Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5715/10.2TCLRS.L1-1
Relator: ANTÓNIO SANTOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
AUTO-ESTRADA
ACIDENTE
CONTRATO DE CONCESSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/14/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 - Nos termos dos artigos 18º, n.º 1, e 22º, nº1, ambos da LOFTJ (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro ), a competência dos tribunais da ordem judicial é residual (os tribunais judiciais são competentes para as causas não legalmente atribuídas aos tribunais de outra ordem jurisdicional ), sendo que ela - a competência - “ (…) fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram “.
2 - Dispõe o artº 4º, nº1, alínea i), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto a “ Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.
3 - Reza o art. 1, n.º 5 do Anexo à Lei n.º 67/2007, de 31/12, que “ As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”; E ,
4 - Atendendo a que a causa petendi da acção relaciona-se com pretensa omissão e/ou acção da Ré enquanto entidade concessionária de IC , ou seja, aquando da execução de tarefas administrativas em sede de contrato administrativo, estando, por isso, a sua actividade regulada por disposições e princípios de direito administrativo ; Tudo ,
5 - Conduz a que a eventual obrigação/responsabilização da Ré concessionária, por actos ou omissões decorrentes da subjacente actividade, se insere no âmbito de aplicação do artigo 1.º, n.º 5 do novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, e , como tal, por força do disposto no art. 4º, nº1, al. i) do ETAF, impõe-se que deva ser demandada perante os tribunais administrativos.
( Da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
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1.Relatório.
A ( ….Seguros, S.A.) , com domicílio na Av.ª ..., n.º , Lisboa, intentou no Tribunal Judicial de Loures acção declarativa e sob a forma de processo sumário, contra B ( …., S.A.) , com a denominação actual de …. , com domicílio em Algés, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 7.830,88.
Para tanto, alegou em síntese que :
- Tendo assumido, no exercício da sua actividade de Companhia Seguradora , a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação decorrentes da circulação do veículo 00-00-VQ, foi chamada a ressarcir os danos ( tendo o custo total da reparação orçado em 7 739,72) que tal veículo sofreu em acidente - despiste - ocorrido a 9/5/2009, no itinerário Complementar IC 17, Freguesia de F..., via esta da qual é a ré concessionária;
- Sucede que, estando a Ré, enquanto concessionária, obrigada a garantir as condições de segurança do referido IC, designadamente procedendo à respectiva vigilância, manutenção, limpeza e conservação, zelando para que na referida via a circulação rodoviária decorra com normalidade e segurança dos respectivos utentes, o certo é que o acidente ocorrido a 9/5/2009 ficou a dever-se precisamente ao não cumprimento pela Ré das referidas obrigações;
- É que, ao transitar pelo IC 17, no local do acidente, foi o condutor do veículo 00-00-VQ surpreendido com a existência em plena faixa de rodagem ( o que não deveria suceder ) e numa extensão de cerca de 120 metros, com gasóleo derramado no pavimento, o que fez com que necessariamente tivesse perdido subitamente o controle da viatura, entrando em despiste para o lado esquerdo e indo depois embater com a parte frontal esquerda no separador central;
- Destarte, porque foi a Ré a única e exclusiva responsável pela eclosão do acidente e cujos danos foi a autora chamada a ressarcir, na medida em que não procedeu ela , por omissão, à vigilância e conservação das boas condições de utilização do IC 17, impõe-se a respectiva responsabilização.
Após citação, veio a ré a contestar a acção, quer por excepção, quer ainda por impugnação, sendo que no âmbito da defesa por excepção veio arguir a incompetência absoluta do tribunal para conhecer da acção, aduzindo que o Tribunal Judicial de Loures é incompetente em razão da matéria, nos termos do art. 101º e segs. e 494º, alínea a) do CPC, atento o disposto no art. 4º n.º 1 alínea i) do ETAF e art. 1º n.º 5 da Lei n.º 67/2007, o que tudo “ implica a absolvição do réu da instância” (art. 105º n.º 1 do CPC).
Não se seguindo a apresentação de resposta á contestação, em sede de despacho saneador e conhecendo da excepção dilatória da incompetência absoluta arguida pela Ré, foi de imediato proferida decisão cujo excerto decisório foi do seguinte teor :
“Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) julgar procedente a excepção de incompetência absoluta deste Juízo Cível, por a competência em razão da matéria se encontrar atribuída aos Tribunais Administrativos;
b) absolver a ré B da instância; e
c) condenar a autora no pagamento das custas.
Fixo o valor à causa no indicado pela autora.
Registe e notifique. “.
1.1. - Da referida decisão, porque com ela não concordando, e inconformada, apelou então a autora, alegando e formulando na respectiva peça recursória as seguintes conclusões:
1. A competência material do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica tal como é apresentada pela Autora na Petição Inicial, i.e., pela forma como surgem definidos a causa de pedir e o pedido.
2. O pedido consiste na condenação da Apelada, no pagamento de uma indemnização, com fundamento na responsabilidade civil extra-contratual emergente da omissão dos deveres de vigilância, manutenção e conservação do IC17, por parte desta.
3. O litígio não emerge do contrato celebrado entre a Apelada e o Estado Português, nem de qualquer relação jurídica administrativa.
4. As partes são pessoas colectivas de direito privado.
5. Nos termos do art. 212°, nº 3 da Constituição, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
6. Não está em causa uma relação jurídica administrativa, pelo que funciona o critério residual previsto no art. 66º do Código de Processo Civil e no art. 18°, nº 1 da LOFTJ,que atribui a competência aos tribunais judiciais.
7. Não existe qualquer disposição legal que submeta a Apelada ao regime jurídico especifico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
8. Nenhuma das alíneas previstas no art.4°, nº 1 do ETAF tem aplicação ao caso dos presentes autos.
9. A responsabilidade civil extra-contratual da Apelada perante terceiros tem natureza exclusivamente privada.
10. Na determinação do tribunal materialmente competente para conhecer da questão dos presentes autos, funciona o critério residual, previsto no art. 66° do Código de Processo Civil e art. 18°, nº1 da LOFTJ.
11. São competentes para conhecer desta questão os tribunais judiciais e não os tribunais administrativos.
12. O Tribunal a quo é materialmente competente para decidir da questão levada ao seu conhecimento pela ora Recorrente.
13. A Douta Sentença ora recorrida viola o disposto nos artigos 66° do Código de Processo Civil e 18°, nº1 da LOTFJ.
NESTES TERMOS e nos melhores de direito, que V. Exa. Mui doutamente suprirá, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a Douta Sentença recorrida, e consequentemente considerar-se o Tribunal a quo materialmente competente, fazendo-se assim A COSTUMADA JUSTIÇA.
1.2.- Já em sede de contra-alegações, concluiu a apelada B , do seguinte modo :
1.ª) O art. 212º n.º 3 da CRP não consagra uma “reserva absoluta, quer no sentido de exclusiva, quer no sentido de excludente” da jurisdição administrativa, conforme têm defendido a generalidade da doutrina e jurisprudência nacionais, inclusive o TC (Tribunal Constitucional; neste sentido, vide o douto Acórdão n.º 211/2007 de 21 de Março, proferido no Proc. n.º 430/2002);
2.ª) Consequentemente o legislador tem alguma “margem de manobra” para definir o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, desde que não desvirtue o núcleo desta jurisdição (arts. 1º e 4º do ETAF);
3.ª) O litígio dos presentes autos está abrangido pela letra do artigo 1.º n.º 1 e do artigo 4º, n.º 1, alínea i), ambos do ETAF;
4.ª) A alínea i) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF apenas explicita a cláusula geral do art. 1º do mesmo diploma normativo, pelo que “ Em relação a essa matéria não se coloca, pois, qualquer problema de articulação” (Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida);
5.ª) Ainda que se entendesse existir uma colisão entre os dois preceitos, o art. 4º n.º 1, alínea i) do ETAF teria primazia ao abrigo do princípio “norma especial derroga norma geral” (Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida);
6.ª) A relação estabelecida entre as partes em juízo (recorrente e Recorrida) traduz-se numa relação jurídica administrativa, de acordo com o art. 212º n.º 3 da CRP e dos arts. 1º n.º 1 e 4º n.º1, alínea i) do ETAF;
7.ª) Face ao falhanço da busca da chamada “noção-chave” do Direito Administrativo, a jurisprudência e a doutrina nacionais têm apontado diversos critérios para averiguar se se está perante uma relação jurídica administrativa, destacando-se os: a) critério dos sujeitos, b) o critério do fim de utilidade pública, c) o critério da sujeição ou das prerrogativas exorbitantes e d) o critério estatutário;
8.ª) A relação estabelecida entre a ora Recorrida (Concessionária) e a recorrente, baseada no Contrato de Concessão, cumpre os diversos critérios referidos na conclusão anterior, inclusive o critério orgânico e dos sujeitos, como o demonstra a experiência alemã (Maria João Estorninho, “Requiem pelo Contrato Administrativo”, Almedina, Coimbra, pág. 72 e segs.);
9.ª) No entanto, e para saber se a competência para a apreciação do litígios dos presentes autos cabe aos tribunais administrativos, não basta aplicar o art. 4º n.º 1, alínea i) do ETAF porque, conforme estipula tal normativo legal, é necessário “saber se o facto constitutivo da responsabilidade se encontra ou não submetido à aplicação de um regime específico de direito público” (Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, “Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo”, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 34 e 35);
10.ª) A norma que aplica à situação dos presentes autos um regime específico de direito público é o art. 1º n.º 5 do novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, constante da Lei n.º67/2007, de 31 de Dezembro;
11.ª) Esta norma é, desde logo, aplicável aos presentes autos porque o acidente que fundamenta a presente acção ocorreu em 09.05.2009, isto é, em data posterior à entrada em vigor deste diploma legal (30.01.2008);
12.ª) A aplicação desta lei a acções ou omissões de pessoas colectivas privadas depende de dois pressupostos que são alternativos mas não cumulativos: a) o exercício de prerrogativas de poder público ou b) que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo;
13.ª) Na situação dos presentes autos estamos perante uma omissão (mais concretamente, a alegada omissão do dever de vigilância) da ora Recorrida, que é expressamente regulada por “disposições ou princípios de direito administrativo” (art. 1º n.º 5, parte final do novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas);
14.ª) As referidas disposições de direito administrativo a que faz referência o art. 1º n.º 5 do referido diploma legal são as disposições do contrato de Concessão (em sentido lato);
15.ª) Disposições essas que constam do Contrato de Concessão celebrado entre a ora Recorrida e o Estado português mas também de normas legais de direito administrativo (as Bases do Contrato de Concessão - Decreto-Lei n.º 242/2006, de 28 de Dezembro - e a respectiva minuta do Contrato de Concessão - Resolução de Conselho de Ministros n.º 171/2006, de 14.12.2006, corrigida através da Declaração de Rectificação n.º 4-A/2007, de 5 de Janeiro);
16.ª) Este entendimento é perfilhado pela doutrina e jurisprudência nacionais (Acórdão da Relação de Guimarães de 02.07.2009, proferido no Proc. n.º 2903/08.5TBVCT-A.G1O, e Acórdão do Tribunal de Conflitos de 09.12.2008, proferido no Proc. n.º 013/08);
17.ª) Acresce que, como bem salientou a douta sentença recorrida, a causa de pedir invocada pela autora/recorrente se baseia nas referidas disposições de direito administrativo, isto é, nas Bases do Contrato de Concessão (arts 38º e segs. da douta p.i.);
18.ª) Como é sublinhado pela jurisprudência, a causa de pedir invocada pela autora/recorrente determina a incompetência do Tribunal a quo (“Como é jurisprudencialmente incontroverso, a competência do Tribunal determina-se pelo pedido formulado pelo Autor e pelos fundamentos que invoca”);
19.ª) A jurisprudência citada pela recorrida nas suas doutas alegações não é aplicável à situação sub iudice pois os factos sobre os quais essa jurisprudência se pronunciou são anteriores à entrada em vigor do ETAF e da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro; e
20.ª) A tese defendida pela ora recorrida foi recentemente perfilhada no douto Acórdão da 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 30.06.2011 e proferido no Proc. n.º 1394/10.5YXLSB.L1 (cfr. Doc. 1);
21.ª) Em suma, a douta sentença recorrida fez uma correcta interpretação do art. 212º n.º 3 da CRP, do art. 4º n.º 1, alínea i) do ETAF e do art. 1º n.º 5 do novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, constante da Lei n.º 67/2007.
NESTES TERMOS, deve o presente recurso ser declarado improcedente e, em consequência, ser mantida a douta sentença recorrida, declarando-se os tribunais judiciais como incompetentes para apreciarem o presente litígio.
1.3. - Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo que , estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (cfr. artºs. 684º nº 3 e 685º-A, nº 1, do Cód. de Proc. Civil ), a questão a apreciar e decidir é tão só a seguinte :
- Saber se, in casu, é o tribunal a quo o competente em razão da matéria para conhecer da presente acção , pela apelante intentada ou, ao invés, se para o efeito a respectiva competência incumbe antes ao tribunal administrativo.
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2.- Motivação de facto
Para efeitos de decisão do mérito da instância recursória, importa atender tão só à factualidade que resulta do relatório do presente acórdão, e , sobretudo, ao facto de através da presente acção pretender a apelante lograr a condenação da apelada a pagar-lhe a quantia que, na qualidade de Companhia Seguradora, veio a apelante a suportar em sede de reparação de veículo automóvel segurado e cujos danos sofreu quando, ao circular no IC 17, veio a despistar-se alegadamente em resultado apenas das más condições ( atribuíveis a omissão da apelada no âmbito do cumprimento dos respectivos deveres de vigilância, manutenção e conservação , e enquanto concessionária ) de aderência do piso do referido IC .
3.Motivação de Direito
Como vimos supra, importa tão só apreciar no âmbito da presente instância recursória da competência em razão da matéria do tribunal a quo para conhecer da acção intentada pela apelante, importando pois aferir da efectiva verificação de excepção dilatória da incompetência absoluta, excepção que, podendo é certo ser suscitada oficiosamente pelo tribunal (cfr. artº 102º,nº1, do CPC), foi porém in casu arguida pela apelada e, em sede de despacho saneador, atendida pelo tribunal de primeira instância.
Para tanto, fundamentou-se na decisão apelada, para concluir pela incompetência em razão da matéria do tribunal judicial, e em traços gerais, do seguinte modo :
“ (…)
a competência tem que ser aferida não só pela natureza das partes, mas, também, pelo pedido e especialmente pela causa de pedir configurados pelo autor, de que há-de resultar se a conduta do réu integra um acto de gestão pública ou um acto de gestão privada, isto é, se a sua conduta se enquadra no âmbito do exercício de uma função pública com vista à prossecução de um interesse público ou se, não obstante, a qualidade de ente público, o acto foi praticado ou omitido sem a veste do ius imperii, como se se tratasse de um particular. É, pois, desta distinção que há-de resultar o preenchimento da cláusula geral constante do art.º 212.º, n.º 3, da CRP, e a conclusão de que estamos perante uma relação jurídica material administrativa, que o Prof. Freitas do Amaral define como sendo aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres aos particulares perante a Administração (cfr. Direito Administrativo, vol. 3.º, pp.439).
Actualmente, como defende a ré, no que respeita às concessionárias, não podemos deixar de conjugar as referidas normas do ETAF com o preceituado no art.º 1.º, n.º 5 do RRCEEEP, segundo o qual as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo.
(…)
E, assim sendo, a ré que, enquanto entidade privada, celebrou um contrato de concessão de exploração de um bem de domínio público, estabeleceu com o Estado uma relação jurídico-administrativa através da qual exerce prerrogativas de poder público e, por conseguinte, por força do citado art.º 1.º, n.º 5, está sujeita ao RRCEEEP, o que produz reflexos na competência em razão da matéria para a apreciação e decisão dos actos e omissões decorrentes desse exercício, porquanto o art.º 4.º, n.º 1, al. i), do ETAF, dispõe que compete aos Tribunais Administrativos a apreciação e decisão sobre as questões relacionadas com a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
(…)
A ré, de harmonia com as Bases do Contrato de Concessão constantes do Decreto-Lei n.º 242/2006, de 28 de Dezembro, no âmbito do exercício das suas funções de prossecução do interesse público, é responsável pela segurança da circulação rodoviária nas estradas que estão sob a sua jurisdição e, por isso, a questão de saber se a omissão do acto de limpeza do pavimento foi causa do acidente, não poderá deixar de ser discutida nos Tribunais Administrativos.
E, desta sorte, é óbvio que a apreciação da acção de responsabilidade civil da ré, por prejuízos decorrentes de omissão de gestão pública, nos termos da al. i) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF, em conjugação com o art.º 1.º, n.º 5, do RRCEEEP, e por estarmos perante uma relação jurídica administrativa, compete à jurisdição administrativa, tal como, aliás, já se entendia antes da respectiva reforma (cfr., entre muitos, ac. do Tribunal de Conflitos, 18/11/2004, proc.º n.º 025/03; ac STJ, 17/03/93, proc. n.º 083608; e ac. TRP, 05/02/2004, proc.º n.º 0430338, todos in www.dgsi.pt). “
A nosso ver, como já por diversas vezes foi decidido por tribunais de segunda instância [ entendimento que não vemos razões para não perfilhar, antes pelo contrário, não olvidando ainda o disposto no nº 3, do artº 8º, do Cód. Civil (1) ] e, de resto, muito recentemente até (2), considerando designadamente a causa petendi, impõe-se desde já adiantar que nada há a apontar à decisão apelada, que assim deve manter-se.
Desde logo, importa reconhecer que, de facto, é em face do pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos ( causa petendi ) em que o mesmo se apoia, e tal como a relação jurídica é pelo autor delineada na petição ( quid disputatum ou quid dedidendum ), que cabe determinar a competência do tribunal para de determinada acção poder/dever conhecer (3).
Depois, nos termos dos artigos 18º, n.º 1, e 22º, nº1, ambos da LOFTJ (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro ) , importa não olvidar que a competência dos tribunais da ordem judicial é residual (os tribunais judiciais são competentes para as causas não legalmente atribuídas aos tribunais de outra ordem jurisdicional ), sendo que ela - a competência - “ (…) fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram “.(4)
E, sendo assim como é, relacionando-se in casu a causa petendi com um acidente ocorrido em 2009 em IC (5) do qual é a apelante a concessionária ( necessariamente no âmbito da exploração de um bem de domínio público ), quer atendendo ao disposto no artº 1º, nº1 (6) , quer designadamente ao preceituado no artº 4º, nº1, alínea i) (7), ambos do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, por sua vez conjugados com o disposto no artº 1º, nº 5, do Anexo à Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro (8), e não olvidando ainda o preceituado no artº 12º Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho (9), tudo interligado, obriga forçosamente a concluir que bem andou a primeira instância em decidir pela respectiva incompetência em razão da matéria para da acção conhecer, improcedendo no essencial a conclusão nº 7 da apelante [ no sentido de que “ Não existe qualquer disposição legal que submeta a Apelada ao regime jurídico especifico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público “ ].
Ademais, também as conclusões 8ª e 9ª da apelante [ “ Nenhuma das alíneas previstas no art. 4°, nº 1 do ETAF tem aplicação ao caso dos presentes autos “, e , “A responsabilidade civil extra-contratual da Apelada perante terceiros tem natureza exclusivamente privada “ ] não procedem, quer considerando o disposto na já citada alínea i) , do artº 4º, do ETAF ( a qual reflecte o abandono pelo legislador do critério delimitador da natureza pública ou privada do acto fundamentador da pretensão para efeitos de determinação da competência dos tribunais administrativos e fiscais), quer atendendo a que, em face agora do estatuído no art. 1, n.º 5 do Anexo à Lei n.º 67/2007, de 31/12, para que as disposições do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas sejam aplicáveis às pessoas colectivas de direito privado , basta que as respectivas acções ou omissões sejam adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
Que assim é refere-o v.g. Carlos Alberto Cadilha (10), explicando que, correlacionando-se directamente um com o outro [ pois que o citado art. 1º, n° 5 da Lei 67/2007, na prática, concretiza o princípio delineado no art. 4º n° 1 al. i) do ETAF ], em rigor indica a primeira disposição legal referida quais as situações em que as entidades privadas poderão ser submetidas a um regime de responsabilidade administrativa e, consequentemente, poderão ser demandadas perante os tribunais administrativos em acções de responsabilidade civil ( nos termos do art. 4° n° 1 al. i) do ETAF ), sendo que, para tanto, bastará que se verifique qualquer uma das seguintes e já indicadas situações : a) as respectivas acções ou omissões sejam adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público , o que equivale ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade ; b) as acções ou omissões sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, o que significa que os respectivos exercícios deverão ser reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo . (11)
Ora, se atentarmos ao que resulta das Base III e IV, do Anexo I, da Lei nº 242/2006, de 28 de Dezembro (12), vemos que a concessionária deve desempenhar as actividades concessionadas de acordo com as exigências de um regular, contínuo e eficiente funcionamento do serviço público e adoptar, para o efeito, os melhores padrões de qualidade disponíveis em cada momento, e, bem assim, que a Natureza da Concessão é obra pública, sendo estabelecida em regime de exclusivo relativamente à Auto-Estrada que integra o seu objecto.
Do mesmo modo, considerando o teor da Resolução do Conselho de Ministros nº 171/2006, publicada no Diário da República, 1.a série, n.º 249, de 29 de Dezembro de 2006, por sua vez rectificada através da Declaração de Rectificação da Presidência do Conselho de Ministros, nº 4-A/2007, de 5 de Janeiro de 2007, publicada no DR, 1ª Série, nº 6, de 9 de Janeiro, outrossim se descortina que, no âmbito do objecto e natureza da concessão ( referente v.g. ao Lanço de Auto-Estrada da A36 / IC17, deve a Concessionária desempenhar as actividades concessionadas de acordo com as exigências de um regular, contínuo e eficiente funcionamento do serviço público , sendo que , no âmbito da respectiva natureza , a Concessão é de obra pública ( cfr. CAPÍTULO II, sob a epígrafe de “Objecto e natureza da concessão”, itens 7.1 e 8 ).
Manifesto é , assim , que em face das disposições acabadas de referir, a actividade económica desenvolvida pela apelada na qualidade de concessionária de uma auto-estrada, se desenvolve num quadro de índole notoriamente pública, sendo no essencial chamada a colaborar com a Administração na execução de uma tarefa administrativa de gestão pública e outrossim de interesse económico geral, razão porque, não olvidando ainda o disposto no artº 36º, nº4, do Dec-Lei 558/99 de 17/12 [ na redacção introduzida pelo Dec-Lei 300/2007 de 23/8 (13) ] , as acções e omissões da apelada/concessionária não podem deixar de ser reguladas por disposições e princípios de direito administrativo.
E, sendo assim, como forçosamente é , cai inevitavelmente a causa petendi na previsão do art. 1° n° 5 da Lei 67/2007 e, por arrastamento, por força do disposto no art. 4° n° 1 al. i) do ETAF, é aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal que compete a apreciação do litígio com ela interligado.
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Concluindo e sumariando ( cfr. nº7, do artº 713º, do CPC), considerando que :
1 - Nos termos dos artigos 18º, n.º 1, e 22º, nº1, ambos da LOFTJ (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro ), a competência dos tribunais da ordem judicial é residual (os tribunais judiciais são competentes para as causas não legalmente atribuídas aos tribunais de outra ordem jurisdicional ), sendo que ela - a competência - “ (…) fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram “.
2 - Dispõe o artº 4º, nº1, alínea i), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto a “ Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.
3 - Reza o art. 1, n.º 5 do Anexo à Lei n.º 67/2007, de 31/12, que “ As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”; E ,
4 - Atendendo a que a causa petendi da acção relaciona-se com pretensa omissão e/ou acção da Ré enquanto entidade concessionária de IC , ou seja, aquando da execução de tarefas administrativas em sede de contrato administrativo, estando, por isso, a sua actividade regulada por disposições e princípios de direito administrativo ; Tudo ,
5 - Conduz a que a eventual obrigação/responsabilização da Ré concessionária, por actos ou omissões decorrentes da subjacente actividade, se insere no âmbito de aplicação do artigo 1.º, n.º 5 do novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, e , como tal, por força do disposto no art. 4º, nº1, al. i) do ETAF, impõe-se que deva ser demandada perante os tribunais administrativos.
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4.- Decisão.
Pelo exposto acordam os Juízes na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa , na sequência dos fundamentos expostos, em não conceder provimento à apelação e, consequentemente, mantêm a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
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(1) Diz o nº3, do artº 8º, do CC, que “ Nas decisões a proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito “.
(2) Cfr., designadamente, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 2/7/2009 e de 7/10/2010, do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30/6/2011 e do Tribunal da Relação do Porto, de 3/11/2011, todos eles acessíveis in www.dgsi.pt. .
(3) cfr. Manuel de Andrade, “in Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, pág. 91).
(4) Cfr. ainda o disposto no art.º 5º, nº1, do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, e alterado v.g. pelas Leis nºs 4 -A/2003, de 19 de Fevereiro, 107 -D/2003, de 31 de Dezembro, 1/2008, de 14 de Janeiro, 2/2008, de 14 de Janeiro, 26/2008, de 27 de Junho, 52/2008, de 28 de Agosto, 59/2008, de 11 de Setembro e Decreto-Lei n.º 166/2009, de 31 de Julho.
(5) A IC 17 , também conhecida por CRIL (Circular Regional Interior de Lisboa), e que consiste numa auto-estrada que circunda a cidade de Lisboa nos seus limites terrestres, a norte e a oeste, ligando Algés a Sacavém, numa extensão de 21 km e fecha um anel rodoviário em torno de Lisboa, também a sul, pelo seu seguimento contínuo com a Ponte Vasco da Gama e com a A12.
(6) O qual reza, sob a epígrafe de “ Jurisdição administrativa e fiscal ”, que “ Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais “.
(7) O qual dispõe que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto a “ Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.
(8) Aprova o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, dispondo o respectivo nº 5, do artº 1º, que “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo “.
(9) Diploma que define os direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares, dispondo o respectivo artº 12º , sob a epígrafe de “ Responsabilidade” e no respectivo nº1, alínea c), que “ Nas auto -estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a:
(…)
c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.
(10) In “ Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas “, Anotado, Coimbra Editora, 2008, págs. 48 e segs.
(11) Cfr. Acórdão do Tribunal de Conflitos de 20/1/2010, Relatado por Garcia Calejo, e disponível in www.dgsi.pt. .
(12) Diploma que aprova as bases da concessão da concepção, projecto, construção, aumento do número de vias, financiamento, manutenção e exploração dos lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados, designada por Grande Lisboa, a que se refere a alínea a) do artigo 2.do Decreto-Lei nº 119-B/99, de 14 de Abril, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 85/2003, de 24 de Abril.
(13) Nos termos do artº 36º, nº 4, do Dec-Lei 558/99 de 17/12 “ Às empresas privadas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral, por força de concessão ou da atribuição de direitos especiais ou exclusivos, é aplicável o disposto nos artigos 9.º, 12.º e 13.º e no capítulo II do presente diploma “, sendo que “ (…) são consideradas empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral aquelas cujas actividades devam assegurar a universalidade e continuidade dos serviços prestados, a coesão económica e social e a protecção dos consumidores, sem prejuízo da eficácia económica e do respeito dos princípios de não discriminação e transparência “ ( cfr. artº 19º, nº1 ), estando assim tais empresas privadas obrigadas a prosseguir as missões que lhe estejam confiadas no sentido, consoante os casos, de ” Cumprir obrigações específicas, relacionadas com a segurança, com a continuidade e qualidade dos serviços e com a protecção do ambiente, devendo tais obrigações ser claramente definidas, transparentes, não discriminatórias e susceptíveis de controlo “ ( Cfr. artº 20º, alínea f) ).
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Lisboa, 14 de Fevereiro de 2012

António Santos (Relator)
Eurico José Marques dos Reis ( 1º Adjunto)
Ana Maria Fernandes Grácio ( 2º Adjunto)