Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
211/09.3TBLHN-N.L1-7
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: INSOLVÊNCIA
CREDOR RECLAMANTE
DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/28/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: No processo de reclamação de créditos, apenso à insolvência, os credores da massa insolvente, sendo titulares de um conflito de interesses em que um dos vértices são eles próprios, outro a massa insolvente e ainda outro todos os restantes credores e, portanto, parte processual, independentemente de terem deduzido impugnações ou de os seus créditos terem sido impugnados, estão impedidos de depor como testemunhas, nos termos do disposto no art.º 617.º do C. P. Civil.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO.

No âmbito do apenso de reclamação de créditos relativa à insolvência de A… SA, a sociedade credora B… SA, apresentou requerimento de impugnação da lista de credores reconhecidos, nos termos do disposto no art.º 130.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) e apresentou provas, nos termos do disposto no art.º 134.º do mesmo código.
O Tribunal a quo não admitiu o respetivo rol de testemunhas com fundamento em que as pessoas como tal indicadas são credores reclamantes e/ou credores cujos créditos foram reconhecidos pelo administrador da insolvência, estando impedidos de depor como testemunhas, nos termos do art.º 617.º do C. P. Civil.
Inconformada com essa decisão a credora, Sociedade S. A, dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a revogação do despacho e a admissão do rol de testemunhas, formulando as seguintes conclusões:
1.ª Vem o presente recurso interposto do despacho de fls. que indeferiu o requerimento de prova apresentado pela recorrente no que concerne às testemunhas por esta indicadas em sede de impugnação da Lista de Créditos reconhecidos e não reconhecidos, com fundamento no facto de alegadamente serem partes no presente apenso e, como tal, estarem impedidas de depor como partes por força do disposto no artigo 617.º do CPC.
2.ª Todavia, e com o devido respeito, mal andou o Tribunal a quo ao proferir o despacho em crise, na medida em que o mesmo faz incorreta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 617.º do CPC e 132.º, 134.º, n.º 1 e 4 e 136.º, n.º 1 do CIRE, porquanto o conceito de partes adotado pelo douto Tribunal neste Apenso, e que motiva a aplicação feita do disposto no artigo 617.º° do CPC, não se coaduna com as especificidades próprias da impugnação do reconhecimento de créditos no âmbito do CIRE, antes assumindo uma amplitude exacerbada, que estende o conceito a todos os credores da presente insolvência.
3.ª Tal entendimento, porém, não encontra qualquer correspondência com o real interesse em demandar e em contradizer que caracteriza a noção de parte para fins processuais, maxime para os fins da aplicação do artigo 617.º do CPC.
4.ª Donde, devem afastar-se, desde logo, deste conceito, e contrariamente ao que propugna o Tribunal a quo, quaisquer credores que não tenham deduzido impugnações.
5.ª Acresce que, apesar de o próprio CIRE determinar, no seu artigo 132.º, que as listas de créditos reconhecidos e não reconhecidos pelo administrador da insolvência, as impugnações e as respostas são autuadas por um único apenso, assim determinando o saneamento e o julgamento conjunto de todas as impugnações, isso não significa, naturalmente, que cada impugnação e respetiva resposta não tenham autonomia processual.
6.ª Assim sendo, nada obsta a que sejam indicadas como testemunhas numa determinada impugnação (que não verse sobre os respetivos créditos), credores cujo crédito tenha sido também impugnado. Apenas relativamente à impugnação do próprio crédito deverá ser, se assim o entender o impugnante, requerido o depoimento de parte do titular do crédito impugnado.
7.ª É que, como é manifesto, o credor arrolado como testemunha na impugnação de crédito alheio não assume aí a posição de parte — rectius, de confitente, nem na mesma tem qualquer interesse.
8.ª No caso vertente, e cingindo-nos apenas aos dois factos da Base Instrutória que dizem respeito às Impugnações de créditos deduzidas pela Requerente (artigos 10 e 20 da Base Instrutória, relativos à impugnação dos créditos reclamados pelas sociedades R… S.A., T…Lda., Av…S.A. e M…, Lda.), quando confrontados com o rol de testemunhas por esta apresentado, resulta a todos os títulos evidente que nenhuma das testemunhas aí indicadas assume a posição de parte quanto a esses factos, razão pela qual a sua indicação como depoentes a esses factos se afiguraria, em absoluto, destituída de sentido.
9.ª Ademais, importa atentar em que apesar de os factos constantes da Base Instrutória não dizerem respeito aos respetivos créditos, como acabou de se referir, das testemunhas arroladas nenhuma se encontra, presentemente, na posição de credor cujo crédito, tendo sido impugnado pela ora Requerente, subsista como tal, pelo que, não têm, de todo, a qualidade de contraparte processual em relação a esta última.
10.ª Mas ainda que assim não fosse, e que algum dos credores indicados como testemunha pela recorrente estivesse ainda na posição do credor impugnado, tal não obstaria, por maioria de razão, a que fosse ouvido como testemunha à matéria da impugnação de créditos de outro credor.    
A também reclamante (de créditos) R..., S. A contra-alegou pugnando pelo não provimento da apelação.

2. FUNDAMENTAÇÃO.

A) OS FACTOS.

Os factos a considerar são os acima descritos, sendo certo que a questão submetida a apreciação se configura, essencialmente, como uma questão de direito.

B) O DIREITO APLICÁVEL.
O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objeto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 660.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).

B. 1. Atentas as conclusões da apelação, supra descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pela apelante consiste, tão só, em saber se no processo de reclamação de créditos, apenso à insolvência, cada um dos credores reclamantes pode depor como testemunha no âmbito de uma impugnação de créditos, que não o seu, quer se trate de credores que não tenham deduzido impugnações, de credores cujos créditos não tenham sido impugnados, quer de credores cujos créditos tenham sido impugnados e de credores que tenham deduzido impugnações, ou melhor, como sintetizado na conclusão 6.ª, se, para efeitos de admissibilidade de depoimento dos credores como testemunhas, cada impugnação e respetiva resposta têm autonomia processual.

B. 2. Vejamos.
O cerne da questão sub judice, tal como colocada pela apelante, situa-se em saber se esta espécie processual, conexa com o processo de insolvência de tal modo que é organizado por apenso, apresenta especificidades próprias em relação ao regime processual geral que justifiquem um conceito de “parte” mais restrito do que aquele que é aflorado, entre outros, pelos art.ºs 3.º, 3.º-A, 26.º e 342.º do C. P. Civil e que o art.º 617.º do mesmo código estabelece como impedimento (geral) para depor como testemunha.
Começando pelo regime geral.
Dispõe o art.º 617.º do C. P. Civil que: “Estão impedidos de depor como testemunhas os que na causa podem depor como partes”.
O impedimento de depor como testemunha é, pois, estabelecido por antinomia ou exclusão com o depoimento de parte.
Se pode depor como parte não pode depor como testemunha.
O que seja o depoimento de parte é definido em função de dois vetores distintos, mas complementares, o primeiro dos quais nos é dado pela posição relativamente ao litigio objeto do processo e o segundo pelo fim que se visa atingir com tal diligência instrutória.
Em relação ao primeiro, o depoimento só pode ser prestado por quem, sendo contendor no conflito de interesses em causa, como tal se encontra no processo, exercendo os seus direitos processuais na defesa dos seus interesses (a título de exemplo, os já citados art.ºs 3.º, 3.º-A, 26.º e 342.º do C. P. Civil).
Em relação ao segundo o depoimento só pode ser prestado por quem possa dispor do interesse em litígio (art.ºs 553., n.ºs 1 e 2 e 5.º do C. P. Civil).
De facto, um e outro desses vetores se encontram orientados, e daí a sua complementaridade, para a prova através de confissão.
A epígrafe da III Secção, que começa no art.º 552.º do C. P. Civil, é disso sintomática com a expressão Prova por Confissão das Partes.
Com efeito, no seu desenho atual, o depoimento de parte[1] em processo civil destina-se essencialmente, antes de mais e mais que tudo, a obter a confissão de factos desfavoráveis (art.º 352.º e 356.º, n.º 1, do C. Civil).
Isso mesmo resulta do disposto nos art.ºs 552.º, n.º 2 e 553.º, n.º 3, do C. P. Civil, nos termos dos quais o depoimento de parte só pode ser requerido pela parte contrária ou por algum dos compartes, excluindo-se, portanto, o depoimento a requerimento do próprio, do disposto no art.º 356.º, n.º 2 do C. Civil que prevê a confissão judicial provocada e do art.º 563.º do C. P. Civil que determina a redução a escrito do depoimento confessório.
E dissemos, destina-se essencialmente, porque o depoimento de parte comporta também uma outra finalidade que, para nós, não é de somenos importância, mas que até agora não tem merecido a devida atenção como meio probatório, que podemos apelidar de auxiliar ou residual.
Referimo-nos à possibilidade de o próprio tribunal determinar o depoimento de parte para melhor se esclarecer sobre factos pertinentes para decisão da causa (art.º 552.º, n.º 1, do C. P. Civil), à indivisibilidade da confissão que determina a prova de factos favoráveis ao depoente (art.º 360.º do C. P. Civil) e à aplicação do principio da livre apreciação da prova no que respeita a factos desfavoráveis, insuscetíveis de confissão (art.º 361.º do C. Civil).
Em qualquer dos casos o depoimento de parte não se pode confundir com prova testemunhal pois, como dispõe o art.º 554.º, n.º 1, só pode incidir sobre factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento.
 A razão profunda que subjaz a um tal regime é simples e tem a ver com a suspeição que o legislador ficciona[2] relativamente ao depoimento testemunhal sobre factos que interessam a quem testemunha, ou seja, neste caso, a um dos titulares do conflito de interesses.
Com este fundamento, juris et de jure, depoimento testemunhal da parte, passe a contradição, só em depoimento de parte, nas condições que já descrevemos[3].
Assim delineado o regime geral do depoimento de parte e do que deva considerar-se parte em processo civil, resta-nos averiguar se na espécie processual em causa, o apenso de reclamação de créditos em processo de insolvência, ocorrem especificidades que justifiquem uma derrogação a esse regime geral, nomeadamente, nos bem delimitados termos em que a apelante a coloca, a saber, se o conceito de parte e logo do impedimento estabelecido pelo art.º 617.º do C. P. Civil, se devem definir relativamente a cada impugnação e respetiva resposta (que, assim, terão autonomia processual).
Ora, não obstante a atração que emana da respetiva elaboração conceptual, afigura-se-nos que a resposta não pode deixar de ser negativa por três ordens de razões, as duas primeiras de matriz negativa e a última de natureza positiva/afirmativa.
A primeira, é que nada na letra dos preceitos processuais em causa, em especial nos art.ºs 128.º a 140.º do CIRE, nos permite ancorar minimamente (art.º 9.º, n.º 2, do C. Civil) tal entendimento.
A apelante cita em abono da sua tese os art.ºs 132.º 134.º, n.º 1 e 4 e 136.º, n.º 1 do CIRE, dos quais apenas o art.º 134.º, n.º 4 e o art.º 136.º, n.º 1, apontariam para um processo de partes (mais restrito) dentro de outro processo de partes (alargado a todos os credores), mas essa aparente orientação é logo contrariada pela referência a interessados no n.º 5, do art.º 134.º e pela intervenção ativa, na matéria que permanece em conflito aberto[4], da comissão de credores e do administrador da insolvência, determinada pelo art.º 136.º, n.º 1, in fine, e n.º 2.
A segunda, é que não vislumbramos qualquer valor (como sejam, acrescidas dificuldades de prova) que, em especial nesta matéria, deva ser acautelado através de um regime especial de produção de prova pessoal.
A terceira, e a nosso ver a mais importante, é que a titularidade do conflito de interesses, subjacente ao conceito de parte, que acima aflorámos, se estende a todos e cada um dos credores, independentemente da situação dos seus créditos e da sua intervenção ou não intervenção na impugnação em causa.
O conceito de parte deve, nesta matéria, ser visto na perspetiva de cada um dos credores em direção à massa insolvente e, portanto, numa relação triangular em relação a esta e com os restantes credores.
Afinal, a massa será insuficiente para satisfazer todos os créditos (art.º 39.º e 182.º do CIRE, que citamos apenas para vincar essa asserção) e, nessa medida, todos os credores são titulares de um conflito de interesses em que um dos vértices são eles próprios, outro a massa insolvente e ainda outro todos os restantes credores.
A suspeição ficcionada, que estará na base do afastamento do depoimento testemunhal da parte processual tem aqui a mesma substância que no regime geral acima descrito e tanto vale para os credores que não tenham deduzido impugnações, para os credores cujos créditos não tenham sido impugnados, como para os credores cujos créditos tenham sido impugnados ou ainda para os credores que tenham deduzido impugnações, ou seja, vale para todos os credores da massa insolvente.
Aliás, como resulta do disposto nos art.ºs 66.º, n.º 1 e 70.º e 136.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE, todos os credores acabam por estar presentes no processo de impugnação através da comissão de credores.
Assim, não podendo os credores reclamantes ser ouvidos na qualidade de testemunhas, restaria ao credor interessado requerer o seu depoimento de parte, nos termos do art.º 553.º, n.º 2, do C. P. Civil, com o condicionalismo factual estabelecido pelo art.º 554.º do mesmo código, o que é substancialmente diverso da sua inquirição como testemunhas.
Improcede, pois, a apelação.

C) EM CONCLUSÃO.
No processo de reclamação de créditos, apenso à insolvência, os credores da massa insolvente, sendo titulares de um conflito de interesses em que um dos vértices são eles próprios, outro a massa insolvente e ainda outro todos os restantes credores e, portanto, parte processual, independentemente de terem deduzido impugnações ou de os seus créditos terem sido impugnados, estão impedidos de depor como testemunhas, nos termos do disposto no art.º 617.º do C. P. Civil. 

3. DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa, 28 de fevereiro de 2012.

Orlando Nascimento
Ana Resende
Dina Monteiro

Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.
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[1] Não incluímos aqui o depoimento do interveniente acessório a que se reporta o art.º 555.º do C. P. Civil.
[2] Porque, na realidade, muitas vezes, um tal depoimento seria isento.
[3] Outra é a posição de ordenamentos jurídicos, que não o nosso, em que as partes são sempre ouvidas enquanto tal, independentemente de propósitos confessórios, para a delimitação e compreensão do litígio e, globalmente, para a solução do mesmo.
[4] Em conflito estão todos os credores na medida em que a massa será insuficiente para satisfação dos respetivos créditos.