Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
338/11.1TBBRR-D.L1-1
Relator: MANUEL MARQUES
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
REQUISITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/14/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Tendo o devedor contraído novos empréstimos, para fazer face a endividamentos anteriores, após a sua situação de insolvência, o que fez consciente da sua incapacidade para poder liquidar as suas dívidas, tendo-se apresentado à insolvência mais de seis meses após a verificação daquela situação, agiu de forma censurável em prejuízo dos credores, pelo que não pode beneficiar do instituto da exoneração do passivo restante - al d) do n.º 1, do art.º 238º do CIRE.
( Da Responsabilidade do Relator )
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Nos autos de processo especial de insolvência supra identificados, A apresentou-se à insolvência, tendo, por sentença de 27-02-2011, transitada em julgado, sido declarada a insolvência do mesmo.
No requerimento inicial, apresentado no dia 27 de Janeiro de 2011, o devedor solicitou a concessão da exoneração do passivo restante.
A credora B opôs-se a tal.
No relatório a que se reporta o art.155º do CIRE o Sr. administrador pronunciou-se favoravelmente ao pedido de exoneração do passivo restante.
Na assembleia de credores para apreciação desse relatório, o credor C pronunciou-se no mesmo sentido, tendo o credor D se oposto a tal.
Posteriormente, pelo requerimento de fls. 183/185 do processo principal, o insolvente veio aduzir as razões pelas quais deve ser exonerado do passivo restante, tendo alegado, em suma, que contava à época dos empréstimos de 2007 com uma pequena poupança que lhe permitiu honrar os seus compromissos até há bem pouco tempo; que o endividamento posterior a 2008 deveu-se ao recurso a novos créditos com o objectivo de poder honrar os compromissos anteriormente assumidos; que enquanto atrasava a situação de insolvência ia procurando um novo emprego, que lhe permitisse um acréscimo de rendimentos necessários para fazer face aos compromissos assumidos; que a situação de grave crise económica e financeira que o país atravessa com o elevado índice de desemprego constitui um quadro negativo que inviabilizou essa pretensão; que só em Outubro de 2010 esgotou as tentativas de renegociação das dívidas com os credores e de procurar trabalho para angariar recursos tendo em vista proceder ao pagamento das dívidas; que só tomou consciência da situação em que caiu em Outubro de 2010; e que do seu agregado fazem parte a sua filha e a neta, as quais vivem na sua dependência económica, uma vez que a filha está desempregada e não aufere subsídio de desemprego, nem recebe do pai da filha pensão de alimentos.
Por decisão de 30-09-2011 foi indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
Essa decisão fundou-se nos seguintes considerandos:
“Apreciando.
Com interesse para a decisão a proferir, importa considerar os seguintes factos:
- o requerente apresentou-se à insolvência por petição de 27.01.2011, alegando ter naquela data dívidas acumuladas no valor de, pelo menos, € 71.575,24, relativas a sucessivos empréstimos contraídos entre Maio de 2007 e finais de 2009, cuja cobrança de alguns se mostra já em sede executiva, auferindo (o agregado) mensalmente o rendimento de € 1.457,43;
- a insolvência do requerente foi decretada por sentença proferida em 27.02.2011;
- foi junta relação definitiva de credores, situando-se o valor dos créditos reconhecidos em € 73.501,81;
- contra o requerente foi instaurado procedimento de injunção, com o n.º 413260/l0.4YIPRT, para cobrança de € 1.596,09;
- o insolvente contraiu os créditos nos exactos montantes e datas de concessão e incumprimento referidas por si na petição inicial, cujo teor se dá por reproduzido.
*
Estatui o art. 235° do CIRE que "se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo".
A exoneração do passivo restante" traduz-se na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, nas condições fixadas no incidente. Daí falar-se de passivo restante." (Carvalho Fernandes e João Labareda, ClRE, Anotado (Reimpressão), Quid Juris, Lisboa, 2006, pág. 184).
(…)
Apreciando os concretos requisitos e procedimentos fixados nos artigos 236.°, 237.° e 238.°, retira-se que, a concessão efectiva da exoneração pressupõe a não verificação das condições do n.º 1 do art. 238.° e, entre elas e que ao caso interessa, a da al. d), que dispõe que deve ser indeferido o pedido se "O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não o estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos 6 meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica".
Resulta do preceito ora citado que tal pedido deve ser liminarmente indeferido desde que se verifiquem, cumulativamente, três requisitos:
a) apresentação à insolvência em data posterior aos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência;
b) com prejuízo para os credores e;
c) conhecimento ou ignorância indesculpável da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Por outro lado, dispõe ao art. 3º n" 1, do CIRE, que é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as obrigações venci das.
Acrescenta o n.º 4 desse preceito legal que é equiparável à situação de insolvência actual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência.
Revertendo ao caso dos autos, temos que o requerente se apresentou à insolvência em 27.01.2011 e que nessa altura já tinha dívidas vencidas há mais de 6 meses, conforme resulta evidente, desde logo, do teor de fls. 37, o qual se dá por integralmente reproduzido.
A este propósito, saliente-se que "a cessação de pagamentos é um estado e não um facto. Perante as faltas de cumprimento de obrigações, aparece logo que se verifique não se tratar de uma falha casual e insignificante, mas antes a consequência duma incapacidade para pagar pontualmente por falta de crédito e de meios líquidos" (Pedra Macedo, Manual do Direito das Falências, 1964, Almedina, VoI. I, pág. 257).
Ora, como o próprio requerente admite, grande parte dos créditos pessoais contraídos a partir do ano de 2008 serviu para liquidar prestações de outros créditos incumpridos, factor seguramente indiciador de insolvência iminente.
Assim, em face dos factos acima indicados, resulta evidente que se deverá considerar que, pelo menos desde 2008, o insolvente se encontra numa situação de manifesta incapacidade de solver as suas dívidas, pelo que, mediando entre esta e o pedido de insolvência mais de 2 anos, já estão há muito ultrapassados os 6 meses que dispunha para se apresentar à insolvência, assim se verificando o primeiro dos requisitos do art. 2380 n" 1 d).
Quanto ao segundo dos requisitos, acompanha-se a corrente jurisprudencial que defende que o mero avolumar dos créditos, em face do vencimento dos juros e do consequente aumento do passivo global, não é suficiente para integrar o conceito de "prejuízo" exigido pelo preceito legal em análise (…).
E, no caso dos autos, da própria alegação do requerente resulta claro que já em Setembro de 2007 se encontrava numa situação financeira precária, não sendo minimamente aceitável que tenha sido o decréscimo de rendimentos na ordem de apenas € 140 mensais, em virtude da reforma antecipada, que tenha comprometido irremediavelmente a possibilidade de cumprimento pontual das suas obrigações.
Aliás, o requerente, que naquela altura já tinha contraído dois créditos, veio posteriormente a contrair outros seis empréstimos, no valor global de mais de € 30.000, valor esse que é manifestamente desproporcional ao da diminuição verificada no rendimento mensal.
Note-se que, logo que constate que se encontra em situação de, generalizadamente, não poder cumprir os seus encargos, o devedor deve apresentar-se à insolvência, por forma a que os credores fiquem a conhecer a sua real situação e possam accionar as medidas conservatórias e de garantia de que disponham (se for esse o caso) ou os meios legais coercivos com vista à satisfação dos respectivos créditos, o que no caso não aconteceu.
Por isso, é legítimo concluir que o facto de o requerente não se ter apresentado à insolvência no prazo que é legalmente fixado, conjugado com a circunstância de ter aumentado deliberadamente o passivo numa altura em que já revelava manifesta incapacidade de solver as suas dívidas, reverteu inexoravelmente em prejuízo dos credores.
Finalmente, no que concerne ao terceiro dos requisitos supra enunciados, aquilo que importa apurar é se o requerente se viu inesperadamente colocado numa insuperável situação financeira e, ainda assim, pautou a sua conduta por critérios de honestidade e transparência relativamente à capacidade para solver as suas dívidas, ou se, pelo contrário, a situação de insolvência decorreu de evidente imprudência que o levou a contrair créditos para consumo, muito para além das suas reais possibilidades financeiras, chegando ao ponto de o fazer apenas para satisfazer responsabilidades que se iam vencendo, assim protelando uma inevitável insolvência - e, nesta matéria, atenta a factualidade patenteada nos autos, dúvidas não se afiguram de que o requerente não só contribuiu decisivamente para a sua própria insolvência, como também não tinha qualquer motivo sério para acreditar que a sua situação económica iria melhorar, considerando designadamente o facto de já não se encontrar em plena idade activa, sendo deveras elucidativa a afirmação do próprio de que "perdeu a conta às responsabilidades mensais a que se encontrava obrigado".
Conclui-se, deste modo, que foi o próprio requerente quem criou, com culpa grave, a situação de insolvência em que veio a encontrar-se, pelo que a sua pretensão não pode merecer acolhimento.
Em face de tudo exposto, por verificação dos respectivos pressupostos negativos, nos termos conjugados do disposto nos artigos 237.° a) e 238.° n.o 1 d) e 2, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, indefere-se liminarmente a exoneração do passivo requerida por A”.
Inconformado com essa decisão, veio o insolvente interpor o presente recurso de apelação, o qual foi recebido, tendo apresentado alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
A) O apelante viu indeferido liminarmente o seu pedido de exoneração do passivo restante, nos termos do disposto nos artigos 238.°, n.º 1, al. d) e 237.°, al. a) do C.I.R.E.;
B) O Tribunal a quo deu como preenchidos os três requisitos cumulativos exigidos pelo artigo 238.°, n.º 1 al. d) para proceder ao indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante do apelante;
C) No entanto o despacho recorrido sofre de insuficiência na análise da matéria de facto e de toda a matéria de direito;
D) O apelante não se encontrava em situação de insolvência desde 2008 ao contrário do que argumenta o Tribunal a quo;
E) Como se pode retirar do que foi apresentado na Petição Inicial e na Oposição, o apelante nessa altura, beneficiava de créditos concedidos por entidades bancárias que lhe permitiam cumprir com as suas obrigações;
F) A situação de insolvência do apelante só se constatou em Outubro de 2010, quando verificou não ter condições para continuar a honrar os seus compromissos;
G) Acresce ainda que a situação de insolvência jamais se poderia ter verificado em 2008, pois nesse período o apelante contava com uma pequena poupança para solver a generalidade dos seus créditos;
H) A jurisprudência é actualmente no sentido de que não basta um incumprimento pontual antes se tem de verificar um manifesto e generalizado incumprimento das obrigações;
I) O apelante apresentou-se tempestivamente à insolvência em 27 de Janeiro de 2011, ou seja, dentro do prazo de seis meses exigidos após a verificação da insolvência;
J) Assim não poderia o Tribunal a quo ter indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante por não se encontrar preenchido o primeiro requisito cumulativo exigido pelo artigo 238.°, n.º 1 al. d) do C.I.R.E.;
K) O Tribunal a quo sustentou que no período de atraso da apresentação do apelante à insolvência, este aumentou deliberadamente o seu passivo, prejudicando os credores;
L) Tal como foi referido o apelante apresentou-se tempestivamente à insolvência não tendo, desde a verificação da insolvência até à sua apresentação à insolvência, aumentado o seu passivo (não contraiu novas dividas) ou diminuído do seu activo (não dissipou nem dilapidou o seu património);
M) Também não resulta do despacho recorrido que durante o período entre a verificação da situação de insolvência do apelante e a sua apresentação à insolvência, os credores tenham sofrido danos emergentes e lucros cessantes;
N) Não se encontra assim preenchido o segundo requisito previsto no artigo 238.°, n.º 1 al. d) do C.I.R.E., pois não houve prejuízo para os credores;
O) O apelante, após se ter reformado, procurou insistentemente um novo emprego de modo a aumentar o seu rendimento, não tendo conseguido;
P) O apelante sempre acreditou que conseguiria assumir os seus compromissos nos exactos termos em que os contratou, não pretendendo nunca deixar de o fazer.
Q) O apelante sempre assumiu uma conduta digna e responsável para com os seus credores, informando-os da sua dificuldade em pagar os seus créditos e tendo por várias vezes, encetado negociações para reajustar as prestações à sua actual situação financeira, o que se revelou infrutífero;
R) O despacho recorrido não fixa correctamente a matéria fáctica, estando em falta elementos sobre a situação pessoal do apelante, essenciais para a análise do pedido de exoneração do passivo restante;
SD) O apelante ignorava sem culpa, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica, pelo que o terceiro requisito do artigo 238.°, n.º 1 al. d) do C.I.R.E., não está preenchido;
T) Não estando verificados os três requisitos cumulativos previstos no artigo 238.°, n.º 1 al. d) do C.I.R.E., não pode o Tribunal a quo indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida, substituindo-o por despacho de concessão da exoneração do passivo restante do recorrente.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II. Nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3, e 685º-A, n.º 1, do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 660º do mesmo Código.
As questões a decidir resume-se essencialmente em saber:
- se é caso de alterar a matéria de facto;
- se se verificam os requisitos conducentes à concessão ao insolvente/apelante da exoneração do passivo restante.
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IV. Na decisão recorrida, o Sr. Juiz considerou provados os seguintes factos:
1. O requerente apresentou-se à insolvência por petição de 27.01.2011, alegando ter naquela data dívidas acumuladas no valor de, pelo menos, € 71.575,24, relativas a sucessivos empréstimos contraídos entre Maio de 2007 e finais de 2009, cuja cobrança de alguns se mostra já em sede executiva, auferindo (o agregado) mensalmente o rendimento de € 1.457,43;
2. A insolvência do requerente foi decretada por sentença proferida em 27.02.2011;
3. Foi junta relação definitiva de credores, situando-se o valor dos créditos reconhecidos em € 73.501,81;
4. Contra o requerente foi instaurado procedimento de injunção, com o n.º 413260/l0.4YIPRT, para cobrança de € 1.596,09;
5. O insolvente contraiu os créditos nos exactos montantes e datas de concessão e incumprimento referidas por si na petição inicial, cujo teor se dá por reproduzido.
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V. Da questão de mérito:
Da impugnação da matéria de facto:
Sustenta o apelante/devedor que a decisão recorrida sofre de deficiência na fixação da matéria de facto, estando em falta elementos sobre a sua situação pessoal.
Porém, o apelante não indica concretamente quais os factos incorrectamente julgados.
Seja como for, constando do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão em causa, pode esta Relação alterar a mesma, em conformidade com o estatuído no art. 712º, n.º 1 al. a) do CPC.
Esses elementos de prova são constituídos por documentos e pelo relatório do administrador da insolvência.
Por outro lado, a grande maioria dos factos articulados no requerimento em que o devedor se apresentou à insolvência não foram impugnados.
Ora, de acordo com o prescrito no art. 28º do CIRE, o articulado no requerimento de apresentação à insolvência, traduz o reconhecimento pelo devedor da sua situação de insolvência.
Isso significa que, para efeitos de declaração da insolvência, se considera esse reconhecimento como garantia suficiente de que o insolvente se encontra na situação fáctica descrita na p.i.
Ora, em sede do exercício do contraditório relativo ao pedido de exoneração do passivo restante, nos termos do art. 238º, n.º 2, do CPC não foram alegados factos diversos dos articulados na p.i. (a descrição fáctica constante do próprio relatório do Sr. Administrador não é antagónica com aqueles factos), tendo apenas a credora C contestado o montante das despesas aí alegadas (vide acta de fls. 166).
Assim, com excepção da matéria atinente àquelas despesas, haverão os factos articulados no requerimento inicial de ser considerados provados por confissão - nos moldes definidos no art. 490º, do CPC, aplicável “ex vi” do estatuído no art. 17 do CIRE - e por documento.
No que toca às despesas contestadas:
Estas reportam-se aos gastos do agregado (formado pelo devedor, filha e neta) com a alimentação, vestuário e calçado (no valor de €500,00) e ainda com as despesas médicas e medicamentosas (no valor de €150,00), incluindo-se nestas as que de modo permanente e fixo resultaram para a sua filha na intervenção cirúrgica a que foi submetida no ano de 2005.
Quanto a esta matéria, e tendo presente as regras de experiência comum, é verosímil que os gastos com a alimentação, vestuário e calçado de três pessoas totalizem pelo menos a quantia alegada pelo devedor/insolvente, a qual aponta para um dispêndio diário de menos de €17,00.
No que toca às despesas médicas e medicamentosas, muito embora se ignore o tipo de operação a que a filha do devedor/insolvente foi submetida, tendo presente as regras de experiência comum e que o facto em apreço em nada beneficia o alegante, tem-se também o mesmo por assente.
Assim sendo, para além da factualidade elencada na decisão recorrida, consideram-se assentes os seguintes factos:
1. O devedor/insolvente era funcionário do Metropolitano de Lisboa, onde exercia as funções de electricista.
2. Em 2007 o devedor/insolvente auferia de rendimentos do trabalho cerca de € 1.600,00 mensais.
3. Por força da política de pessoal da identificada empresa, aos 55 anos o devedor/insolvente viu-se condicionado a requerer a reforma antecipada.
4. A qual veio a ocorrer em 30/09/2007.
5. Passando então a auferir de quantias a título de reforma e de complemento de reforma.
6. Essas quantias eram em 2010 dos montantes mensais de €752,76 e de € 704,67 (valor líquido), respectivamente.
7. As quantias referidas em nos pontos 2 e 6 eram as únicas receitas auferidas pelo devedor/insolvente.
8. Integram o agregado familiar do devedor/insolvente a sua filha, E , solteira, de 25 anos de idade, e a sua neta, F , de 4 anos de idade, as quais viviam e vivem a expensas suas.
9. O devedor/insolvente habita em casa arrendada, sendo o valor da renda mensal em 2010 do montante de €333,00.
10. De água, luz e gás despende uma quantia mensal de cerca de €67,00.
11. De alimentação, vestuário e calçado do agregado despende uma quantia mensal na ordem dos € 500
12. De despesas médicas e medicamentosas (incluindo as que modo permanente e fixo resultaram para a sua filha da intervenção cirúrgica a que foi submetida no ano de 2005) despende a quantia mensal de cerca de €150,00.
13. Com início a 04/05/2007 o devedor/insolvente celebrou com a B , um contrato de utilização de um crédito até ao valor de € 2.500,00 euros, pagável em 48 prestações mensais de € 52,08 cada, acrescidas dos demais encargos e impostos constantes das condições contratuais (doc. 3 junto com a p.i., o qual se dá por reproduzido, assim como os demais documentos adiante referenciados).
14. Em 20-10-2010 o capital não liquidado à B era de €1.383,89, a que acresciam juros no montante de € 186,70.
15. E em 11/05/2007 o devedor/insolvente celebrou com a C um contrato de crédito consolidado através do qual esta lhe concedeu um crédito no valor € 39.000,00, reembolsável em 120 mensalidades de € 578,88 cada, acrescidas da quantia mensal de € 56,93 atinente ao custo do seguro.
16. O referido contrato teve, em parte, por objecto o pagamento dos saldos devedores dos créditos anteriormente concedidos ao devedor/insolvente pela G , H , C e I (pessoais e ao consumo), no valor global de €34.658,31, tudo conforme doc. 4.
17. O montante não liquidado à C ascendia em 07/12/2010 a € 37.916,57;
18. Sem outras receitas, para além da reforma e complemento de reforma, e acometido por um profundo estado depressivo resultante da impossibilidade de cumprir pontualmente o pagamento das prestações mensais dos empréstimos a que se tinha vinculado, o devedor/insolvente viu-se confrontado com a necessidade de procurar apoios para combater as dificuldades económicas existentes.
19. Tendo, recorrido a novos empréstimos.
20. Assim, em 01/08/2008, contraiu um empréstimo na G no valor de € 14,734,65, a liquidar em 82 prestações mensais no valor de € 282,47, incluindo o seguro (doc. n.º 10).
21. O montante não liquidado à G ascendia em 15/11/2010 à quantia de € 13.618,90.
22. Em 13/10/2008 o devedor/insolvente solicitou junto do J um cartão de crédito com um plafond de financiamento no montante de € 2.500,00, o qual lhe foi concedido (doc. n.º 11).
23. Em 10/10/2010 a quantia não liquidada ao J era de € 3.116,16 ( doc. n.º 22).
24. Em 13/10/2008 o devedor/insolvente requereu um empréstimo à D, que lhe foi concedido, da qual recebeu um financiamento no valor de € 4.346,98, pagável em 84 prestações mensais no valor de € 95,90, a que acresciam os respectivos juros e outros encargos constantes das condições contratuais (docs. n.ºs 13 e 14)
25. O capital não liquidado à D cifrava-se em 03/12/2010 em €3.905,91 e os juros vencidos em €1.500,66.
26. Em data não apurada do ano de 2009 o J atribuiu ao devedor/insolvente um outro cartão de crédito com um plafond de financiamento no montante de € 1.400,00.
27. Em Abril de 2010 o requerente tinha excedido esse limite de crédito.
28. E em 07/08/2010 o valor não liquidado era de € 1.761,24 (doc. n.º 24).
29. Posteriormente, ainda no ano de 2009, o devedor/insolvente obteve, igualmente, um crédito junto da empresa "L/H” no valor de € 5.250,00.
30. Em 16-12-2009 o valor não liquidado era de €5.255,09 (doc. n.º 17).
31. Em data não apurada do final do ano de 2009 o BES concedeu ao requerente um crédito até € 3.000,00.
32. Em 9/01/2010 o valor não liquidado era de €3.116,82 (doc. n.º 18).
Da questão de direito:
A exoneração do passivo restante, enquanto medida específica das pessoas singulares, tem como objectivo primordial conceder uma segunda oportunidade ao indivíduo, permitindo que se liberte do passivo que possui e que não consiga pagar no decurso do processo de insolvência ou nos cinco anos subsequentes, em ordem a evitar que ficasse vinculado a essas obrigações, até ao limite do prazo de prescrição, que pode atingir 20 anos (art. 309º do C.C.) – cfr. Menezes Leitão, Direito da Insolvência, pags. 305 e 306.
Estatuem os arts. 235º a 238º do CIRE:
Art. 235º
Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.
Art. 236º
1 – O pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação e será sempre rejeitado se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio.
2 – Se não tiver sido dele a iniciativa do processo de insolvência, deve constar do acto de citação do devedor pessoa singular a indicação da possibilidade de solicitar a exoneração do passivo restante, nos termos previstos no número anterior.
3 – Do requerimento consta expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes.
4 – Na assembleia de apreciação de relatório é dada aos credores e ao administrador da insolvência a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento.
Art.º 237.º
A concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe que:
a) Não exista motivo para o indeferimento liminar do pedido, por força do disposto no artigo seguinte;
b) O juiz profira despacho declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239.º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado despacho inicial;
c) Não seja aprovado e homologado um plano de insolvência;
d) Após o período mencionado na alínea b), e cumpridas que sejam efectivamente as referidas condições, o juiz emita despacho decretando a exoneração definitiva, neste capítulo designado despacho de exoneração.
Art. 238º:
1 – O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
(…)
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;
(…)
2 – O despacho de indeferimento liminar é proferido após a audição dos credores e do administrador da insolvência na assembleia de apreciação do relatório, excepto se este for apresentado fora do prazo ou constar já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos referidos no número anterior.
Na decisão recorrida o Sr. Juiz entendeu que:
- se não mostrava preenchido o requisito previsto na alínea d) do art. 238º do CIRE, por ser evidente que, pelo menos desde 2008, o insolvente se encontra numa situação de manifesta incapacidade de solver as suas dívidas, pelo que, mediando entre esta e o pedido de insolvência mais de 2 anos, já estão há muito ultrapassados os 6 meses que dispunha para se apresentar à insolvência;
- o facto de o requerente não se ter apresentado à insolvência no prazo que é legalmente fixado, conjugado com a circunstância de ter aumentado deliberadamente o passivo numa altura em que já revelava manifesta incapacidade de solver as suas dívidas, reverteu inexoravelmente em prejuízo dos credores;
- o requerente não só contribuiu decisivamente para a sua própria insolvência, como também não tinha qualquer motivo sério para acreditar que a sua situação económica iria melhorar, considerando designadamente o facto de já não se encontrar em plena idade activa, sendo deveras elucidativa a afirmação do próprio de que "perdeu a conta às responsabilidades mensais a que se encontrava obrigado".
Assim, em causa na apelação está a questão de saber se se verificam os requisitos enunciados na al. d) do n.º 1 do art. 238º, a saber:
a. a apresentação à insolvência para além do prazo de seis meses desde a verificação da situação de insolvência;
b. a existência de prejuízos decorrentes desse incumprimento;
c. o conhecimento de que não havia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
A verificação cumulativa desses requisitos impede a concessão do pedido de exoneração do devedor, sendo que a sua demonstração, enquanto facto (impeditivo) que obsta ao deferimento do pedido de exoneração do passivo, incumbe aos credores – art. 342º, n.º 2, do CC.
Quanto ao primeiro requisito:
A questão reconduz-se a saber se o devedor se apresentou à insolvência para além do prazo de seis meses após a verificação da situação de insolvência, ou seja, se esta ocorreu antes de 27-07-2010 (o requerimento de apresentação à insolvência foi deduzido dia 27.01.2011).
Prescreve o art. 3º, n.º 1, do CIRE que “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
Assim, só o incumprimento das obrigações vencidas susceptibiliza o requerimento de insolvência por iniciativa de outro legitimado que não o próprio devedor.
Este, pode e deve apresentar-se à insolvência independentemente do vencimento das obrigações, desde que o incumprimento se perspective no horizonte, em ponderação da sua situação concreta e das expectativas que objectivamente deve ter quanto à capacidade de honrar atempadamente os respectivos compromissos – cfr. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, volume 1º, pag. 70.
Ora, de acordo com o provado, e alegado pelo próprio devedor, em meados de 2007 este auferia a quantia mensal de cerca de €1600,00 e as despesas com a renda, água, luz, gás, alimentação, vestuário e calçado, bem como as despesas médicas e medicamentosas do seu agregado familiar, totalizavam a quantia mensal de €1.050,00.
Deste enunciado decorre que em meados de 2007 restava-lhe um rendimento disponível de €550,00 por mês para as demais despesas (€1600,00-€1050,00), nomeadamente com a amortização de empréstimos que lhe foram concedidos (pessoais e ao consumo).
Efectivamente, flui do provado que em 11 de Maio de 2007 o devedor/insolvente celebrou com a C um contrato de crédito consolidado no valor de €39.000,00, destinando-se a quantia de €34.658,31 ao pagamento dos saldos devedores dos créditos que lhe foram anteriormente concedidos pela G , H , C e I (pessoais e ao consumo).
E sete dias antes tinha celebrado com a B , um contrato de utilização de um crédito até ao valor de € 2.500,00 euros.
Esta factualidade demonstra com toda a clareza que as quantias auferidas pelo devedor não eram suficientes para fazer face às suas despesas pessoais e de consumo.
E, por virtude da concessão destes dois empréstimos, para efeitos da sua amortização, o devedor ficou obrigado a pagar a quantia mensal global de €687,89 (€52,08 + €578,88 + €56,93).
Ora, manifestamente, este não possuía rendimentos permissíveis ao cumprimento das suas obrigações.
Esta situação agravou-se a partir de 30/09/2007, em face da diminuição dos seus rendimentos mensais, por virtude de ter passado à situação de reforma antecipada, altura em que passou a auferir o rendimento mensal líquido de €1.457,43 (€752,76 + €704,67), sendo as suas despesas de montante não inferior a €1.737,89 (€1050,00 + € 687,89).
Pelo menos a partir do último trimestre de 2007 o devedor encontrava-se impossibilitado de satisfazer as suas obrigações, a não ser através do sucessivo recurso ao crédito.
Isso mesmo reconheceu o devedor na p.i. em que se apresentou à insolvência, onde alegou (arts. 17º, 18º e 19º) que “acometido por um profundo estado depressivo resultante da impossibilidade de cumprir pontualmente o pagamento das prestações mensais dos empréstimos a que se tinha vinculado”, “viu-se (…) confrontado com a necessidade de procurar apoios para combater as dificuldades económicas existentes”, “tendo, numa perfeita atitude de desespero, recorrido a novos empréstimos, que apenas serviram para ampliar com maior acutilância a drástica e dramática posição de descalabro económico-financeiro em que já se encontrava”.
Foi neste quadro que em 2008 o devedor contraiu mais três empréstimos junto da G , J e D no valor global de €21.581,63.
E em 2009 contraiu outros três empréstimos junto do J , L e I , no valor global de €9.650,00.
Na altura da contracção destes empréstimos o devedor estava perfeitamente consciente da sua falta de meios económicos para amortizar os mesmos, a não ser através do recurso a outros créditos para pagar, ainda que parcialmente, os créditos anteriores.
Recorreu assim o devedor a uma situação de sobreendividamento para fazer face a endividamentos anteriores, sem qualquer perspectiva de poder cumprir todas as suas obrigações.
E a partir de determinada altura os novos empréstimos já nem sequer bastavam para ir amortizando a dívida anterior, sendo sintomático de tal a circunstância de relativamente aos últimos cinco empréstimos a dívida decorrente de cada um deles ser em 2010 de valor superior (capital + juros) ao montante dos empréstimos.
Assim, era absolutamente certa e segura logo em finais de 2007 a impossibilidade do devedor/insolvente cumprir, sendo manifesta então a sua situação de insolvência, logo que desistisse desta “bolha financeira”.
E não se diga, como o faz o insolvente, que tinha a expectativa de vir a arranjar trabalho como electricista.
Efectivamente, o que releva nesta matéria é a possibilidade de cumprimento pontual das obrigações constituídas.
Por outro lado, não tendo obtido esse emprego no último quadrimestre de 2007 e na primeira metade do ano de 2008, não poderia o mesmo, com o avolumar da crise económica do nosso país, iniciada nesse ano, ter a expectativa séria de obter tal emprego, para assim amortizar os empréstimos que veio a contrair em 2008 e 2009.
Conclui-se, pois, como na decisão recorrida, pelo incumprimento pelo ora apelante da obrigação de no prazo de seis meses anteriores à ocorrência da situação de insolvência se apresentar à mesma.
Quanto aos demais requisitos (existência de prejuízos decorrentes do incumprimento daquela obrigação e conhecimento pelos insolventes de que não havia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica):
O insolvente atrasou-se na apresentação à insolvência, não tendo propiciado, o mais rapidamente possível, a solução da situação de acordo com os parâmetros legais, sendo que o seu arrastamento gerou mais prejuízos.
É certo que, como se decidiu no Ac. STJ de 21-10-2010 (relatado pelo Cons. Oliveira Vasconcelos, in www.dgsi.pt), citado na decisão recorrida, do simples facto de o devedor se atrasar na apresentação à insolvência não se pode concluir que daí advieram prejuízos para os credores.
Não é menos certo que as instituições de crédito contribuíram para a situação ao facilitarem o crédito ao devedor, estando naturalmente conscientes do risco do não reembolso dos empréstimos, levadas, por certo, pelas altas taxas de rentabilidade.
Porém, deriva do provado que no período posterior à sua situação de insolvência (esta situa-se em finais de 2007) o devedor contraiu novos débitos (empréstimos de 2008 e 2009), tendo dessa forma agravado o passivo e a posição dos credores.
Assim, dos factos apurados deriva que do atraso do ora apelante na apresentação à insolvência decorreram prejuízos para os credores.
Por último, refira-se que o insolvente, ao invés de aceitar viver de acordo com as suas possibilidades, entrou numa espiral de endividamento para fazer face a empréstimos anteriores, agravando as suas responsabilidades, o que, naturalmente, foi feito com a consciência de que não poderia cumprir as suas obrigações.
E, como supra afirmámos, de acordo com critérios de normalidade das coisas e de senso comum, não podia ter a expectativa séria de melhoria da sua situação económica e/ou de conseguir suportar as dívidas contraídas com os montantes que auferia.
Actuou, por isso, de uma forma manifestamente censurável.
Verifica-se, pois, a situação prevista na al. d) do n.º 1, do art 238.
Do que se deixa dito decorre a improcedência da apelação.
*
(…)

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VI. Decisão:
Pelo acima exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Custas pelo apelante.
Notifique.

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2012

Manuel Marques - Relator
Pedro Brighton - 1º Adjunto
Teresa Sousa Henriques – 2ª Adjunta