelas dívidas do locatário nos termos do art. 601.º do C. Civil, cfr. art. 10.º, n.º 2 al. e) do D.L. n.º 149/95 de 24.06.
d) Pese embora o regime jurídico da locação financeira confira vários direitos ao locatário, excepciona expressamente aqueles que, pela sua natureza, somente possam ser exercidos pelo locador – cfr. art. 10.º, n.º 2 do DL n.º 149/95 de 24.06.
e) O direito de se opor a alterações ou utilizações desconformes com o título constitutivo da propriedade horizontal cabe em exclusivo ao condómino, sendo este o proprietário da fracção, isto é, o locador – cfr. art. 1420.º, n.º 1 do C. Civil.
f) Carece assim o Recorrente – locatário financeiro - de legitimidade activa nos presentes autos para peticionar o encerramento do restaurante instalado na fracção “A”, por alegada violação do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio.
g) Para além de o Recorrente não demonstrar a existência dos direitos derivados da condição de condómino, designadamente os de autorizar ou não autorizar a instalação de restaurante - de que se arroga.
h) Como, no que concerne aos direitos ao descanso, repouso, tranquilidade, privacidade, segurança que invoca, não se mostra provado de que forma se encontram os mesmos ameaçados e qual o grau da alegada ameaça.
i) Não se demonstrando, ou o direito ou a ameaça ao direito, não existe periculum in mora – isto é a necessidade de evitar lesão grave e dificilmente reparável na expressão do art. 381.º, n.º 1 do C.P.C.
j) A providência cautelar fornece, por natureza, uma tutela provisória, qualitativamente distinta daquela que é obtida na acção principal de que depende – cfr. art. 383.º, n.º 1 do C.P.C. - o Recorrente vai mais longe no pedido do que a mera tutela provisória.
k) Para além da questão da legitimidade, sempre se consideraria que os pedidos do Recorrente por não caberem no âmbito da providência cautelar não poderiam ter provimento.
l) Ponderados, contudo, os factos dados como provados, designadamente os constantes das alíneas XX) e ZZ) da resposta à matéria de facto, não se pode retirar a conclusão de violação do título constitutivo da propriedade horizontal.
Conclui no sentido de o recurso dever ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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QUESTÕES A DECIDIR:
-Caracterização do contrato de locação financeira e sua distinção de outros contratos.
-Saber se o locatário financeiro pode reagir contra violações do título constitutivo da propriedade horizontal, operadas por condóminos.
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FUNDAMENTAÇÃO
DE FACTO:
A) O Requerente é locatário financeiro da fracção autónoma designada pela letra “E”, destinada a habitação, correspondente ao ….º andar, do prédio urbano sito na Avenida …, n.ºs …, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de ….
B) A Primeira Requerida é dona e legítima possuidora da fracção autónoma designada pela letra “…”, destinada a comércio, correspondente à Loja no … do referido prédio.
C) A Segunda Requerida é dona e legítima possuidora da fracção autónoma designada pela letra “…”, correspondente ao … andar do referido prédio.
D) A Terceira Requerida é uma sociedade que se dedica à actividade de restaurante, bar, gelataria, pizaria, supermercados, compra e venda de artigos gourmet e similares, take away, catering, prestação de serviços correlacionados.
E) A Terceira Requerida é uma sociedade comercial que foi constituída em Fevereiro de 2011 e tem a sua sede na Avenida …, n.º …, Lisboa.
F) O prédio urbano sito na Avenida …, n.ºs …, em Lisboa, é de construção antiga e data de 1925.
G) O referido prédio não tem administrador.
H) O prédio encontra-se dividido em seis fracções autónomas (loja e 1ª a 5ª andares), conforme cópia do título constitutivo da propriedade horizontal.
I) De acordo com o título constitutivo da propriedade horizontal, a fracção autónoma identificada em B) destina-se a “comércio”.
J) De acordo com o título constitutivo da propriedade horizontal, a fracção autónoma identificada C) destina-se a “escritório”.
L) A primeira Requerida, deu de arrendamento à Terceira Requerida a fracção “…” dos autos, por meio de contrato de arrendamento com início em 01.03.2011.
M) As Requeridas obtiveram, com datas de 18 e 23 de Março de 2011, as declarações ora anexas como docs. 3 ao 6, respectivamente, da autoria da co - requerida B…, Lda., senhoria da D…LDª, da própria Requerida C…LDª, como proprietária da fracção B, do BANCO … como proprietário da fracção C, de AP …, Lda., como proprietária da fracção D.
N) Nos documentos 3 ao 6 aqui dados por reproduzidos, consta nomeadamente o seguinte: «Que autoriza, na parte que lhe diz respeito, os proprietários/possuidores do rés-do-chão do identificado prédio, a colocar uma chaminé, para efeitos de restauração nesse mesmo rés-do-chão, bem como a instalação de um reclame luminoso na parte superior da entrada do estabelecimento e a efectuar no rés-do-chão todas as obras que sejam necessárias ou úteis e de adaptação para o efeito. Autoriza na parte que lhe diz respeito, que o logradouro do identificado prédio possa ser utilizado para a prossecução daquelas obras e adaptações, ao fim indicado […] Nesta mesma data, a declarante assina e rubrica um dossier contendo o projecto de obras acima referidas».
O) No documento nº 3, da autoria do senhorio, proprietário da fracção A, a Co-requerida B…SA, consta: «Por nos ter sido solicitado por AJ…., GG… , SL… e pela sociedade D…, Lda., vem B… Lda. Na qualidade de proprietária e senhoria da fracção abaixo identificada, nos termos e para os efeitos da cláusula 8ª e 10ª do Contrato de Arrendamento celebrado em 31/01/2011 cujo objecto foi a fracção autónoma designada pela Letra A destinada a comércio, correspondente à loja no R/C com entrada pelo nº 26-B do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Av. … nº … em Lisboa, prestar o seu consentimento à realização das obras de adaptação constantes do dossier que lhe foi entregue por protocolo de 14/03/2011 que se dá por reproduzido […] concede igualmente autorização, na parte que lhe respeita, à D…, Lda. Para instalar um tubo de extracção de fumos e gases na parte exterior tardoz do prédio, bem assim a utilizar o logradouro para a afectação do estaleiro das obras de adaptação a levar efeito no locado. Autoriza igualmente, na parte que lhe respeita e subordinada à autorização dos demais condóminos e da Câmara Municipal de Lisboa e/ou de outras entidades públicas, a colocação de um reclame luminoso na fachada do prédio.»
P) O logradouro que constitui parte comum tem 230 m2 de área.
Q) A estrutura interior do prédio id. em A) é de tabique.
R) O requerente tem na fracção autónoma id. em A) a sua habitação própria e permanente.
S) A 3ª requerida pretende instalar na fracção “A” um restaurante.
T) No início do ano de 2011 o requerente foi contactado pelo Sr. S... e pela Dra. JS... tendo esta solicitado a sua autorização para ser instalado um restaurante na fracção correspondente à loja do rés-do-chão.
U) Algum tempo após este contacto o requerente recebeu um “projecto” do restaurante denominado “V…”.
V) O requerente informou a Dra. JS… que não autorizava a instalação do restaurante por considerar que tal actividade afectava os seus legítimos direitos.
X) O contrato de arrendamento referido em L) refere que o local arrendado se destina exclusivamente à instalação e exploração de um restaurante pelos inquilinos, não lhe podendo ser dada outra finalidade.
Z) À data da entrada da presente providência cautelar encontravam-se em curso obras de adaptação da fracção “A” para a actividade de restauração.
AA) A 3º requerida pretendia colocar um tubo de ventilação no exterior do prédio.
BB) As obras a realizar visam também instalar na fracção “B” uma unidade de apoio ao restaurante.
CC) O requerente não autorizou a instalação dessa unidade de apoio.
DD) As obras de adaptação foram realizadas pela “G…, Lda.”
EE) A 3ª requerida cimentou 4 m2 de área do logradouro onde pretendia colocar uma máquina de ar condicionado e extracção de fumos.
FF) Em finais de Abril de 2011, a mulher do Autor, aquando da colocação da realização da obra referida na alínea anterior, informou os trabalhadores que se encontravam no local de que não podiam realizar a referida obra no logradouro do prédio.
GG) Após essa interpelação as obras cessaram durante alguns dias.
HH) No entanto, no início de Maio de 2011, as referidas obras voltaram a ser executadas.
II) A 3ª requerida enviou ao requerente a carta junta a fls. 29 a 34 cujo teor se dá por reproduzido.
JJ) Nos termos do contrato referido em L) as obras de adaptação do locado e a obtenção de todas as autorizações e licenças necessárias são da exclusiva responsabilidade dos inquilinos.
LL) A laje entre a loja e o 1º andar é construída em perfis de ferro com argamassa.
MM) A fracção “A” dispõe de uma conduta própria de evacuação de efluentes gasosos que se encontra ligada à conduta colectiva de evacuação de efluentes gasosos.
NN) A L... já concluiu, no final de Maio último, todas as obras para adaptação do rés-do-chão, fracção A, de stand de automóveis a restaurante italiano.
OO) A fracção "B" levou obras de melhoria para utilização de escritórios, de ambas as requeridas, instalação de kitchnetes, WC novos.
PP) A requerida L... não instalou um tubo de extracção de fumos.
QQ) Tendo acabado por instalar um sistema de depuração e filtragem do ar.
RR) A área de 4 m2 referida em EE) foi cimentada sob o vão, da escada, de serviço ou de segurança do prédio.
SS) A máquina referida em QQ) não produz quaisquer cheiros, é de baixa rotação e não produz ruído.
TT) No logradouro do prédio referido em A) existiram em tempos galinheiros dos comproprietários.
UU) O logradouro tem sido usado como estaleiro de obras que periodicamente os condóminos têm efectuado nas suas fracções.
VV) Inclusive, para este fim, esteve ocupado na sua quase totalidade, entre 2009 e 2011 por quem efectuou obras nos quarto e quinto andares do prédio.
XX) A D…LDª obteve a necessária autorização camarária de abertura de restaurante, na fracção A, em 11 de Maio de 2011.
ZZ) O restaurante em causa tem apenas 40 KVA de potência instalada.
AAA) A requerida D…LDª já despendeu com as obras de remodelação para restaurante cerca de 255.000€ acrescido de IVA à taxa de 23%.
BBB) Tem cerca de 18 pessoas, trabalhadores, que ficarão sem emprego caso seja encerrada a actividade.
CCC) A 3ª requerida paga de rendas mensalmente 5.000€/mês à co-requerida B…LDª e 3.500€/mês à C…SA
DDD) A abertura do restaurante esteve programada para suceder a 1 de Junho.
EEE) A mulher do requerente viu os trabalhos de adaptação decorrerem, e foi fazendo perguntas aos trabalhadores.
FFF) A Câmara Municipal de Lisboa embargou as obras, em 2 de Junho de 2011, por aquelas estarem a ser realizadas sem a necessária licença.
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DE DIREITO:
Em causa está a posição do locatário financeiro e a sua articulação com o regime da propriedade horizontal.
O Decreto-Lei n.° 149/95 de 24 de Junho, que estatui o regime jurídico da locação financeira (instituído pela primeira vez pelo decreto-lei n.° 171/79), dá a definição do contrato em causa (artigo 1.°):
“Locação Financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.”
O contrato de locação financeira (“leasing”) surgiu nos países anglo-saxónicos, sobretudo nos Estados Unidos, como um mero instrumento financeiro, de origem e construção acentuadamente pragmáticas, para solucionar algumas necessidades das sociedades e das pessoas singulares na sua actividade económica. Teve tão grande sucesso que se alargou rapidamente à satisfação de um número muito variado e pouco classificável de necessidades das sociedades e das pessoas singulares.
Daqui resultam duas dificuldades quanto às suas exactas compreensão e situação no campo contratual: o misturar-se, muitas vezes, a sua função financeira com as suas características jurídicas (estruturais), pretendendo classificá-lo financeiramente e não juridicamente; depois, a sua sobreposição constante a outros campos contratuais, o que faz confundi-lo com variados contratos como a locação, a locação venda, a compra e venda a prestações, etc.
Surge, consequentemente, uma frequente confusão entre o objectivo económico do contrato e os instrumentos legais da prossecução daquele, a sua estrutura jurídica. Subordinando-se, incorrectamente, estes instrumentos legais à finalidade económica ou mesmo à disciplina contabilística.
Como bem refere o Prof. Diogo Leite de Campos - Locação Financeira (Leasing) e Locação, a caracterização do contrato de locação financeira, como de qualquer outro contrato, tem de assentar na sua estrutura jurídica, na sua regulamentação legal e em não quaisquer outros aspectos, sejam financeiros, económicos ou contabilísticos. Embora estes possam ter importantes consequências práticas e servir para compreender melhor a figura em análise.
O contrato de locação financeira, deve ser caracterizado através do seu tipo jurídico. Através dos seus elementos essenciais, característicos, previstos na lei do contrato de locação financeira.
Não se trata de uma tarefa fácil dada a proximidade do contrato de locação financeira com outras figuras como a locação, a locação compra, a compra e venda a prestações, etc. Mas é uma tarefa que tem de ser levada a cabo, dada a importância de distinguir a figura da locação financeira de outras, não só para aplicação dos regimes jurídicos supletivos, como para determinar quais as entidades autorizadas a levar a cabo essas operações. Como se sabe, a locação financeira está reservada a determinadas pessoas jurídicas do sistema financeiro.
A locação financeira, como dissemos, tem origem no contrato de locação e é aproximada pelos autores e pela jurisprudência a outros contratos como a compra e venda, o mútuo, etc..
Trata-se, porém, de um contrato definido e regulado na lei. Foi a partir desta que definimos os elementos essenciais que caracterizam o contrato.
No núcleo do contrato encontram-se correlativos direitos e deveres das partes (artigos 9.° e 10.° do DL n.° 149/95).
Já vimos que é integrado pela obrigação do locador de ceder o uso da coisa durante um certo período; com o correlativo direito de exigir a entrega da contraprestação; e pelo direito do locatário de exigir a entrega da coisa, usando-a de acordo com o fim a que se destina durante o período do contrato; e o correlativo dever de entregar as rendas. Bem como pela promessa unilateral de venda no fim do contrato. Concluiu-se com a escolha do bem pelo utente.
Decorrem destas características a transferência do risco para o utente e a amortização da coisa, pelo menos acima de 50%, durante o período do contrato (artigo 4.°).
São incluíveis no contrato de locação financeira duas modalidades: o contrato de amortização integral e o contrato de amortização parcial.
O primeiro vigorará durante toda a vida útil do bem. O segundo preverá a duração do contrato durante a maior parte deste período.
A exigência do contrato ter necessariamente uma duração mínima, superior a metade da vida útil (valor…) do bem (económica ou fiscal) (artigo 4.°) permitirá aqui distingui-lo da locação de curta duração.
O não se transferir a propriedade com o pagamento da última renda, diferenciá-lo-á, desde logo, da compra e venda a prestações e da locação compra.
Recorta-se, desta maneira, o contrato da locação financeira: entre a locação e a compra e venda.
O contrato da locação financeira tem como objecto a cedência do uso da coisa: não a transferência da sua propriedade; nem a cedência do uso mais a cedência contratual da propriedade.
A cedência do uso do bem, culminada com a transferência da propriedade, é só operada através da compra e venda a prestações com reserva de propriedade ou da locação-compra.
Se houver uma cláusula de transmissão automática da propriedade no fim do contrato estaremos, ou perante um contrato inominado ou misto, ou perante um contrato de locação-compra.
Deve prever-se a obrigatoriedade de uma opção de compra (promessa unilateral de venda) no fim do contrato, a favor do locatário, mediante declaração de vontade deste, por um preço fixado ou a fixar nos termos do contrato. Pagável ou não em prestações. Mas já não mediante o pagamento do valor de mercado do bem nesse momento. Com efeito, remeter para o valor de mercado sujeito necessariamente a acordo do vendedor, retiraria sentido prático à opção de compra.
O valor residual do bem poderá alcançar o montante que as partes acordarem no contrato.
Nada obstará a que as partes acordem que, findo o contrato e em vez de ser exercida uma opção de compra, o contrato se prolongue através de uma locação financeira, locação a curto ou a longo prazo ou com ou sem opção de compra no fim (artigos 1º e 7º).
A escolha do bem pertence naturalmente ao locatário, em função das suas necessidades (artigo 1º). É ele que determina o bem que lhe interessa e é ele que sofre o risco económico da sua utilização com o risco também de não ser adequado às finalidades para o que pretende ou ter vícios.
No caso de o bem ser fornecido pelo locador, então neste caso o locador responderá perante o locatário pelo próprio bem. No caso de o bem ser fornecido por terceiro estabelecer-se-á uma relação unicamente entre o terceiro e o locatário, não podendo ser o locador responsabilizado pelos vícios ou pela inadequação da coisa.
A responsabilidade do vendedor ou construtor do bem pelo vício da coisa ou pela sua inadequação aos fins a que é destinada pelo contrato de locação deve ser submetida às regras gerais do direito das obrigações.
Normalmente, o locador terá um papel meramente financeiro. De qualquer modo tudo dependerá das circunstâncias. Se o locador se comportar como um “normal” locador, então será responsável perante o locatário.
Por interessar ao caso dos autos, vejamos a distinção entre locação financeira e compra e venda.
Economicamente, a compra e venda é um negócio de troca, pelo qual se trocam bens (coisas ou direitos) por dinheiro.
Esta base económica é estruturada juridicamente no artigo 879.° do Código Civil: a obrigação principal do vendedor é a entrega do objecto comprado; enquanto que o comprador tem de entregar o preço de venda; a transmissão da propriedade da coisa opera-se para efeito do contrato.
No tocante à repartição dos riscos, o artigo 796.°, 1 do Código Civil determina que o risco pelo perecimento ou deterioração da coisa corre por conta do adquirente.
Parece evidente que existem também muitas coincidências entre o contrato de locação financeira e o contrato de compra e venda, pelo menos o contrato da compra e venda a prestações.
O locatário, na locação financeira, procura obter, não o uso de um bem durante um período mais ou menos longo, mas obter o próprio bem durante a maior parte da sua vida útil ou durante a totalidade da sua vida útil. O utente vai obter todas as utilidades do bem correspondentes à sua vida útil; nesta medida está a adquirir o próprio bem. E, de qualquer modo, o contrato oferece a faculdade ao utente de aceder à propriedade do bem — faculdade que este exerce, normalmente.
O utente faz um investimento através do bem. Investimento de que suporta integralmente os riscos, como se de uma compra se tratasse.
É o utente que toma a iniciativa, escolhe a coisa de acordo com as suas necessidades e a negoceia com o vendedor.
O risco económico corre por conta do utente. Se a utilização da coisa não é rentável não se pode desfazer dela como o faria, por exemplo, o locatário. Suporta o risco da perda ou da deteriorização da coisa, da sua obsolescência económica, do seu desgaste físico. Encontra-se na posição de proprietário comprador (a prazo…), não podendo desinteressar-se da coisa antes do reembolso integral do “locador”.
À prestação única do locador — entrega da coisa (do uso da coisa)—corresponde uma dívida única do locatário correspondente ao valor da coisa, pelo menos durante o período da sua utilização, acrescida de juros, lucros e outros encargos. Esta dívida existe desde a celebração do contrato, embora o seu reembolso seja fraccionado.
A perda da coisa não extingue a obrigação do devedor. Trata--se, pois, de uma obrigação de prestação “fraccionada” quanto ao cumprimento, mas unitária em si mesma, na medida em que o objecto da prestação se encontra pré-fixado sem dependência da duração da relação contratual — o que explica que a falta de cumprimento de uma das “fracções” implique o vencimento imediato das restantes (artigos 781.° e 984.° do Código Civil).
A cessão do bem é contratada por um período próximo do da sua vida útil.
No fim do contrato o “locador” receberá o equivalente do custo da coisa, enquanto que o “locatário” terá gozado o valor económico da coisa. Nestes termos, e quer haja ou não opção de compra, a locação financeira tem por objecto fins económicos muito próximos dos da compra e venda a prestações. O locador só “reserva” a propriedade da coisa a título de garantia, como reserva da propriedade.
Contudo, também a equiparação da locação financeira à compra e venda a prestações não parece possível. Pelo menos sob o ponto de vista jurídico.
Se abandonarmos a consideração dos interesses económicos das partes, muito variáveis e de qualquer modo externos à estrutura contratual, e analisarmos a estrutura contratual, ou seja, o quadro jurídico através do qual aqueles interesses são actuados, encontramos divergências entre a locação financeira e a compra e venda.
As partes não tiveram em vista a transferência da propriedade sobre a coisa que seria elemento essencial da compra e venda. Nenhuma transferência de propriedade se opera aqui “ipso iure”.
O “locatário” tem o direito contratual de exigir do “locador” que este celebre com ele, no fim do contrato, um contrato de compra e venda tendo como objecto o bem locado. Ou seja: a compra do bem realiza-se por contrato posterior ao contrato de locação financeira, não sendo, pois, um efeito deste operado pelo pagamento da última prestação.
De entre as objecções que se podem apontar à qualificação do contrato locação financeira como contrato de compra e venda, ainda podemos indicar outra.
Na compra e venda o vendedor fornece uma coisa conforme ao pedido do comprador e garante que não tem defeitos.
Na locação financeira não há qualquer prestação positiva do locador ou locatário em relação directa com o próprio bem. Em tudo o que se refere ao bem é o utente que trata com o fornecedor--produtor do bem e que se responsabiliza perante o locador e não o contrário. O locador limita-se a pagar o bem ao fornecedor.
Já quanto à inclusão do contrato de locação financeira na locação propriamente dita compreende-se dado que nos países anglo-saxónicos não há uma distinção clara entre as duas figuras, tendo nascido a locação financeira da locação. “Leasing” reflecte bem esta origem, na medida em que “lease” significa locação.
Há que perguntar se a locação financeira não é, efectivamente, redutível ao contrato de locação.
Contrariamente aos contratos da alienação (compra e venda e análogos) que estão orientados para a transferência remunerada da propriedade das coisas ou outros direitos, a locação, aqui compreendida a locação financeira, permanece como a forma básica de cedência remunerada das coisas para uso do adquirente/utente.
O locador continua proprietário do bem; dado que o contrato de locação se caracteriza pela obrigação do locador de ceder temporariamente o gozo da coisa, tendo como contrapartida uma certa remuneração (artigo 1012.° do Código Civil).
Daqui decorre que, o locador-proprietário é responsável pelos vícios da coisa (artigo 1032.° do Código Civil); deve mantê-la e repará-la (artigos 1031.° e 1036.°); correndo, nos termos gerais, por sua conta, o risco do perecimento da coisa.
Tanto numa figura como na outra a obrigação principal do locador está em ceder o gozo da coisa; enquanto que o locatário, também em ambas as figuras, está obrigado a usar a coisa de acordo com o fim a que se destina e a pagar uma certa retribuição (renda). Em termos de se afirmar que a locação permanece durante toda a relação de locação financeira o tipo básico normativo. O contrato, mesmo que tenha a causa remota do interesse do locatário em ser financiado pelo locador, só adquire significado jurídico através da concessão do uso. É esta que o caracteriza fundamentalmente.
A estrutura de locação mantém-se na locação financeira em tudo o que se refere à cedência do uso. As modificações (a este nível) são só introduzidas acessoriamente para ponderar o significado especial do financiamento da operação locativa.
Contudo existem algumas diferenças entre ambas as figuras.
Diferenças que são postas em evidência pelos textos do Código Civil que se referem à locação e pelas normas que se referem à locação financeira.
Assim, na locação, o risco de perecimento da coisa corre por conta do locador; enquanto que na locação financeira é o locatário que o suporta (artigo 15.° do DL n.° 149/95).
Também o dever de conservar e reparar a coisa incumbe, na locação financeira, ao locatário (artigo 10.°). Enquanto que na locação assiste ao locador.
Normalmente na locação financeira o locador-proprietário não tem a intenção de usar o bem, de correr os riscos próprios do proprietário, nomeadamente o risco económico de não rentabilidade de coisa e do seu perecimento. O locador-proprietário quer que o bem seja usado, com a assunção integral do risco, pelo utente.
O locatário/utente, não pretende obter o (simples) uso de um bem disponível no mercado de locação. Realiza verdadeiramente um investimento, traduzido em parte ou na totalidade do valor do bem, correndo o risco equivalente do seu perecimento ou da sua não rentabilidade.
Sendo assim, o locador desinteressa-se da coisa, sob o ponto de vista económico-financeiro que não sob o ponto de vista jurídico. Enquanto que, sob o ponto de vista económico-financeiro, o locatário tem uma “verdadeira” “propriedade útil” do bem.
O locador (financeiro) não escolhe o bem, não determina as suas características, não se preocupa com a sua rentabilidade. São tudo assuntos que dizem respeito ao utente.
Estamos nos antípodas da posição (do mero) do locador que escolhe o bem de acordo com o seu interesse económico, o oferece, o entrega e o mantém em estado de funcionamento; assumindo os riscos inerentes. Explora-o, em suma.
Pelo contrário, o utente escolhe o bem de acordo com as suas necessidades e assume o risco económico da sua utilização. Se esta não for rentável ou o bem não se adequar às suas necessidade, não pode cedê-lo ao fim de um período mais ou menos curto, como acontece na locação (vd. artigos 1.°, 10.°, 12.°, 13.°, 14.° e 15.° do referido DL).
Depois, na locação as rendas são prestações periódicas, correspondentes a períodos sucessivos, dependentes da duração do contrato, em termos de, desaparecido o bem, desaparecer a obrigação. Pelo contrário, na locação financeira há (“economicamente”) uma obrigação única do devedor, correspondente, “grosso modo”, ao custo do bem, com prestações “fraccionadas” no tempo.
O locatário aparece, pois, como “proprietário económico” do bem que paga integralmente, ou na sua maior parte, durante o período do contrato, e cujos riscos assume.
Continuamos, apesar disso, com alguma incerteza entre os limites de locação financeira e o contrato de locação. O que se compreende dada a génese do contrato de locação financeira, a grande proximidade dos fins de um e de outro.
Neste sentido, não basta fazer uma interpretação das normas da lei, com vista a criar conceitos e subdistinções. Há que aplicar estes conceitos e subdistinções aos casos concretos, no sentido de os subsumir nos quadros da locação ou da locação financeira. O que só se consegue através de um diálogo constante entre a norma e o caso.
Na distinção com a locação-compra as rendas pagas durante o período de duração do contrato amortizam totalmente o desembolso do locador, adquirindo o locatário a propriedade com o pagamento da última prestação da renda. Também se pode estabelecer um preço final, se o desembolso do locador acrescido à sua margem de lucro não tiver sido suficientemente coberto pelas rendas pagas.
Assim haverá, normalmente um contrato misto de locação com compra e venda.
Tem sido uma modalidade contratual bastante usada em diversos países no âmbito imobiliário, mas também quanto aos bens móveis, sobretudo automóveis.
Os seus contornos económicos são dificilmente separáveis dos da compra e venda a prestações. Embora sob o ponto de vista jurídico, do regime dos contratos, seja possível distingui-los em virtude do ingrediente “locatício” que existe na locação-compra.
A principal distinção entre a locação-compra e o contrato de locação financeira é a de que, no contrato de locação financeira, não existe uma aquisição automática ou sequer um contrato de promessa de compra e venda, entre o locador e o locatário. Enquanto que na locação-compra existe essa aquisição automática ou, pelo menos, um contrato de promessa de compra e venda.
(Sobre esta matéria, e para maiores desenvolvimentos, vd. Diogo Leite de Campos, A Locação Financeira (Estudo preparatório de uma reforma legislativa), Lisboa, 1994. Este estudo contém os trabalhos preparatórios que levaram à publicação do Decreto--Lei n.° 149/95. Diogo Leite de Campos, A locação financeira: estudo preparatório de uma reforma legislativa, Lisboa, Lex, 1994 (estudo preparatório do DL
n.°149/95).
Tendo presente esta caracterização do contrato de locação financeira, situemo-nos agora na caracterização do regime da propriedade horizontal e da sua articulação com o contrato de locação financeira.
Isto porque, na relação jurídico-contratual em causa, convergem os regimes da propriedade horizontal e do contrato de locação financeira imobiliária, ambos visando realidades sócio-económicas e jurídicas diversas, a implicar uma visão enquadrada dos dois regimes tendo em conta a sua harmonização.
Na propriedade horizontal coexistem dois tipos de propriedade: a propriedade exclusiva da fracção de certo condómino e a compropriedade de todos os condóminos relativamente às partes comuns.
“O que caracteriza a propriedade horizontal e constitui razão de ser do respectivo regime é o facto de as fracções independentes fazerem parte de um edifício de estrutura unitária.
A propriedade horizontal pressupõe a divisão de um edifício através de planos ou secções horizontais, por forma a que, entre dois planos se compreendam uma ou várias unidades independentes, ou ainda através de um ou mais planos verticais, que dividam igualmente o prédio em unidades autónomas.
Logo, em alguns casos, a chamada propriedade horizontal, pode ser propriedade vertical. A divisão através de um ou vários planos é a única possível quando se trate de edifícios de um só piso”. - Henrique Mesquita, RDES, XXIII-84.
Como se sabe, no regime da propriedade horizontal conflui um feixe de direitos de que é titular o proprietário de fracção autónoma, [sem que tal situação se confunda com a compropriedade]; a titularidade de um direito de propriedade, exclusivo relativamente à fracção autónoma, e compropriedade com os demais condóminos, relativamente às partes comuns.
Oliveira Ascensão, in “Direitos Reais”, 3ª edição, págs. 462 e 464, depois de alusão histórica ao instituto, afirma acerca da natureza jurídica da propriedade horizontal:
“Cremos porém que a qualificação correcta desta situação é a de propriedade especial. Embora se conjuguem propriedade e compropriedade a propriedade é o fundamental, sendo a compropriedade meramente instrumental. Escopo da propriedade horizontal não é criar uma situação de comunhão: é permitir propriedades separadas, embora em prédios colectivos (…).
Sendo assim, há nuclearmente uma propriedade, mas esta é especializada pelo facto de recair sobre parte da coisa e de envolver acessoriamente uma comunhão sobre outras partes do prédio. Estas especialidades levam a que a lei tenha tido a necessidade de recortar um regime diferenciado. Isto é típico justamente das propriedades especiais, de que a propriedade horizontal nos oferece o melhor exemplo…”.
O art. 1424º, nº1, do Código Civil estatui:
“Salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas fracções”.
Comentando tal normativo, o Conselheiro Aragão Seia, in “Propriedade Horizontal – Condóminos e Condomínios”, pág. 121 escreve:
“A norma em anotação tem carácter supletivo por no nº l ressalvar disposição em contrário e no nº 2, mas agora só quanto às despesas relativas ao pagamento de serviços de interesse comum, prever possível acordo em contrário. A diferença de regime de um e de outro inciso reside no modo de aprovação do negócio jurídico...
Relativamente à repartição e pagamento das despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns o acordo tem de resultar da vontade unânime dos condóminos, consubstanciada em escritura pública, pois trata-se de modificação do título constitutivo – nº l do artigo 1419.°...”.
O referido autor cita o Prof. Henrique Mesquita, in “A Propriedade Horizontal no Código Civil Português, RDES, XXIII, 130”:
“A obrigação de contribuir para estas despesas é uma típica obrigação propter rem – uma obrigação decorrente não de uma relação creditória autónoma, mas antes do próprio estatuto do condomínio. Nota 119: Mesmo quando as obrigações que impendem sobre os condóminos resultem do título constitutivo (e não directamente da lei), a sua força vinculativa decorre da eficácia real do estatuto do condomínio e não de um acto de aceitação por parte daqueles”.
Se isto é assim para o regime da propriedade horizontal, importa saber se, no caso de contrato de locação financeira imobiliária, o regime será diverso.
Vimos atrás a caracterização deste contrato e relação com figuras afins, mais próximas e com interesse para o caso dos autos.
Como vimos, a locação financeira ocorre, como um núcleo apto a supor­tar os fenómenos da união de contratos e dos contratos mistos.
Tomando-a, na sua globalidade, a locação financeira é um contrato oneroso, sinalagmático bivinculante, temporário mas origi­nando relações duradouras e de feição financeira".
A locação financeira constitui um tipo contratual autónomo, entre a compra e venda e a locação, mas distinta destas situações contratuais.
Na realidade, pode-se dizer que a locação financeira começa por poder enquadrar-se numa estrutura contratual mista (de compra e venda, de locação e, eventualmente, de mútuo), mas, com o decorrer do tempo, autonomizou-se, dando origem a um tipo contratual novo.
Todavia, em tudo o que não estiver especialmente regulado, há que recorrer às regras gerais e às normas dos contratos que lhe serviram de fonte” – Pedro Romano Martinez, in “Contratos Comerciais” – pág.61.
Diogo Leite de Campos, in Ensaio de Análise Tipológica do Contrato de Locação Financeira, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XXIII, p. 10 - “A locação financeira pode ser definida como o contrato a médio ou a longo prazo dirigido a financiar alguém, não através da prestação de uma quantia em dinheiro, mas através do uso de um bem. Proporciona-se ao locatário não tanto a propriedade de determinados bens, mas a sua posse e utilização para determinados fins”.
O contrato de locação financeira (leasing) por alguns considerado um contrato de crédito ao consumo [Gravato Morais, “Locação Financeira e Desconformidade da Coisa com o Contrato”, Scientia Iuridica, Tomo LIV, 2005, nº304, págs. 697 a 731], não obstante pressupor que em campos jurídicos distintos se situam o dono/locador da coisa e o locatário financeiro/fruidor, constitui uma realidade económica que tendo de muito relevante o financiamento da aquisição de bens, estabelece um regime legal que visa, em função do nodal aspecto de fruição económica em vista da expectativa de aquisição do direito de propriedade que constitui um direito potestativo do locatário contra o qual o locador nada pode, impõe ónus e riscos que, na pura lógica do direito de propriedade, ainda que comprimido por outro direito real ou obrigacional, mal se compreenderiam.
Engrácia Antunes, in “ Direito dos Contratos Comerciais”, 2009, pág. 516, considera o leasing, tal cessão financeira (“factoring”), a titularização de créditos (“securitization”), a monetarização de créditos (“forfaiting”) e o contrato de financiamento de projecto específico (“Project finance”), contratos de financiamento.
Assim é que nos termos do art. 13º – “O locatário pode exercer contra o vendedor ou o empreiteiro, quando disso seja caso, todos os direitos relativos ao bem locado ou resultantes do contrato de compra e venda ou de empreitada”.
A natureza peculiar desta norma e ampla protecção dispensada ao locatário, que, diríamos, é o dono económico da coisa na vigência do contrato, mereceu do Professor Calvão da Silva as seguintes palavras na sua obra “Direito Bancário”, 2001, pág. 426:
“O locatário pode propor directamente contra o vendedor todas as acções que, enquanto adquirente da coisa, competiriam ao locador-proprietário, contempladas no art. 913.° e segs. do Código Civil: anulação da venda, redução do preço (actio quanti minoris), indemnização do dano, reparação ou substituição da coisa.
A anulação da venda e a redução do preço acarretarão, consequentemente, a anulação do contrato de locação financeira e a redução proporcional da renda a pagar pelo locatário, respectivamente”.
Na obra citada, pág. 425, acerca do art. 12º (3) da lei citada (vícios do bem locado) – afirma:
“Por um lado, a vocação principal do locador é a de intermediário financeiro, de “capitalista” financiador.
Por outro lado, foi o locatário que fez a prospecção do mercado, que escolheu o equipamento destinado à sua empresa e é ele que o vai utilizar, com opção de compra findo o contrato.
Nada mais natural, portanto, do que a transferência legal para o locatário dos riscos e responsabilidades conexos ao gozo e disponibilidade material da coisa que passa a ter após a entrega, incluindo a sua manutenção e conservação (art. 10.°, nº l, als. q) e f), do Decreto-Lei nº149/95) e o risco do seu perecimento ou da sua deterioração (ainda que) imputável a força maior ou caso fortuito (art. 15.° do Decreto-Lei n.°149/95).
No fundo é co-natural ao leasing que a sociedade locadora se obrigue a adquirir e a conceder o gozo da coisa ao locatário mas se desinteresse ou exonere dos riscos e da responsabilidade relativos à sua utilização”.
Na locação financeira imobiliária, existe um contrato de financiamento, visando, tendencialmente, um contrato de compra e venda; mas, enquanto este contrato perdurar a relação jurídico-negocial tem notória afinidade com o contrato de arrendamento.
Durante o tempo por que perdura, o locatário entra na posse material do imóvel dado em locação (i)mobiliária e, tal como um mero arrendatário, tem poderes de fruição temporária – medida esta pelo período de duração do contrato – mediante o pagamento de uma renda.
Nos termos do DL. 10/91, de 91, entretanto revogado pelo art. 2º do DL. 265/97, de 2.10, o locatário financeiro assumia, em nome próprio, todos os direitos e obrigações do locador relativos às partes comuns do edifício, suportando as despesas correspondentes às partes comuns do edifício e as despesas de administração, participando e votando nas assembleias de condómino, podendo, nelas ser eleito para os diversos cargos.
O locatário assumia estes direitos e obrigações, segundo a lei, em nome próprio e directamente – o assumir de tais direitos não dependia de nenhum acordo com o locador.
Como refere Sandra Passinhas, in “A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal”, pág. 209:
“As sociedades de locação financeira são instituições que não se dedicam à gestão da propriedade do bem e, muito menos, em assumir o papel de proprietário.
A propriedade desempenha um papel fundamentalmente instrumental do financiamento não sendo um fim em si mesmo.
Daí que, no termo do contrato, normalmente, se verifique a aquisição da coisa pelo locatário”.
Objectivo confessado do DL.265/97, de 2.10, foi introduzir alterações ao DL.149/95, “designadamente prevendo situações de propriedade horizontal – por forma que o regime geral melhor acomode os contratos que tenham aquele objecto.
Estabelece-se assim, um regime jurídico uniforme para o contrato de locação financeira, independentemente do respectivo objecto.” – cfr. preâmbulo do diploma.
Assim, o art. 10º, nº1, b) do citado DL. 149/95, passou a estabelecer:
“São, nomeadamente, obrigações do locatário: pagar, em caso de locação de fracção autónoma, as despesas correntes necessárias à função das partes comuns de edifício e aos serviços de interesse comum”.
Ora, sendo traço comum da locação financeira, mobiliária e imobiliária, a fruição onerosa e temporária de um bem, o legislador quis colocar a cargo do locatário de fracção autónoma o pagamento das despesas comuns do edifício e os serviços de interesse comum, certamente em homenagem à vocação do tipo contratual, que visa o financiamento do locatário.
Daí que, com o devido respeito, o regime das obrigações propter rem deva ter aqui em atenção a especificidade do contrato e o fim económico que o tipo contratual visa.
O Professor Henrique Mesquita define as obrigações propter rem “como vínculos jurídicos em virtude dos quais uma pessoa, na qualidade de titular de um direito real, fica adstrita para com outra (titular ou não, por sua vez, de um ius in re) à realização de uma prestação de dare ou de facere”– “Obrigações Reais e Ónus Reais”, Coimbra, Almedina, 1990. pág. 100.
Vigora o princípio da tipicidade quanto às obrigações reais.
Henrique Mesquita, na obra citada, depois de questionar se as obrigações propter rem podem ser criadas livremente pelos particulares, ou só são admitidas nos casos previstos na lei, escreve na pág. 288:
“…Fazendo as obrigações propter rem parte do conteúdo do ius in re, há-de valer naturalmente para elas o princípio da taxatividade a que, por força do preceituado no artigo 1306º, nºl, estão subordinados, quer quanto às modalidades que podem revestir (numerus clausus), quer quanto ao respectivo conteúdo, os direitos sobre as coisas.
A principal razão que, no campo dos direitos reais, justifica aquele princípio é a conveniência em não sujeitar o estatuto dos bens a vinculações desmotivadoras do seu pleno aproveitamento económico.
Ora a liberdade de criação de obrigações propter rem, se acaso fosse admitida, seria a porta aberta para a introdução de todas as peias e gravames que o princípio da taxatividade pretende precisamente evitar”.
Sendo as obrigações propter rem excepcionais, já que quanto a elas a autonomia privada se mostra cerceada, em salvaguarda à livre e plena – tanto quanto possível pelo ordenamento jurídico – fruição dos bens e das suas vantagens económicas – quanto menos peias melhor, diríamos.
Ora se o legislador teve necessidade de estabelecer normativo indicativo das obrigações do locatário, nos termos vistos, é justamente para regular o regime a aplicar, fechando a porta a outro tipo de interpretações não contidas no espírito e letra da lei.
É sabido que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem defendendo que incumbe ao locatário financeiro e não ao locador, pagar as despesas de condomínio.
O Acórdão do STJ de 2 de Março de 2010, proferido no Proc. nº 5662/07, publicado in www.dgsi.pt. que, nesta parte, vimos seguindo, pronuncia-se sobre a questão de saber se obrigação em causa de pagamento das despesas comuns, sendo em regra uma obrigação real inerente à titularidade do direito de propriedade, pode ser desligada dele e atribuída a quem tenha sobre a coisa um poder causal (factual e jurídico em virtude de um contrato).
Refere que estamos imersos na vertente da ambulatoriedade da obrigação propter rem, ou seja, a questão da transmissibilidade dessa obrigação que nasce por causa da titularidade do direito real sobre a coisa.
Sendo a obrigação propter rem, conexa, dependente e acessória de um direito real, em princípio acompanharia as vicissitudes deste, mormente, a sua transmissão para adquirentes ou beneficiários do direito transmitido como sucede com o subadquirente do usufruto em relação à obrigação de fazer obras na coisa objecto desse direito real de gozo – art. 1444º do Código Civil – isto porque impor ao usufrutuário a realização de obras quanto não exerce soberania sobre a coisa – seria injusto.
Seguindo a lição de Henrique Mesquita, importa reflectir sobre o caso que versa a fls.321/322 da obra citada, quanto a saber se o titular de uma fracção autónoma que tinha em dívida várias prestações “para as despesas normais e recorrentes do condomínio” a aliena.
O autor considera que seria injusto fazer recair essas dívidas sobre o comprador da fracção.
Assim afirma, pág. 321/322:
“Tratando-se de prestações destinadas a custear despesas habituais originadas pela utilização de serviços ou pelo consumo de bens necessários a assegurar a funcionalidade normal do condomínio, seria igualmente injusto fazê-las recair sobre o adquirente da fracção.
Por um lado, este não disporia, tal como no caso anterior, de quaisquer elementos objectivos que revelassem ou indiciassem a existência das dívidas.
Por outro lado, tais prestações representam, em regra, na economia do instituto, a contrapartida de um uso ou fruição (das partes comuns do edifício) que couberam ao alienante e, por conseguinte, só a este deve competir o respectivo pagamento”.
Mais adiante conclui:
“O exposto basta, sem necessidade de mais exemplos, para podermos concluir que é de rejeitar a doutrina (tradicional) que considera a ambulatoriedade uma característica de todas as obrigações propter rem, no sentido de que a transmissão do direito real de cujo estatuto a obrigação emerge titular do ius in re.
Se há obrigações em que a ambulatoriedade se impõe, outras existem, pelo contrário, que devem considerar-se intransmissíveis, por ser essa a solução que melhor se harmoniza com os vários interesses a que importa conferir tutela adequada” e mais adiante – pág. 326 – “A obrigação propter rem, tal como a definimos, e sempre um elemento adminicular nas figuras de natureza real, representando a carga negativa da soberania ou domínio em que qualquer ius in re nuclearmente se traduz”. (sublinhámos)

Tendo em conta a especificidade do contrato de locação financeira imobiliária, a sua função económica e o facto do locatário financeiro assumir uma posição muito próxima da do arrendatário vinculístico, mormente, quanto ao uso e fruição do imóvel (na locação financeira com a expectativa de se tornar dono do imóvel), e sendo certo que até no arrendamento pode o arrendatário convencionalmente arcar com as despesas de condomínio, não é cabido considerar-se como não ambulatória a obrigação de pagamento das despesas condominiais, para as fazer recair sobre o locador financeiro, que não é o “dono económico” do imóvel nem beneficia de qualquer vantagem directa inerente à respectiva fruição.
Sobre a temática do recurso em apreciação já se pronunciou este Supremo Tribunal de Justiça em dois arestos recentes; o primeiro de 10.7.2008 – Proc. 08A1057 – in www.dgsi.pt – Relator Conselheiro Urbano Dias – com esclarecida e abundante fundamentação – citando-se do sumário:
“Por via do regime-regra consagrado no artigo 1424º do Código Civil é ao locatário financeiro que compete o pagamento da quota-parte devida pela fracção que ocupa, em homenagem ao preceituado no artigo 10º, nº 1, alínea b) do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 265/97, de 2 de Outubro”.
O segundo Acórdão, prolatado em 6.11.2008 – Proc. 08B2623 – também acessível, in www.dgsi.pt – Relator Conselheiro Santos Bernardino:
“ […] Estando uma fracção autónoma dada em locação financeira, é do locatário financeiro que o condomínio deve exigir o pagamento dos “encargos condominiais” respectivos: o estatuto do locatário financeiro é, em tudo, idêntico ao de qualquer condómino, sendo sobre ele, e não sobre o locador, que impende a responsabilidade por esse pagamento”.
Só que, se tal entendimento encontra suporte no disposto naquele 10º, nº 1, alínea b) do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 265/97, de 2 de Outubro, entendemos, parente o quadro jurídico do regime da locação financeira acima enunciado, não ser o mesmo preceito legal aplicável ao caso dos autos.
Tendo presente os traços do regime legal deste instituto já bem delineado atrás, secundamos o entendimento da sentença recorrida, quando refere “ É certo que ao locatário financeiro a lei permite que exerça, na locação da fracção autónoma, os direitos próprios do locador, com excepção dos que pela sua natureza somente por aquele possam ser exercidos – art. 10º nº 2 alinea e) do DL nº 149/95 de 24/06.
Entendemos que nos direitos próprios do locador que só por este podem ser exercidos se encontram todos aqueles que impliquem a disposição de partes comuns e alteração do título constitutivo e que o locatário tem direitos ligados ao uso (gozo) das partes comuns.
Dito de outro forma: entendemos que tudo o que implique dispor da coisa, própria ou comum, cabe ao locador e não ao locatário.
Assim, nomeadamente alterar o título constitutivo da propriedade horizontal no sentido de alterar o fim a que se destina a fracção ou parte comum, autorizar alterações nas partes comuns, obras ou outras, com único limite na lei.
Tais direitos só pelo condómino proprietário podem ser exercidos e não pelo locatário financeiro.
E o mesmo entendimento se deve aplicar à utilização lícita, ou ilícita por parte dos condóminos (porque desconforme com o título constitutivo da propriedade).
É o que se verifica nos presentes autos: o requerente enquanto locatário da fracção autónoma não pode reagir contra o uso que os proprietários das fracções A e B pretendem dar-lhe, ainda que tal uso possa ser ilícito face ao que consta do titulo constitutivo da propriedade horizontal, até porque o requerente não pode opor-se a uma eventual alteração daquele titulo, que pode ter lugar sem o seu consentimento e até contra a sua vontade. Nem pode reagir contra obras a realizar ou realizadas nas partes comuns, que importem disposição das partes comuns e não apenas o seu uso.
Permitir tal situação poderia conduzir, no limite, a que o locatário pudesse reagir contra uma posição tomada pelo locador, na sua qualidade de proprietário da fracção autónoma. Só o locador pode exercer direitos que impliquem actos de disposição e o locatário apenas pode impugnar tais actos desde que devidamente mandatado/autorizado pelo locador, pois só este tem para tanto legitimidade.
A legitimidade – activa ou passiva – para casos como o dos autos radica-se nos próprios condóminos, nos termos definidos supra.
Assim, não tendo o requerente legitimidade para reagir contra o alegado uso ilícito das fracções, por ser simplesmente locatário e não proprietário da fracção autónoma em causa, não é titular da relação controvertida, sendo, consequentemente, de considerar parte ilegítima na providência cautelar. Porém, o requerente também alega que a abertura do restaurante e a sua continuação em funcionamento afecta (tendo em conta a antiguidade e o tipo de construção do prédio) o seu direito ao descanso, ao repouso, tranquilidade, privacidade, segurança.
Em relação a este especifico ponto, porque em causa pode estar uma ofensa a direitos de personalidade do requerente, goza aquele de legitimidade para os termos do procedimento, legitimidade restrita aos prejuízos que para si possam advir e não também e eventualmente para a sua família, uma vez que não a representa.
Apesar de o requerente ser casado e ter instalada a casa de morada da família na fracção autónoma referenciada nos autos a intervenção do cônjuge não é necessária, por não estarem em discussão aqueles direitos referidos no art. 28º-A do CPC.
Não se verifica, pois, a invocada excepção dilatória da ilegitimidade activa por preterição de litisconsórcio necessário a qualquer título.
Donde, e em conclusão, julga-se parcialmente procedente a invocada excepção dilatória da ilegitimidade activa, no tange aos pedidos formulados que exijam a qualidade de condómino, e, em consequência, absolvem-se as requeridas da instância.”
Aderindo a esta parte, também no mais, a sentença não oferece reparo pelo que se mantém na íntegra, julgando improcedente a apelação.
*
DECISÃO
Nos termos expostos, Acórdão os Juízes da 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo na íntegra a sentença recorrida.
Custas a cargo do apelante.

Lisboa, 15 de Março de 2012

Maria Amélia Ameixoeira
Ferreira de Almeida
Silva Santos